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Crítica: “Nós” não repete o sucesso de “Corra!” pois, quanto mais se explica, pior fica

Jordan Peele continua com amplo domínio de suas imagens, mas o roteiro de "Nós" é uma bagunça contraditória
Atenção: a crítica contém spoilers.

Jodan Peele encontrou as portas do paraíso abertas logo quando pôs os pés no Cinema: com "Corra!" (2017), o diretor conseguiu sucesso crítico e comercial, saindo ainda com o Oscar de "Melhor Roteiro Original" nas mãos - um feito sem precedentes, afinal, o cinema de terror é quase sempre ignorado pela Academia. E as honrarias foram merecidas: "Corra!" é um dos melhores filmes do circuito comercial de terror, um acerto magnífico que demonstrava o talento de seu autor.

Ele logo correu para repetir o sucesso, sem deixar que sua fama diminuísse com o passar do tempo. Chega aos cinemas seu novo longa, "Nós" (Us), que mal estreou e já quebrou recordes de bilheteria - é a segunda maior estreia da história para um live-action, atrás apenas de "Avatar" (2009). A fita segue com o empenho de Peele na valorização do negro na Sétima Arte, e "Nós" é o primeiro terror na história a girar ao redor de personagens negros - largamente conhecidos por serem os primeiros a morrerem dentro do gênero. Fora isso, vários elementos da cultura negra estão no recheio da película, como a camiseta de "Thriller" do Michael Jackson e até Janelle Monáe na trilha-sonora. Amém.

A trama é divida em três atos bastante distintos, abertos com um prólogo direto dos anos 80. Curiosamente, o filme é iniciado da mesma forma que "Clímax" (2018), com um televisão em meio a várias referências culturais e temporais, introduzindo a história na época correta e dando pistas do enredo. Uma garotinha, em um parque de diversões, se distancia dos pais e entra numa casa de espelhos. Lá, durante uma queda de energia, encontra uma cópia perfeita, que a traumatiza pelo resto da vida.

Agora, na atualidade, a garotinha - Adelaide (interpretada pela vencedora do Oscar, Lupita Nyong'o, que aqui cria dois papéis brilhantemente distintos) - é mãe de dois filhos, Zora (Shahadi Joseph) e Jason (Evan Alex). A família, junto com o pai, Gabe (Winston Duke), está passando as férias na mesma praia que se encontra o parque da infância de Adelaide. Já sabemos que não sairá coisa boa dali.


A estadia é conturbada para a mãe, que possui diversos gatilhos sobre o acontecimento da sua infância, e ela se mostra cada vez mais perturbada com a possibilidade da menininha que era igual a ela aparecer e atacá-la. É claro, Gabe acha a história uma loucura, porém rapidamente sua opinião muda quando quatro pessoas em vermelho estão bizarramente paradas do lado de fora - e todas são iguais aos quatro integrantes da família.

Talvez aqui se encontre o primeiro grande problema de "Nós": ele mergulha rápido demais no terror. Em "Corra!", nós sempre sabemos que há algo de muito errado, todavia, só descobrimos o que é no último ato. Em "Nós" é o oposto, com a plateia já tomando conhecimento do fomentador do horror logo na primeira meia-hora. A vantagem é que o roteiro de Peele consegue produzir interesse de maneira quase instantânea, e fica difícil não querer saber o que diabos está acontecendo.

A cópia da mãe, a única que consegue falar - mesmo com uma torturante voz - explica, por meio de um conto de fadas, que as cópias passaram a vida na "sombra" dos humanos, e que elas finalmente estão ali para tomarem o lugar. A cópia-mãe então separa a família, e cada uma cuida de sua versão humana, com a montagem se desdobrando para dar espaço aos quatro diferentes acontecimentos - há claramente um segmento campeão, a de Zora e sua cópia. Conseguindo fugir, os quatro vão à casa de amigos, só para encontrarem todos mortos pelas suas respectivas cópias.

O filme então parte para um nível muito maior, afinal, pensamos até o momento que a desgraça era exclusividade da família protagonista. Por meio da televisão, ficamos sabendo que o fenômeno está acontecendo por todo os Estados Unidos, como um apocalipse. Há grande pontuação em cima do versículo 11:11 do livro de Jeremias, na Bíblia, que traz: "Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei". Não há resumo melhor.


Até o momento, somos alimentados pelo horror puro e simples, vindouro da luta pela sobrevivência entre os humanos e as cópias, e pela fome da solução do mistério: o que são essas cópias? Enquanto caminha pelo solo da simbologia, "Nós" encontra sucesso. Inúmeras metáforas visuais são impostas, como os coelhos - que me fizeram lembrar de "Lost" -, e a tesoura, arma de todas as cópias. O que é uma tesoura? Duas peças iguais que, quando unidas de maneira oposta, se transformam na ferramenta, uma relação brilhante ao plot do filme. Mas aí o roteiro começa a ser expositivo e se explicar, porta de entrada para que tudo desande.

As cópias foram criadas pelo governo norte-americano para controlar a população, mas o experimento foi abandonado e elas deixadas nos túneis do subsolo, que se espalham por todo o país. As cópias são fisicamente iguais, mas possuem apenas "metade" da alma de seus originais, o que justifica o comportamento anormal. Elas também são ligadas às pessoas, realizando movimento similares, sem possuírem livre-arbítrio. A premissa pode funcionar por si só, entretanto, não demora a surgir inúmeras perguntas que contradizem as regras escritas pela realidade do filme.

Se as cópias não são seres autônomos, como conseguiram se organizar em massa e atacar os humanos? As dúvidas vão até para os pequenos detalhes, afinal, como eles conseguiram as roupas vermelhas? E as tesouras? E só que piora: o roteiro, querendo ser inteligente, traz a maior idiotice quando coloca uma óbvia reviravolta - eu imaginei que esse seria o final antes mesmo da metade: a Adelaide que vemos desde o começo é na verdade a cópia, e a cópia que surge é a humana. Ela foi raptada pela cópia na sala dos espelhos nos anos 80, e tomou o seu lugar desde então. A real Adelaide é quem comanda a revolução das cópias contra os humanos.

Nada disso faz o M-E-N-O-R sentido. Vamos por partes. A real Adelaide surge anos depois na superfície e.........faz nada para dizer quem realmente é. Ela não age como os humanos, enquanto sua cópia, que não possui toda a "alma", age como alguém normal. Como isso pode ser possível? As cópias só se reproduzem porque são presas pelas ações dos humanos, mas isso não afeta a humana Adelaide, que está no subterrâneo, logo, como ela pode ter exatamente os mesmos filhos da cópia que tomou o seu lugar? E por que ela vai liderar uma guerra em prol das cópias, sendo que foi uma delas que roubou sua vida?


A trama também gera todo um mistério quando as cópias começam a dar as mãos e formar uma corrente gigante. Não é uma novidade inserir esse tipo de camada à trama, com os vilões agindo de forma estranha enquanto tentamos desvendar a razão - em "Os Famintos" (2016), por exemplo, os zumbis empilham objetos, criando torres, o que gera um "por quê?". "Nós" entrega esse porquê, mas é o pior possível: baseado no "Hands Across America", evento beneficente dos anos 80 que levou mais de 6 milhões de norte-americanos a darem as mãos, as cópias estão..........fazendo um protesto, dizendo "nós existimos". E é isso. Uma das grandes interrogações é solucionada de maneira irrelevante e preguiçosa. A produção ainda tenta dar um ar grandioso ao subplot - a fotografia luminosa com a trilha sonora épica -, contudo, é em vão.

Esses são apenas alguns dos vários furos/inconsistências que a reviravolta cria - chegou um momento que eu fui obrigado a parar de pensar no filme para não encontrar mais problemas. "Nós"infelizmente faz parte do grupinho de reviravoltas do terror que destroem a própria história e jogam no lixo as próprias leis - na ânsia de serem ixpertos ao enganar a plateia, esses filmes acabam sendo violentamente burros - vide "Alta Tensão" (2003). Não há o requinte de nomes como "O Sexto Sentido" (1999), "Os Outros" (2001) e até "A Órfã" (2009), todos não possuindo uma rasteira que serve só para derrubar o espectador.

Jordan Peele está fazendo seu cinema fincado na ideia "se você vai fazer algo que já foi feito, faça melhor". "Corra!" e "Nós" são filmes que premissas nada inéditas - "Corra!" é quase um filhote de "A Chave Mestra" (2005)", enquanto "Nós" se apropria de temáticas já discutidas, como o home invasion, slasher e o gêmeo-do-mal -, mas o diretor utiliza da falta de originalidade e cria um trabalho fresco e comercial, que soa como novo. "Nós" tem sim originalidade e personalidade, no entanto, simultaneamente, é um pesadelo que não faz sentido - e se não faz sentido, não funciona.

"Nós" não atinge um nível medíocre pelo domínio gritante de Jordan Peele sobre suas imagens, que constrói um filme ainda mais imageticamente icônico que "Corra!", mesmo longe do incrível resultado anterior. Enquanto "Corra!" unia um terror direto ao ponto e uma larga crítica aos EUA, "Nós" deixa a crítica escorrer pelos seus dedos quando abraça ideias demais, tornando a película num bolo abstrato que dá respostas contraditórias e entrega soluções ruins. O pontapé nos indicada um inovador filme de invasão, que se perde e termina como uma bagunça clichê, salva apenas pelo olho fantástico de seu realizador - mas ainda assim é tão frustrante quanto abrir uma caixa de quebra-cabeças e descobrir que várias peças estão faltando.

disqus, portalitpop-1

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