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Crítica: o Brasil do futuro de “Divino Amor” é um luminoso cabaré gospel

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Brasil, 2027. A sociedade tupiniquim caminhou para um sistema ultra-religioso, com a palavra de deus sendo a lei básica. Uma tabeliã, Joana (Dira Paes), vive com plenitude dentro do novo país, e usa de sua função para dificultar divórcios, afinal, o casamento é o que há de mais sagrado no mundo. Aliás, sua vida é quase plena: ela e o marido, Danilo (Julio Machado), há tempos tentam ter um filho, sem sucesso, a provação extrema do altíssimo.

"Divino Amor", novo filme de Gabriel Mascaro, diretor pernambucano do maravilhoso "Boi Neon" (2015), estreou em dois dos maiores festivais do planeta, Sundance e Berlim, saindo ovacionado de ambos: atualmente conta com incríveis 86 pontos no Metacritic, uma das maiores notas do ano. Junto com "Bacurau", vencedor do Festival de Cannes, temos dois fortíssimos nomes para representar o Brasil no Oscar 2019, caso o novo Ministério da Cultura não surte como nos últimos anos, indicando longas sem a menor chance em nome de um conservadorismo patético - "Aquarius" (2016) e "Benzinho" (2018) sendo boicotados, um crime para nossa cultura.


Por meio de uma infantil narração onipresente, o texto de "Divino Amor" coloca na mesa as regras desse Brasil gospel. A religião evangélica está agora presente em todos os cantos, incluindo em versão drive thru - o fiel chega com seu carro para uma rápida palavrinha com um pastor, que coloca um hino de louvor para fortalecer a fé. Os retangulares templos ficaram obsoletos, e as festividades agora são ao céu aberto, em shows entupidos de pirotecnia e música eletrônica a fim de saudar deus. Joana ama tudo isso.


É muito engenhosa a forma com que o roteiro finca as normas e dá as naturalidades para o que é normal dessa realidade tão distópica. E é impossível não lembrar da série "The Handmaid's Tale" (2017-presente), um também futuro estadunidense à base da religião; a grande diferença entre as duas obras é o foco óptico. Em "Handmaid's", June nos conduz por meio das ruas opressoras de sua vida, enquanto em "Divino Amor" é Joana a porta-voz, que, ao contrário de June, celebra o sistema.

Não existe uma noção de resistência ou revolução dentro de "Divino Amor": tudo funciona (quase) dento da perfeição almejada. A película não está interessada em gerar uma sensação de quebra, de luta, e sim questionar como algo tão radical é prejudicial até mesmo para aqueles que tanto gozam de seus prazeres. Notem: por ser um sistema baseado no evangelho, todas as configurações são heterossexuais. Não existe o menor resquício de homossexualidade, com a união do homem e mulher sendo irretocável.

Fica bem claro que a fita não está, em segundo algum, batendo palmas para o que surge no ecrã, pelo contrário. Há uma pungente ironia que dosa perfeitamente o ridículo e o desconfortável, entrando cada vez mais nas insanidades desse Brasil onde a burocracia é sagrada. E Joana faz tudo o que pode para dificultar os divórcios, manipulando, mentindo e omitindo detalhes para que os casais permaneçam unidos diante dos olhos do Senhor - e ela guarda com imenso amor uma estante cheia de fotos dos casais que ela conseguiu evitar a separação. Deus está lá em cima em festa.


E, dentro desse governo, existe a Divino Amor, uma seita (essa palavra não é dita, todavia, é a melhor definição para aquilo) que funciona como ritual de inicialização dos casais nas escrituras. Há dinâmicas de grupo, leitura da palavra e procedimentos menos ortodoxos. Joana e Danilo fazem trocas de casais com os novatos, e a erótica câmera do filme não tem pudores em capturar o inquietante swing divino sob luzes neon - curiosamente, vários casais saíram da sessão em que eu estava já na primeira cena de sexo. Puritanos, vejo bem.

Esse é o novo Brasil, um cabaré gospel. O ethos construído pelo roteiro une o conservadorismo hipócrita com os pecados da carne, convenientemente convertidos em dádivas quando o lema da Divino Amor é "Quem ama divide". O fundamentalismo não tem vergonha ao se arvorar do bacanal como veículo de encontro com deus, porém não se engane: o bordel instaurado é muito bem controlado, com cada corpo e status social sendo verificado por máquinas nas entradas de todas as instituições, no melhor estilo "Black Mirror" (2011-presente).

Outra grande dualidade do longa é a configuração do relacionamento da protagonista: matriarcal, é ela quem sai de casa para trazer o sustento, enquanto o marido trabalha na pequena loja de flores que fica onde os dois moram. É mais uma forma de conservadorismo que une o passado e o futuro, que acolhe traços opressores sem deixar de soar moderneco - quando lhe convém, é claro. A culpa também é do marido do insucesso da procriação, mesmo se submetendo a diversos (e constrangedores) procedimentos de fertilização - in vitro é fora de questão, coisa do diabo. A semente dada por deus deve ser plantada diretamente na mulher.

É aí que Joana finalmente engravida. Aos prantos, ela ora com fervor, enchendo o todo poderoso de agradecimentos pela graça alcançada. Só que, ao extrair o DNA do feto, ele não é compatível com Danilo. A melhor cena da obra, a protagonista vai se apavorando cada vez que digita o nome dos vários homens com quem transou na Divino Amor, e todos incompatíveis. Sua única solução é óbvia: o filho no seu ventre é a volta do Messias.


O grande sucesso de "Divino Amor", um estranho drama que mistura ficção-científica com humor negro, é provido pela linguagem escolhida por Gabriel Mascaro. Toda a bizarrice (que não é pouca) é conduzida de maneira fluida por meio dos planos sequências que não quebram as cenas, quase como se a trama estivesse numa câmera lenta que combina magistralmente com a áurea sacra do filme.

A união de luzes naturais, em momentos que mal conseguimos ver o que está acontecendo, com luzes artificiais coloridíssimas, geram imageticamente esse futuro desconcertante que cega o fiel - e em diversos momentos me remetia a "Demônio de Neon" (2016) quando o filme de Mascaro adotava uma atmosfera onírica pelas cores e músicas narcotizantes. Dira Paes realiza uma performance competente quando doa seu corpo por inteiro, sem jamais soar caricata - talvez por ser um peão que reforça seu meio. É belo ver como a fita a enquadra, muitas vezes em contra-luz, como se deus estivesse banhando-a em toda a sua glória.

Apesar da era de resseção cultural tupiniquim, estamos emergindo através do Cinema, com nomes cada vez mais criativos ao unirem ineditismos com críticas sociais. Um efeito colateral benigno das pressões de um país em crise, temos, por exemplo, o fabuloso "As Boas Maneiras" (2018), que também escorre bizarrices para estudar nosso país - o mesmo que aconteceu na Grécia com a chamada "Estranha Onda Grega": movimento cinematográfico que surgiu com sua depressão econômica - vide "Dente Canino" (2009), "Chevalier" (2015) e "Piedade" (2018). Talvez estejamos diante de um novo apogeu.

O mais assustador de "Divino Amor" é sua consonância com o agora do nosso país: cada vez mais reacionário e com a bancada evangélica em plena força. O exagero do ufanismo religioso é prato cheio dentro da arte, e a película a escancara acidamente, na mesma medida em que alerta o avanço do fanatismo. Não é difícil vislumbrar essa realidade que tem a certidão de casamento como o principal documento, afinal, já está sendo valorizada a procriação e a família normativa na nossa pequenina distopia, sob o lema "deus acima de tudo". Num país que parece não haver regras, justiça e equidade, o cabaré sagrado de "Divino Amor" soa preocupantemente plausível.

Crítica: “Toy Story 4” é reciclado como os materiais que deram vida ao Forky

Eu nunca fui desses que conta o quanto chorou assistindo a franquia "Toy Story" - principalmente com "Toy Story 3" (2010). Mesmo com seus momentos emocionantes, nunca consegue me conectar verdadeiramente com a saga de Woody e Buzz Lightyear; o que não quer dizer que a franquia seja ruim. Com exceção de "Toy Story 2" (1999), o único longa falho do universo, havia muito a ser apreciado nas aventuras dos brinquedos.

O terceiro exemplar foi um fechamento incrível para a história, o laço em um arco que não precisava mais ser desfeito. O capitalismo, é claro, discordava: "Toy Story 4" vinha sendo requisitado pelo público desde o lançamento do terceiro, até ser confirmado em 2014. Cinco anos após, cá estamos.

Com a ida de Andy à faculdade, os brinquedos ficam na mão de Bonnie, que faz (literalmente) um novo amigo: Forky, um boneco colado a partir de um garfo encontrado no lixo. A menina se afeiçoa rapidamente ao brinquedo, que não aguenta passar muito tempo longe da lata de lixo, para o desespero de Woody: ele não pode permitir que Bonnie fique sem seu novo melhor amigo.


E o enredo da película é basicamente esse: a corrida maluca de Woody atrás de Forky, que vai se meter em inúmeras encrencas e arrastar todos os outros. "Toy Story 4" existe graças ao garfinho: desde os materiais promocionais, que colocavam o brinquedo no palco principal, até o fio condutor do roteiro, Forky desencadeia literalmente tudo. Só que não como protagonista: o Frankenstein de plástico criado por Bonnie é mero coadjuvante, com Woody servindo como porta-voz da trama.

É claro que o boneco dublado por Tom Hanks dá vida à franquia - tudo começou com ele -, entretanto, "Toy Story 4" tem um erro elementar visto em "Toy Story 2": a história foca demais no cowboy, colocando os outros como peões aleatórios que surgem na tela apenas nos momentos em que são necessários para empurrar o filme. Buzz Lightyear, coitado, é quase esquecido pelos roteiristas, que se desdobram para inserir o astronauta na trama de maneiras nada criativas - como puro requisito, já que ele não poderia ficar de fora.

O melhor do longa aparece quando Forky é capturado por Gabby Gabby, uma maniqueísta boneca que mora num antiquário e sonha em ser adotada por uma criança. Ela mantém o garfo em cativeiro, sob a vigilância de suas marionetes/seguranças, a fim de trocá-lo pela caixa de voz de Woody - Gabby acredita que é sua caixa defeituosa a responsável por fazer com que ela não seja escolhida entre os outros brinquedos.


Concomitantemente, Woody também tenta reencontrar Bo Peep, a boneca pastora que serve como seu par romântico, que, como mostra o prólogo, foi levada embora depois da ida de Andy à faculdade. Uma justificativa nada sutil de explicar o motivo da boneca não ter aparecido em "Toy Story 3", a sub-trama funciona quando quebra fronteiras de gênero - ela, agora uma boneca livre, vive de modo selvagem, quase uma Furiosa de "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015). Bo não tem cerimônia em dizer que é ela a liderar a expedição de salvamento de Forky, e Woody deve apenas se calar e aceitar. Gurl power, sim senhor.

Essa evocação do feminismo é um acréscimo mais que bem-vindo dentro da fita, ainda mais quando vemos que seu público alvo é o infanto-juvenil, bombardeado por culturais nada igualitárias. Porém, o filme perde uma enoooorme chance de ser verdadeiramente transgressor ao manter a ordem boneca-é-brinquedo-de-menina. Gabby, que poderia facilmente terminar nos braços de um garotinho, é adotado por uma chorosa menina; e seu sonho sempre foi terminar com vestidinhos, babados e festas do chá. O padrão nunca é rompido, talvez pelo medo das camadas mais reacionárias que fiscalizam qualquer aresta fora do lugar em obras infantis - "Frozen 2" (2019) nem estreou e a sexualidade de Elza já causou uma turba.

É um pouco assustador lembrar que o primeiro nome da franquia foi lançado em 1995, quase 25 anos atrás, e não só evoluções de discursos foram aprimorados, acompanhando as reivindicações por igualdades dentro do Cinema: a técnica também. De gráficos computadorizados, "Toy Story 4" desfila imagens belíssimas e ultra-fidedignas; as composições de cenas e até os detalhes das superfícies de plástico dos brinquedos são de cair o queixo - e a fotografia capta tudo com planos abertos e closes quase microscópicos. Do primeiro ao quarto, fazemos uma viagem no ágil crescimento tecnológico da Sétima Arte.


Como não poderia ficar de fora, o humor do roteiro é delicioso. Forky, que repete inúmeras vezes aos risos "Eu sou um lixo!", é o melhor do que podemos retirar de uma cultura alimentada à base de memes da internet. No entanto, quem rouba a cena é a dupla Ducky & Bunny, o pato e coelho de pelúcia do parque de diversões. Ambos, com suas coberturas fofíssimas, são quase mafiosos de rua que sugerem atacar velhinhas e caem na porrada quando necessário. Spin-offs à vista, com certeza.

Mas aí o filme chega ao seu fim e.........o que foi subvertido? O que a franquia ganha? Qual a função de abrir um enredo que já havia sido encerrado? "Toy Story 4", além de pouco interessante, é um apêndice, sem grandes serventias dentro da linha narrativa da franquia. De fato é bem superior ao pior nome dos quatro - o segundo -, mas longe de glórias e belezas anteriores, não casando com sucesso a nostalgia e novidades.

É difícil um filme com a marca Pixar ser ruim, e, mesmo não pendurando no pescoço esse rótulo, "Toy Story 4" é quase tão descartável e reciclado quanto os materiais que deram vida ao Forky. Suas sub-tramas engenhosas, como o feminismo e até doação de órgãos, não são o suficiente para ficarem no nível do melhor da saga ou de outras obras que possuem o mesmo mote, como "Uma Aventura LEGO" (2014) e seus primos. Reabertura desnecessária de algo bem finalizado, a roda do capitalismo não se conteve e sua bilheteria já ultrapassou meio bilhão de dólares. O brinquedo do garfinho, inclusive, está sendo vendido pela bagatela de R$ 130 nas melhores lojas.

Crítica: “Annabelle 3” foi lançado para render spin-offs com todos os novos demônios

Eu já perdi as contas de quantas vezes fui chamado de "hater" quando a franquia "Invocação do Mal" (2013-presente) entrou no assunto. De fato, a grande maioria dos exemplares saídos desse universo é uma tristeza, do patético filme original - que derrota demônios com pensamentos felizes - até seus spin-offs, o último sendo o fraco "A Maldição da Chorona" (2019).

Mas, como amante inveterado do terror, sempre acompanho os passos desse mundinho criado por James Wan - até porque, como crítico, é importante assistir aos grandes nomes da indústria para poder criar um contexto de produção moderna. Dos sete longas lançados, apenas um consegue sair do poço de mediocridade: "Annabelle 2: A Criação do Mal" (2017), que mostra os primórdios da possessão da boneca mais endiabrada da Sétima Arte.

Antes de mais nada, dentro de todas as ramificações da franquia, nunca enxerguei motivos sólidos para a áurea de mistério ao redor de Annabelle - que já possui mais filmes que a saga original. Ao contrário da Freira, da Chorona e até do Homem-Torto (que vai ganhar um filme solo), a boneca é nada visualmente interessante. Sentada imóvel, não existe uma dinâmica imagética, uma composição visual, apenas um objeto de cena sem vida que se mexe ocasionalmente de maneira artificial. Propulsora de eventos sobrenaturais, este é um fio condutor sem um apelo cinematográfico - comercial, sim, vide o sucesso das bilheterias dos três filmes.

Pois bem, pouco tempo após "A Maldição da Chorona", o universo já engata "Annabelle 3: De Volta Para Casa", o primeiro capítulo da relação da boneca com Ed (Patrick Wilson) e Lorraine Warren (Vera Farmiga). A presença do casal na tela é combustível efetivo para manter o interesse, afinal, eles são o cerne do universo - tudo começou por meio de seus olhos. A fita já é aberta com eles levando a boneca para sua casa e a trancando em uma caixa sagrada, e a produção não perde tempo em usar as artimanhas que cunharam seu sucesso: os jump-scares.


Dirigido e roteirizado por Gary Dauberman - co-roteirista de "It: A Coisa" (2017) -, é perceptível que há certos cuidados nas cenas de sustos, desde a fotografia, montagem e trilha-sonora - como a bela sequência da noiva andando ao redor do quarto, mesmo sendo uma cópia de um momento de "Invocação do Mal 2" (2016) - , todavia, se o objetivo era assustar, "Annabelle 3" fracassa: não existe medo à vista. Talvez pelo calejamento após tantos filmes ou por construções pobres do longa, a atmosfera da película jamais consegue arrepiar.

E isso, se colocado na ponta do lápis, não é lá um grande demérito: não há necessidade de apavorar completamente a plateia para um filme de terror ser competente. O problema de "Annabelle 3" reside em seu plot: a obra inteira se passa em apenas um dia. A abertura com os Warren dá esperança pela familiaridade bem-vinda, mas eles saem de cena rapidamente, já que devem investigar um caso. Assim, deixam a filha, Judy (Mckenna Grace, que atua muito para a idade), com a babá, Mary Ellen (Madison Iseman), as fatídicas protagonistas. Quando a melhor amiga de Mary, Daniela (Katie Sarife), aparece e liberta Annabelle, a noite será a pior da vida das três.

Uma das belezas do roteiro de Dauberman é a maneira como os personagens são desenvolvidos: por possuir uma faixa de tempo pequena, vemos looongas sequências que costuram suas vítimas - o mesmo que acontece em "It" e uma das maiores raridades dentro do terror, irresponsável em moldar o que há de mais importante, que são seus personagens.


Só que, lá pela metade do segundo ato, ao olhar no relógio, nada havia acontecido. Batendo 1h de filme, o plot deu passos curtíssimos e poucas coisas estavam à frente do início da duração. "Annabelle 3" peca no prisma oposto de seus concorrentes: ao invés de correr e atropelar seus acontecimentos, arrasta violentamente a trama a ponto de o tédio se instalar.

James Wan, o produtor de toda a saga, revelou que o filme seria um "Uma Noite no Museu" do terror, e a promessa não poderia ser mais acertiva: Annabelle sai possuindo todos os artefatos do grande porão dos infernos do Warren. São macacos de brinquedo e armaduras de samurai que ganham "vida" para assustar as pobres meninas - e sim, na tela é tão involuntariamente cômico como escrito aqui. Existem boas ideias ali, como a televisão que prevê o futuro, entretanto, o desespero de atirar para todos os lados ali é mais fraco ainda quando não existe retorno - e tem até um demônio em forma de lobisomem, que não sai do pé do crush da babá..............

E, assim como quase todos os filmes do universo, há brincadeiras (no sentido literal da palavra) que, antes divertidos, se tornam diabólicos - como o jogo das palmas no filme original. A marca jameswanística é viciada nisso, e não fica de fora em "Annabelle 3" com o holofote colorido (que rende a melhor cena de toda a empreitada) e o jogo de cartas. Só que esse formato, reciclado filme após filme, também pode ser um bloco que ajuda a diminuição do saldo geral, afinal, o filme segue a mesma cartilha de vários outros. É tudo muito previsível.


Uma das vantagens aqui é glória quase desconhecida na franquia: seu roteiro não é imbecil. Claro, há saídas ou escolhas questionáveis - a libertação da Annabelle por Daniela não é tão consistente -, contudo, mesmo com fragilidades, as burrices completas inexistem no texto. Nenhum demônio é vencido por ter seu nome gritado nem o sangue de Cristo apareceu para salvar o dia (?). Tudo é, dentro de suas limitações, correto.

Então o filme chega ao fim e óbvio está na nossa cara: os 106 minutos não servem para coisa alguma. Literalmente há nada a ser acrescentado dentro da linha temporal, pois o roteiro começa e termina exatamente no mesmo lugar e, caso não existisse, alteração nenhuma seria sofrida pela franquia. É fato que, só por não subestimar a inteligência do espectador, o longa garante a sessão, mas "Annabelle 3" é vazio.

De uma forma bem estranha, "Annabelle 3" ainda é um dos melhores (ou menos piores) nomes do universo "Invocação do Mal", o que ilustra o nível baixo dessa saga fast-food: de qualidade ruim e cheia de gordura, mas feita rapidamente e apetitosa para os olhos. "Annabelle 3" nada mais é que um catálogo com vários novos demônios sendo expostos aleatoriamente, prontíssimos para render ainda mais spin-offs e, claro, aumentar os bolsos de seus produtores, que já arrecadaram mais de U$ 1 bilhão em bilheteria.

Para os viciados em listas (como eu), ordem de preferência da franquia "Invocação do Mal": Annabelle 2 > Annabelle 3 > Invocação do Mal 2 > A Maldição da Chorona > Invocação do Mal > Annabelle > A Freira.

Crítica: “Fora de Série” fortalece o coming-of-age voltado às vozes femininas

Qualquer pessoa que viva no mundo globalizado e consuma material dos EUA, já deve ter percebido como a escola - ou, no caso deles, o high school - é terreno infinitamente fértil na cultura. São filmes e séries aos montes que focam nesse período específico da passagem de (quase) todas as pessoas. Apesar da maioria, querendo ou não, soar demasiadamente parecida, há pérolas icônicas saídas do sub-gênero ao longo das décadas, como "Clube dos Cinco" (1985), "As Patricinhas de Beverly Hills" (1995) e, o maior de todos, "Meninas Malvadas" (2004).

Até mesmo aqui no Brasil temos exemplos, afinal, "Malhação", que estreou em 1995, está no ar até hoje desbravando os dramas da adolescência. O que devemos levar em conta é que esse sub-gênero é majoritariamente voltado na chamada "revolução dos nerds": a vingança dos excluídos ao estarem no palco principal. Com o maior exemplo na cultura pop atual sendo a série "The Big Bang Theory" (2007-19), há uma incrível leva de produções que buscam focar dos dilemas femininos, os "Superbad: É Hoje" (2007) ao contrário.

Mais curioso ainda, é que, desde 2016, virou anual o lançamento desse tipo de filme: coming-of-ages que focam na emotiva e realística vida de protagonistas femininas (e que possuem as mesmas paletas de cores e cenas-chaves em piscinas!); coincidência ou não, podem continuar saindo: "Quase 18" (2016), "Lady Bird" (2017), "Oitava Série" (2018) e o novíssimo "Fora de Série" (2019), a estreia de Olivia Wilde na cadeira de direção.


Com exceção de "Oitava Série", todos os outros são dirigidos por mulheres (o que não é um demérito para "Oitava", o melhor entre os quatro); "Fora de Série" vai ainda mais longe, com todas as roteiristas sendo mulheres, além da maioria das produtoras. O filme segue os últimos passos de Molly (Beanie Feldstein, que também estrela "Lady Bird") e Amy (Kaitlyn Dever) na escola. Pretes a entrar na universidade, Molly tem orgulho de ser uma aluna exemplar, daquelas que abdicou de todas as loucuras da fase para ficar em casa estudando. Com a matrícula pronta em uma das maiores universidades do país, a garota não é sutil em esfregar este fato na cara dos bagunceiros que, segundo ela, não terão futuro; só que, para seu desespero, eles também vão para universidades tão grandes quanto a dela.

Molly então arrasta Amy para a última noite de escola, planejando irem à maior festa da classe, algo inédito na vida de ambas, a fim de compensar o tempo perdido presas em lições de casa. Essa trama em específica, a de nerds pirando o cabeção com bebida e música eletrônica para estarem no mesmo patamar da galera descolada, é nada nova: o delicioso "Projeto X" (2012) é inteiramente sobre isso. A magia de "Fora de Série" está numa discussão que qualquer um que cresceu dentro desse mundinho "CDF" vai se identificar.


Como lidar quando nos esforçamos violentamente em busca de um objetivo e vemos pessoas que não fazem metade do que fazemos conseguirem o mesmo? Você passa a semana estudando para um prova e aquele colega de classe que mal aparece na aula tira uma nota maior que a sua; ou você arrasando no trabalho e é o colega da firma que sempre chega atrasado a ganhar a promoção que você queria. Tal discussão é riquíssima dentro do gênero - e basicamente inédita, não lembro de filmes que abram o tema de maneira tão firme.

O primeiro terço da película é a construção e intimidade do público com as protagonistas, e é aqui que habitam os melhores diálogos. Seja pela simpatia contagiante de Molly, interpretada brilhantemente por Feldstein; à serenidade de Amy, uma lésbica em início de vida da atividade sexual, a dupla rende momentos hilários - a cena do panda, meu deus. É importantíssimo também, enquanto percorremos pelo corpo de personagens, ver o cuidado em dar uma larga gama de diversidade em atores e composições: temos todas as cores, tamanhos e sexualidades dentro de um contexto absolutamente crível, evocando a pluralidade que nos é natural.

O meado do longa é resumido pela corrida das meninas em busca do endereço da tal festa, e é aí que o bonde desanda. O ritmo da obra dá uma estancada brusca, com muitos vai-e-vens sem nunca chegar na tal festa; e há blocos de cenas em situações diferentes - como o encontro no barco, a pizzaria e a murder mystery party -, com a maioria delas sendo insossa. Não há o frescor do início e nem a química incontestável da dupla dinâmica consegue alavancar a morosidade - há uma sequência em que Molly e Amy, sob efeito de drogas, se enxergam como bonecas e, apesar de pontuações importantes sobre a padronização dos corpos, é chata demais.


Então elas finalmente chegam na tão almejada festa. O texto da fita é um longo (até demais) caminho em busca de tal objetivo, e ele não faz jus à expectativa. Lembrando de "Projeto X", que também vai passo a passo em busca da festa perfeita, "Fora de Série" empalidece quando não entrega momentos incríveis ou memoráveis ou emocionantes ali no fatídico evento. Existem resoluções comoventes e próximas do público, todavia, com um início tão promissor, não dá para abandonar a sensação de que o filme decresce.

O maior problema de "Fora de Série" é esquecer completamente o que havia de melhor em seu pontapé: o tal estudo sobre esforços diferentes renderem os mesmos objetivos. Isso serve apenas para motivar Molly a cair na noitada, sendo deixado de lado pelo resto do longa, o que é uma pena, já que garantiria um diferencial de todos os outros coming-of-ages que não saltam a superfície do ordinário.

No entanto, tais problemas não são o suficiente para derrubar a produção. Não dá para negar que o filme não mergulha em construções que não sejam tão comuns, porém, sua principal meta é alcançada: abraçar cinematograficamente cada garota que se enxergar na tela. A obra não é tímida em gerar um sentimento de sororidade, exalado pela dupla protagonista ao passar a duração inteira vomitando elogios uma à outra. Nessa fase tão complexa, é um louvor o roteiro evocar a auto-estima de meninas nada dentro do padrão de formas tão criativas. Sujeitas à tantas pressões, Molly e Amy são uma unidade de parceria absoluta que, apesar dos desentendimentos, estarão ali sempre, prontas para dar apoio.

"Fora de Série" é mais uma produção que fortalece o cinema que dá voz às garotas, mesmo não se levando tão a sério - e este é um dos charmes do filme, a forma como tantos dramas são lidados com humor e coração. As competências em diversos setores (a trilha sonora é fenomenal) fazem com que a película esteja acima de um "Sessão da Tarde", mesmo fazendo o mesmo processo de transformar excluídos em maneiros. Pode não ser um "Lady Bird" ou um "Oitava Série", que empurram suas discussões mais profundamente, contudo, "Fora de Série" é sessão divertida que acrescenta a um molde pra lá de cansado.

P.S.: o diálogo sobre a Cardi B deve ser protegido a todo o custo.

Crítica: quinta temporada de “Black Mirror” afunda com broderagem, uber e Miley Cyrus

A marca gigantesca que é "Black Mirror" não começou com tanta influência; nas primeiras temporadas, seus lançamentos são viravam o tópico central da semana ao redor do mundo como é agora. As duas primeiras temporadas foram lançadas pela Channel 4, que, apesar de ser um cultuado canal da tevê britânica, não alavancava "Black Mirror" como uma das grandes sérias da grade televisiva.

Conheci "Black Mirror" em 2013, após sua segunda temporada, e me impressionei como algo tão inteligente ainda não havia caído no gosto do grande público. A coisa mudou quando a Netflix comprou os direitos de produção do seriado. A partir de 2016, a antologia virou pauta fixa do calendário da plataforma, que cria um verdadeiro evento quando joga cada material na roda.

Depois de 18 episódios, um especial e um filme ("Bandersnatch", 2018), a quinta temporada da série chegou no último dia 5 na Netflix. Composta por três episódios, é o menor número de lançamentos sob o selo da gigante - mas é exatamente o mesmo número das duas primeiras temporadas. É fato que aqui no Cinematofagia eu nunca escrevi sobre séries, porém, cada episódio de "Black Mirror" é como um filme, todos interligados pela premissa central do todo - estudar nossa relação com a tecnologia -, o que permite que eu possa escrever sobre.

Pois bem, vou dividir o presente texto entre os três episódios e analisá-los separadamente, antes de fazer a conclusão sobre a temporada como um todo. Nosso futuro será brilhante?

Striking Vipers: g0ys em seu habitat natural

O primeiro episódio da temporada, "Striking Vipers", já se destaca por ser inteiramente interpretado por atores negros. Danny (Anthony Mackie) é casado com Theo (Nicole Beharie), e ganha de seu amigo Karl (Yahya Abdul-Mateen II) um jogo em realidade virtual. O diferencial do tal jogo é que sua tecnologia permite que os jogadores sintam fisicamente os passos dos personagens. Uma espécie de "Mortal Kombat" futurístico, Danny escolhe um personagem Lance (interpretado no jogo por Ludi Lin), enquanto Karl escolhe Roxette (Pom Klementieff). É hora da porrada.


Os dois começam lentamente, se acostumando com a realidade aumentada da plataforma, e descobrindo que tudo o que é sentido no virtual é replicado no real. É então que os dois, por meio de seus personagens, fazem sexo. A interação vai causar um estranhamento óbvio, só que ambos acabam viciando naquilo, sempre entrando no jogo para transarem - o que é bizarramente curioso. O que começa a derrubar esse universo é a forma paupérrima que o jogo é feito na tela: parece mais o live-action de "Dragon Ball" - o desastroso "Dragonball Evolution" (2009) - de tão ruim.

A crítica do episódio é bem direta: até aonde vamos com essa reposição da existência pelo meio do digital? A fissura dos protagonistas é tamanha que eles se satisfazem sexualmente apenas se o orgasmo for naquela combinação binária - e Theo sente os efeitos-colaterais da brincadeira, já que Danny cada dia mais a procura com menos frequência.

"Striking Vipers" sofre do mal de produção quando a ideia é incrível no papel, não na tela. A hiperbolização da vida artificial que já sofremos hoje mesmo - há quem se perca nos esforços diários para construir uma vida perfeita pelo Instagram - só alcança um determinado ponto de reflexão, deixando de lado os aspectos mais interessantes que a trama em específico costura.


Os dois protagonistas são homens negros, mas seus avatares dentro do game são asiáticos. A atração sexual mútua ali é fomentada a partir das características físicas dos personagens, o que é uma semente fértil para discussões de raça, que nem ao menos são levadas em conta dentro do enredo. Além disso, a personagem de Karl é feminina, e ele transa (e sente) como mulher. Há uma rápida pontuação em um diálogo, mas as questões de gênero também são descartáveis para o todo. Danny e Karl fomentam uma relação com características tão diferentes das reais e nem ao menos parecem se perguntar o porquê.

O episódio prefere passar intermináveis minutos num jogo de gato e rato: ora Danny tem interesse em continuar a "brincadeira", ora percebe que aquilo é errado; todavia, o "errado" para ele soa muito mais porque está fazendo com um homem do que desviando seu apetite sexual em detrimento da esposa. "Black Mirror" pegou a cultura dos g0ys em um episódio de 60 minutos, só na broderagem e sem frescura.

O melhor de todo esse desperdício é que "Striking Vipers" foi inteiramente filmado em São Paulo - e é bem divertido reconhecer a cidade nas diversas locações.

Smithereens: a pior corrida de Uber já escrita

"Smithereens" é um dos poucos episódios de "Black Mirror" a se passar no presente - ou, no caso, levemente no passado, já que a história acontece em 2018 -; outros exemplos são "The National Anthem" na primeira temporada, e "Shut Up And Dance", na terceira (coincidentemente, esses são meus dois episódios favoritos de toda a trajetória do seriado).

Dessa vez seguimos Chris (Andrew Scott), motorista de um aplicativo como o Uber. Ele estaciona ansiosamente na frente da Smithereen, empresa de comunicação, e sempre aceita imediatamente as corridas de quem sai de lá. Um dia ele sequestra Jaden (Damson Idris), estagiário do conglomerado. Chris diz que matará Jaden caso não consiga o telefone de Billy Bauer (Topher Grace), o dono da Smithereen.


O episódio é um filme de suspense legítimo, daqueles que passam nos Supercines da vida. Chris é seguido pela polícia, até ameaçar matar Jaden, o que gera uma corrida contra o tempo a nível nacional. Enquanto isso, a ligação passa de mão em mão dentro da Smithereens, subindo de degrau na hierarquia até chegar no CEO, que convenientemente está num retiro espiritual - ou seja lá o que - e sem contato com o resto do mundo.

O primeiro grande problema do episódio é sua duração: 70 minutos. Não há a menor necessidade deste tamanho para o enredo escolhido, e isso fica claro quando Chris está dentro do carro com a polícia na sua cola e nada acontece. Há pequenas sub-tramas para enfeitar o eixo, como uns adolescentes que estão tirando foto do local e postando nas redes sociais, porque claro, a polícia deixou dois meninos no meio de uma cena de crime com um homem armado ameaçando atirar.

É inegável que o episódio consegue demandar a atenção - ou pelo menos o interesse - da plateia, mesmo com tantas inconsistências sendo acumuladas (não entendo o motivo de moldarem Chris como um neurótico cômico que dá surtos dignos do "Zorra Total"). Mas seguimos firmes, até o momento fatídico chega: Chris consegue falar com Billy. Por que ele faz tanta questão? O que aconteceu para o levar até ali?

E a resposta não poderia ser pior: Chris sentia a obrigação de falar com Billy pois ele é o dono do aplicativo que o protagonista usava enquanto dirigia, o que causou um acidente e a morte da esposa. Sim, o personagem sequestrou e ameaçou um inocente porque precisava ligar para uma pessoa que tem a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e nada a ver com tudo o que aconteceu, a fim de expurgar sua culpa. Essa é a brilhante resolução do mistério.


Em artes narrativas, a motivação é centro gravitacional de qualquer história. Por que a última temporada de "Game of Thrones" foi (merecidamente) tão massacrada? Porque os roteiristas criaram motivações incompatíveis para os acontecimentos e toda a construção de seus personagens. A motivação é aquilo que justifica a existência de uma trama, afinal, um personagem só faz X ação por ter algum motivo, por buscar uma conclusão que case com tal ação.

Com essa motivação porca, a existência de "Smithereens" é aniquilada. Todas as boas ideias se perdem, rodeadas de tantos momentos ruins - há uma sub-trama maravilhosa, a da mãe que desesperadamente tenta descobrir a senha de uma rede social da filha, que se suicidou alguns meses antes. E, ao mesmo tempo, há forte cunho religioso no episódio quando Chris precisa se "confessar" para Billy, que é posto em uma casa inteiramente de vidro no ponto mais alto e deserto encontrado. Há precisa composição para evocar a ideia de divindade no personagem (os compridos e louros cabelos, por exemplo), o ser superior e onipotente, contudo, a metáfora também não funciona quando a motivação geral é tão desproposital.

O ódio do protagonista pela geração que está hipnotizada pelos smartphones poderia receber um tratamento menos pobre que esse.

Rachel, Jack and Ashley Too: o sepultamento de "Black Mirror" ao virar "Sessão da Tarde"

E o episódio final da temporada tem como protagonistas Rachel (Angourie Rice, de "Todo Dia", 2018) e sua irmã Jack (Madison Davenport). Após a morte da mãe, as duas vão se enclausurando em seus mundo, imageticamente construído a partir do quarto: de um lado, a alternativa/wannabe-gótica Jack; e do outro, a colorida e pueril Rachel. Esta, carente de autoconfiança, vê em Ashley O (Miley Cyrus) tudo o que queria ter como personalidade. Ashley é a estrela pop teen do momento, cantando, com suas músicas grudentas, sobre sonhos e perseverança.

Rachel então ganha o lançamento do momento: uma Ashley Too, robô com inteligência artificial que fala como a cantora real, que se torna sua melhor amiga. Rachel conversa sobre suas inseguranças com a robô, que a aconselha a entrar em um concurso de talentos na escola, fadado ao fracasso. Se há uma palavra que resuma com esmero a trama central do episódio, essa palavra é "patética".


A protagonista, com 15 anos, parece na verdade ter 7. Há uma breguice latente ao redor de sua história, a pobre garotinha que não se encaixa na escola por não ter autoestima o suficiente e tem a ajuda de uma robô, sua fada madrinha computadorizada. É tudo ridículo, da interação entre as duas às frases de efeito retiradas dos mais batidos livros de "autoajuda".

Concomitantemente, entramos na vida de Ashley, que tem como empresária sua tia, Catherine (Susan Pourfar). A tia está focada em manter o sucesso da sobrinha a todo o custo, mas Ashley está cansada do molde fabricado que é sua carreira. Há uma palpável guerra fria entre as duas, principalmente porque Catherine obriga Ashley a tomar remédios. Quando descobre que a menina há tempos não toma a medicação, a tia a droga, simulando um coma para que seja criada um holograma de Ashley, a próxima aposta comercial que vai encher os bolsos da equipe.

Uma vertente de filmes/séries sobre o estrelato que adoro é quando a história foca nos bastidores da fama. Nomes como "Cisne Negro" (2010) e "Demônio de Neon" (2016) são exemplos da desglamourização de carreiras artísticas, no entanto, o mesmo aspecto é mastigado em "RJ&AT". Há diversas decisões que o roteiro assume que não fazem o menor sentido: por exemplo, Ashley, ao não tomar os remédios, os guarda numa caixinha. Por que ela simplesmente não joga fora? Ela prefere guardar todas as provas que, óbvio, serão encontradas pela tia. É um gancho narrativo burro para empurrar a história.


Durante a notícia do coma de Ashley, a robô "acorda" e sofre (?) com o anúncio. As irmãs, que passam o episódio todo brigando por causa da robô (Jack acha tudo aquilo uma babaquice, sensata), se unem para salvá-la, desbloqueando a "consciência" total da AI, que se torna..........Miley na era "Bangerz". A robô, agora completamente autônoma, xinga e dá ordens, só faltou fazer twerk e a língua de fora.

A gangue parte para a mansão de Ashley, com o plano de resgatar a menina. É então que o episódio vira um clássico do "Scooby-Doo", recheado de alívios cômicos, artimanhas, vilões e aventuras. O final, a cereja do bolo desse desastre, mostra Ashley finalmente encontrando seu "eu" artístico e cantando rock alternativo. Não desistam dos seus sonhos, meninas! Vergonhoso.

Entre armadilhas para ratos e lições de moral de filmes infantis, há apenas um bom aspecto de todo esse caos: há um bem-vindo paralelo entre a vida de Ashley e a de Britney Spears. Estamos em meio ao movimento "Free Britney", surgido após acusações de que o pai de Spears, que serve como seu guardião jurídico, internou a cantora contra sua vontade após a mesma se recusar a tomar suas mediações - mais ou menos o mesmo que acontece no episódio. É uma boa discussão acerca da integridade de estrelas em detrimento de uma indústria, e a luz no fim do túnel dessa que é a pior mercadoria já produzida sob o selo "Black Mirror".

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Muito se fala sobre "Black Mirror" ter baixado o nível após a migração para a Netflix; a afirmativa nem se deita sobre a síndrome do cult, aquele que deixa de gostar de algo por ser popular. É fato que, mesmo sob as asas do Channel 4, houveram episódios bons e ruins, contudo, o efeito é mais forte quando estamos falando em uma das maiores empresas de entretenimento do mundo. Os erros ficam menos perdoáveis quando existe capital e potencial mais que o suficiente para algo competente ser realizado.

A quinta temporada de "Black Mirror" é uma mácula irremediável em uma série tão brilhante, e continuação da queda meteórica vista desde a quarta temporada, cheia de episódios fracos, e com o filme, uma lástima. Se por um lado a Netflix é dona da melhor temporada do seriado - a terceira, fabulosa -, agora deve aguentar o peso de possuir uma que não consegue salvar um mísero episódio. Os números de audiência com certeza ainda estão nas alturas, e só posso esperar que isso não seja conclusão concreta para a plataforma de que o trabalho aqui está sendo bem feito. Tirando os aspectos técnicos - o design de produção segue perfeito -, não está, nem de longe.

Crítica: “Love” de Gaspar Noé é feito com muitas doses de amor, sexo, 3D e transfobia

A maior especialidade do diretor franco-argentino Gaspar Nóe não é fazer bons filmes, é chocar. Podemos afirmar isso porque, para um filme ser “bom” ou “ruim”, depende de fatores e variáveis externos e pessoais. O choque, ao contrário, é unanimidade – desde seu primeiro filme.

Em “Sozinho Contra Todos” (1998) o diretor, antes do último ato, exibe por 30 segundos um aviso informando sobre o teor da cena a seguir e aconselha o espectador a parar de assistir ao filme. Em “Viagem Alucinante” (2009), acompanhamos em primeira pessoa a viagem de um espírito durante três horas de pura psicodelia. Em "Clímax" (2018), entramos de cabeça em uma festa assustadora regada a LSD. Mas foi com “Irreversível” (2002) que o nome de Noé se firmou como sinônimo de polêmica. O filme possui uma das cenas mais aterradoras da história do cinema: quase dez minutos ininterruptos com um estupro sem cortes, sem trilha, sem movimento de câmera, nada. Seco. Brutal. Cru.

Com temáticas tão desafiadoras e corajosas, o cinema de Noé é sempre envolto de muita curiosidade. Não foi diferente com “Love” (2015), seu mais ambicioso longa, que trouxe o sexo como o elemento chave. Porém, ao contrário dos outros longas, “Love” é, como o próprio realizador apontava, seu filme mais leve. “Uma celebração do amor e do sexo”, dizia.

“Love” conta a história de Murphy (Karl Glusman), um estudante de cinema americano que mora em Paris com Omi (Klara Kristin), mãe do seu filho, Gaspar. Na manhã do ano novo, o rapaz recebe um telefonema da mãe de sua ex-namorada, Electra (Aomi Muyock), dizendo que a filha sumiu há dois meses. A ligação desencadeia uma série de lembranças de Murphy sobre o relacionamento dos dois, regado a sexo, drogas e amor.


A exposição do sexo no cinema é um modo libertário de expressão que sempre existiu, ganhando força nessa década com nome como “Ninfomaníaca” (2013) de Lars Von Trier, explorando as nuances e jornadas sexuais da protagonista. Em “Love” a coisa é mais profunda, sem o perdão do trocadilho. Enquanto em “Ninfomaníaca” as cenas são coreografas e fictícias, o sexo de “Love” é real. Os atores estão realmente no ato diante da câmera. A exaltação do sexo dentro do amor foi mostrada de forma menos explícita, mas ainda mais naturalista em “Azul é a Cor Mais Quente” (2013). A premissa em “Love” é similar: mostrar como o sexo com aquele que você ama é uma experiência poderosíssima.

O relacionamento de Murphy e Electra, findado de forma brusca, nem sempre foi conturbado. Durante os flashbacks, notamos a sintonia quase transcendente dos dois, que fazem juras de amor eterno capazes de arrancar uma lágrima. Planos, anseios e até os nomes dos futuros filhos são discutidos. A química do casal é invejável, seja em momentos de ternura, seja no sexo. E é muito sexo. A coisa desandou quando eles conhecem Omi. Murphy trai Electra com a garota, que tinha apenas 16 anos, e a engravida, o que resulta num surto de ódio da então namorada.

“Love” é o primeiro filme de Noé lançado em 3D – no Brasil, o título nacional cogitado seria o desastroso “Transa 3D”, mas foi sabiamente descartado, usando o título original para não confundirmos com “Amor” (2012) de Michael Haneke. O efeito tridimensional é desnecessário e acrescenta em pouquíssima coisa ao filme, já que ele foi feito exclusivamente para três cenas – uma delas é uma ejaculação direto na tela – o que é muito pouco perto de um filme de mais de duas horas. “Viagem Alucinante” seria bem melhor aproveitado com o 3D, nos colocando de forma ainda mais eficiente dentro da visão do protagonista.


Duas dimensões são o suficiente para enchermos os olhos com o primor técnico de “Love”. A fotografia segue os moldes de “Viagem Alucinante”, intensificando os tons de verde, azul e vermelho com luzes artificiais belíssimas. Os enquadramentos são verdadeiras pinturas, ainda mais caprichadas nas cenas em camas (e são muitas), estando perfeitamente alinhadas, hora focando nas expressões dos atores, hora em detalhes. Um recurso interessante foram os cortes abruptos que escurecem a tela rapidamente, como se a câmera fosse nossos próprios olhos, que piscam de tempo em tempo. Além de nos aproximar dos acontecimentos, nos tornando quase voyeurs, os cortes dão ritmo aos planos sequência, facilitando também na hora da edição.

“Love” é a exploração bem íntima de Noé sobre o que deveria ser o cinema de celebração. Usando auto-referência a todo o momento, o filme é uma fala do próprio diretor sobre os assuntos na tela. A paixão de Murphy sobre o cinema e seu desejo de fazer um filme que mostre de forma verdadeira o amor e o sexo é o desejo de Noé, concretizado na tela. Fora as referências mais gritantes, como o filho de Murphy e Omi, que se chama Gaspar, e o ex-namorado de Electra, interpretado pelo diretor (!) e chamado de Noé.

Mesmo numa velocidade desacelerada, “Love” transcorre sem graves problemas até uma cena que quase conseguiu obliterar todo o filme. Electra sugere que Murphy faça sexo com uma travesti. A coisa já começa errada quando os dois se referem a ela como “tranny”, uma gíria que poderia ser traduzida como “traveco”, ou seja, uma forma transfóbica de se referir a uma pessoa trans.

Então a cena começa. A trans é interpretada pela atriz brasileira Stella Rocha, que se despe enquanto Murphy desiste do ato ao vê-la nua, irradiando repulsa a todo o momento. Ela insiste e a cena é cortada, deixando a entender que houve a relação. Na cena seguinte Murphy fala que queria esquecer “aquela coisa” e que Electra jamais pode falar sobre.

Qual é o problema disso tudo? Dentre de todas as opressões que cotidianamente residem na nossa sociedade, o transexual é um dos que mais sofre. Tratar de um tema tão delicado é complexo, principalmente quando exposto da forma mais estereotipada possível: a travesti prostituta e estrangeira. Se você colocar agora a palavra “travesti” no Google, verá que os resultados dominantes serão sobre prostituição, reflexo da realidade de 90% das transexuais.


Ora, se essa é a realidade, qual o problema em ser mostrada no filme? Pessoas trans são má representadas no cinema – o filme “A Garota Dinamarquesa” (2015), cof cof  –, então deixá-la na tela por um minuto, servido apenas como objeto sexual e fonte de uma mórbida curiosidade física é para torcer o nariz. E é para isso que ela está lá: uma fetichização gratuita, uma aberração para o entretenimento dos ditos "normais".

Cinema é uma arte que provoca, que incita, que questiona, e Noé sempre fez isso de forma afiada, porém o real problema com a cena em específico é: ela serviu para NADA na narrativa. Não acrescentou coisa alguma, foi arbitrária, banal. Se não existisse, faria zero diferença dentro do texto como um todo, soando como um apêndice dispensável no filme. Murphy é um cara machista, que é um valor deplorável assim como a transfobia, porém é um valor atribuído para dar peso à narrativa, para construir o personagem. O machismo não está ali de graça, ao contrário do momento com a trans. Por estar de forma gratuita, a cena simplesmente dá voz a uma opressão e ao dar voz, a fortalece.

A mesma ideia pode tranquilamente ser repassada para outros filmes do diretor. Estupro é uma realidade, por mais absurda que seja, e a cena de “Irreversível” que tanto chocou é estritamente necessária para a trama, feita da forma mais crua possível para que o espectador sinta ódio, nojo, raiva, indignação do ato presenciado. Não está ali de forma equivocada, serve como denúncia para esse crime que ainda é tão praticado (e tão impune).

De fato não dá para anular todo o filme com a cena, porém simplesmente deixá-la de lado é negligenciar algo que grita, seja pela curta duração em tela ou por qualquer outro motivo. As vantagens do longa estão lá e não podem ser diminuídas, porém o saldo final sofre grandes perdas pela construção do momento citado e faz com que “Love”, que deveria ser um júbilo cinematográfico amoroso a partir do ponto de vista sexual, reforce uma marginalização tão disseminada. Felizmente, estamos vivendo um apogeu no cinema trans - o número de obras incríveis com a temática nos últimos tempos não me deixa mentir.

É certo que pessoas trans não serão marginalizadas por conta de "Love": elas já são socialmente excluídas bem antes do filme e continuarão sendo enquanto houver pensamentos que impedem completamente o respeito à identidade transexual. Cinema, uma arte tão abrangente e poderosa, ao contrário do que podemos pensar, não é apenas entretenimento e muito menos pode ser reduzida como as horas que você passa comendo pipoca em frente à tela. Há uma função social fortíssima em seu discurso - e a responsabilidade enquanto autor é imprescindível.

Crítica: “Cemitério Maldito” é uma masterclass de todos os clichês possíveis dentro do terror

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

O grande entusiasta do terror que sou eu ainda se pergunta uma questão quase básica dentro da indústria voltada para o gênero: por que ainda insistem em adaptar livros do Stephen King? Rei do terror na literatura, são bem escassos os exemplos de sucessos no cinema para com suas histórias - e o caso fica ainda mais grave no comparativo entre "deu certo" X "quantos foram feitos".

Os exemplos bem feitos: "Carrie: A Estranha", dirigido pelo maravilhoso Brian De Palma em 1976; "O Iluminado" (1980) do maior diretor da história, Stanley Kubrick; "Louca Obsessão" (1990) do Rob Reiner; "Um Sonho de Liberdade" (1994), por Frank Darabont, viciado em adaptações do King; e a mais recente glória, "It: A Coisa" (2017), do Andy Muschietti.

Listar os nomes malfadados seria um trabalho hercúleo que me faria gastar tempos aqui, todavia, adianto: o novo "Cemitério Maldito" (Pet Sematary) é um deles. Segunda ida da história para a telona - o primeiro foi lançado em 1989 e é uma das poucas adaptações de King dirigidas por mulheres -, "Cemitério Maldito" entrou no calendário dos grandes lançamentos do terror no ano - seguido do fraco "Nós" - pela divulgação massiva da Paramount. Em números, o rendimento foi satisfatório: já passou da marca de $110 milhões mundialmente, e acabou de chegar no Brasil.


O longa é dirigido por Dennis Widmyer & Kevin Kölsch, dupla responsável pelo interessante "Starry Eyes" (2014). O primeiro filme sob as assas de um grande estúdio, a obra é um fracasso como terror e como cinema puro e simples. Não li o livro original nem assisti à primeira versão, então minha visão é exclusivamente direcionada ao que me foi posto na tela aqui. A trama gira em torno de Louis (Jason Clarke), sua esposa Rachel (Amy Seimetz) e os dois filhos, Ellie (Jeté Laurence) e o inútil Gage (Hugo & Lucas Lavoie) - coitado do menininho, mas o personagem é literalmente esquecido em boa parte da duração. Quando Church, o gato da família, morre, Louis é levado por Jud (John Lithgow), o vizinho, até um cemitério escondido que revive aquilo que lá é enterrado.

Louis fica aliviado por não ter que dar a trágica notícia para a filha, a mais apegada ao gato, todavia, o que antes parecia um plano eficiente se revela um desastre, já que Church volta à vida de maneira violenta. O filme dedica várias cenas com os personagens tendo que lidar com o felino arisco (e descabelado), o que é ridículo. A reviravolta surge quando Ellie é atropelada no dia do seu aniversário; é claro que o pai enterra a menina no tal cemitério, e ela volta como uma psicopata sanguinária, destinada a matar quem aparece pela frente.

É involuntariamente cômica a situação. O malabarismo para justificar o mote "criança assassina" é hilário, e o pior: Ellie é atropelada por um caminhão e não há UMA gota de sangue na tela. Seu corpo ressuscitado quase não demonstra sinais de danos e o pai consegue entrar no cemitério, cavar a sepultura da filha, abrir o caixão e levar o corpo sem que NINGUÉM veja. Claro que sim.


Se o cerne do roteiro é pobre dessa maneira, a produção vai ainda mais longe e se revela uma masterclass de todos os clichês existentes dentro do terror. Até parece que existiu um estudo para compilar trajetórias e ideias já feitas centenas de vezes dentro do gênero, porque quando há tantos chavões reunidos, não pode ser mera coincidência. Para deixar o sentido da masterclass ainda mais evidente, nada melhor que expor em tópicos os principais pontos clichês dentro de "Cemitério Maldito".

O recomeço em uma nova casa

Você já assistiu a esse filme: uma família decide se mudar para uma nova casa - de preferência em outra cidade - para um recomeço. A família chega em uma cidadezinha pacata com a esperança de que o novo lugar seja a solução para os seus problemas. Aqui temos a apoteose da perfeita e asséptica família do american way of life, o conglomerado de pontuações que formam uma entidade irretocável tão vendida ao longo da história do cinema no país. Chega a dar abuso.

A família está fugindo de um trauma

É claro, todos não decidiram pegar as malas e sair de onde moravam só para respirar um novo ar, eles estão querendo distância de um trauma. Aconteceu alguma coisa no passado que perturba a cabeça dos personagens, de maneira tão forte que eles preferem largar tudo e chegar em um local diferente. O macete serve para solidificar a fraqueza psicológica de suas futuras vítimas - quanto mais fracas elas são, menos esforço é necessário na orquestração do terror.

A coisa fica ainda mais pobre quando essa fraqueza já vem pronta pelo roteiro. Vamos lembrar de "Hereditário" (2018): a saga de Annie é costurada com imenso cuidado do começo ao fim, da serenidade até a ruína emocional completa. Quando os personagens já chegam com um drama que está do lado de fora da tela, não há muito trabalho a ser feito. É a antítese do cinema: quando se fala ao invés de se mostra.
 

Algum personagem se nega a aceitar o que está acontecendo

Se o terror põe o pé no sobrenatural, o mais batido a ser feito é colocar um personagem em específico que vai duvidando do que está acontecendo enquanto se agarra em seu ceticismo. No caso de "Cemitério Maldito" é o patriarca, Louis; cirurgião, ele é o "homem da ciência", o ser racional que trabalha apenas com fatos mesmo quando tem espíritos pulando na sua frente.

O contraposto é sua esposa, que é perturbada pela onipresença da irmã já morta. Esse conflito é jogado em cima da filha mais velha, quando os pais não sabem como lidar com temas básicos como a morte: para a mãe, ela deve aprender que há algo depois da vida; para o pai, há coisa nenhuma. A discussão central nem é o velho "há vida após a morte?" - o que seria interessante -, é apenas uma subtrama que logo mais é esquecida e não volta a ser pontuada - ou seja, é irrelevante.

O Google sabe todas as respostas

Coisas estranhas estão acontecendo na sua casa? Há histórias misteriosas sobre os arredores de onde você vive? Não se preocupe, é só jogar no Google. É realmente difícil pensar em um terror que não se utilize da tática de colocar seus personagens fazendo pesquisas para compreender qual o pavor que está infernizando sua vida; mas o engraçado é ver como o Google sabe toda e qualquer resposta de maneira direta, fácil e eficiente. Jornais de 100 anos atrás em alta resolução que explicam tudo o que você precisa? Está à beira de um clique.
 

Os personagens acordam de pesadelos que podem ou não ser reais

Na minha crítica de "Hereditário", comento o alívio que é acompanhar um filme que introduz de maneira incisiva na trama as manjadas cenas com pesadelos que cortam para o personagem acordando desesperado. "Cemitério Maldito" não faz o mesmo. Além de serem basicamente inúteis, as sequências de sonho possuem uma linguagem péssima que aniquila qualquer atmosfera: Louis - quem tem tais sonhos - é coberto com uma névoa enquanto há uma nada inspirada narração de uma entidade (que deveria ser temida) dizendo que tudo vai dar errado. Ele acordando e tendo indícios que o sonho foi mais real do que poderia ser? Tem sim.

Uso de máscaras como propulsores do medo

A lista com exemplos é enorme: "O Massacre da Serra Elétrica" (1974), "Halloween: A Noite do Terror" (1978) e "Sexta-Feira 13" (1980), até os modernos, como "Pânico" (1996), "Os Estranhos" (2008) e "A Morte Te Dá Parabéns" (2017), todos usam personagens mascarados para fomentar o medo. Não é preciso dizer o quão saturado isso já está. O mais absurdo dentro de "Cemitério Maldito" é que já no começo vemos uma procissão de mascarados, eles estão em basicamente TODOS os materiais promocionais e, depois da primeira cena, não aparecem mais. É o ápice da banalidade - eles eram reais ou não? O filme acabou e não soube dizer.

Apenas um dos personagens vê uma aparição/espírito e coloca em cheque a sua sanidade

Espíritos são serem extremamente seletivos no terror, e decidem para quem vão aparecer. Loius é assombrado pelo espírito de um paciente que morreu na sua maca - o único personagem negro é o primeiro a morrer, uau. Já Rachel vê a irmã morta, seja de forma metafórica - como um peso que ela carrega ao se culpar pelo falecimento da irmã - ou física, com o corpo contorcido da finada se arrastando na sua frente. Com uma pesada maquiagem, todos os desenvolvimentos ao redor dessa subtrama possuem pouco peso diante do todo, servindo pelo choque visual e é isso. O pior é que Rachel, a fim de superar a morte da filha, decide passar uns dias na casa de sua infância. Ela volta para o lugar que é assombrado pelo irmã, o mesmo lugar que a fez ir embora antes de qualquer coisa. Coerente.

"Cemitério Maldito" acaba sendo uma mercadoria didática, uma aula de como não construir um roteiro e quais caminhos devem ser evitados na busca de um sucesso criativo. Responsabilizar o material fonte, com uma fala do tipo "ah, mas no livro é assim", não é justificativa para amenizar tantos erros juntos - pelo contrário: quando há um texto já pronto, é mais fácil saber quais os rumos podem ser mantidos e quais devem ser melhorados. Com poucos momentos que valham a pena, esperar algo competente de um filme à base de gatos zumbis e cemitérios não vigiados é, no mínimo, ingenuidade.

Extravagante, honesto e dramático, “Rocketman” é tão grandioso quanto Elton John

Seguindo os passos de obras como “Bohemian Rhapsody”, estreia no Brasil na próxima quinta-feira (30) a cinebiografia do músico Elton John, a intensa, triste e grandiosa “Rocketman”.

Assim como o músico, que acompanhou de perto a construção da obra, o filme é tão musical quanto visual, utilizando de uma estratégia muito precisa para dar peso e dinamismo aos acontecimentos narrados: uma reunião de alcoólicos anônimos em que, pelas histórias contadas pelo próprio cantor, cria-se uma linha do tempo.

A trama, por sua vez, têm início na infância de Reginald Dwight, um menino tão tímido quanto intimidado, que vive inúmeras relações e acontecimentos que marcam e justificam boa parte do que viemos a conhecer mais tarde com o astro dos palcos.

Com direção de Dexter Fletcher, “Rocketman” se faz grandioso quando repete os passos de Elton John em não ser apenas uma coisa: é uma produção sensível, dramática e musical quando assim se propõe, ao mesmo tempo em que aborda de maneira dura e, por vezes, crua, momentos que assim pedem, como quando desenvolve sua história de abuso de álcool e drogas, suas certezas e descobertas quanto à sua orientação sexual e a longa busca pelo sentimento tão comum ao seu repertório: o amor.

A intensidade dos seus relacionamentos marcam boa parte dos momentos decisivos da história, da conturbada relação com seu pai, um homem ausente e autoritário por quem mendigou afeto desde a infância, à entrega ao romance unilateral com o empresário interpretado por Richard Madden, passando ainda pela relação de amizade e família com seu letrista e maior confidente, Bernie Tapin.

Os extremos do músico também são trabalhados nos contrastes da narrativa que vai da enorme sobriedade de certos momentos para o abuso propositalmente fantasioso de outros, como sua estreia no lendário Troubadour, na qual músico e plateia “flutuam” tamanho o êxtase causado por sua performance da faixa “Crocodile Rock”.


A força do imagético, inevitavelmente associada aos ícones de Elton, se torna maior com a interpretação de Taron Egerton, que desaparece em meio aos trejeitos do cantor e surpreende pela intensidade como se entrega ao personagem. Vale citar que o ator fez aulas de piano para dar mais realismo às cenas em que aparece tocando e cantou de verdade em todas as versões do filme, alcançando um tom de voz muito parecido ao que conhecemos nas músicas originais.



Uma sacada bastante precisa cabe aos figurinos do músico: nos palcos, quanto mais se veste, mais esconde as dores e vulnerabilidades que não leva com o personagem que assume para os shows; na reunião em que se abre sobre sua vida, quanto mais se despe, mais revela as cicatrizes que tanto se esforçou para esconder. Daí sai um dos grandes acertos de “Rocketman”, que pouco se empenha em elevar o músico a uma posição que sua obra já cumpriu o trabalho de deixar, desconstruindo-o sob uma honestidade que beira o sádico para nos mostrar o homem por trás da arte e o quanto lhe custou essa trajetória ao topo.

Crítica: “Detetive Pikachu” é uma fofa propaganda de 1h e meia para vender pelúcia

Se você nasceu nos anos 90, provavelmente não escapou do tsunami cultural que foi "Pokémon". Crescer com aquelas criaturas fantásticas no anime, exibido nos finados programas infantis matinais, basicamente fez parte da história de muita gente - e eu aqui me incluo. Da primeira geração, com Squirtle, Charmander e Bulbasaur, até a atual e oitava, acompanhamos a expansão da franquia, que nasceu com o "Pokémon Red & Blue", videogame lançado em 1996.

O processo de transmídia já alcançou níveis gigantescos: já foram lançados mais de 20 filmes e mais de mil episódios do anime. Enquanto tudo ainda habitava o campo da animação, o anúncio do primeiro live action foi recebido com entusiasmo: "Detetive Pikachu", baseado no jogo de mesmo nome, é dirigido por Rob Letterman, diretor veterano em efeitos especiais e mistura entre filmagem real e computadorizada - ele assina "O Espanta Tubarões" (2004) e "As Viagens de Gulliver" (2010).

A trama é conduzida por Tim (Justice Smith, de "Todo Dia", 2018), um jovem de 21 anos que desistiu de treinar pokémons quando seu pai o abandona para estudar os bichinhos. Ao descobrir que o pai morreu em um acidente, ele esbarra em um Pikachu falante (dublado com energia por Ryan Reynolds), o pokémon parceiro do pai, que tem convicção de que o homem não morreu no acidente. Os dois se unem para tentar descobrir a verdade.
 
É claro, apesar das filmagens reais, as criaturinhas foram feitas com CGI - a mesma técnica usada no próximo "O Rei Leão", em "Animais Fantásticos e Onde Habitam" (2016) e no vencedor do Oscar, "Mogli: O Menino Lobo" (2016). E não dá para fugir: são elas que guardam o coração do longa. A magia de "Detetive Pikachu" acontece cada vez que um pokémon surge na tela, e felizmente eles estão por toda parte. No universo da obra, existe o mundo convencional, onde os pokémons vivem na natureza e são capturados pelos humanos com as pokebolas; e há a cidade de Ryme, projetava especificamente para a coexistência de humanos e pokémons.


É bem criativa a forma que a cidade é construída, mais precisamente na maneira em que os pokémons, de acordo com suas habilidades, são incorporados nas atividades humanas. Por exemplo, Pidgeotos cuidando dos correios, Loudreds como caixas de som vivas nas festas e Jigglypuffs como estrelas da música (ou nem tanto). Na primeira ida de Tim em Ryme, a câmera passeia pela área enquanto a plateia caça pokémons com os olhos, maravilhado pelo design verossímil deles. É uma explosão de cultura pop, algo que vemos em "Jogador Nº 1" (2018) e "Uma Aventura LEGO" (2014)

Seja com pokémons estranhos, como o Mister Mime, até os peludinhos, como o protagonista Pikachu, o esmero com a orquestração dos reais protagonistas da película é incrível. Em uma cena, Pikachu se molha, e é glorioso como os efeitos visuais dão vida aos pelos escorrendo da criatura - dá vontade de apertar. Quanto mais eles aparecem, melhor.

Se esses aspectos técnicos são a glória da fita, talvez o melhor ponto de "Detetive Pikachu" esteja no fato de Tom, o Ash da vez, ser interpretado por um ator negro. Um produto de apelo comercial tão massivo se preocupando com uma boa representatividade é um júbilo, prova da consciência da indústria pela diversidade de suas obras mais abrangentes - a produção tem a maior abertura para um filme inspirado em videogame. Os aspectos de sua negritude não são explorados pelo roteiro - até porque não são importantes dentro do mote escolhido pela narrativa -, todavia, é reconfortante imaginar a quantidade de crianças negras que vão se encantar ao se verem num filme tão grande.


Porém, as qualidades do longa acabam aqui. É decepcionante, mas não surpreendente, ver o quão ordinário é o roteiro na construção de seu plot - e digo que não é surpreendente porque Rob Letterman nunca encabeçou uma obra com um roteiro verdadeiramente bom ("O Espanta Tubarões", mesmo sendo um primo pobre de "Procurando Nemo", 2003, é o melhor de seus filmes). A coisa complica quando o texto foi escrito por q-u-a-t-r-o pessoas - e uma delas, Derek Connollu, é responsável pelo roteiro de várias farofas hollywoodianas, como "Jurassic World" (2015), "Monster Trucks" (2016) e "Kong: A Ilha da Caveira" (2017). Não dava pra esperar algo muito diferente.

Com exceção de Tim e o Pikachu, personagens se tornam quase descartáveis, entrando e saindo de cena para empurrar a trama, sem consistência alguma. Sobrou até para Rita Ora (da franquia "Cinquenta Tons de Cinza", 2015-18, auge), um dos vários atores que devem ter filmados suas cenas em um ou dois dias. Parece que todo o orçamento ficou a cargo dos artistas visuais responsáveis pelos pokémons, enquanto todo o resto saiu como dava - a trilha sonora é especialmente insossa, um compilado de qualquer mísero filme de animação.

Sustentado pela nostalgia avassaladora criada por meio da magia das criaturas, "Detetive Pikachu" pode até ser um dos melhores filmes adaptados de um videogame, mas o rótulo serve de nada quando podemos contar em uma mão a quantidade de adaptações de consoles que valem a pena - e sobrariam dedos. Todo o encantamento com o design dos pokémons vai sendo empalidecido por um roteiro que não entrega um momento de autenticidade, apenas reciclagens preguiçosas de histórias já esgotadas (não dá nem para lembrar do vilão, tamanha irrelevância). A impressão que fica é que o filme é uma propaganda de 1h e meia para vender produtos licenciados da marca ao invés de uma mercadoria competente em audiovisual - tão verdade que eu quero uma pelúcia do Gyarados o mais rápido possível.

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