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Crítica: “Fronteira” mistura realismo social com bizarra fantasia e o resultado é magnífico

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

A Suécia é um dos países mais laureados no Oscar, vencendo três vezes o prêmio de "Melhor Filme Estrangeiro" - e sendo indicado outras 13 vezes. O cinema no país, fortalecido por Ingmar Bergman na década de 60 (todos os três Oscars do país foram para filmes dele), possui uma indústria fortalecida e fonte de obras impressionantes. Foi por isso que me surpreendeu o fato de "Fronteira" (Gräns/Border), o selecionado para o Oscar 2019, ter sido ficado de fora em "Filme Estrangeiro" - o país recebeu indicações nos dois últimos anos consecutivos.

O curioso é que "Fronteira", mesmo não estando nem entre os nove semifinalistas, concorreu ao careca dourado de "Melhor Maquiagem & Cabelo" - merecidamente, devo pontuar, principalmente se tratando de uma produção longe de Hollywood (ou você já se esqueceu que "Esquadrão Suicida" levou essa mesma categoria?). Não levou o prêmio, mas pelo menos pôde estar na maior premiação do mundo. A fita é baseada no conto de mesmo nome de John Ajvide Lindqvist, autor do livro que gerou o fabuloso "Deixa Ela Entrar" (2008), então é garantia de uma história boa, no mínimo.

O longa estreou no Festival de Cannes 2018, já conseguindo ser eleito "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar" - disputa paralela à Palma de Ouro, com filmes menores e mais, digamos, ousados. E "ousadia" é uma palavra que pode definir bem "Fronteira". O longa conta a história de Tina (Eva Melander), uma policial que trabalha na fronteira sueca. Ela é valiosa no serviço por possuir um dom inédito: consegue cheirar quem estiver fazendo algo ilícito. Seus amigos de trabalho não entendem muito bem como ela consegue, mas seu faro é infalível.


Contudo, não é sua habilidade que chama mais a atenção, é sua aparência. Tina é, como ela bem se classifica, feia. Seus traços são estranhos e incapazes de passarem despercebidos; ela não consegue nem ir ao supermercado sem notar pessoas a encarando. O filme não se utiliza de sutilezas nessa abordagem, colocando a câmera colada no rosto da protagonista e fazendo com que a plateia sofra do mesmo mal: ao mesmo tempo que achamos estranho, não conseguimos desviar o olhar.

Esse é o primeiro viés da produção. Pode soar muito piegas quando posto em palavras, mas o filme coloca em cheque a vida em sociedade de pessoas feias. Somos criaturas que colocamos a imagem em absoluto primeiro lugar, afinal, é a partir dala que criamos identidade. A formação do nosso eu enquanto ser social começa quando nos vemos no espelho e tomamos consciência daquilo que visualmente somos. Não estou dizendo que o exterior é mais importante que toda a nossa bagagem e características psicológicas, porém, é a imagem o cartão de visita de quem somos.

Tina mora com um namorado que está mais preocupado com seus cães de briga do que com ela. A relação é fria e asséptica, claramente não existindo uma ligação entre eles - o máximo de proximidade é a curta conversa no jantar sobre o que cada um fez durante o dia. Deprime bater a cara no óbvio: Tina só aceita aquela relação porque é a única que ela acha capaz de ter. Quem mais namoraria com alguém como ela? "A gente aceita o amor que achamos que merecemos", já dizia "As Vantagens de Ser Invisível" (2012), e era aquele namorado postiço que Tina achava merecer graças à sua aparência.


"Fronteira" não é um filme sobre bullying - como "Extraordinário" (2017), que também usa maquiagem para deformar o rosto de seu protagonista a fim de discutir sua inserção no meio. Tina já está acostumada com a atenção que não pediu e tenta fincar seu lugar no mundo, tendo amigos de trabalho e vizinhos para dar bom dia quando passa. Não por acaso, essa "condição" é fomentadora da sua própria personalidade: retraída, seca, enclausurada.

Quase não vemos a protagonista sorrindo ou fora do tom absolutamente profissional que adota durante o expediente - já complicado por ter que lidar diretamente com pessoas, e pior, com pessoas cometendo infrações/crimes. O grande baque do primeiro ato está quando Tina fareja um cartão de memória muito bem escondido por um executivo lustroso - a trama paralela ao descobrimento de Tina consigo mesma. O objeto está cheio de pornografia pedófila, o que abre uma operação da polícia para prender quem quer que esteja por trás daquilo. Tina, claro, é recrutada para o serviço. Pode passar despercebido, mas uma protagonista usando suas habilidades contra o crime? "Fronteira" é um filme de super-herói.

É sensacional a maneira que o roteiro aproxima dois mundos gritantemente distintos: de um lado temos Tina com seu dom sobrenatural; do outro, um problema chocante e real. A caçada policial produz tensão e interesse na plateia sem grande esforço, mesmo com Tina inicialmente não muito inclinada a participar - ela ainda deve continuar usando seu olfato na fronteira. É então que surge Vore (Eero Milonoff), um homem parecido com Tina. Ambos possuem traços faciais e postura semelhantes, e Tina, mesmo farejando a culpa nele, não consegue descobrir a fonte do delito.

O encontro vai desencadear uma série de questionamentos na cabeça da protagonista, que nunca viu alguém parecido com ela e jamais falhou em apontar a culpa de alguém. Ela vai atrás do homem para descobrir quem ele é e todas as certezas de Tina vão sendo derrubadas. Ele come carne crua e insetos, possui uma estranha ligação com animais (assim como Tina) e possui órgãos sexuais femininos - o oposto dela, que tem órgãos masculinos.


Os níveis de condução sobre o campo do fantástico ganha novas proporções no decorrer da fita, sem medo de soar bizarro. A cena de sexo entre aqueles dois estranhos seres é desconcertante e propositalmente nada bela, e o que há de mágico é como toda essa bizarrice é fonte larga de discussões de gênero e sexualidade aqui mesmo do lado de cá da tela. O corpo de Tina é barreira para a exploração de sua sexualidade - afinal, ela é do gênero feminino, mas possui um pênis -, então ela encontra a liberdade que sempre procurou quando Vore surge, e seus corpos literalmente se conectam.

Aqui é o cerne de "Fronteira": sua maior discussão é o entendimento da natureza. Não apenas nossa conexão com a fauna e a flora, nosso lugar nesse planeta azul, mas também nossa própria natureza, aquilo que somos e porquê somos. A resolução do roteiro é bem misantropa, aceitando que pendemos para o pior lado da nossa existência. Vore, niilista nato, fala: "A raça humana é uma parasita na Terra, usa tudo, até a própria cria". É importante, também, os sentimentos que Tina consegue farejar; não é amor ou felicidade, mas sim medo, vergonha e culpa, sentimentos negativos e primários do animal que somos, e sua jornada a fim de encontrar seu lugar no mundo é reflexo perfeito de inúmeras jornadas particulares - por mais fantasioso que o filme seja.

"Fronteira" é uma fábula que reforça dois pilares seminais da arte: o primeiro deles é que devemos expandir nosso conceito do que é bom baseado no belo. O filme realiza imagens nada bonitas (sem entrar no âmbito do que é essa definição), com uma crueza latente que é feita para incomodar, artifícios usados como defeito por muitos - sendo que é o contrário. O segundo é como o recheio de fantasia em demérito do realismo social puro e simples pode ser cabo condutor de debates de uma realidade concreta. Aquela mulher que sente o cheiro de culpa é porta-voz de várias discussões que um documentário poderia levantar, o que é ainda mais impressionante: é a ficção levada ao extremo. Cinema em uma de suas melhores formas.

Definitivamente "Vingadores: Ultimato" é o maior filme de super-heróis de todos os tempos

Já começo esta crítica alertando que os spoilers irão correr solto por aqui porque, honestamente, é difícil escrever de forma generalizada tudo aquilo que "Vingadores: Ultimato" conseguiu transmitir em suas três horas de duração. De qualquer forma, já adianto: o título desta crítica não é mero exagero de quem vos escreve e você sairá daqui concordando comigo. Ou não.


A "Saga Infinita" começou há mais de 10 anos, em 2008, quando Robert Downey Jr. estrelou "Homem de Ferro". A produção deu o ponta-pé inicial daquela que seria uma das maiores franquias de sucesso no cinema, com US$ 20 bilhões arrecadados até agora. Entretanto, na época, não tínhamos a dimensão de que anos mais tarde estaríamos vendo quadrinhos na sua maior e melhor forma dentro das telonas. "Ultimato" é isto.

O primeiro ponto necessário a ser destacado é sua ousadia. O filme é facilmente o mais corajoso feito pelo estúdio da quadrinista. Começando já no primeiro ato, onde Thanos (Josh Brolin) é morto em menos de 15 minutos de play. A sensação da morte do titã se assemelha a morte de Loki em "Guerra Infinita" e arrisco dizer que tem a mesma função: impactar e preparar o espectador para o que ainda está por vir.


Com a morte do vilão e a insatisfação ao não ter o problema resolvido de verdade, os Vingadores, cinco anos depois, partem para uma jornada no tempo, revisitando momentos-chave da linha do tempo construída até aqui. A viagem é um verdadeiro prato cheio de fanservice. Dos bastidores ao "american ass", o filme brinca e celebra tudo que foi feito até "Ultimato" da forma mais gratuita possível, mas que não chega a se tornar um problema até porque a produção foi feita para isso: celebrar.

Se "Guerra Infinita" é um grande respiro em meio à saturação do gênero, o filme dos Irmão Russo é o resultado de longos 10 anos de planejamento. Tudo se encaixa de certa forma, até mesmo tramas de produções duvidosas do estúdio, como "Vingadores: Era de Ultron". O filme, aliás, é fundamental para entender alguns plots deste, principalmente a visão de Tony Stark que, sim, se concretiza de certa maneira, ainda que tudo termine relativamente bem.

"Ultimato" também é um filme sobre despedidas. Três dos seis Vingadores originais se despedem da franquia de forma que é impossível não se emocionar. O encerramento dos arcos é algo de se louvar, visto que traz a sensação de realmente colocar um ponto final nesta grandiosa história. Aliás, não há qualquer grande pista do que está para vir no futuro, tanto que o filme quebra a tradição das cenas pós-créditos.


O arco mais brilhante a ganhar seu fim neste filme é do personagem de Chris Evans. O Capitão América nunca pôde viver o grande amor de sua vida, Peggy Carter (Hayley Atwell), e a ideia de ficar "devendo uma dança" sempre o assombrou, tanto que o personagem tem uma visão sobre em "Era de Ultron". Com a oportunidade de revisitar Peggy logo ao fim do filme, Steve decide ficar e passa o resto de sua vida com ela e a produção mostra isso em uma cena bastante "merecedora" para o personagem.

Já a Viúva-Negra tem, de forma bem surpreendente, seu arco encerrado, mesmo com um filme solo engatado. Ela morre. A personagem de Scarlett Johansson martela na tecla de que precisa reverter a situação por estar em "devendo" aos Vingadores, visto que eles se tornaram sua família. "Custe o que custar". Uma pena que seu fim perde um pouco de espaço por conta de outra morte.



Por fim, Tony Stark. Sua morte só não fora tão surpreendente quanto da Viúva porque era esperada devido a vários rumores. De qualquer forma, é de bater palmas como o personagem evoluiu. Ele sempre foi o arrogante e egocêntrico, tendo sempre problemas com isso. No fim, é ele quem salva o universo ao usar uma manopla própria e estalar os dedos, resolvendo tudo, dando espaço para repetir a icônica  frase "eu sou o Homem de Ferro".

Outro ponto interessante que deve ser ressaltado em "Ultimato" é a representatividade que o longa-metragem traz, deixando claro que será o foco das próximas fases. Ainda que sejam cenas breves, é tudo muito "grandioso" porque durante estes dez anos, por exemplo, demoramos um bom tempo para as mulheres ocuparem um espaço significativo e totalmente importante para a trama. A mesma coisa com os personagens negros. Saber que daqui algum tempinho o Capitão América será protagonizado por um ator negro, Anthony Mackie, é incrível. De verdade.

Claro que tudo o que foi dito aqui não seria possível se não tivesse aliado a sequências de ação e efeitos visuais pra lá de competentes. Essa união resulta em cenas incrivelmente memoráveis, como o Capitão finalmente segurando o martelo do Thor e dando uma bela e tão esperada surra no personagem de Josh Brolin.

O longa-metragem dos Irmãos Russo definitivamente é o maior filme de super-heróis de todos os tempos com toda a certeza irá marcar a história de cinema.


"Vingadores: Ultimato" é uma grande e merecida celebração de quase 11 anos de história que entrega tudo o que os fãs tanto clamavam para a conclusão desta saga épica. O longa-metragem dos Irmãos Russo definitivamente é o maior filme de super-heróis de todos os tempos e com toda a certeza irá marcar a história de cinema. Parabéns e obrigado, Marvel.

Crítica: para “Temporada”, o que há de melhor no Brasil é sua gente

É um tanto irônico que "Temporada" tenha chegado na Netflix na mesma semana que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) suspendeu o repasse de verbas para o audiovisual do país. A ironia aumenta - e já vira tragédia - quando também aparece no catálogo juntamente com o anúncio das mudanças na Lei Rouanet: o teto de inventivo caiu de 60 milhões de reais para 1 milhão. Cultura no nosso novo governo é supérfluo.

E qual é o porquê dessa ironia: "Temporada", dirigido e roteirizado por André Novais Oliveira (em sua estreia com longas), é um filme que se senta no meio do Brasil atual. Juliana (Grace Passô), que mora no interior de Minas Gerais, é chamada por um concurso que já tinha esquecido que existia. Ela tem que se mudar para Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, sem tempo para grandes preparativos: ela não pode recusar o emprego e parte deixando o marido para trás, que irá até ela quando conseguisse se organizar. A mulher vira então fiscalizadora do combate à dengue pela prefeitura, e se vê engolida por uma mudança drástica demais para enfrentar sozinha.

Juliana conhece a equipe que trabalhará com ela, andando pelas ruas da cidade e entrando de casa em casa a fim de se certificar que acabará com os focos de dengue. O filme cuidadosamente exibe as construções de relações entre ela e os mais diversos colegas de trabalho, assim como o passo a passo durante o serviço. "Temporada" não perde tempo em mostrar que seu sangue é verde e amarelo na exposição da fiscalização contra a dengue.

Tem algo mais Brasil do que isso?


Claro que não é um dos objetivos principais da obra, mas todo o estudo do dia a dia operário de Juliana é um retrato da importância que nosso país vem adquirindo contra a doença. Enquanto olha os quintais, coloca areia nos vasos de planta e se certifica que as garrafas estão de cabeça para baixo, o ritual contra o Aedes aegypti já é um movimento cultural. Além disso, é precioso dar voz a um profissional quase invisível: os agentes entram e saem de nossas casas e sabemos absolutamente nada sobre eles.

Regionalizações são aspectos cinematográficos que garantem apreço por parte da plateia que compartilha daquela realidade. Em contrapartida, a mesma regionalização é um limitador ferrenho do alcance de uma película. É só lembrar de "O Auto da Compadecida" (2000), uma obra-prima do cinema nacional; todo o regionalismo tão característico é difícil de traduzir para outras culturas, e o filme não foi recebido internacionalmente com o mesmo entusiasmo. Por isso, "Temporada" emerge quando, mesmo colocando regionalismo na mesa, não aponta seu foco narrativo apenas nos aspectos particulares do seu redor.

A riqueza de diversos dos meus filmes favoritos ao redor do mundo mora no casamento do regionalismo com a universalidade de seu enredo. Nomes como "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017) transmitem bem essa sensação: mesmo enterrado no interior da África e colocando na tela ritos característicos de sua área, o longa pula essa barreira e dá palco aos dramas de seus personagens, o que garante interesse em quem mora ali do lado e em quem reside no outro lado do globo. "Temporada" realiza o mesmo, já que é as dores e amores de Juliana que guiam o espectador durante as quase 2h de duração. A descoberta das diferentes e plurais culturas nesse mundo é uma das mais incríveis funções do Cinema.


Juliana, tímida e perdida na nova cidade, é rodeada e grandes personalidades que felizmente a acolhem com prazer, principalmente Russão (Russo Apr), o boa-praça que descobre que é pai. É bonito ver como as pessoas ali se ajudam mesmo elas próprias precisando de ajuda, fortalecendo a ideia de comunidade. E as histórias vão se emaranhando, como a chefe que terminou o casamento e mostra, radiante, a foto do novo namorado pelo WhatsApp; a colega que começa a namorar em segredo, com medo da chefe descobrir e demiti-la; e a da própria Juliana. O tempo passa e seu marido some no mundo - o que me lembrou a trama do delicioso "O Céu de Suely" (2006), quando a protagonista é largada pelo esposo no interior do Ceará.

Quando volta à cidade natal, Juliana descobre que o marido sumiu não apenas para ela: nem as pessoas do trabalho dele sabiam do seu paradeiro. As mensagens são ignorados, os áudios do "Zap" não são ouvidos, e as contas caminham para o limite. Em uma cena-chave, Juliana conta que o casamento degringolou quando sofreu um aborto acidental, uma ruptura definitiva na relação, que não conseguiu superar o ocorrido. As peças do quebra-cabeça do ordinário se encaixam e as motivações da personagem se mostram corretas. Ela deve, obrigatoriamente, se recompor e seguir em frente, sem marido e com um salário ruim.

Tem algo mais Brasil do que isso?

Muito se fala das atuações quando o assunto é filme brasileiro - um dos maiores motivos dos detratores que cunham a lógica de que nosso cinema é ruim. Poucos exemplares possuem atuações inteiramente exemplares - "Que Horas Ela Volta?" (2015), conte comigo para tudo -, contudo, enquanto discutia sobre "Temporada" com outras pessoas, cheguei à uma conclusão elementar: não é uma justificativa para relevarmos atuações ruins (que tem aos baldes), porém nossa percepção diante das atuações sofre alterações diretas de acordo com a língua falada. Interpretações no mesmo nível, mas em outra língua, soam superiores, afinal, nós nunca vamos achar falso da mesma maneira uma atuação em húngaro quando não temos familiaridade com a língua. Com sua língua materna é mais suscetível detectarmos falhas, por isso as atuações de filmes nacionais são mais elogiadas por críticos de fora.


No entanto meu ponto é: a Juliana de Grace Passô é fabulosa. A atriz entrega nuances e muita paixão para sua personagem, conseguindo se aproximar das grandes atuações do novíssimo cinema brasileiro, como Sônia Braga em "Aquarius" (2016), Regina Casé em "Que Horas Ela Volta?" e Leandra Leal em "O Lobo Atrás da Porta" (2013). A escolha da atriz é fundamental para o cerne de "Temporada", não apenas no sentido da capacidade de realizar o papel, mas também pelos atributos físicos.

Juliana é uma mulher negra e gorda, o espectro oposto do padrão que o Cinema (quase) não consegue fugir. Em outras palavras, Juliana é uma mulher como qualquer outra, assim como todos os que estão no ecrã, e é um júbilo ver o ordinário sendo posto de maneira tão sincera na tela. Por isso é tão importante a cena de sexo da protagonista, um corpo desnudo fora da glamorização que estamos acostumados.

"Temporada" é a epopeia do comum. Vemos pessoas normais vivendo dramas normais com suas lutas normais, e o filme soa ainda mais impressionante quando consegue extrair o extraordinário de algo que já está tão impresso na nossa realidade. Ao abrirmos nossas portas, vemos várias Julianas passarem pelas ruas, as heroínas do cotidiano que representam a batalha por uma vida melhor em meio a um Brasil em crise econômica, social e cultural. Vemos os orelhões pichados, prédios abandonados e o emaranhado e fios de energia cortando as ruas sem asfalto, e tudo sem juízo de valor: o filme não tenciona dizer se isso é bonito ou não, apenas que é real. O lançamento de uma obra como essa, na recessão intelectual que o país se afoga, é a lembrança do quão necessária é a cultura para valorizar e questionar um meio. Contudo, o que "Temporada" mais almeja gritar aos quatro ventos é: o que há de melhor no nosso povo é sua garra.

Tem algo mais Brasil do que isso?

Crítica: “Tinta Bruta” e o cinema de resistência brasileiro quando a cultura vira descartável

Sempre quando tenho a oportunidade, abro espaço nessa singela coluna para enaltecer o cinema nacional, que ainda sofre preconceito dentro do nosso próprio país. Estamos em meio a uma era histórica do audiovisual tupiniquim, com longas fenomenais que infelizmente são mais apreciados lá fora. Acho ainda mais notório quando tais bons filmes são feitos fora do eixo principal da nossa indústria - São Paulo/Rio de Janeiro -, como é o caso de "Tinta Bruta".

Dirigido pela dupla Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, o longa estreou no Festival de Berlim 2018, onde ganhou o Teddy Award, dado ao melhor filme LGBT da seleção - prêmio esse vencido também pelo oscariado "Uma Mulher Fantástica" (2017) e nosso conterrâneo "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" (2014). O Teddy é um dos três grandes prêmios voltados ao cinema LGBT no mundo, junto com a Queer Palm no Festival de Cannes e o Queer Lion no Festival de Veneza, o que garante o prestígio da honraria.

Passado em Porto Alegre/RS, Pedro (Shico Menegat) é um garoto tímido e retraído que, a fim de fugir de uma crise pessoal, ganha fama como "GarotoNeon", se exibindo na webcam em um site gay - seu diferencial é dançar sob a luz negra com tintas fluorecentes. Existem três pontos-chaves dentro da trama que vai conduzir a narrativa da obra. O primeiro deles é o fato de que Pedro está sendo julgado por um crime que inicialmente não sabemos qual é. A primeira cena já é o protagonista no tribunal, com apenas uma pessoa o apoiando, sua irmã, Luiza (Guega Peixoto).


Entrando na intimidade dos irmãos, fica claro que Luiza é a única pessoa que consegue compartilhar o mundo fechado de Pedro. Sem as figuras paternas, eles têm somente um ao outro para cuidar, só que aqui reside a segunda ruptura do roteiro: a irmã está indo embora da cidade, o que deixará Pedro completamente sozinho. Ela demonstra real preocupação com a saúde do irmão, fazendo-o jurar que irá sair de casa todos os dias ao invés de se enclausurar ainda mais.

O terceiro fincamento de narrativa surge quando Pedro descobre que outro cara do mesmo site em que trabalha roubou a ideia de suas tintas neons - e também seus clientes. Pedro vai até o tal concorrente, Leo (Bruno Fernandes) - ou "Guri25", seu nick do site - e descobre que, muito mais que uma cópia, ele é um rapaz simpático até demais, o que gerará um casal no trabalho e na cama.

A trama-central de "Tinta Bruta" é deveras simplória: o florescer de uma relação que surgiu com uma rivalidade. Leo demonstra desde o primeiro momento uma atração por Pedro, todavia, há pesadas e grossas barreiras construídas ao redor do protagonista, um ser estranho que não permite (nem se permite) estranhos em seu universo. O grande valor da película reside nas sutilezas que surgem com o decorrer de sua duração.


"Tinta Bruta" é fundamentalmente um filme urbano: o relacionamento das pessoas com a cidade é fundamental para o entendimento do que a história quer nos contar. A fotografia privilegia vários takes de Porto Alegre, esmagando seus personagens na imensidão de concreto - e é exatamente assim que eles se sentem; é o velho "sozinho no meio da multidão". Por se passar através dos olhos de Pedro, a metrópole é ditadora de solidão, e mesmo com tanto a ser visto, há a latente sensação de que não há lugar para ele.

Quando conhece (quase obrigatoriamente) os amigos de Leo, Pedro nota que tal sentimento é compartilhado. "Todo mundo vai embora da merda dessa cidade", fala um em determinado momento, e o espectador vê personagens chegando e indo embora, num fluxo que, mesmo morando em cidades entupidas de arranhas-céus, muitas vezes não absorvemos. "Tinta Bruta" não foge da agonia da juventude, tema universal e atemporal que o Cinema já explora desde os primórdios - vide "Os Incompreendidos" (1959) e "Juventude Transviada" (1955), grandes nomes a abordarem o tema.

Talvez a sacada mais engenhosa dos diretores é a maneira como a obra observa Pedro, de maneira literal. Seu trabalho é ser visto por estranhos através da internet, e enquanto caminha pela cidade, a fita insere pessoas em suas janelas, como se observassem cada passo do protagonista. O quadro é ainda mais impessoal quando tais pessoas estão em contra-luz, apenas com suas silhuetas à vista. Seja na vida real ou no virtual, Pedro é seguido por seres que não mostram seus rostos.


Essas composições visuais se transformam quando o roteiro expõe o passado de Pedro, e como o bullying sempre se fez presente em sua vida - o que tem relação com o crime que cometeu. Até presente data, ele é ameaçado, humilhado e agredido por ser quem é, o que explica em demasia sua personalidade extremamente fechada, e até porque ele evita sair de casa. No entanto, não conseguia ignorar o fato de que tal personalidade também afeta a plateia, que encontra dificuldade em se conectar com Pedro - sua história é mais imersível, principalmente para quem também é LGBT. Curioso é perceber como a vida de Pedro é composta em cores mortas, encontrando cores apenas na frente da webcam - único momento em que ele se solta.

Como comento no início, acho louvável quando um filme é produzido e filmado fora do eixo industrial do Cinema brasileiro pois acaba, diretamente ou não, sendo um documento. Nós temos cenários no imaginário popular de inúmeras cidades, porém, há tantas outras, centros urbanos em destaque, que não possuem uma "cara". Porto Alegre é capturada com melancolia em "Tinta Bruta", mas sua identidade é guardada e, quem lá reside, vai imediatamente se sentir em casa. Entretanto, a universalidade é mantida sem problemas, revelando como estamos em uma enorme confusão entre os conceitos de "ação" e "movimento": vemos os mesmos lugares e as mesmas pessoas e continuamos com a impressão de que a vida não avança. Quando vamos fazer algo a respeito?

A jornada do protagonista reflete com esmero a jornada do espectador diante do ecrã: o pesar está presente em quase todos os quadros, mas por fim aprendemos que temos que perder para nos libertar. Nessa grande exposição do isolamento urbano, é difícil não se pegar repensando na maneira que estamos inseridos nas cidades e como a constante ocupação do dia a dia nos enclausura ainda mais. Filmes como "Tinta Bruta" largam distantes do puro entretenimento quando levantam a bandeira da resistência e reflexão. E não apenas na abordagem da vivência LGBT, mas também por nascer no auge de um governo que mutila a cultura como vertente descartável de um país. 

Crítica: em “Selvagem”, a vida de um garoto de programa gay não poderia ser menos que o título

Atenção: a crítica contém spoilers.

Félix Maritaud está se tornando um novíssimo ícone LGBT no cinema. O francês de 26 anos participou de três ícones gays seguidos - "120 Batimentos Por Minuto" (2017), "Faca no Coração" (2018) e "Selvagem" (Sauvage), seu mais novo filme. Interpretando personagens gays em todos os três, Maritaud não parece estar interessado em papéis sutis, e cada vez mais abraça filmes que o desafiam em plenitude. De ativista em meio ao boom do HIV nos anos 80 a um ator pornô, é em "Selvagem" que ele encontra o sucesso absoluto.


Dirigido pelo estreante Camille Vidal-Naquet, "Selvagem" segue Léo, um garoto de programa que se apaixona por um colega de esquina, Ahd (Eric Bernard). A obra nos coloca em uma afastada rua que serve como ponto de vários prostitutos, uma vitrine ao céu aberto onde os clientes passam em seus carros e escolhem seus produtos. Léo e Ahd, cada um em um lado oposto da rua, trocam olhares até que um homem contrata ambos para um programa.


O grande diferencial entre os dois é que Léo aceita beijar os clientes, ao contrário de Ahd. O cliente - um cadeirante - tem que pagar por fora só para assistir os dois se beijando, para o deleite de Léo. Ahd se demonstra agressivo com o nível de intimidade, mas não a câmera do filme, nada sutil quando foca nos membros à mostra. Pudores é uma palavra que não existe na vida de um prostituto - e muito menos no seu retrato em audiovisual.

O cadeirante escolhe dispensar Léo e continuar apenas com Ahd, o que desencadeia um gritante ciúmes sobre o protagonista. A persona de Ahd é construída com complexidades pelo roteiro, quando ele diz que não é gay e apenas está ali por sobrevivência - e não perde tempo em ficar com uma menina na frente de Léo. Não seria um filme gay se o amado do protagonista não ficasse com uma mulher, não é mesmo? Apesar de não entregar respostas sobre o modo ambíguo como ele age - é Léo o eixo de toda a trama, sem grandes espaços para outros personagens -, há um ar de auto-depreciação ao redor de Ahd, que usa da agressividade para mascarar a própria homofobia. Em outras palavras, ele rejeita a própria sexualidade, ao que parece.


Léo tenta tirar Ahd da cabeça com o trabalho. Para ele, não existe cliente ruim - ele não pode se dar ao luxo de escolher. Saindo com um idoso, ele expressa absoluto carinho pelo homem, que pergunta "Você não tem nojo de mim?". Léo nega, pois tudo o que ele anseia é afetividade. Fica claro que a prostituição para ele não é pelo sexo, e sim pelo contato físico, pela troca de energia. O protagonista mora na rua, e não existe uma noção familiar ao seu redor - e nem junto com todos os outros prostitutos -, o que é fundamental para cimentar a sua condição: ele não parece ter passado e, consequentemente, futuro. Um ser sozinho no mundo. Não é de se assustar o melhor instante de toda a fita, quando Léo, durante um exame, abraça a médica num ímpeto humano avassalador.

Outro grande aspecto abordado pelo roteiro é o uso de drogas por Léo, uma consequência de toda a marginalização de sua vida. Não há tempo ruim para ele, e tudo é aceitável contanto que o ajude a sobreviver. Não há clientes ruins, não há drogas erradas, não há amizades desaconselháveis, tudo vale quando o assunto é existir. E a produção não tem piedade, principalmente em sequências que envolvem sexo. Quando é contratado por dois homens, Léo se vê nas mãos de caras que gostam de sexo hardcore, batendo e humilhando o garoto de programa, até chegar na cena do dildo. Literalmente uma tortura, a passividade de Léo irrita quando não há respeito nem mesmo com seu corpo, o que rende um momento física e emocionalmente devastador - nem mesmo pago pelo programa ele é.

Enquanto isso, Ahd encontra um homem mais velho que propõe que o prostituto seja seu, um programa fixo, como um namoro por pagamento. Ahd aceita de prontidão, para o desespero de Léo, que ainda nutre um amor pelo companheiro de vida. É claro que não estamos diante de um conto de fadas, e o final feliz é uma utopia, todavia, Léo se agarra como se sua vida dependesse de Ahd, e a faísca mínima de prazer que ainda reside na sua existência é extinguida. A bebida, as drogas e o sexo não preenchem mais o vazio.


Por nada mais valer a pena, Léo aceita o programa com um homem notoriamente conhecido pelo sadismo, e sai ensanguentado. É correta a decisão da película de não mostrar o que aconteceu - àquela altura as tensões estão altas demais para chocar ainda mais. Ele é resgatado por um ex-cliente que, como o corte temporal mostra, vira o cliente fixo de Léo - a mesma configuração que Ahd aceita. A vida soa mais amigável com ele, que pela primeira vez aparece limpo e visualmente saudável.

O "namorado" dá uma condição nova a Léo, e pela primeira vez ele tem um teto. Mas no meio da belamente decorada sala, ele se senta de maneira desconfortável no sofá; na mesa de centro, um bilhete chamando-o de "amor" acima de dinheiro. Tudo vai bem. Mas não para Léo, que foge e abandona todo o cômodo mundo. Enquanto os créditos subiam, uma sensação de ingratidão me abatia, sem entender como ele escolheu voltar para a rua quando tinha tudo na mão, contudo, o título do filme é a explicação perfeita: aquele mundo não era o de Léo, com a selvageria já impregnada em seu ser. O mais correto que lhe restava era aceitar sua própria humanidade, por mais complexa que seja.

"Selvagem" já nasceu como marco dentro do cinema LGBT pelo seu olhar documental de uma condição que preferimos não encarar. Sua sinceridade brutal não é apenas motor de uma sessão de entretenimento (por mais drenadora que ela seja), é ferramenta de comoção social fenomenal da difícil vida de um garoto de programa. Longe de qualquer glamourização, fetichismo e julgamento moral, o filme vira um documento do quão desumanizadora é a marginalização da prostituição - aproximando o homem da selvageria - e manifesto da intragável solidão de seu protagonista, uma mercadoria à baixo preço que está sedenta por qualquer demonstração de afeto. E não estamos todos nós?

Crítica: “Nós” não repete o sucesso de “Corra!” pois, quanto mais se explica, pior fica

Atenção: a crítica contém spoilers.

Jodan Peele encontrou as portas do paraíso abertas logo quando pôs os pés no Cinema: com "Corra!" (2017), o diretor conseguiu sucesso crítico e comercial, saindo ainda com o Oscar de "Melhor Roteiro Original" nas mãos - um feito sem precedentes, afinal, o cinema de terror é quase sempre ignorado pela Academia. E as honrarias foram merecidas: "Corra!" é um dos melhores filmes do circuito comercial de terror, um acerto magnífico que demonstrava o talento de seu autor.

Ele logo correu para repetir o sucesso, sem deixar que sua fama diminuísse com o passar do tempo. Chega aos cinemas seu novo longa, "Nós" (Us), que mal estreou e já quebrou recordes de bilheteria - é a segunda maior estreia da história para um live-action, atrás apenas de "Avatar" (2009). A fita segue com o empenho de Peele na valorização do negro na Sétima Arte, e "Nós" é o primeiro terror na história a girar ao redor de personagens negros - largamente conhecidos por serem os primeiros a morrerem dentro do gênero. Fora isso, vários elementos da cultura negra estão no recheio da película, como a camiseta de "Thriller" do Michael Jackson e até Janelle Monáe na trilha-sonora. Amém.

A trama é divida em três atos bastante distintos, abertos com um prólogo direto dos anos 80. Curiosamente, o filme é iniciado da mesma forma que "Clímax" (2018), com um televisão em meio a várias referências culturais e temporais, introduzindo a história na época correta e dando pistas do enredo. Uma garotinha, em um parque de diversões, se distancia dos pais e entra numa casa de espelhos. Lá, durante uma queda de energia, encontra uma cópia perfeita, que a traumatiza pelo resto da vida.

Agora, na atualidade, a garotinha - Adelaide (interpretada pela vencedora do Oscar, Lupita Nyong'o, que aqui cria dois papéis brilhantemente distintos) - é mãe de dois filhos, Zora (Shahadi Joseph) e Jason (Evan Alex). A família, junto com o pai, Gabe (Winston Duke), está passando as férias na mesma praia que se encontra o parque da infância de Adelaide. Já sabemos que não sairá coisa boa dali.


A estadia é conturbada para a mãe, que possui diversos gatilhos sobre o acontecimento da sua infância, e ela se mostra cada vez mais perturbada com a possibilidade da menininha que era igual a ela aparecer e atacá-la. É claro, Gabe acha a história uma loucura, porém rapidamente sua opinião muda quando quatro pessoas em vermelho estão bizarramente paradas do lado de fora - e todas são iguais aos quatro integrantes da família.

Talvez aqui se encontre o primeiro grande problema de "Nós": ele mergulha rápido demais no terror. Em "Corra!", nós sempre sabemos que há algo de muito errado, todavia, só descobrimos o que é no último ato. Em "Nós" é o oposto, com a plateia já tomando conhecimento do fomentador do horror logo na primeira meia-hora. A vantagem é que o roteiro de Peele consegue produzir interesse de maneira quase instantânea, e fica difícil não querer saber o que diabos está acontecendo.

A cópia da mãe, a única que consegue falar - mesmo com uma torturante voz - explica, por meio de um conto de fadas, que as cópias passaram a vida na "sombra" dos humanos, e que elas finalmente estão ali para tomarem o lugar. A cópia-mãe então separa a família, e cada uma cuida de sua versão humana, com a montagem se desdobrando para dar espaço aos quatro diferentes acontecimentos - há claramente um segmento campeão, a de Zora e sua cópia. Conseguindo fugir, os quatro vão à casa de amigos, só para encontrarem todos mortos pelas suas respectivas cópias.

O filme então parte para um nível muito maior, afinal, pensamos até o momento que a desgraça era exclusividade da família protagonista. Por meio da televisão, ficamos sabendo que o fenômeno está acontecendo por todo os Estados Unidos, como um apocalipse. Há grande pontuação em cima do versículo 11:11 do livro de Jeremias, na Bíblia, que traz: "Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei". Não há resumo melhor.


Até o momento, somos alimentados pelo horror puro e simples, vindouro da luta pela sobrevivência entre os humanos e as cópias, e pela fome da solução do mistério: o que são essas cópias? Enquanto caminha pelo solo da simbologia, "Nós" encontra sucesso. Inúmeras metáforas visuais são impostas, como os coelhos - que me fizeram lembrar de "Lost" -, e a tesoura, arma de todas as cópias. O que é uma tesoura? Duas peças iguais que, quando unidas de maneira oposta, se transformam na ferramenta, uma relação brilhante ao plot do filme. Mas aí o roteiro começa a ser expositivo e se explicar, porta de entrada para que tudo desande.

As cópias foram criadas pelo governo norte-americano para controlar a população, mas o experimento foi abandonado e elas deixadas nos túneis do subsolo, que se espalham por todo o país. As cópias são fisicamente iguais, mas possuem apenas "metade" da alma de seus originais, o que justifica o comportamento anormal. Elas também são ligadas às pessoas, realizando movimento similares, sem possuírem livre-arbítrio. A premissa pode funcionar por si só, entretanto, não demora a surgir inúmeras perguntas que contradizem as regras escritas pela realidade do filme.

Se as cópias não são seres autônomos, como conseguiram se organizar em massa e atacar os humanos? As dúvidas vão até para os pequenos detalhes, afinal, como eles conseguiram as roupas vermelhas? E as tesouras? E só que piora: o roteiro, querendo ser inteligente, traz a maior idiotice quando coloca uma óbvia reviravolta - eu imaginei que esse seria o final antes mesmo da metade: a Adelaide que vemos desde o começo é na verdade a cópia, e a cópia que surge é a humana. Ela foi raptada pela cópia na sala dos espelhos nos anos 80, e tomou o seu lugar desde então. A real Adelaide é quem comanda a revolução das cópias contra os humanos.

Nada disso faz o M-E-N-O-R sentido. Vamos por partes. A real Adelaide surge anos depois na superfície e.........faz nada para dizer quem realmente é. Ela não age como os humanos, enquanto sua cópia, que não possui toda a "alma", age como alguém normal. Como isso pode ser possível? As cópias só se reproduzem porque são presas pelas ações dos humanos, mas isso não afeta a humana Adelaide, que está no subterrâneo, logo, como ela pode ter exatamente os mesmos filhos da cópia que tomou o seu lugar? E por que ela vai liderar uma guerra em prol das cópias, sendo que foi uma delas que roubou sua vida?


A trama também gera todo um mistério quando as cópias começam a dar as mãos e formar uma corrente gigante. Não é uma novidade inserir esse tipo de camada à trama, com os vilões agindo de forma estranha enquanto tentamos desvendar a razão - em "Os Famintos" (2016), por exemplo, os zumbis empilham objetos, criando torres, o que gera um "por quê?". "Nós" entrega esse porquê, mas é o pior possível: baseado no "Hands Across America", evento beneficente dos anos 80 que levou mais de 6 milhões de norte-americanos a darem as mãos, as cópias estão..........fazendo um protesto, dizendo "nós existimos". E é isso. Uma das grandes interrogações é solucionada de maneira irrelevante e preguiçosa. A produção ainda tenta dar um ar grandioso ao subplot - a fotografia luminosa com a trilha sonora épica -, contudo, é em vão.

Esses são apenas alguns dos vários furos/inconsistências que a reviravolta cria - chegou um momento que eu fui obrigado a parar de pensar no filme para não encontrar mais problemas. "Nós"infelizmente faz parte do grupinho de reviravoltas do terror que destroem a própria história e jogam no lixo as próprias leis - na ânsia de serem ixpertos ao enganar a plateia, esses filmes acabam sendo violentamente burros - vide "Alta Tensão" (2003). Não há o requinte de nomes como "O Sexto Sentido" (1999), "Os Outros" (2001) e até "A Órfã" (2009), todos não possuindo uma rasteira que serve só para derrubar o espectador.

Jordan Peele está fazendo seu cinema fincado na ideia "se você vai fazer algo que já foi feito, faça melhor". "Corra!" e "Nós" são filmes que premissas nada inéditas - "Corra!" é quase um filhote de "A Chave Mestra" (2005)", enquanto "Nós" se apropria de temáticas já discutidas, como o home invasion, slasher e o gêmeo-do-mal -, mas o diretor utiliza da falta de originalidade e cria um trabalho fresco e comercial, que soa como novo. "Nós" tem sim originalidade e personalidade, no entanto, simultaneamente, é um pesadelo que não faz sentido - e se não faz sentido, não funciona.

"Nós" não atinge um nível medíocre pelo domínio gritante de Jordan Peele sobre suas imagens, que constrói um filme ainda mais imageticamente icônico que "Corra!", mesmo longe do incrível resultado anterior. Enquanto "Corra!" unia um terror direto ao ponto e uma larga crítica aos EUA, "Nós" deixa a crítica escorrer pelos seus dedos quando abraça ideias demais, tornando a película num bolo abstrato que dá respostas contraditórias e entrega soluções ruins. O pontapé nos indicada um inovador filme de invasão, que se perde e termina como uma bagunça clichê, salva apenas pelo olho fantástico de seu realizador - mas ainda assim é tão frustrante quanto abrir uma caixa de quebra-cabeças e descobrir que várias peças estão faltando.

Crítica: se 11 pessoas não tivessem sido mortas, “O Anjo”, baseado em fatos, não existiria

Atenção: o texto contém detalhes da trama e se trata bem mais de uma discussão sobre o papel da cinebiografia do que uma crítica pura e simples.

Já comentei em alguma crítica que a Argentina é a galinha dos ovos de ouro da América do Sul no Oscar. Até o ano passado, era o único país daqui a vencer o prêmio de "Melhor Filme Estrangeiro" na Academia - em 2018 o Chile se uniu aos hermanos com a vitória de "Uma Mulher Fantástica" (2017) -, mas ainda detém o recorde de vitórias e indicações: dois prêmios e outras cinco indicações.

E falando em "Melhor Filme Estrangeiro", sempre deixei claro que essa é a minha categoria favorita em todas as premiações. Procuro assistir não só aos cinco finalistas, mas o maior número de selecionados pelos países mundo afora, e, claro, a Argentina está sempre na minha lista. O selecionado para a edição de 2019 foi "O Anjo" (El Ángel), de Luis Ortega. O filme ganhou respaldo internacional por ser produzida pelo mestre Pedro Almodóvar e sua produtora El Deseo - que já possuem em casa o Oscar da categoria estrangeira.

Selecionado pela Argentina e produzido por Almodóvar? Vou assistir sim. "O Anjo" relata a história real de Carlos Robledo Puch, um serial killer conhecido como "o anjo da morte" que aterrorizou o país na década de 70. Vemos a juventude do protagonista e o que o levou até a prisão - ele está preso até o presente dia, o encarcerado mais longo do país. Interpretado pelo novato Lorenzo Ferro, a estrutura do filme não dá espaço para surpresas.


Por ser uma história verídica, sabemos basicamente tudo o que vai acontecer na tela. Porém, há um atrativo instantâneo: a fotografia e design de produção são estonteantes. Com um filtro carregadíssimo, as cores de "O Anjo" saltam na tela, em uma reprodução fidedigna da época em que se passa. Se tratando de uma produção de Almodóvar, não é de se espantar - os filmes dele são tão visualmente arrebatadores quanto.

Carlitos - como ele gosta de ser chamado - é um jovem rebelde, que fugiu da escola sem os pais saberem e sempre chega com objetos roubados em casa, apesar de afirmar serem empréstimos dos amigos. É um caso nitidamente perdido. A construção ao redor do personagem é bem feita e o transforma em alguém insuportável, que vive numa realidade à parte e dita as próprias regras. Esse tanque de gasolina encontra então Ramón (Chino Darín, filho do rei do cinema argentino, Ricardo Darín), uma chama acesa. Ele é acolhido na família de Ramón, basicamente uma gangue: o pai comete diversos crimes, tudo sob a supervisão da mãe. Esse detalhe me lembrou "O Clã" (2015), fantástico filme argentino sobre uma família de sequestradores - que também foi, no seu ano, o selecionado pelo país ao Oscar.

Com uma trupe, Carlitos aumenta a amplitude de seus crimes, cada vez maiores e mais ambiciosos; ele chega a perder a noção do perigo que corre - e, consequentemente, coloca os outros. A única pessoa que consegue domar um pouco a insanidade crescente do protagonista é Ramón. Há uma forte tensão sexual entre os dois, que viram um Bonnie & Clyde - ou "Eva & Perón", como eles mesmo dizem. Chega a ser bizarro como a relação entre os membros da postiça família de Carlitos, um quadro em que todo mundo é de todo mundo, e até a mãe de Ramón investe sexualmente no amigo do filho.


Na ficha criminal de Carlitos, há 11 homicídios. Quando o primeiro surge na tela, uma linearidade narrativa é rompida: ao atirar (quase acidentalmente) num senhor após arrombar a casa, todas as reações humanamente esperadas são jogadas no lixo. A sequência, totalmente anti-climática, chega a ser uma esquete cômica: a vítima baleada sai andando pela casa sem rumo, sem dar uma palavra, enquanto Carlitos e Ramón o seguem, pegam o que querem e saem tranquilamente, como se uma pessoa não estivesse acabado de receber um tiro.

Daí para frente é ladeia abaixo. A direção não tem o tato para manter o ritmo da fita, que se arrasta de uma maneira enfadonha. Tudo cai na extrema obviedade, diversos acontecimentos não possuem influência direta na trama e até mesmo em sequências antecipadas - como o embate da família de Carlitos com seus crimes -, a letargia é peça preponderante. Contudo, devo parar de criticar a obra em si para entrar nos detalhes que me fizeram escrever esse texto.

Enquanto a película expelia meu interesse lá pelas tantas, um estalo me veio. "O Anjo" é uma cinebiografia, como já sabemos. Qual é o fundamento elementar de uma cinebiografia? Dar vida, na tela do cinema, à uma história real, seja ao redor de uma pessoa ou um grupo delas. E, aprofundando ainda mais nessa teoria, o que faz a cinebiografia ser produzida é sua capacidade de fomentar interesse. Por que contar a vida dessa pessoa? Porque sua história é, de alguma forma, importante, curiosa, divertida, emocionante, enfim, gera algum sentimento que é rotulado como seminal. Pois bem. "O Anjo" é a narração cinematográfica da vida de Carlos Puch. O que fez essa história em específico ir parar no ecrã? O que faz Carlos Puch distinto de qualquer outro transeunte? Ele assassinou 11 pessoas - além de vários outros crimes como roubos, assaltos e estupros.


Quando esse fato me ocorreu, toda a percepção que tive do que estava diante de mim mudou. Fui ainda mais longe, pensando em outros filmes que também são cinebiografias de outros criminosos. "O Lobo Atrás da Porta" (2013), obra-prima brasileira, gira ao redor da "Fera da Penha", assassina da década de 60. Fui desconstruindo minha análise ao chocar "O Lobo" com "O Anjo", a fim de ter uma noção mais justa da problemática que levantei.

A diferença fundamental entre os dois é que, em "O Lobo", a "vilã" é tratada como tal. Carlitos é quase um anti-herói, aquele bandido descolado, charmoso e cheio de personalidade. Até mesmo no momento em que vai ser preso, é posto na tela dançando. Como comento na crítica de "A Casa Que Jack Construiu" (2018), Cinema não é uma escola em imagens e não tem a obrigação de sentar e ensinar mastigadamente o que é certo ou errado, entretanto, um senso de justiça deve ser empregado. No filme de Lars Von Trier, Jack vê seus assassinatos como arte e se delicia enquanto mata e tortura, contudo, o roteiro, mesmo de forma sagaz, julga o protagonista. 

"O Anjo" consegue gerar empatia em um personagem que, naturalmente, repudiaríamos. Sim, quando entramos na vida de qualquer personagem, um processo de humanização é quase inevitável. Há uma lista interminável de vilões apaixonantes na história do Cinema, no entanto, ao adorarmos Anton Chigurh em "Onde os Fracos Não Têm Vez" (2007) ou o próprio Jack de "A Casa Que Jack Construiu", estamos adorando um personagem fictício que tem uma moralidade contestada. Sei bem que "O Anjo" não é um documentário, mas sua fundamentação é real. A cultura é ferramenta incisiva na criação do imaginário popular e das noções que temos socialmente, então, a maneira que falamos de temas intricados, como a violência sobre histórias verídicas, deve ser cuidadosa. No rolar dos créditos, a impressão que a produção deixa de Carlitos é positiva.

Com "O Anjo", um assassino é imortalizado pelo Cinema, e foi preocupante quando caiu a ficha de que, caso não tivesse matado onze pessoas, um filme sobre Carlos Puch não existiria. Não se trata de um filme inspirado em um caso policial, é baseado diretamente nos crimes, com o nome e a trajetória de Carlos Puch no palco principal. Não é isso o fator preponderante que define a forma como uma película passa longe da glória, mas é uma problemática relevante dentro dessa complexa arte que é o Cinema. O que pesa no saldo final é a transformação de um serial killer em uma caricatura, com um senso de justiça que não é compatível com seus próprios atos. 

Crítica: é uma ofensa que “O Grande Circo Místico” tenha nos representado no Oscar

De todas as qualidades do Brasil - que sim, são várias -, escolher filmes para o Oscar não faz parte do grupo. Ao longo da nossa história, focando no novo século, o país demonstrou não possuir a menor noção na hora de selecionar um longa para concorrer à categoria de "Melhor Filme Estrangeiro". Não por acaso, a última indicação que vimos foi em 1999 com a obra-prima "Central do Brasil", há 20 anos.

No século XXI, ao passo que fizemos escolhas corretas - "Cidade de Deus" em 2003, "Tropa de Elite 2" em 2012, "O Som Ao Redor" em 2014" e "Que Horas Ela Volta?" em 2016 -, acumulamos trapalhadas para envergonhar qualquer cinema: "Dois Filhos de Francisco" em 2006, "Lula: O Filho do Brasil" em 2011, "O Pequeno Segredo" em 2017 e agora "O Grande Circo Místico" em 2019. Os motivos para que afirmo serem escolhas erradas são diversos.

Se "Dois Filhos de Francisco" e "Lula" foram nomes enormes dentro do país, tratam-se de obras obviamente regionais, com um apelo universal nulo - qual o impacto que Zezé e Luciano vão causar em alguém, não sei, na Ucrânia? Por outro lado, "O Pequeno Segredo" e "O Grande Circo Místico" não sofrem apenas da sua qualidade individual, mas também por serem selecionados enquanto outros nomes muito maiores foram ignorados.


Já é um crime à cultura contemporânea o fato de "Aquarius" ter sido negligenciado em prol de "O Pequeno Segredo", uma escolha puramente política: a equipe de "Aquarius" protestou na estreia no Festival de Cannes contra o golpe do governo Temer. O caso de "Circo Místico" é ainda pior: tivemos uma pá de filmes muito melhores na disputa. "As Boas Maneiras", "Aos Teus Olhos", "Ferrugem", "O Nome da Morte" e o mais cotado (e esnobado) "Benzinho", sucesso de crítica ao redor do mundo - dono do status "aclamação universal" no Metacritic

A escolha de "Circo Místico" para levar nosso nome para a maior premiação do planeta provavelmente se deu à produção em si. Realizado pelo Brasil, Portugal e França, o filme foi dirigido por Cacá Diegues, um dos fundadores do Cinema Novo e recordista de selecionados a "Filme Estrangeiro": seis de seus filmes foram os escolhidos pela Academia Brasileira de Cinema e Ministério da Cultura (apesar de nenhum deles ter se convertido em indicação). Pelo mesmo motivo, "Bingo: O Rei das Manhãs" foi escolhido ano passado - o diretor, Daniel Rezende, já foi indicado ao Oscar e tem um BAFTA em casa, o que já garante um peso para chamar atenção da Academia. Só que, ao contrário de "Circo Místico", "Bingo" é uma delícia.


Além disso, há dois nomes internacionais no elenco: Catherine Mouchet (que já venceu o César - o Oscar francês) e Vincent Cassel (de "Cisne Negro"). São reforços para o pedigree da produção e chamarizes para votantes de fora. Todavia, muito mais do que a embalagem com rótulos bonitos e chamativos, o que gera o prestígio da Academia é o filme em si.


"O Grande Circo Místico", baseado no poema de 47 versos contido no livro "A Túnica Inconsútil" de Jorge de Lima, segue cinco gerações de uma mesma família vivendo do circo, de 1910 até os dias presentes. O século familiar é ligado por Celavi (Jesuíta Barbosa), o mestre de cerimônias que jamais envelhece - ele vê geração por geração morrer enquanto continua ali. Eis o primeiro grande problema do filme.

Os 105 minutos são divididos entre cinco blocos, focando na atual geração da família. Isso faz com que a plateia não consiga se conectar com os personagens, que permanecem muito pouco na tela. Mas nem isso é desculpa: exemplos de curtas-metragens que arrebatam nossos corações são grandes. O defeito é o roteiro rasteiro que não consegue aprofundar nenhum de seus personagens. Da Beatriz de Bruna Linzmeyer (que tenta, sem sucesso, emular a Satine de Nicole Kidman em "Moulin Rouge") ao unidimensional Fred de Rafael Lozano, eles entram e saem da tela sem gerar a percepção de diferença. Os cortes temporais injetam esperança de uma trama fresca que salve a narrativa, no entanto, são retalhos pseudo-poetizados que não funcionam.

As atuações são ou limadas pelos personagens fracos ou fracas por si só. Nem mesmo Vincent Cassel, que atua em filmes indicados ao Oscar; Mariana Ximenes, a melhor em cena; e Jesuíta Barbosa, um dos maiores atores em atuação do país, são capazes de gerar a menor empatia ou atração. Enquanto o personagem de Cassel é odioso por natureza, o de Barbosa, intitulado de forma sagaz como um trocadilho de "c'est la vie" ("é a vida", em francês), está ali como representação da arte circense, que mesmo após indas e vindas continua ali vivo e intocável. Mas essa metáfora em cima do porta-voz do longa se perde quando as indas e vindas são ruins.


Uma coisa é inegável: o trabalho visual do filme é caprichado. Do design de produção coloridíssimo aos figurinos cheios de detalhes, pelo menos há um departamento que mereça elogio dentro de "Circo Místico". Porém, o que poderia ser usado em prol da narrativa mais parece um jogo com a missão de esconder o quão raso é seu enredo a partir da ilusão da grandiosidade. Há longas sequências de espetáculos que, no fim das contas, servem para nada além de encher os olhos.

E ainda reside uma grande questão: o uso de animais pelo longa. Filmado em Portugal em 2015, desde a fotografia principal o filme enfrenta protestos contra o uso de animais reais como entretenimento. "O uso de animais em circo é um espetáculo degradante, humilhante, que atenta à vida dos animais, que veem as suas vidas e dignidades destruídas. Estamos completamente contra [ao uso de animais no filme] e sabemos que este espetáculo vai perecer. Infelizmente isto está a acontecer e é com o nosso dinheiro", falou Andreia Mota, fundadora do Ação Direta pela Libertação Animal em Portugal, durante as filmagens da fita, que teve mais de 300.000 euros de apoio financeiro público.

Mas, espanta, nada nisso é o principal afundador da película. Somando a todos os defeitos, ainda há espaço para uma misoginia absurda dentro das lonas de "Circo Místico": todas as mulheres existem na tela para serem objetos de prazer sexual dos homens. Elas estão constantemente nuas durante a projeção e são estupradas e mortas durante o sexo (!). Sim, é de largo conhecimento a situação social precária da mulher ao longo da história, mas a gratuidade que todos esses aspectos são colocados na tela é gritante.

"O Grande Circo Místico" é uma produção deprimente que nem de longe merecia o título de melhor filme brasileiro do ano quando nos representou no Oscar 2019. Artificial, gratuito e machista, o resumo mais apropriado ao longa já foi dado: parece ser um filme feito por homens que nunca falaram com uma mulher na vida, só ouviram falar que elas existem. O despreparo diante de um elenco tão diverso, capital para orquestrações visuais fabulosas e trilha sonora do Chico Buarque só afundam ainda mais esse espetáculo que não é grande nem místico.

Crítica: o filme trans “Garota” e quando local de fala não é garantia de competência

De todas as letras da sigla LGBT, o "T" é o que ainda está um pouco atrás no quesito produção cinematográfica. Mas nos acalmemos: o cinema trans, felizmente, vem crescendo ano a ano, não só em termos de produção, mas também em qualidade. Só vermos "Uma Mulher Fantástica" (2017), o primeiro longa trans a vencer o Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro" ano passado - e merecidamente. A obra chilena foi aclamada mundo afora tanto pelo filme em si como por um detalhe relevante: sua protagonista, a fabulosa Daniela Vega, é uma mulher trans.

Essa é uma discussão que circula a indústria: buscar artistas LGBTs para realizarem filmes LGBTs. A problemática é moderna, e demonstra como o público está consciente da importância por trás da representatividade, porém, um efeito extremista vem sendo posto na mesa. Podemos observar bem com as críticas ao redor de "Garota" (Girl), escolhido da Bélgica para representar o país nas premiações internacionais. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor de vários prêmios no Festival de Cannes 2018, incluindo a Queer Palm, mostra exclusiva para longas LGBTs, o filme tem sido desvalidado por sua protagonista, Lara, ser interpretada por um garoto cis, Victor Polster.

Somando a isso, o diretor da fita, Lukas Dhont, também é um homem cis. O resultado? "Garota" foi taxado de "filme trans para pessoas cis", um limitador alarmante. Sim, eu também sou um homem cis, contudo, me preocupo fortemente com representações diversas no Cinema, principalmente no meio LGBT, já que estou dentro dessa população. Fui assistir a "Garota" receoso, esperando um trabalho que transforma sua protagonista em objeto, não em sujeito. Felizmente, obtive o oposto.

Antes mesmo de entrar nos trâmites da narrativa, preciso discorrer sobre o processo de produção de "Garota". Em primeiro lugar, a ideia do filme surgiu quando Dhont quis fazer um documentário sobre a vida de Nora Monsecour, bailaria trans belga. Ao declinar a proposta, Monsecour se uniu a Dhont para criarem um filme de ficção baseado na vida da mulher, com a própria Nora sendo co-roteirista (apesar de pedir para ser deixada de fora dos créditos).

Só isso derruba o argumento de "cisgenerização" do filme: há uma base sólida de fundamentação do que está na tela. Mesmo evitando a mídia, Nora foi a público dar diversas entrevistas defendendo o filme, que dividiu a comunidade LGBT e recebeu pesadas retaliações. Todavia, até mesmo a escalação de Victor Polster é justificada. A produção fez testes com 500 pessoas, e só 7 delas eram mulheres trans. Polster nem estava nesse grupo, e sim naquele que fez a audição para os bailarinos figurantes - ele é dançarino profissional. Nora escolheu pessoalmente Polster como protagonista juntamente com os produtores e estava presente nos sets durantes as filmagens.


Aonde quero chegar com tudo isso é: nós não podemos dizer quem pode falar o que dentro da arte. Não devemos segregar temáticas para determinadas pessoas em nome da inclusão, porque, ao invés de incluirmos, estamos excluindo. A celebração da diversidade deve ser posta na mesa por quem quiser celebrá-la. Sebastián Lelio, diretor de "Uma Mulher Fantástica", não é trans, e isso não o impediu de realizar um filme maravilhoso.

É claro, a vivência de alguém trans rende muito mais ao contar uma história trans que a imaginação de uma pessoa cis, todavia, querer silenciar "Garota" por não ser dirigido e protagonizado por trans é um desserviço. Isso só vira algo ruim em três pontos. 1: quando a produção tem condições de recrutar artistas que fazem parte da minoria em específico; 2: quando o tratamento dado para essa minoria é desrespeitoso e; 3: quando o trabalho desse artista que emula a minoria é ruim.

Temos exemplo de filme que tem os três pontos na ficha? Temos sim, "A Garota Dinamarquesa" (2015). O filme sobre uma das primeiras mulheres trans a se submeter à cirurgia de resignação sexual é dirigido por Tom Hooper (ganhador do Oscar), protagonizado por Eddie Redmayne (ganhador do Oscar) e distribuído pela Universal (uma das maiores produtoras do planeta). A escolha do diretor e do ator foram feitas, também, por motivos mercadológicos. Seus trabalhos - sim, entrando na enorme esfera da subjetividade - são rasos e injustificáveis. Mesmo dando visibilidade, "A Garota Dinamarquesa" é ruim dentro do cinema trans.

Durante a sessão de "Garota", fica visível a preocupação dos envolvidos em dar um respeitável trato à vida de Lara, de 15 anos. Logo em uma das primeiras cenas, a vemos furando as orelhas, ação tão simplória, mas que ainda define bastante nossas barreiras de gênero - ela, por ter nascido "homem", não teve as orelhas furadas quando pequena. Lara vive em um ambiente bastante acolhedor, com seu pai, Mathias (Arieh Worthalter), trabalhando duro para compreender sua transexualidade. Ela a leva às consultas e demonstra preocupação com a saúde da filha.

Só que Lara, no pico da adolescência, está cansada da espera. Seu corpo é uma prisão, e ela quer ao máximo passar logo pela cirurgia de resignação - e não de "mudança de sexo", como é popularmente chamada. O roteiro explica com detalhes os procedimentos que ela será submetida, gerando efeitos distintos e curiosos. O pai fica aflito com a descrição da cirurgia, complexa, demorada e de pós-operatório longo, no entanto, para Lara, é música para seus ouvidos. A ânsia de se encarar no espelho e se sentir totalmente realizada com o corpo é maior que qualquer medo da maca médica.


Lara também passa pela terapia com um psicólogo especializado na vivência trans. Particularmente, busco me aprofundar em relatos de pessoas transgêneras sobre tanto sua visão de mundo como as etapas que passam na vida, e o filme é fidedigno quando entra na terapia: sua função é fazer com que Lara entenda seu corpo e consiga dialogar de uma maneira mais pacífica consigo mesma. A questão é que ela trata a ideia da cirurgia como um deus ex machina, aquilo que vai resolver todos os seus problemas.

Acho que o serviço mais importante que "Garota" faz no âmbito da educação básica da plateia é quando Mathias pergunta se Lara está interessada em algum menino da escola. Ela rapidamente responde "Como você sabe que eu gosto de meninos?". A cena, bem descontraída, é uma pontuação clara de que identidade de gênero e sexualidade são coisas totalmente distintas, uma confusão recorrente.

E tem, também, o balé. A melhor óptica dessa arte no Cinema desde "Cisne Negro" (2010), "Garota" encontra sucesso ao embarcar na rotina de treino de Lara. A fotografia requintada, ainda melhor pelo trabalho de edição, observa o corpo da protagonista sem a sensação de fetichismo - como temos em "Love" (2015) -, e essa observação é inevitável. No balé, o instrumento que produz a arte é o próprio corpo. Além disso, há gritante binarismo dentro da dança, o que faz a existência de Lara ali ainda mais rica.

Com a pesada rotina de treinos, Lara entra numa espiral de ansiedade. Ela aumenta por conta própria a dosagem de hormônios que toma e fica obcecada por uma mudança imediata. A pressão externa massacra - ela está diariamente rodeada de meninas com corpos que ela mesma deseja ter -, o que aumenta ainda mais a pressão interna. Quando mal notamos, o balé deixa de ser algo gracioso e prazeroso para virar um desconto físico da menina. Cada passo que destrói os seus pés existe para esconder a dor psicológica que a consome.


O contexto aqui empregado é prisma do quão ainda estamos despreparados para entender a transexualidade. Mesmo em uma realidade favorável - com boas condições financeiras e uma família acolhedora -, Lara está afogada em dilemas. Ela se distancia do pai e acompanhamos sua lenta danificação emocional, que vai ecoar no físico. Muitas críticas apontam o dedo para isso, chamando o filme de estereotipação da riqueza, o que acho patético. Os conflitos emocionais de uma pessoa LGBT podem ser atenuados pelo contexto em que ele habita, mas não é uma certeza de pacifismo. A relação que temos conosco é muito profunda para ser resumida dessa forma. Até mesmo a maneira como a crítica enxerga o filme, em pólos tão distintos, é sinal da necessidade que ainda temos em ampliar os estudos do tema.

Enquanto mantinha um olhar clínico em cima de Victor Polster, lembrava de "Tomboy" (2011), que possui a situação oposta: é um filme sobre um menino trans interpretado por uma menina cis. E, assim como Zoé Héran - protagonista de "Tomboy" -, Polster está magnífico no ecrã. Sua entrega é louvável, tanto nas complicadas sequências de dança como nos vários momentos em que ele dá vida àquela menina trans cheia de bloqueios. Há verdade, há paixão e há excelência em tudo que está ao seu redor. Ele é um dos raros exemplos de atores cis a fazerem jus à escalação em papéis trans, como Felicity Huffman em "Transamérica" (2005) e Georges Du Fresne em "Minha Vida em Cor-de-Rosa" (1997). Mas sim, precisamos de mais Danielas Vegas e mais "Tangerine" (2015), interpretado também por atrizes trans.

É importante lembrarmos que as críticas (tanto positivas quanto negativas) ao redor de "Garota" são válidas e ajudam no crescimento no que tange esse - ainda - tão complexo tema que é a transexualidade. A sessão é impactante não só pelo o que a fita mostra, mas pelo o que ela gera como sensações, navegando pelas ansiedades, medos e momentos mais obscuros que um LGBT passa ao se ver em uma sociedade que não está capacitada para entendê-lo. Porém, a maior lição que retirei de "Garota" foi óbvia: o local de fala é importante, mas não garante coisa alguma, principalmente se tratando de expertises artísticas. Sua bagagem não vai, necessariamente, fazer um bom filme. Felizmente, não foi o caso de "Garota", um delicado filme baseado na vivência de uma real mulher trans, não uma fantasia erotizada de uma pessoa cis.

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