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Crítica: a autodestruição (e ascensão) de Brendan Fraser e o festival de lágrimas em “A Baleia”


Atenção: a crítica não contém spoilers, contudo, pincela alguns detalhes específicos da trama.

Darren Aronofsky, um dos meus diretores contemporâneos favoritos, já passou por um processo que acontece com todo diretor que cai nas graças de Hollywood. Eles começam autorais, com uma personalidade fílmica definida, e vão para a grande máquina, recebem roteiros prontos e perdem toda a magia que possuíam; são raros os casos que passam pelo processo e continuam entregando obras que não carregam só seus nomes, mas suas marcas - o grego Yorgos Lanthimos (com "A Favorita", 2019) e o canadense Denis Villeneuve (com "A Chegada", 2017) são exemplos de sucesso.

Aronofsky passou, mais cedo ainda, por isso. É verdade, quando dirigiu roteiros prontos, não houve problemas - "Cisne Negro" (2010) é apenas um dos melhores filmes do século -, porém, depois de retornar com um roteiro seu em "Mãe!" (2017), sua próxima empreitada seria novamente com um roteiro externo: "A Baleia", adaptação da polêmica peça de Samuel D. Hunter (e com o texto levado para o Cinema pelo mesmo autor).

Confesso que, em 2023, não havia um filme que me produzia mais expectativa que "A Baleia" - "Beau is Afraid" vem logo na cola -, por vários motivos. Primeiro, por ser um Aronofsky, e, ignorando a bomba "Noé" (2014), minha casa serve a ele. Depois, pela aclamação estrondosa de Brendan Fraser. E, por último, por ser um filme da A24. Virou queridinha da Academia? Virou. Mas não é só da Academia, é que ela é boa mesmo. A maior produtora - e paixão de 11 a cada 10 cinéfilos de Twitter - tem uma lista de sucessos tão absurda que se tornou peça fundamental na produção da Sétima Arte na contemporaneidade - não por acaso, é dona do filme com o maior número de indicações ao Oscar em 2023, "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", também conhecido como o maior ato cinematográfico de 2022.

Mas foquemos em "A Baleia". O filme é um aprofundamento em cinco dias na vida de Charlie (Fraiser), de uma segunda à uma sexta, e como ele tenta se reconectar com sua filha de 17 anos, Ellie (Sadie Sink, de "Stranger Things"). Inteiramente passado dentro de um pequeno e escuro apartamento, com exclusivos takes que mostram o exterior do local, a obra já começa de uma maneira bastante simbólica. Charlie é um professor gay que, em suas aulas à distância, jamais liga sua webcam. A câmera vai se aproximando no quadradinho que deveria ser a imagem do professor, mas que está inteiramente preta pelo desligamento da webcam (que ele mente afirmando que ela está quebrada), e vamos nos afogando naquela escuridão que é a imagem de Charlie para as pessoas - e para ele mesmo.

O professor é um homem com obesidade mórbida. Com quase 300kg, Charlie vive reclusamente, possuindo apenas duas visitas frequentes: Liz (Hong Chau), sua enfermeira; e um entregador de pizza, que jamais o vê. Durante a fatídica semana, também, surge Thomas (Ty Simpkins), um missionário de uma igreja que esbarra em um quase ataque cardíaco de Charlie. O homem pede, ofegante, para que Thomas leia uma ácida resenha de "Moby-Dick", o clássico de Herman Melville que traça um paralelo com a própria vida de Charlie, para a total confusão do missionário. Ali surge, também, uma relação simbiótica, com o objetivo de Thomas se tornando salvar a alma de Charlie, ateu inveterado.

A única relação saudável (afetivamente falando) que Charlie mantém é com Liz, que genuinamente demonstra amor e carinho por ele. Destaquei o "afetivamente" na frase anterior porque, mesmo sabendo que a pressão de Charlie está a horas de explodir, ela ainda traz sanduíches para ele, uma pequena ação de "conforto" para o professor - por mais nociva ela seja. Ela clama diariamente que ele vá a um hospital, porém, pelos valores absurdos do sistema médico norte-americano - defenda o SUS -, ele se nega. "É melhor está morto de dívidas do que morto", pontua Liz.

Mais à frente, descobrimos o principal motivo para a negação de Charlie, contudo, fica implícito que sua atual forma também é uma grande razão para isso. Há muito preconceito com pessoas obesas dentro do meio médico, e Charlie com certeza não quer passar por mais um obstáculo. A obesidade por si só é vista com extremos maus olhos por ser a ruptura de dois padrões ao mesmo tempo: o de saúde e o estético. Darren Aronosfky, inclusive, comentou em entrevistas que teve contatos com médicos que se surpreenderam com a carga psicológica do personagem, quase um espanto por ele também ser...... gente.

O âmago do longa está, sem dúvidas, na dinâmica entre Charlie e Ellie. A garota nutre um ódio narcotizante contra o pai por ele ter abandonado a família há 8 anos para viver com o então namorado, Alan. A questão é que Alan morreu, o que fez Charlie entrar em profunda depressão e desenvolver um quadro de compulsão por comida, levando-o ao estado atual. "Você é nojento", vomita Ellie, que logo acrescenta: "Não falo da sua aparência. Mesmo se não fosse gordo você continuaria sendo nojento". A filha é absolutamente cruel com o pai, só aceitando ficar ali quando Charlie oferece dinheiro e ajuda para um trabalho. Mesmo ficando, ela não poupa as doses de crueldade, ofendendo, humilhando e ridicularizando o pai.

Um aspecto bastante inteligente na produção da fita é a maneira como o design de produção e a cinematografia trabalham o apartamento de Charlie. Primeiramente, o ecrã possui um aspect ratio (a proporção da tela) de 1:33, a "tela quadrada". Muito mais que uma escolha imagética, a tela reduzida possui dois efeitos: comprimir a história em um quadrado, aumentando a claustrofobia do todo, e enfatizar o tamanho de Charlie, que parece ainda maior com uma janela tão pequena. É como se a sensação de aprisionamento sentida pelo personagem dentro do próprio corpo fosse transplantada na superfície fílmica. Outro aspecto é: ao contrário do que vemos comumente, o sofá não está encostado na parede, e sim no meio da sala. É um detalhe muito pequeno, mas que faz total diferença no desenvolvimento das relações em cena. Todos os personagens, na imensa maioria das sequências, estão na frente ou do lado de Charlie, seja no sofá ou em alguma poltrona. Ellie, por sua vez, é muitas vezes filmada por trás do sofá. Com uma mobilidade reduzida, Charlie não consegue se virar para trás, enquanto a filha oferece um festival de ofensas. É uma dinâmica que agride por meio da linguagem cinematográfica e uma escolha estética primorosa.

Por um momento, me surpreendi que todos os ataques da garota não eram recebidos da maneira que esperava - com dor -, até entender o motivo: mesmo Ellie odiando o pai, ninguém seria capaz de odiá-lo tanto quanto ele próprio. Charlie também está desesperado para consertar a relação, mais uma carga para que ele aceite o que vier de Ellie. Seria muito fácil cair em chavões rasos da figura do mártir, aquele personagem que aceita todo o peso do mundo por possuir um coração tão bondoso, mas Charlie está longe de ser assim (ainda bem). Ele mesmo assume seu egoísmo em relação ao abandono da família, sua negligência em relação à criação da filha e seu descaso com ele mesmo. Há momentos de pureza, sim, mas também de tortura como poucas vezes já vi. Nos ímpetos de raiva, Charlie come descontroladamente, e é uma dor absurda assistir àquelas cenas.

Ele não come mais pelo prazer de comer, e sim como forma de autodestruição. Cada mordida é uma tentativa de acabar com tudo, e não consigo lembrar de um filme que demonstre esse sentimento de maneira tão crua quanto "A Baleia", e aqui reside o eixo que liga a história com o cinema aronofskyano: a obsessão - a de Nina pelo perfeccionismo em "Cisne Negro", a do marido pela sua obra em "Mãe!", a de Sara pelos comprimidos em "Réquiem para um Sonho" (2000) e a de Charlie por comida. Todas essas obsessões são o combustível que tanto move quanto incendeia os personagens de Aronofsky.

Um fato bastante intrigante é a forma como a peça original foi transposta para a tela. Procurei assistir ao máximo de trechos que encontrei na internet com filmagens de várias montagens no teatro, e todas tinham algo em comum: a plateia gargalhava. A atmosfera no palco era descontraída e leve, assombrosamente o oposto do que vemos no filme, e isso se dá a partir da direção de Aronofsky. Foi realmente histriônico ver as mesmas falas sendo ditas fora do contexto presenciado na fita, quase como se tudo ali fosse uma caricatura, e não algo "real". Não consigo imaginar, mesmo assistindo às cenas, como aquele texto pode soar tão divertido a ponto de arrancar risadas do público, o que catapulta a força do diretor ao transformar a história em algo verdadeiramente impactante. Há, sim, uma cena em específico que possui humor, todavia, até mesmo dentro do contexto do filme é uma risada modesta.

Enquanto na peça a maquiagem é bastante... evidente, no filme é completamente perfeita, e isso é mais um apontamento seminal. A caracterização de Charlie no teatro reforça a áurea de caricatura, e esse seria um resultado desastroso na fita: a seriedade que o trabalho de maquiagem assume é para evitar que "A Baleia" seja um "Norbit" (2007) ou um "O Amor é Cego" (2001). O que esses dois exemplos têm em comum? São comédias que usam maquiagem para transformar atores em personagens obesos. Esses personagens estão ali para te fazer rir, com seus corpos sendo carros-chefes da alegoria. O intuito em "A Baleia" é retirar qualquer sombra de comédia e não tornar o corpo de Charlie em elemento jocoso, e sim uma pessoa completa, que o faz ser um personagem bastante inédito.

Religião, sexualidade, estética, paternidade... O texto de "A Baleia" é recheado de camadas complexas que se desenrolam brilhantemente, contudo, há um ponto elementar de ser entendido. Aquela semana de Charlie é o resultado de um longo processo causado pela homofobia. Alan, seu finado parceiro, se suicida pela culpa cristã diante da sua sexualidade, o que acarreta toda a trama. Ao contrário da maioria dos filmes LGBTQIA+ que orbitam ao redor do preconceito e de como a vida dos seus indivíduos são acometidas por esse preconceito, "A Baleia" é um "pós". Pensemos em "O Segredo de Brokeback Mountain" (2005), por exemplo: "A Baleia" seria uma "continuação", o que ocorreu após o final do filme de Ang Lee, empurrando os efeitos colaterais da homofobia ao máximo. Ninguém agrediu Alan ou proferiu maldições a Chalie - a homofobia aqui é uma mão invisível que enforca seus oprimidos. É um sistema tão violento que não precisa de um terceiro para agir, ele invade a cabeça das suas próprias vítimas, kamikazes que sujam as mãos e tiram uma culpa que seria direta.

A carga dramática de "A Baleia" está paralela à insanidade em "Mãe!" - quanto mais a fita progride, maior a tragédia de um e o caos de outro. Somos engalfinhados por um peso emocional raro com a aproximação do fim em diálogos memoráveis pela dureza - quando Charlie fala que não quer que exista uma vida após a morte para que Alan não o veja naquele estado foi um soco no estômago. Curiosamente, mesmo com toda a dor do texto, "A Baleia" possui o final mais esperançoso de toda a filmografia de Aronofsky, no entanto, chegar até lá é uma tortuosa viagem que com certeza não agradará a todos. A cereja do bolo que refletiu o status de obra-prima para "A Baleia" veio quando, na cena final, em uma revelação que amarra toda a história, uma pessoa sentada ao meu lado na sessão levou as duas mãos ao rosto em completo frenesi. É a beleza da tristeza e a feiura da alegria em um dos mais arrebatadores finais da década, que arrancaram minhas lágrimas como nunca antes diante da Sétima Arte.

P.S.: todo o elenco de "A Baleia" está fenomenal - Sadie Sink literalmente faz o papel da sua vida -, entretanto, o que Brendan Fraser entrega é um milagre. Se houver justiça, o Oscar de "Melhor Ator" é dele.

Crítica: “O Homem do Norte” é tudo o que um filme de guerra viking feito pelo diretor de "A Bruxa" poderia ser


Era 2015 quando caía como uma bomba nos cinemas um filme que revolucionaria o gênero terror: "A Bruxa". Longa de estreia do até então designer de produção Robert Eggers, "A Bruxa" deu um twist em uma época em que os blockbusters recheados com jump-scares dominavam as salas, reabrindo as portas de um estilo cinematográfico que parecia renegado dos grandes olhos do público: o drama conduzindo o terror, não o oposto.

Eggers já surgiu recebendo a alcunha de genial, um título pesado demais para ser carregado sem algum percalço: ele teria que provar que o título era válido, e não um caso de acontecimento único. Daí veio "O Farol" (2019). Ali, Eggers deu o adendo de que sim, ele é um talento inigualável, conseguindo ver seu primeiro filme a ser indicado ao Oscar - de "Melhor Fotografia", mas deveria ter recebido várias outras.

É claro que seu próximo trabalho seria afogado em ansiedade e hype, todavia, existe uma diferença seminal entre os dois primeiros filmes e "O Homem do Norte" (The Northman): "A Bruxa" e "O Farol" são produções independentes, da melhor produtora do planeta, A24, enquanto "O Homem do Norte" é da gigante Universal.

Há um êxodo gritante de novos autores fílmicos que fizeram o mesmo caminho de Eggers: sair de uma pequena produtora para os braços dos conglomerados hollywoodianos. Isso significa que esses talentos estão sendo reconhecidos (e bem pagos) pelo maquinário da Sétima Arte, porém, há também um revés que particularmente lamento: esses cineastas perdem seu controle criativo e assinatura para cederem às vontades dos milionários produtores. O que isso significa? Que a magia que fez aquele diretor ganhar renome acaba se dissipando a fim de encaixar-se nas "regras" do mercado atual (que saudades do meu ex Denis Villeneuve).


Esse era um temor sobre como "O Homem do Norte" terminaria. As notícias, no entanto, eram promissoras, revelando que os produtores e Eggers sempre mantiveram um acordo sobre o corte final do filme, o que ainda manteve nas mãos do realizador como seu trabalho seria exibido na tela. E já afirmo: "O Homem do Norte" é uma fita 100% "eggeriana".

Alexander Skarsgård vive Amleth, um príncipe que tem sua vida e família roubadas quando seu pai, o então Rei Corvo (Ethan Hawke), é assassinado e o trono usurpado. Enquanto foge ainda criança, ele promete que irá vingar o pai, salvar a mãe, Rainha Gudrún (Nicole Kidman), e matar o regicida. Ele espera anos para ficar frente a frente com a oportunidade da profetizada vingança, apaixonando-se por Olga (Anya Taylor-Joy), uma feiticeira pagã.

Era de se esperar pelos nomes envolvidos, mas é sempre um deleite ver um roteiro que se passa em outra época se preocupar em imergir seus personagens (e, consequentemente, o espectador) com um estudo apurado na maneira que aquelas pessoas agiam, falavam e vivam. Nas mãos de Eggers e Sjón, poeta islandês que também co-escreveu o maravilhoso "Ovelha" (2021) - e que foi apresentado ao diretor pela Björk, que faz uma ótima ponta aqui -, um portal no tempo é aberto no ecrã, e os diálogos, inspirados em várias lendas medievais da Escandinávia, são compostos com inglês, nórdico e eslavo arcaico - nada mais triste que um filme no século passado com os atores falando como se estivessem no Instagram, não é mesmo, "A Freira" (2018)?


Inclusive, toda essa composição lembrou os também fantásticos "O Cavaleiro Verde" (2021) e "A Tragédia de Macbeth" (2021), que possuem o mesmo intuito: como seria um filme feito na mesma época pelas mesmas pessoas que criaram a história original. Das falas até o irretocável design de produção e figurinos, há um afinco gritante (e com cara de premiações) já característico no cinema de Eggers, que possui uma queda em histórias passadas em épocas antigas - "A Bruxa" se passa em 1630, "O Farol" em 1890 e "O Homem do Norte" vai ainda mais longe, para 895 d.C.

Enquanto tanto "A Bruxa" quanto "O Farol" são, apesar de ambiciosos, bastante restritos em sua geografia - o primeiro se passa na sua maioria em uma casa e o segundo dentro de um farol cravado em uma ilhota -, "O Homem do Norte" roda a Europa antiga em uma epopeia que catapulta a visão de Eggers para patamares ainda mais grandiosos, o que explica a mudança de produtora - só uma marca como a Universal teria poder financeiro para arcar com a dimensão pretendida pelo roteiro.

Aliás, é deveras importante explorar esse ponto. O orçamento inicial de "O Homem do Norte" era de $65 milhões, mais do que o montante gasto para a realização de "A Bruxa" e "O Farol" combinados - a Universal ainda liberou mais uma nota a fim de deixar a película ainda mais perfeita, com o orçamento batendo $90 milhões. Estamos (infelizmente) habitando a era dos blockbusters de super-heróis, com os Homens-Aranhas da vida vendo os maiores orçamentos (e bilheterias) da atualidade, então é muito bom ver que um estúdio do alto escalão escolheu investir quase $100 milhões em um filme de época viking com inglês arcaico e lançá-lo próximo a um dos mais aguardados longas do ano, "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" (2022) - que teve mais do dobro de orçamento.


Ainda há outro fator que também demonstra o interesse genuíno pelo filme: ele possui indicação classificativa para maiores de 18 anos, a maior existente, ou seja, o público é limitado já na hora de comprar o ingresso. E a classificação é mais que justificada: a violência e brutalidade de uma história de guerra não é amenizada, e Eggers não perdoa no gore em cenas capazes de arrepiar a plateia. Se você (como eu) é calejado em filmes mais, digamos, extremos, talvez "O Homem do Norte" não soe tão forte graficamente - quem sobrevive a um "A Casa Que Jack Construiu" (2018), sobrevive a qualquer outra exposição de violência -, contudo, é indiscutível a coragem da produção em não maquiar ou esconder a crueza da carne entre uma luta de espadas. Tudo é posto na tela porque tem que estar ali, não há gratuidade na edificação daquele universo.

Em sua terceira excursão para contos do séculos passados, Robert Eggers entrega mais uma obra-prima que amplia a mitologia de seu cinema, sempre dançando entre o fantástico e o terror com uma assinatura própria espetacular para um autor tão jovem. Pegando a plateia pelo pescoço e forçando-a a embarcar em um barco que está fadado ao sangue, todas as profecias ditas através da boca de bruxas conduzem histórias em que a natureza (seja a do planeta ou a nossa própria) está presa a grossas cordas do destino. Resta a você acompanhar o degringolar dos personagens "eggerianos", pobres vítimas de forças sobrenaturais que turvam as suas missões de descobrirem quem são. "O Homem do Norte" é tudo que você poderia esperar de uma saga viking milionária assinada por Robert Eggers.

Crítica: “Medida Provisória” tritura sua importância quando tem um roteiro à la Quebrando o Tabu

Na minha crítica para o fabuloso "Divino Amor" (2020), apontei como o cinema nacional, apesar da resseção cultural, está emergindo com nomes que unem críticas sociais com ineditismos criativos. Com as pressões de um país em crise, esse seria um efeito colateral benigno, o de usar a arte como meio de reflexão das nossas mazelas, e no chamado "Novíssimo Cinema Brasileiro", estamos cada vez mais recheados de exemplares do gênero: "Trabalhar Cansa" (2011), "As Boas Maneiras" (2018), "Morto Não Fala" (2018), "Bacurau" (2018), "Casa de Antiguidades" (2020) e "A Nuvem Rosa" (2020) são exemplos, e "Medida Provisória" acaba de entrar para o mesmo panteão.

"Medida Provisória" é o filme de estreia de Lázaro Ramos na cadeira de direção de ficção. Baseado na peça "Naníbia, Não!" (2009) de Aldri Anunciação, o enredo se passa em um futuro brasileiro próximo. O governo capengamente tenta criar uma reparação - seja social, seja econômica - pelos anos de escravidão, e, após várias tentativas falhas, a solução foi feita por meio de uma medida provisória que obriga todas as pessoas pretas do país a serem imediatamente levadas de volta para a África. Pretas não, todos com "melanina acentuada", como a nova denominação para pessoas retintas.

O longa de Lázaro vai de mãos dadas com "Divino Amor" para um futuro assustadoramente próximo que eleva à máxima potência uma pequena fagulha opressora que já se instalou em nosso país. É claro que o projeto entregue com a boca cheia de dentes de políticos passa longe de uma reparação, e sim um projeto mais do que direto de higienização social, a fim de deixar o Brasil um país de brancos - o mesmo país que era originalmente povoado por índios e não por brancos, mas tá bom.


A premissa do roteiro é mais do que instigante - é difícil ler a sinopse e não querer sentar pelos 103 minutos a fim de saber como essa distopia se desenrolará, principalmente quando é comparada com fenômenos midiáticos como a série "Black Mirror" (2011-) e o vencedor do Oscar "Parasita" (2019). E é aqui que se inicia o grande "porém" de "Medida Provisória". Confesso que não tinha total certeza se este era ou não o primeiro filme de Lázaro, afinal, sua carreira na tevê e cinema é vasta e o convite para sentar do outro lado da câmera já deveria ter acontecido mais cedo, mas sim, é a estreia do ator como diretor, e isso fica claríssimo durante quase todos os segundos de projeção.

Ultimamente ando com um debate interno (sem ainda grandes resoluções) sobre o papel do Cinema como arte social. Esse debate se inflamou após assistir a "Red Rocket" (2021), uma película que segue um personagem principal completamente asqueroso, todavia, sem um julgamento escancarado por parte da obra. Seria obrigação do Cinema uma exposição claríssima e sem resquícios de dúvidas sobre o bem e o mal? É dever do cineasta julgar atitudes problemáticas de seus próprios personagens, com o intuito de não fomentar na vida real pessoas como as da tela? Enquanto acho que deve haver responsabilidade na arte, também não vejo o Cinema como uma escola audiovisual. Onde então reside esse limiar? Qual a medida dessa balança? Sinceramente não sei.

Em "Medida Provisória", o efeito é o extremo oposto: é tudo tão exposto que se torna didático. Depois de um confuso primeiro ato, com milhares de informações jogadas de maneira desconexa, um eixo é encontrado quando a medida provisória do título é instaurada. A partir de então, a falta de maturidade na linguagem cinematográfica dos envolvidos fica latente quando essa linguagem é utilizada da forma mais básica possível.

Vamos voltar lá nos fundamentos do Cinema. O Cinema é chamado de "Sétima Arte" desde 1923 quando Ricciotto Canudo escreveu o "Manifesto da Sétima Arte", e isso se deu pelo Cinema unir todas as outras seis em uma só mídia: Pintura, Escultura, Música, Literatura, Dança e Arquitetura. E se formos entrar em cada elemento de cada uma dessas artes, o cinema tem uma infinidade de recursos para transmitir suas mensagens: são imagens, sons, cores, formas e transições que, juntas, criam sensações. Para resumir, o Cinema mostra, não diz.


Isso não quer dizer que os diálogos são supérfluos no Cinema, não é esse dizer - todos os filmes não precisam ser como "A Gangue" (2014), que não há um só diálogo ou legenda na tela, cunhado unicamente em imagens. O grande problema de "Medida Provisória" é a histriônica falta de sutileza: absolutamente tudo precisa ser dito detalhadamente ao invés de mostrado. Enquanto a duração corria pelo ecrã, pensava em "Bacurau" e como o brilhante roteiro falava tanta coisa sem deixar muitos pontos explícitos, como a valorização da história e da cultura em detrimento da religião para o povo "gente" (denominação dada para quem nasce em Bacurau). O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles encontra o balanceamento entre o que precisa ser dito e o que deve ser mostrado, e isso é conseguido a partir da maturidade semiótica da arte que é o Cinema, algo que falta em "Medida Provisória".

Talvez o exemplo mais cristalino dessa falta de domínio cinematográfico está na sequência em que um personagem branco e um personagem negro são assassinados ao mesmo tempo. Quando se utiliza de um dos elementos mais poderosos da linguagem fílmica, a montagem, o filme cai em uma ambiguidade que não soa muito certeira: enquanto uma das mortes é uma reação, a outra é puro ódio, então como colocar ambas em um mesmo patamar?

A principal trama da fita está no fato de que os policiais não podem entrar nas casas das pessoas pretas, tendo que capturá-las para o exílio somente nas ruas. O protagonismo do filme se divide entre três personagens: o advogado Antônio (Alfred Enoch, sim, o Dean Thomas da franquia "Harry Potter", 2001-11) e seu primo André (Seu Jorge) estão escondidos em casa enquanto Capitú (Taís Araújo), esposa de Antônio, foge do hospital em que trabalha e para em um "afrobunker", esconderijo de pessoas pretas que criam um movimento contra a "devolução". A separação da família, que não sabe do paradeiro um do outro, é o cerne da trama, enquanto o país entra no caos da caça de pessoas pretas.


Tirando esses três personagens, todos os outros sofrem de uma pobreza de desenvolvimento terrível, como a Isabel de Adriana Esteves, uma Dolores Umbridge que tem receio de falar que gosta de café preto. E claro que não poderia faltar a vizinha branca que diz que já sofreu """racismo""" pelo seu cabelo e que adora pessoas pretas, a empregada dela é até uma; e o diálogo de "nossa como eu queria ter a pele negra", já que é muito legal """querer""" ser preto até sofrer tudo o que eles passam, não é mesmo?

No entanto, é inegável a importância de toda a mensagem, por mais mastigada que ela seja. Me pergunto (com uma leve certeza) se essa mensagem vai atingir quem deveria atingir, afinal, a massa reacionária vai evitar ferrenhamente qualquer aproximação com a obra. Indiferentemente, por mais cansativo que ainda seja para pessoas pretas falarem de racismo (2022, pelo amor de deus), enquanto houver a necessidade, a mensagem deve ser dita para todos os lados.

A importância de uma obra como "Medida Provisória" não dá para ser contestada, principalmente no Brasil atual, afogado com conservadorismo, fascismo e opressões. Contudo, o Cinema como arte não sobrevive de boas intenções, e o roteiro aqui tritura sua mensagem de forma tão forte, a fim de facilitar ao máximo a assimilação das massas, que enfraquece o impacto de algo que poderia ser enorme. São frases de efeito e poemas que anulam a naturalidade e que amainam o que poderia ser um dos melhores filmes do ano. De qualquer forma, é lindo ver salas de cinema lotadas com um longa tupiniquim que discute o racismo, porém, quando há uma cena em que o Emicida tira das mãos de um personagem uma arma e entrega pra ele um livro, foi a confirmação da imensa falta de sutileza de um roteiro digno do Quebrando o Tabu.

Crítica: com Gaga, roupas de luxo e remix de "I Feel Love”, “Casa Gucci” é um "Poderoso Chefão” gay


Vou começar essa crítica apontando algo que já devo ter apontado em algum(ns) texto(s) dessa presente coluna: não aguento mais cinebiografias. O subgênero (vou chamar assim, mesmo não tão correto) está mais do que saturado em Hollywood - felizmente, a Academia está começando a diminuir o montante de premiações para papéis biográficos - se olharmos para as últimas cinco edições nas quatro categorias de atuação, sete atores levaram um Oscar interpretando algum personagem real - fora os inúmeros indicados. Papéis criados do zero deveriam ser mais bem vistos, a meu ver.

Esse rant é, também, devido aos rumos que o Oscar 2022 se encaminha, apontando mais papéis biográficos nos postos mais altos. Por isso que fui assistir "Casa Gucci" (House of Gucci), do lendário Ridley Scott (diretor de ""Alien: o Oitavo Passageiro", 1979, "Blade Runner", 1982, "Thelma & Louise", 1991, "Gladiador", 2000, e tantos outros clássicos), com um pé atrás.

Outro elemento que garantiu esse pé bem fincado no chão foi a maneira que o filme se vendeu desde o início de sua campanha: o foco era pesadíssimo em cima do elenco, pipocando na tela como todos são Oscar winners e nominees. Claro, isso é um chamariz mais do que efetivo, porém, muitas vezes a estratégia é utilizada para dar luz (e esconder) o óbvio: o que há de bom no filme é seus atores, não o filme em si.


E sim, "Casa Gucci" é mais uma cinebiografia hollywoodiana. O longa conta como a vida da família Gucci foi mudada com o casamento de Maurizio (Adam Driver), o herdeiro do império, com Patrizia Reggiani (Lady Gaga). Ele, no alto do mundo da moda, conhece a filha de um caminheiro em uma festa, recebendo imediata reprovação de Rodolfo (Jeremy Irons), pai de Maurizio, no melhor estilo "o princeso e a plebeia". Ela entende nada de arte, um alerta vermelho para quem habita um dos países com maior apreço pela sua carga cultural do planeta. É claro que ela não pertence àquele universo.

Extremamente ambiciosa, Patrizia se desdobra pra conseguir Maurizio - o início do relacionamento pende bastante para o lado econômico, como se ela estivesse mais interessada na fortuna do pretendente do que nele em si, todavia, o desenrolar dos acontecimentos mostram que sim, Patrizia quer a etiqueta "Gucci" em sua vida, mas também ama Maurizio. E falando no primeiro ato, ele talvez seja o mais irregular da película. Há uma falta de polimento na montagem, com alguns acontecimentos sendo cortados mais cedo do que deveriam (e estamos falando de um filme de 157 minutos), o que pode atrapalhar a imersão de alguns espectadores (apesar de notar as falhas, não foi o caso comigo). Soa como se Maurizio tivesse se apaixonado pela mulher fácil demais.

Rapidamente os dois se casam e então "Casa Gucci" começa de fato. Patrizia conseguiu. Porém, Maurizio tem interesse nenhum em se associar com a marca, controlada por seu pai e Aldo (Al Pacino) - do outro lado, há Paolo (Jared Leto), o filho "idiota e inútil" (esses adjetivos são repetidos inúmeras vezes) de Aldo que almeja levar a empresa para rumos mais, digamos, excêntricos. A Gucci é rapidamente vista como um tabuleiro em que cada peça toma cuidado para dar a próxima jogada.

O filme transita por dois estilos: o melodrama e a sátira, ou seja, é uma obra muito camp. A decisão de Scott neste determinado aspecto mostra que a produção estava ciente do divisor de opiniões que seria a fita - ao invés de focar em um dramão classudo com cara de Oscar - à la "Spencer" (2021), "Casa Gucci" quer transformar sua história em um espetáculo, uma escolha arriscada, e isso se comprova do consenso dividido por parte da crítica: uns amaram e outros acharam irregular.


O ritmo do filme é uma montanha-russa que não dá aviso prévio de quando vai subir lentamente pelo dramalhão e quando vai despencar na comédia - e há momentos realmente hilários, o que surpreende: como uma história sobre jogos de poder, ganância, poder, traição e assassinato pode ser tão leve? Não consigo negar que há algumas moedas de dois lados enormes dentro da exibição, e a maior delas é, com certeza, o personagem de Jared Leto.

Vi em threads no Twitter algumas análises entre os personagens vs. as pessoas reais, e muito foi falado como o Paolo Gucci de Leto tinha nada a ver com o real herdeiro, o que, pelo menos fisicamente, é um fato. Leto está soterrado em maquiagem (alguém aí quer o Oscar da categoria), e Scott empurra o personagem ao máximo, transformando-o em uma caricatura. Já li muito como alguns acharam Paolo o elemento dissonante do longa, contudo, cada momento em que Leto estava na tela era um frescor para mim. Sim, é demasiado e não há tentativas de esconder o peso das escolhas ao redor do personagem, mas é exatamente aí que habitam os dois lados da mesma moeda.

Paolo pode não ser o destaque do roteiro, mas resume muito bem o que é "Casa Gucci": é como um filme da Era de Ouro de Hollywood que se passa em um país ou com uma cultura ~estrangeira: os filmes de Humphrey Bogart, intrigas internacionais com cenários "exóticos" de Alfred Hitchcock ou homenagens à nouvelle vague. Os sotaques que não existem real motivo para existirem (os personagens são italianos, por que falam em inglês?), o exagero de características, tudo é muito nostálgico e delicioso nesse pacote assumidamente cafona (mesmo vestindo roupas de grife).

E falando nos sotaques, um rápido debate. Com tantos graduados em linguística e fonética que surgiram na internet desde o primeiro trailer da obra, muito foi falado sobre os sotaques utilizados, principalmente o de Lady Gaga: ele já foi chamado de russo, alemão, ucraniano e todas as nacionalidades possíveis para apontar como não soava italiano. É só assistir a qualquer vídeo da real Patrizia falando que vemos que o sotaque está igual, porém, não é esse o debate que quero levantar, e sim o seguinte: qual a necessidade absoluta de um filme de ficção ter que ser violentamente igual ao real? Isso não é um documentário, é uma obra fictícia baseada em acontecimentos reais, ou seja, não há qualquer contrato assinado sobre a veracidade. Se tratando de cinebiografias então, a cobrança é ainda maior. Temos que abrir mão desse apego ao real quando o cinema é uma REPRESENTAÇÃO do real - e muitas vezes nem do real é.


Se não bastasse a diversão que é a sessão, ainda temos uma porrada de atuações antológicas. Todos os cinco que compõe o elenco principal merecem uma chuva de elogios (e prêmios), com destaque, evidentemente, à Lady Gaga. Se ela encontrou sucesso com "Nasce Uma Estrela" (2018), em "Casa Gucci" ela rasga o ecrã e carrega o filme nas costas - até nos momentos em que Patrizia não está na tela desejamos que ela retorne o mais rápido possível. Gaga, que cambaleou no início de sua carreira como atriz (não esqueço o Globo de Ouro comprado por "American Horror Story: Hotel", 2015) está consolidada como uma atriz de alto escalação. Conseguir roubar a cena contracenando com AL PACINO (que está irretocável) é prova mais que resoluta de sua competência.

Algo que ficou pairando no ar foi: qual foi a motivação da existência da personagem de Salma Hayek dentro do texto? O letreiro no final informa que sua personagem foi condenada pelo assassinato de Maurizio, entretanto, fiquei em dúvida se realmente existiu essa pessoa. Existindo ou não, a Pina de Salma é bastante descartável - não em termos de atuação, e sim de peso narrativo. Se ela fosse cortada, nada mudaria no enredo, e soa cômico (no mal sentido da palavra) ver a vidente e feiticeira (?) ajudando a cada vez mais tresloucada Patrizia na sua jornada rumo à loucura. Em algumas passagens, pareceu como se Pina existisse apenas na cabeça de Patrizia, ou seja, não precisava estar ali.

De longe, a maior glória de "Casa Gucci" é um feito raramente conseguido por cinebiografias: tudo o que se passou fora do que está na tela é irrelevante. Você não precisa conhecer os personagens, nem suas histórias, nem seus desfechos antes de sentar diante do filme, uma falha recorrente dentro do subgênero. O desenvolvimento de seus personagens, principalmente se tratando de várias jogadas que mudam os rumos de todos, é inteiramente construído no ato fílmico, e você consegue entender perfeitamente as motivações e impactos de cada um, o que foi um alívio tremendo - receava que a fita fosse um "O Irlandês" (2019)

É até estranho colocar tais palavras juntas, mas "Casa Gucci" é um "O Poderoso Chefão" (1972) gay. Intrigas familiares com carregados sotaques italianos, mas adicionando roupas de luxo, remix de "I Feel Love", e, claro, Lady Gaga em cima de saltos agulha e casacos de pele se vingando do marido infiel? Mais queer impossível. O impacto cultural do longa é comprovado no momento em que quase toda a sala do cinema fez o sinal da cruz durante a já icônica fala "Em nome do pai, do filho e da Casa Gucci", e isso vale muito mais do que qualquer prêmio por aí.

O nome dela é Signora Gucci, obrigado.

Crítica: a natureza é a maior (e mais cruel) mãe no conto de fadas de horror “Ovelha”


Atenção: a crítica contém spoilers.

Existe um quadro na parede do meu quarto que informa bem uma das certezas que possuo; nele há a afirmativa "In A24 we trust", quase um mantra. Se você minimamente acompanha o Cinematofagia, já deve saber que a frase é (quase sempre) lei por aqui. Quando a produtora vai para o terror então, é um dos pilares de sustentação do gênero na modernidade - nem preciso discorrer sobre nomes como "A Bruxa" (2016), "Hereditário" (2018), "Clímax" (2019) e "Midsommar" (2019), certo?

Na corrente década, a A24 já prometeu dois novos terrores para se unirem nessa seleta lista de preciosidades, "Santa Maud" (2020) - que desde janeiro habita na lista de melhores do ano, spoiler alert - e "Ovelha" (Lamb), que acaba de chegar na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. "Ovelha" compartilha várias similaridades entre outras fitas da produtora, que já é elemento fundamental da sua filmografia: é o filme de estreia de Valdimar Jóhannsson, diretor e roteirista islandês. A A24 tem apostado em cineastas estreantes em diversos gêneros, acertando com louvor no terror - "A Bruxa", "Hereditário" e "Santa Maud", por exemplo, foram todos filmes de estreia de seus respectivos diretores, e essa característica diz muito não só na forma como a produtora trabalha (apostando em novos talentos) como também na expertise em selecionar projetos de sucesso.


Ao contrário de todos os citados até agora - e da imensa maioria do portfólio da A24 -, "Ovelha" não é falado em inglês. Inteiramente passado na Islândia, o roteiro abraça a língua do país, e tal ponto faz toda a diferença. Em "Ovelha", María (a ótima Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) são um casal de fazendeiros em uma planície gelada do país. Entre cuidar do plantio e de diversos animais, em especial ovelhas, a vida passa de maneira devagar e pacata, sem grandes acontecimentos. O auge acaba sendo o nascimento de cordeiros, com o parto realizado pelos dois, mas até isso já virou atividade corriqueira. Até que um dia um desses pequenos cordeiros choca o casal.



A produção faz escolhas na primeira parte que, apesar de ""frustrantes"", são corretas: demoramos uma boa parte da duração para ver o que assustou os dois. A primeira cena, inclusive, é rodeada de mistério: a câmera é a visão de alguma criatura, que caminha sem pressa até o celeiro onde se encontram as ovelhas. A fita não entrega as peças na tela, deixando o rápido prólogo como estopim nas sombras. É claro que, enquanto plateia, ficamos sedentos de vermos graficamente o que está acontecendo, todavia, imaginar o que está se desenrolando pode ser muito mais intrigante do que de fato ver.

O cordeiro recém-nascido é, de alguma maneira, um híbrido de ovelha com humano - sua cabeça e metade do tronco, até um dos braços, é composto de anatomia ruminante, enquanto o resto do corpo é humano. María e Ingvar acabam "adotando" a criatura e cuidando como se fosse um filho. A faixa temporal na película não é diretamente delimitada, acompanhando com certa precisão a partir do crescimento de Ada (o nome do bichinho), que dorme em um berço do lado da cama do casal.

A calmaria e felicidade da nova família começa a ser perturbada pela ovelha-mãe de Ada, que passa o dia do lado de fora da casa berrando atrás da cria que foi, de certa forma, roubada. María é a mais afetada pelas perturbações do bicho, até que perde a paciência e mata a ovelha - o que ela não sabia era que o irmão de Ingvar, Pétur (Björn Hlynur Haraldsson), acabara de chegar na fazenda e viu todo o ocorrido.



É claro que Pétur não vai entrar no conto de fadas de bom grado - a presença de Ada é uma aberração para ele, reforçado pela maneira que o casal lida com a situação: como se fosse a coisa mais natural do mundo. Fica ainda mais desconcertante quando descobrirmos que "Ada" não foi um nome sem propósito: esse era o nome da filha de María, que morreu em algum momento e de alguma forma não explanada.

Pétur perfura a bolha de fantasia quase histriônica da obra e traz mais elementos dramáticos que dão mais luz à trama. Ele, sempre que o irmão vira as costas, faz investidas sexuais em cima de María, que, apesar de negar, não parece se surpreender, o que demonstra que há uma história ali. Decidido a dar um ponto final naquele absurdo, Pétur tenta matar Ada, contudo, na hora H, desiste, se transformando em uma figura paterna. Aqui acende uma luz vermelha.

Talvez, e esse é um enorme "talvez", Ada (a filha morta) não era de Ingvar, e sim fruto de uma traição de María com Pétur. Com a chegada de Ada (a pequena ovelha), María a acolhe como sua em uma desesperada tentativa de reparação do passado - ela seria "genuinamente" filha do casal. O encantamento pela resolução e substituição do erro é tão grande que Ada se torna o ímo da felicidade dos dois, que a defendem a qualquer custo. A montagem e fotografia (belíssima, mas isso não é difícil, ligar uma câmera em qualquer lugar da Islândia é garantia de imagens perfeitas), no momento em que Pétur está com a arma apontada para Ada, foca na troca de olhares entre o homem e a criatura, e há uma áurea de ternura ali, comprovada pelo próximo corte em que Ada está dormindo no colo de Pétur. Ele viu ali a representação da filha perdida.



A atmosfera denota uma fixação de todos por Ada, talvez um simbolismo que também fomente uma teoria gerada pelo roteiro. É curioso que o animal escolhido seja um cordeiro - poderia ser facilmente um cavalo ou qualquer outro encontrado no cenário rural, então por que um cordeiro? O animal tem fortíssima referência religiosa, sendo, na mitologia cristã, a representação de Jesus, o Agnus Dei. Ada, de certa forma, é o messias daquela família, sendo a salvação e razão para María e Ingvar - até mesmo o problemático Pétur é arrebatado pela pureza da "criança".

Os nomes escolhidos para os poucos personagens não devem ter sido sem propósito. "Ada", em dialeto do povo Aro, na África, significa "a primeira filha", e "nobreza" em origem alemã. "Ingvar" é um antigo nome escandinavo que significa "protegido por deus". "Pétur" é a derivação islandesa do nome "Pedro", que foi um dos 12 apóstolos de Cristo. E "María" dispensa maiores descrições. Até o nascimento de Ada remonta a vinda do salvador na manjedoura.

No clímax da obra, finalmente vemos quem é o pai verdadeiro de Ada, a criatura que acompanhamos no prólogo: uma mistura de homem com bode, ele mata Ingvar e leva Ada embora, para o desespero de María, que perde o marido e a filha em um só golpe. Se você assistiu "A Bruxa" ou tem conhecimento das escrituras bíblicas, a figura da pai é ligada diretamente com Satanás, em uma mistura alucinada dessa mitologia específica - o diretor ainda afirmou que o enredo não é baseado em algum folclore islandês ou da região. Ada pode ter sido uma redenção para a família, mas ela não era deles. Ao ser roubada, a cordeirinha sai de glória à ruína num piscar de olhos.

É bem claro que um longa como "Ovelha" não será de largo apelo popular por inúmeros motivos - o ritmo lento, a ambientação contemplativa, as alegorias complexas, a falta de explicações diretas e até mesmo a língua acabam afastando -, sendo um daqueles filmes que precisam ser digeridos para não ficarem na superfície do "o que diabos foi isso?". Mais um pilar na nova onda de horrores que focam no drama ao invés da gratuidade que muitos exemplares do gênero acabam caindo, "Ovelha" é um estudo declaradamente estranho sobre a morte, a culpa e como encontramos nas mais diferentes coisas um motivo para nos trazer a felicidade. No fim das contas, a moral é que a natureza é a maior mãe de todas, e com ela é olho por olho e dente por dente.
 

REVIEW: Lil Nas X nos convida a mergulhar no infinito complexo e particular de MONTERO

 

Aos 22 anos de idade, a maioria das pessoas pode não ter vivido muita coisa. Mas Lil Nas X de fato já viveu. Foi ainda aos 20 que, ao lado de Billy Ray Cyrus em “Old Town Road”, ele quebrou recordes da Billboard Hot 100 e passou 19 semanas no topo da parada dos Estados Unidos. Homem, negro e gay, Montero Lamar Hill teve um começo de carreira tão grandioso e histórico que dificilmente passaria batido. E o cantor, nascido e crescido no estado da Georgia, embarcou de vez no mainstream e logo teve os olhos ofuscados pelos holofotes da mídia e da indústria.

Se engana você que acha que de lá para cá as coisas foram fáceis. Lil sempre adotou uma postura autêntica e destemida ao falar sobre sua sexualidade de forma aberta e orgulhosa, se tornando um dos símbolos da nova geração de artistas LGBTQIA+.. Até que em março deste ano ele lançou “MONTERO (Call Me By Your Name)”, como lead single de seu debut álbum, e abalou as estruturas do pop.

As polêmicas foram imensas, dignas das grandes divas pop. As diversas referências a ícones e símbolos religiosos o fizeram persona non grata entre os conservadores. A Igreja Católica criticou. O mundo pop não só amou, mas elevou as expectativas sobre o que o artista estaria preparando para seu disco de estreia. Estetica e conceitualmente, já era claro que esse seria um dos destaques de 2021. Batizado de “MONTERO”, o disco quase homônimo prometia trazer um Lil Nas X independente, empoderado e livre das amarras que eventualmente poderiam o ter prendido quando ainda engatinhava (com muita cautela) e conhecia essa indústria por vezes tão ingrata.

Mas o que se viu – ou melhor, se ouviu – a partir da última sexta-feira, no entanto, foi revolucionário, extremamente vulnerável, pessoal e autêntico. Com 15 músicas - quatro delas em parceria com outros artistas, como Miley Cyrus, Doja Cat e Megan Thee Stallion, além da já lançada com Jack Harlow - MONTERO nos leva a uma jornada de vulnerabilidade, orgulho e inconstância sobre o que é ser Lil Nas X, mas mais do que isso: também expressa os sentimentos de uma geração confusa, insegura e que não tem certeza alguma de como será o dia de amanhã. 

Sem mais delongas, confira abaixo a nossa análise faixa a faixa do disco que conquistou nossos corações:

"MONTERO (Call Me By Your Name)"

O smash hit lançado em março e que abriu as portas da era Montero também é competente em abrir o disco. Aqui, Lil Nas X dá um pequeno spoiler do que vem nos próximos 38 minutos de disco. Melódica e liricamente, o artista ainda não entrega todo seu potencial logo de cara, mas nos convida a entender o mundo a partir do seu ponto de vista. Assim como seu nome de batismo, MONTERO apresenta um Lil Nas X se entregando aos socialmente ditos “pecados da carne”, enquanto na verdade aceita e abraça a própria sexualidade. Sem amarras, muito menos culpa.

"DEAD RIGHT NOW"

As intenções do artista ficam mais claras aqui. Nem só de prazeres e aceitações se vive em MONTERO. DEAD RIGHT NOW traz um flow mais lento e intimista que diminuiu o ritmo do disco e dá destaque ao rap do Lil Nas X de hoje que relembra um passado anterior ao de “Old Town Road”, abrindo o coração ao falar sobre todos que duvidaram de seu potencial na música e que, depois de seu sucesso, voltaram a aparecer como se nada tivesse acontecido. Ele também revela a complicada relação com a mãe, que ao beber o agredia. A faixa dois é um recado para essa galera: quem não o apoiou no passado não tem espaço no seu presente.  

"INDUSTRY BABY (feat. Jack Harlow)"

“And this one is for the champions”! Em INDUSTRY BABY, Lil Nas X sabe que venceu. Depois de tantos dias de luta depois do dilúvio, o artista acumula dois hits número 1 da Billboard, conquista fãs ao redor do mundo e se destaca como um dos maiores nomes do pop (e do rap) da nossa geração. A co-produção de ninguém menos que Kanye West, ao lado do duo Take a Daytrip, complementa com perfeição a letra já poderosa, tornando a faixa grandiosa com riffs e trompetes.

"THAT’S WHAT I WANT"

Assim como todas as outras faixas do disco, a quarta traz um sentimento pessoal de Lil Nas X: a solidão e o consequente desejo de amar e ser amado. Sentimentos também universais e atemporais, mas que ganham relevância ainda maior encaixados em um contexto ainda pandêmico, incerto e inconstante. No final do dia, Lil nos representa ao traduzir em palavras aquilo que temos sentido há tanto tempo. Tudo isso sob uma melodia extremamente radiofônica. Te lembrou algo? Que tal dar uma relembrada em “Hey Ya”, do Outkast?

"THE ART OF REALIZATION"

Única interlude do disco, THE ART OF REALIZATION é essencial para respirarmos e entendermos o que vem pela frente. Aqui, diferente de interludes como as de Chromatica, por exemplo, o destaque vai para um pequeno poema em que Montero se pergunta se tem caminhado na direção certa – mesmo assumindo não ter uma direção.

"SCOOP (feat. Doja Cat)"

Direto e reto, SCOOP repete o mood do lead single do CD agora em uma sonoridade que remete facilmente a algum hit de Drake. Na faixa mais narcisista do disco, Lil Nas X desconstrói as ideias de “THAT’S WHAT I WANT”. Ele está focado em cuidar do corpo e, basicamente, continuar sendo um grande gostoso enquanto aproveita a vida de acordo com seus prazeres pontuais. Ele é claro: não quer conversinha, ele só precisa do cara durante a noite. A participação de Doja Cat, apesar de tímida, é certeira e complementa bem a música. Há quem diga que um feat desses merecesse mais. Mas SCOOP serve uma mescla equilibrada entre o pop e o rap, é gostosa e leve de ouvir e tem tudo para bombar em challenges daquele app que-não-podemos-nomear.

"ONE OF ME (feat. Elton John)"

O encontro de dois ícones LGBTs de gerações diferentes serve uma das músicas mais íntimas e profundas do disco, e inicia de vez o bloco mais “pop” do disco. Mesmo depois de se orgulhar do tanto que conquistou na música e de abraçar e se jogar em seu próprio eu, Lil se mostra vulnerável por ter que seguir se provando em uma indústria machista, homofóbica e racista que sempre o subestimou. Uma música sem dúvida grandiosa, cujo piano de Elton John dá um toque especial. Deixando, no entanto, um gostinho de quero mais.

"LOST IN THE CITADEL"

Auge do pop no disco, aqui o cantor abraça a guitarra e se joga na atual tendência emo, optando por se inspirar no pop rock dos anos 80 enquanto entoa uma letra que fala sobre o fim precoce de uma relação que tinha tudo para dar certo. Mais uma vez, o hitmaker deixa claro seus sentimentos e declara luto, assumindo que precisa de um tempo para se reerguer enquanto segue chorando e relembrando o início de tudo. Quem nunca?

"DOLLAR SIGN SLIME (feat. Megan Thee Stallion)"

Rap chiclete e beat envolvente compõem a nona faixa do disco. Sem vulnerabilidade alguma, Lil Nas X se une a Megan Thee Stallion e com uma autoconfiança gigante repete o que ele já tinha falado em lá em cima: “Eu sou o momento e eles vão ter que me engolir”. Outro hit pronto e certeiro para bombar no app de dancinhas.

"TALES OF DOMINICA"

“Back to Black”, a faixa 10 diminui mais uma vez o ritmo do disco, volta a destacar o violão e os sentimentos mais confusos do nosso anfitrião. Aqui, ele mais uma vez escancara sua vulnerabilidade, relatando como é difícil encarar o passado conturbado que marcou sua história. Em mais uma letra que aumenta o nível de suas composições, Nas X é transparente e assume: nenhuma fama, dinheiro e sucesso no mundo vai apagar de sua memória o que já passou.

"SUN GOES DOWN"

SUN GOES DOWN não foi a música que mais chamou a atenção do editor que vos escreve quando foi lançada no final de maio. Com uma letra indiscutivelmente forte, a faixa ganha destaque e qualidade dentro do contexto do álbum. Apesar de ter uma melodia radiofônica, simples, animada e extremamente agradável aos ouvidos, o single promocional aprofunda sua visitação a uma época em que o bullying corroía sua autoestima e confiança como um jovem gay e negro no sul dos EUA. Dor essa que inevitavelmente faz parte de sua história.

"VOID"

Mas é em VOID que Lamar Hill alcança o máximo de sua melancolia. Definitivamente a mais sentimental do disco, a 12ª música é um mergulho no vazio existencial do próprio autor em busca de cura. Versos poderosos como “Eu acho muito difícil conseguir, muito difícil viver. Me conte o que você sabe, agora antes que eu me vá”. A faixa mais longa da jornada homônima do nosso astro chega a ser curta tamanha intensidade, profundidade e complexidade de seus sentimentos. Um depoimento pessoal e extremamente íntimo que de alguma forma se encaixa a mais um sentimento que a maioria de nós experimentou nos últimos meses.

"DON’T WANT IT"

Depois de tirar a máscara e mostrar sua insegurança nua e crua, Lil Nas X aborda a solidão de uma nova forma. Agora, ele busca a cura. Ou ao menos fazer as pazes com seus fantasmas (do passado e do presente). Em meio a faixas tão memoráveis, pessoais e intensas, a 13ª é uma das menos relevantes. Mas acerta em conduzir-nos à última parte da viagem por MONTERO.

"LIFE AFTER SALEM"

Na mera opinião deste editor, a penúltima música entrega uma das sonoridades mais carregadas do álbum - e isso é uma coisa ótima. A estética emo mais uma vez fica clara com as guitarras (o solo que começa aos 2:40 é de arrepiar), e o ritmo do disco começa mais uma vez a cair. Os vocais de Lil ganham destaque anunciando o fim próximo, enquanto o cantor se entrega mais uma vez à vulnerabilidade de um amor que não correspondeu às expectativas e praticamente clama: “Por que você só não pega o que você quer de mim?”.

"AM I DREAMING (feat. Miley Cyrus)"

Apoteótica e surpreendente, AM I DREAMING parece ter sido propositalmente idealizada, escrita e produzida para fechar o álbum. A presença de Miley Cyrus não poderia ser menos óbvia. Fugindo do lugar comum, a última música aposta nos vocais e nas cordas para deixar clara uma mensagem do autor de que nunca esqueçamos de quem ele é e do que conquistou nessas condições. Recado dado. Depois de uma jornada dessas, vai ficar difícil esquecer quem é Montero Lamar Hill. 

***

MONTERO é grandioso. Não apenas por suas composições, muito menos somente por suas melodias e beats de alto nível. É que o disco nos convida – e realmente nos guia – a uma viagem sobre o passado, o presente e o possível futuro do artista. Viagem essa paradoxal e complexa, pois sonoramente Lil Nas X se apresenta durante o percurso como um artista multifacetado e que explora com sucesso e conforto diferentes ritmos e vibes. Liricamente, também é um disco complexo, de altos e baixos, sem medo de dizer o que pensa e sente, nem de expurgar seus maiores demônios e até mesmo dançar com os mesmos.

Corajoso e ousado, o cantor não só se mostra vulnerável, inconstante, empoderado, carente, feliz, melancólico, orgulhoso ou magoado, mas nos faz sentir da mesma forma: mergulhando em seu infinito particular de uma forma igualmente intensa e autêntica.

Mais do que nunca vivemos um período de incertezas e inconstâncias, dias felizes seguidos de dias horríveis. Melancolia mesclada à esperança, e desesperança mesclada ao orgulho de ser quem somos. O debut do americano é sobre a complexidade e a inconstância dos nossos tempos a partir de uma visão pessoal e única. E se ele acha que tinha algo para provar com o disco, pode considerar a missão concluída.

Ele já mostrou que é o momento. MONTERO é o maior ato pop, hip-hop e rap de 2021. E esse título dificilmente estará aberto a discussões nos próximos meses.



Crítica: “A Nuvem Rosa” previu a pandemia em seu (sensacional) estudo do distanciamento social

Existem certas coincidências que são assustadoras demais para serem verdade - e quando envolvem a corrente pandemia, se tornam ainda maiores. Lembro bem quando, no primeiro semestre de 2020, a Netflix lançou "O Poço" (2019), um filme sobre a equidade de recursos e como somos egoístas nessa coisa doida chamada "sobrevivência". A película espanhola refletia bem a loucura em supermercados e a falta de produtos pela compra desenfreada - álcool em gel mesmo, ninguém achava.
 

Pulamos para 2021. Em pleno mês de setembro do corrente ano, estamos caminhando para uma realidade menos caótica pelo avanço das vacinas (defenda o SUS), porém, a quarentena ainda é um fantasma mais que presente. No último dia 02, chegou nas plataformas de stream o filme "A Nuvem Rosa", longa de estreia de Iuli Gerbase. A primeira coisa que vemos sobre o filme, nos segundos iniciais, é um cartão informando que o roteiro foi finalizado em 2017 e as filmagens em 2019. "Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência". É raro vermos uma pontuação tão incisiva sobre um aspecto não-diegético, então por que aquela informação era tão vital para ser a abertura da obra?

A história se passa em algum presente ou futuro mais-do-que-próximo. Giovana (Renata de Lélis) é uma mulher que conhece Yago (Eduardo Mendonça) em uma festa e leva-o para passar a noite em sua casa (empoderadíssima, virei fã). Pela manhã, sirenes disparam ao redor da cidade, e os noticiários informam que nuvens tóxicas cores-de-rosa surgiram ao redor do mundo, matando quem entra em contato em apenas 10 segundos. A regra é fechar todas as portas e janelas e o que quer que dê acesso ao mundo externo, trancafiando todas as pessoas no lugar em que elas estiverem no momento - quem estava em casa, parabéns pela sorte.

Ali estava Giovana com Yago, um homem que ela conhece há menos de 24h. As primeiras reações são um misto de preocupação e frivolidade: por mais que eles levem a sério o que estava acontecendo, há uma latente impressão de "isso vai passar logo". E a partir de então, a câmera de Gerbase se instala claustrofobicamente dentro da casa de Giovana - mais uma fita para a lista de "filmes que se passam inteiramente em um só lugar".

A diretora foi bem esperta na tentativa de manter o espectador junto com os personagens naquela casa. Com exceção do rápido prólogo, não saímos das paredes da residência - até mesmo na cena em que Giovana conhece Yago, estamos afundados em um background escuro, sem conseguir visualizar o local da festa, apenas os personagens. Até esquecemos que um dia aqueles dois sentiram a brisa de uma rajada de vento.

Então, estranhamente, "A Nuvem Rosa" "previu" a pandemia. A distopia natural, no entanto, vai para caminhos que fogem da obviedade fomentada pela premissa. Ao contrário de nomes como "Contágio" (2011, que também se aproxima demais do nosso real) e qualquer longa que se baseia em algum tipo de "fim do mundo", "A Nuvem Rosa" não está tão interessado em estudar o que acontece do lado de fora das paredes de Giovana, focando quase que inteiramente na relação forçada dos dois protagonistas.


Em um momento, Giovana fala que ela e Yago são como um "casal indiano" que se conhece apenas no dia do casamento e devem aprender a conviver um com o outro a partir dali. Esse é o cerne da fita. Banhados por uma áurea rosa emanada pelas nuvens, os dois, que começaram como um lance de fim de noite, mantêm a relação que não estava prevista - e muito é questionado a partir disso. Quando o tempo vai passando e as nuvens não dão sinal de desistência, a situação fica mais precária.

Aqui também está uma das melhores escolhas técnicas e narrativas do filme, a maneira que ele cria as elipses temporais da história. Não há sinais cronológicos diretos de quanto tempo eles estão ali, explorados pelas mudanças físicas dos protagonistas, como o crescimento dos cabelos e da barba de Yago. No começo pode parecer um pouco estranho navegar pelo enredo sem uma bússola temporal, todavia, embarcamos sem problemas quando percebemos qual foi a estratégia selecionada por Gerbase, executada com êxito a partir da montagem certeira.

O primeiro grande estudo do roteiro é a convivência forçada. Giovana e Yago funcionavam muito bem nos primeiros tempos de quarentena, tendo o trabalho (agora home-office) para distrair e fugir da monotonia da rotina, porém, estar 24h por dia ao lado de alguém que você não escolheu se torna um peso cada vez mais difícil de ser carregado.


Giovana com frequência se comunica com amigos e parentes por meio de chamadas de vídeo. Sua irmã mais nova estava na casa de uma amiga quando a nuvem surgiu, estando lá desde então. Uma amiga está sozinha no apartamento depois que o namorado foi à uma padaria no momento que desencadeia a história, prendendo-o lá. Sua saúde mental vai degringolando pela ausência de contato humano, correndo em busca de válvulas de escape que se mostram inúteis, como a compra de um cachorro-robô.

É então entramos no segundo grande estudo do texto, o contato físico. O talo, a pele. Com as relações cortadas com Yago, ele e a protagonista desenrolam estratégias para suprir o desejo sexual - ele através de sexo virtual; ela, por meio de um vizinho de janela. Se ali a coisa não é tão ortodoxa, há situações bem piores: a irmã mais nova liga para Giovana e diz que o pai da amiga engravidou duas outras garotas que também estão lá desde o incidente da nuvem. Sim, o pai engravidou as amigas (menores de idade) da filha - esse momento me recordou "Miss Violência" (2013), uma referência bem-vinda.

E, para o espanto de ninguém, Giovana acaba grávida de Yago - um "bebê da pandemia". A chegada da criança é um ótimo elemento de elipse temporal, com o público podendo mensurar com mais precisão a passagem do tempo - e somos engolidos pelo crescimento da criança e a certeza de que eles continuarão presos ali. É triste pensar que o menino jamais pisou os pés fora daquela casa.


A maior previsão da obra, que deixaria Nostradamus abismado, é a galera que celebra a nuvem. Temos vídeos de youtubers falando como o conjunto de gás tóxico colorido do lado de fora na verdade é uma bênção, vinda para ensinarmos a vivermos de forma melhor. Coatches se aproveitam para vender estilos de vidas vitoriosos, independente da ameaça mortal ao lado da janela. Soa familiar? É o desgosto absoluto.

Com a depressão afogando Giovana, ela ganha de aniversário um óculos de realidade virtual. O presente é um ponto de virada na relação de todo mundo, pois a mulher acaba se perdendo naquela realidade artificial criada pelo óculos - no melhor estilo "Black Mirror" (2011-). Ela vai se distanciando cada vez mais da família para "viver" qualquer simulação dada pelo VR, chegando a espalhar areia em um quarto para se sentir ainda mais em uma praia. Ela anda pela casa de maiô e só interage com alguém nos rápidos momentos em que está fora da praia de led.

Uma das escolhas feitas pelo roteiro pode ser uma faca de dois gumes: raramente temos conhecimento de como está funcionando o mundo exterior. Não sabemos como está o governo, as autoridades e qualquer tipo de poder institucional que reja aquele Brasil, e isso é uma decisão correta. Não interessa os comos e os porquês da nuvem e das configurações que se iniciaram a partir dela - e, curiosamente, por estarmos dentro de uma realidade parecida, a falta dos porquês não é uma deficiência, pelo contrário. Sabemos muito bem como é estar ali - por mais que tenhamos mais liberdade de ir e vir que Giovana e Yago.

Com um final igual um acidente que vemos acontecer, mas podemos fazer nada acerca, "A Nuvem Rosa" fortalece uma veia grossa do novíssimo cinema nacional, a extrapolação criativa de enredos que hiperbolizam nossa realidade a fim de estudá-la e criticá-la - como "As Boas Maneiras" (2017), "Bacurau" (2019), "Trabalhar Cansa" (2011) e "Divino Amor" (2019). Essa veia contraposta o estilo mais clássico da nossa indústria, o "cinema verdade" ("Aquarius", 2016; "Que Horas Ela Volta?", 2015; "Tropa de Elite", 2007; "Temporada", 2018; etc), e não quer fincar as unhas no crível, pelo contrário, almejando desenvolvimentos mais fantasiosos que (absurdamente) soam mais do que reais - e a explanação de "A Nuvem Rosa" sobre o "novo normal" é um espelho desconfortável de ser encarado.

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