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Crítica: o Brasil do futuro de “Divino Amor” é um luminoso cabaré gospel

Sátira distópica une "Black Mirror" com "Handmaid's Tale" direto para a aclamação
Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Brasil, 2027. A sociedade tupiniquim caminhou para um sistema ultra-religioso, com a palavra de deus sendo a lei básica. Uma tabeliã, Joana (Dira Paes), vive com plenitude dentro do novo país, e usa de sua função para dificultar divórcios, afinal, o casamento é o que há de mais sagrado no mundo. Aliás, sua vida é quase plena: ela e o marido, Danilo (Julio Machado), há tempos tentam ter um filho, sem sucesso, a provação extrema do altíssimo.

"Divino Amor", novo filme de Gabriel Mascaro, diretor pernambucano do maravilhoso "Boi Neon" (2015), estreou em dois dos maiores festivais do planeta, Sundance e Berlim, saindo ovacionado de ambos: atualmente conta com incríveis 86 pontos no Metacritic, uma das maiores notas do ano. Junto com "Bacurau", vencedor do Festival de Cannes, temos dois fortíssimos nomes para representar o Brasil no Oscar 2019, caso o novo Ministério da Cultura não surte como nos últimos anos, indicando longas sem a menor chance em nome de um conservadorismo patético - "Aquarius" (2016) e "Benzinho" (2018) sendo boicotados, um crime para nossa cultura.


Por meio de uma infantil narração onipresente, o texto de "Divino Amor" coloca na mesa as regras desse Brasil gospel. A religião evangélica está agora presente em todos os cantos, incluindo em versão drive thru - o fiel chega com seu carro para uma rápida palavrinha com um pastor, que coloca um hino de louvor para fortalecer a fé. Os retangulares templos ficaram obsoletos, e as festividades agora são ao céu aberto, em shows entupidos de pirotecnia e música eletrônica a fim de saudar deus. Joana ama tudo isso.


É muito engenhosa a forma com que o roteiro finca as normas e dá as naturalidades para o que é normal dessa realidade tão distópica. E é impossível não lembrar da série "The Handmaid's Tale" (2017-presente), um também futuro estadunidense à base da religião; a grande diferença entre as duas obras é o foco óptico. Em "Handmaid's", June nos conduz por meio das ruas opressoras de sua vida, enquanto em "Divino Amor" é Joana a porta-voz, que, ao contrário de June, celebra o sistema.

Não existe uma noção de resistência ou revolução dentro de "Divino Amor": tudo funciona (quase) dento da perfeição almejada. A película não está interessada em gerar uma sensação de quebra, de luta, e sim questionar como algo tão radical é prejudicial até mesmo para aqueles que tanto gozam de seus prazeres. Notem: por ser um sistema baseado no evangelho, todas as configurações são heterossexuais. Não existe o menor resquício de homossexualidade, com a união do homem e mulher sendo irretocável.

Fica bem claro que a fita não está, em segundo algum, batendo palmas para o que surge no ecrã, pelo contrário. Há uma pungente ironia que dosa perfeitamente o ridículo e o desconfortável, entrando cada vez mais nas insanidades desse Brasil onde a burocracia é sagrada. E Joana faz tudo o que pode para dificultar os divórcios, manipulando, mentindo e omitindo detalhes para que os casais permaneçam unidos diante dos olhos do Senhor - e ela guarda com imenso amor uma estante cheia de fotos dos casais que ela conseguiu evitar a separação. Deus está lá em cima em festa.


E, dentro desse governo, existe a Divino Amor, uma seita (essa palavra não é dita, todavia, é a melhor definição para aquilo) que funciona como ritual de inicialização dos casais nas escrituras. Há dinâmicas de grupo, leitura da palavra e procedimentos menos ortodoxos. Joana e Danilo fazem trocas de casais com os novatos, e a erótica câmera do filme não tem pudores em capturar o inquietante swing divino sob luzes neon - curiosamente, vários casais saíram da sessão em que eu estava já na primeira cena de sexo. Puritanos, vejo bem.

Esse é o novo Brasil, um cabaré gospel. O ethos construído pelo roteiro une o conservadorismo hipócrita com os pecados da carne, convenientemente convertidos em dádivas quando o lema da Divino Amor é "Quem ama divide". O fundamentalismo não tem vergonha ao se arvorar do bacanal como veículo de encontro com deus, porém não se engane: o bordel instaurado é muito bem controlado, com cada corpo e status social sendo verificado por máquinas nas entradas de todas as instituições, no melhor estilo "Black Mirror" (2011-presente).

Outra grande dualidade do longa é a configuração do relacionamento da protagonista: matriarcal, é ela quem sai de casa para trazer o sustento, enquanto o marido trabalha na pequena loja de flores que fica onde os dois moram. É mais uma forma de conservadorismo que une o passado e o futuro, que acolhe traços opressores sem deixar de soar moderneco - quando lhe convém, é claro. A culpa também é do marido do insucesso da procriação, mesmo se submetendo a diversos (e constrangedores) procedimentos de fertilização - in vitro é fora de questão, coisa do diabo. A semente dada por deus deve ser plantada diretamente na mulher.

É aí que Joana finalmente engravida. Aos prantos, ela ora com fervor, enchendo o todo poderoso de agradecimentos pela graça alcançada. Só que, ao extrair o DNA do feto, ele não é compatível com Danilo. A melhor cena da obra, a protagonista vai se apavorando cada vez que digita o nome dos vários homens com quem transou na Divino Amor, e todos incompatíveis. Sua única solução é óbvia: o filho no seu ventre é a volta do Messias.


O grande sucesso de "Divino Amor", um estranho drama que mistura ficção-científica com humor negro, é provido pela linguagem escolhida por Gabriel Mascaro. Toda a bizarrice (que não é pouca) é conduzida de maneira fluida por meio dos planos sequências que não quebram as cenas, quase como se a trama estivesse numa câmera lenta que combina magistralmente com a áurea sacra do filme.

A união de luzes naturais, em momentos que mal conseguimos ver o que está acontecendo, com luzes artificiais coloridíssimas, geram imageticamente esse futuro desconcertante que cega o fiel - e em diversos momentos me remetia a "Demônio de Neon" (2016) quando o filme de Mascaro adotava uma atmosfera onírica pelas cores e músicas narcotizantes. Dira Paes realiza uma performance competente quando doa seu corpo por inteiro, sem jamais soar caricata - talvez por ser um peão que reforça seu meio. É belo ver como a fita a enquadra, muitas vezes em contra-luz, como se deus estivesse banhando-a em toda a sua glória.

Apesar da era de resseção cultural tupiniquim, estamos emergindo através do Cinema, com nomes cada vez mais criativos ao unirem ineditismos com críticas sociais. Um efeito colateral benigno das pressões de um país em crise, temos, por exemplo, o fabuloso "As Boas Maneiras" (2018), que também escorre bizarrices para estudar nosso país - o mesmo que aconteceu na Grécia com a chamada "Estranha Onda Grega": movimento cinematográfico que surgiu com sua depressão econômica - vide "Dente Canino" (2009), "Chevalier" (2015) e "Piedade" (2018). Talvez estejamos diante de um novo apogeu.

O mais assustador de "Divino Amor" é sua consonância com o agora do nosso país: cada vez mais reacionário e com a bancada evangélica em plena força. O exagero do ufanismo religioso é prato cheio dentro da arte, e a película a escancara acidamente, na mesma medida em que alerta o avanço do fanatismo. Não é difícil vislumbrar essa realidade que tem a certidão de casamento como o principal documento, afinal, já está sendo valorizada a procriação e a família normativa na nossa pequenina distopia, sob o lema "deus acima de tudo". Num país que parece não haver regras, justiça e equidade, o cabaré sagrado de "Divino Amor" soa preocupantemente plausível.

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