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Crítica: “O Chalé” e a religião usada para orquestrar um terror correto

Novo terror dos diretores de "Boa Noite Mamãe" é mais um pilar maravilhoso da nova safra do horror
Atenção: a crítica contém spoilers.

Uma das críticas mais acessadas aqui no Cinematofagia é a de "Boa Noite Mamãe" (2014), que todo mês surge entre as mais lidas, mesmo há anos publicada. O filme é bem divisível: alguns o acham chatíssimo, outros uma obra-prima (me incluo aqui, sendo meu 43º melhor filme da década), e o hype para o novo e segundo filme da dupla austríaca Veronika Franz e Severin Fiala estava bem alto por aqui. "The Lodge" finalmente está entre nós.

"The Lodge" (traduzido como "O Chalé") começa com uma mãe (Alicia Silverstone) levando seus dois filhos, Aidan (Jaeden Martell, da saga "It: A Coisa", 2017-19) e Mia (Lia McHugh) até a casa do pai, um jornalista investigativo. O casal está passando por um processo de divórcio, e é claro desde a largada que ninguém além do pai gosta da nova namorada, Grace (Riley Keough). Ao anunciar que o casamento já está marcado, a mãe calmamente volta para sua casa, saca um revólver e se suicida.

A produção foi muito perspicaz em escalar Alicia Silverstone para o papel. Os primeiros minutos gravitam ao redor de sua personagem e, por ser a atriz mais conhecida do elenco, soa como a protagonista da fita. Matá-la antes mesmo da história de fato começar é uma ruptura efetiva no clima, e o acontecimento dita o destino de todos os personagens no ecrã - e, também, segue a artimanha de alguns dos maiores nomes da história do terror, como "Psicose" (1960) e "Hereditário" (2018), que não poupam suas supostas protagonistas no primeiro ato.

O suicídio da mulher é a ruína emocional da já fragilizada família, porém, quem mais sofre é Mia. Não apenas a morte da mãe, o que também a assombra é a certeza de que ela não entrará no Céu - suicídio é um pecado mortal nas escrituras cristãs, e condena a alma direto para o Inferno. É muito emblemática a cena do velório. Os presentes estão com balões pretos com hélio; Mia amarra sua boneca (vestida como a mãe) no balão, porém, ele é o único a não subir aos céus. A boneca, ao contrário dos outros, vai direto ao chão, uma imagética comprovação de que o lugar da mulher no pós vida não é ao lado do Criador.

Seis meses se passam e o pai diz que quer passar o natal com os filhos e Grace em seu afastado chalé. Aidan imediatamente se recusa, dizendo que a namorada é a culpada pela morte da mãe. Invadindo o computador do pai, os filhos descobrem que Grace é a única sobrevivente de um culto fundamentalista, liderado pelo seu finado pai, que cometeu um suicídio em massa. Para Aidan, ela é uma "psicopata", e o macabro vídeo mostrando os corpos com uma fita na boca escrita "Pecado" reforçam a ideia.


O pai consegue convencer as crianças sobre o feriado no chalé e finalmente Grace entra em cena. A obra faz tudo ao seu alcance para não emoldurar o rosto da mulher na tela, colocando-a por trás de vidros, janelas ou em takes de costas - assim como a mãe de "Boa Noite Mamãe" é apresentada ao público em doses homeopáticas. Isso dita onde reside a força motora de suas tramas e qual personagem deverá ser desvendada. O mistério está ali.

No chalé, Grace parece totalmente deslocada por esbarrar em um muro de indiferença criado pelos enteados. Para piorar, há diversos ícones e símbolos religiosos espalhados pela casa, o que, de alguma forma, a machucam. Não parece um ambiente saudável para ela, no entanto, mesmo com o pai dizendo que os planos podem ser mudados, ela afirma que pode passar alguns dias com as crianças enquanto ele volta ao trabalho. A coisa vai por água abaixo assim que ele vai embora.

Personagens em uma cabana longínqua vendo tudo dando errado? Clichê, para dizer o mínimo, todavia, "The Lodge" burla expectativas simbióticas da premissa. A dinâmica do filme vira a mesma de "Boa Noite Mamãe": uma mulher contra duas crianças. Grace tenta se aproximar dos dois; Aidan a ignora por completo e Mia a tortura emocionalmente quando mostra o presente que fez para o pai: um vídeo celebrando a mãe. Ela decide parar com o teatro e manda a real para Aidan, perguntando qual o motivo para aquele tratamento, pedindo para que o garoto se esforce para manter um ambiente menos tenso. Ele faz isso durante a noite, quando faz chocolate quente para ela enquanto todos assistem a filmes.

Só que quando todos acordam, toda a comida e pertences dos três sumiram. A energia também se foi, o que desliga o aquecedor, congelando os canos. Grace acusa os garotos, enquanto os dois acusam Grace, mas ninguém parece ter a menor ideia do que aconteceu - note o filme que está passando na cena anterior, "O Enigma de Outro Mundo" (1982), que exatamente se trata de uma história com personagens trancados em um lugar e acusando uns aos outros sobre o que está acontecendo. Estranhos sonhos se iniciam, com Grace sendo assombrada pela figura do pai enquanto Aidan tem um pesadelo em que todos morriam sufocados quando um aquecedor portátil a gás dá defeito. Algo claramente errado está se passando ali.

"The Lodge", a partir de então, segue o mesmo caminho traçado por "O Homem Invisível" (2020): construir seu mistério ao redor de um tom sobrenatural. No caso de "O Homem Invisível", é evidente que esse tom é uma ilusão (é só ler o título), mas "The Lodge" tem elementos o suficiente para sustentar a hipótese, como Grace e sua aversão a qualquer imagem religiosa e o sumiço de tudo, incluindo um remédio da mulher. A fita, assim como "Mãe!" (2017), não explana o que seria o medicamento tomado pela protagonista, deixando a plateia supor o que poderia ser, e, graças ao passado de Grace, provavelmente se trata de algum psicotrópico. Com a abstinência, Grace cada vez mais entra em um estado que cambaleia entre a realidade e a alucinação.

Mesmo há poucos dias ali, os relógios informam que semanas haviam se passado, e nada do pai voltar. Em uma desesperada tentativa de solução, Grace tenta encontrar outra casa a fim de pedir ajuda, mas inevitavelmente volta para o chalé. Lá, os filhos mostram um jornal com o obituário dos três: eles haviam morrido na noite dos filmes, e estariam no Purgatório, o limiar entre o Céu e o Inferno. Cabia a eles se arrependerem de seus pecados para salvarem suas almas, o que acorda todos os demônios enterrados em Grace.

Vamos sentar aqui e assimilar o que acontece. "The Lodge" tem uma reviravolta. É deliciosamente curioso como, mesmo sabendo que o filme sucede "Boa Noite Mamãe", nós esquecemos dos traços seguidos pelos diretores, que são bem similares em "The Lodge": as crianças são os maestros do caos. A película sadicamente introduz elementos, cenas e passagens que distraem o espectador do verdadeiro mal ali presente, e é maravilhoso ser "enganado". Aidan e Mia arquitetaram um plano muito detalhado a partir de uma maquete que replica o chalé, e são eles que escondem toda a comida e objetos, além de psicológica e emocionalmente manipularem Grace, levando a mulher à literal loucura. Tudo é feito para vingar a morte da mãe, como se a existência de Grace fosse a culpada. Aidan fala exatamente isso para o pai no começo da fita, mas é desconcertante perceber que ele fala com convicção, condenando a protagonista.


O cinema de Franz e Fiala subverte uma lógica do terror, quando as crianças são sempre vítimas. Sim, já existiram filmes em que crianças são as vilãs, mas os dois são especialistas ao criar um estilo dramático que percorra por aí; tanto em "Boa Noite Mamãe" como em "The Lodge", os adultos são peões impotentes da tática maquiavélica dos pequenos, e sempre fomentados por traumas - em "Boa Noite", os filhos culpam a mãe por um acidente que matou membros da família. Só que no caso de "The Lodge", as crianças foram longe demais e mexeram com a pessoa errada.

A carga religiosa que Grace por anos suprimia vem à superfície com toda a força. Ela está convencida de que todos do chalé devem passar por penitências físicas a fim da salvação, assim como Jesus deu seu corpo para a tortura. Quando o pai chega no local, depois de encontrar a maquete dos filhos com o plano, é morto por Grace em um torpor sacro, o primeiro a ser sacrificado pelo altíssimo.

Uma discussão fundamental que surge no subir dos créditos é: quem é o vilão da história? São as crianças, que propositalmente destroem a base de realidade de Grace? É Grace, que termina matando a todos? Ou é o pai, que troca a mãe por uma mulher mais jovem e não parece levar em conta os sentimentos dos filhos, apenas seu desejo? Porque, se pararmos para pensar, o estopim que leva ao sepultamento de todos os personagens é a decisão do pai em deixar a mulher.

Particularmente, as crianças são as maiores vilãs. O que o pai fez é inegavelmente egoísta e Grace sucumbe à loucura, enquanto todos os atos dos filhos são conscientemente calculados. Grace, inclusive, parece ser uma pessoa tentando encontrar uma redenção. No jornal que informa sobre o suicídio em massa do culto (bom dar uma pausa no momento), há uma passagem que revela que Grace é a única sobrevivente pois seu pai (o líder) queria que ela espalhasse a ideologia da seita, algo que claramente é repudiado por ela. Qualquer iconografia religiosa é um gatilho, e ela luta para se afastar do que representa o passado maculado pelo seu pai - e usado malignamente pelas crianças, sem noção do quão profundo e obscuro aquilo vai na mente da protagonista. Sinceramente, os dois mereceram o destino que tiveram.

"The Lodge" nada contra a maré do modelo atual de cinema de terror, acomodado em berrar sustos, e edifica sua atmosfera com muito cuidado, trabalhando com sugestões e temáticas geralmente tratadas com pobreza. Até a própria fotografia - do mesmo responsável por "O Lagosta" (2015) e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017) - é fundamental na imersão da história quando captura luzes naturais de maneira não convencional, no limiar entre claridade e escuridão. A religião católica já perdeu as contas de quantos filmes a tomam como ethos de maneira preguiçosa, sem agarrar o quão assustador pode ser quando roteirizada da maneira certa, e "The Lodge" é um desses exemplos de sucesso, ainda mais louvável quando não possui uma trama sobrenatural, bengala batida e saturada dentro do gênero.

Bom lembrar também sobre o como é um prazer ver diretores saindo dos seus países para o eixo EUA/Reino Unido sem abrir mão de suas personalidades e estilos a fim de degradar seus cinemas por uma bilheteria mais larga. "The Lodge" sucede "Boa Noite Mamãe" brilhantemente e ajuda a consolidar os nomes de Veronika Franz e Severin Fiala no alto escalão do horror contemporâneo.


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