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Crítica: “Medida Provisória” tritura sua importância quando tem um roteiro à la Quebrando o Tabu

Na minha crítica para o fabuloso "Divino Amor" (2020), apontei como o cinema nacional, apesar da resseção cultural, está emergindo com nomes que unem críticas sociais com ineditismos criativos. Com as pressões de um país em crise, esse seria um efeito colateral benigno, o de usar a arte como meio de reflexão das nossas mazelas, e no chamado "Novíssimo Cinema Brasileiro", estamos cada vez mais recheados de exemplares do gênero: "Trabalhar Cansa" (2011), "As Boas Maneiras" (2018), "Morto Não Fala" (2018), "Bacurau" (2018), "Casa de Antiguidades" (2020) e "A Nuvem Rosa" (2020) são exemplos, e "Medida Provisória" acaba de entrar para o mesmo panteão.

"Medida Provisória" é o filme de estreia de Lázaro Ramos na cadeira de direção de ficção. Baseado na peça "Naníbia, Não!" (2009) de Aldri Anunciação, o enredo se passa em um futuro brasileiro próximo. O governo capengamente tenta criar uma reparação - seja social, seja econômica - pelos anos de escravidão, e, após várias tentativas falhas, a solução foi feita por meio de uma medida provisória que obriga todas as pessoas pretas do país a serem imediatamente levadas de volta para a África. Pretas não, todos com "melanina acentuada", como a nova denominação para pessoas retintas.

O longa de Lázaro vai de mãos dadas com "Divino Amor" para um futuro assustadoramente próximo que eleva à máxima potência uma pequena fagulha opressora que já se instalou em nosso país. É claro que o projeto entregue com a boca cheia de dentes de políticos passa longe de uma reparação, e sim um projeto mais do que direto de higienização social, a fim de deixar o Brasil um país de brancos - o mesmo país que era originalmente povoado por índios e não por brancos, mas tá bom.


A premissa do roteiro é mais do que instigante - é difícil ler a sinopse e não querer sentar pelos 103 minutos a fim de saber como essa distopia se desenrolará, principalmente quando é comparada com fenômenos midiáticos como a série "Black Mirror" (2011-) e o vencedor do Oscar "Parasita" (2019). E é aqui que se inicia o grande "porém" de "Medida Provisória". Confesso que não tinha total certeza se este era ou não o primeiro filme de Lázaro, afinal, sua carreira na tevê e cinema é vasta e o convite para sentar do outro lado da câmera já deveria ter acontecido mais cedo, mas sim, é a estreia do ator como diretor, e isso fica claríssimo durante quase todos os segundos de projeção.

Ultimamente ando com um debate interno (sem ainda grandes resoluções) sobre o papel do Cinema como arte social. Esse debate se inflamou após assistir a "Red Rocket" (2021), uma película que segue um personagem principal completamente asqueroso, todavia, sem um julgamento escancarado por parte da obra. Seria obrigação do Cinema uma exposição claríssima e sem resquícios de dúvidas sobre o bem e o mal? É dever do cineasta julgar atitudes problemáticas de seus próprios personagens, com o intuito de não fomentar na vida real pessoas como as da tela? Enquanto acho que deve haver responsabilidade na arte, também não vejo o Cinema como uma escola audiovisual. Onde então reside esse limiar? Qual a medida dessa balança? Sinceramente não sei.

Em "Medida Provisória", o efeito é o extremo oposto: é tudo tão exposto que se torna didático. Depois de um confuso primeiro ato, com milhares de informações jogadas de maneira desconexa, um eixo é encontrado quando a medida provisória do título é instaurada. A partir de então, a falta de maturidade na linguagem cinematográfica dos envolvidos fica latente quando essa linguagem é utilizada da forma mais básica possível.

Vamos voltar lá nos fundamentos do Cinema. O Cinema é chamado de "Sétima Arte" desde 1923 quando Ricciotto Canudo escreveu o "Manifesto da Sétima Arte", e isso se deu pelo Cinema unir todas as outras seis em uma só mídia: Pintura, Escultura, Música, Literatura, Dança e Arquitetura. E se formos entrar em cada elemento de cada uma dessas artes, o cinema tem uma infinidade de recursos para transmitir suas mensagens: são imagens, sons, cores, formas e transições que, juntas, criam sensações. Para resumir, o Cinema mostra, não diz.


Isso não quer dizer que os diálogos são supérfluos no Cinema, não é esse dizer - todos os filmes não precisam ser como "A Gangue" (2014), que não há um só diálogo ou legenda na tela, cunhado unicamente em imagens. O grande problema de "Medida Provisória" é a histriônica falta de sutileza: absolutamente tudo precisa ser dito detalhadamente ao invés de mostrado. Enquanto a duração corria pelo ecrã, pensava em "Bacurau" e como o brilhante roteiro falava tanta coisa sem deixar muitos pontos explícitos, como a valorização da história e da cultura em detrimento da religião para o povo "gente" (denominação dada para quem nasce em Bacurau). O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles encontra o balanceamento entre o que precisa ser dito e o que deve ser mostrado, e isso é conseguido a partir da maturidade semiótica da arte que é o Cinema, algo que falta em "Medida Provisória".

Talvez o exemplo mais cristalino dessa falta de domínio cinematográfico está na sequência em que um personagem branco e um personagem negro são assassinados ao mesmo tempo. Quando se utiliza de um dos elementos mais poderosos da linguagem fílmica, a montagem, o filme cai em uma ambiguidade que não soa muito certeira: enquanto uma das mortes é uma reação, a outra é puro ódio, então como colocar ambas em um mesmo patamar?

A principal trama da fita está no fato de que os policiais não podem entrar nas casas das pessoas pretas, tendo que capturá-las para o exílio somente nas ruas. O protagonismo do filme se divide entre três personagens: o advogado Antônio (Alfred Enoch, sim, o Dean Thomas da franquia "Harry Potter", 2001-11) e seu primo André (Seu Jorge) estão escondidos em casa enquanto Capitú (Taís Araújo), esposa de Antônio, foge do hospital em que trabalha e para em um "afrobunker", esconderijo de pessoas pretas que criam um movimento contra a "devolução". A separação da família, que não sabe do paradeiro um do outro, é o cerne da trama, enquanto o país entra no caos da caça de pessoas pretas.


Tirando esses três personagens, todos os outros sofrem de uma pobreza de desenvolvimento terrível, como a Isabel de Adriana Esteves, uma Dolores Umbridge que tem receio de falar que gosta de café preto. E claro que não poderia faltar a vizinha branca que diz que já sofreu """racismo""" pelo seu cabelo e que adora pessoas pretas, a empregada dela é até uma; e o diálogo de "nossa como eu queria ter a pele negra", já que é muito legal """querer""" ser preto até sofrer tudo o que eles passam, não é mesmo?

No entanto, é inegável a importância de toda a mensagem, por mais mastigada que ela seja. Me pergunto (com uma leve certeza) se essa mensagem vai atingir quem deveria atingir, afinal, a massa reacionária vai evitar ferrenhamente qualquer aproximação com a obra. Indiferentemente, por mais cansativo que ainda seja para pessoas pretas falarem de racismo (2022, pelo amor de deus), enquanto houver a necessidade, a mensagem deve ser dita para todos os lados.

A importância de uma obra como "Medida Provisória" não dá para ser contestada, principalmente no Brasil atual, afogado com conservadorismo, fascismo e opressões. Contudo, o Cinema como arte não sobrevive de boas intenções, e o roteiro aqui tritura sua mensagem de forma tão forte, a fim de facilitar ao máximo a assimilação das massas, que enfraquece o impacto de algo que poderia ser enorme. São frases de efeito e poemas que anulam a naturalidade e que amainam o que poderia ser um dos melhores filmes do ano. De qualquer forma, é lindo ver salas de cinema lotadas com um longa tupiniquim que discute o racismo, porém, quando há uma cena em que o Emicida tira das mãos de um personagem uma arma e entrega pra ele um livro, foi a confirmação da imensa falta de sutileza de um roteiro digno do Quebrando o Tabu.

Crítica: “A Nuvem Rosa” previu a pandemia em seu (sensacional) estudo do distanciamento social

Existem certas coincidências que são assustadoras demais para serem verdade - e quando envolvem a corrente pandemia, se tornam ainda maiores. Lembro bem quando, no primeiro semestre de 2020, a Netflix lançou "O Poço" (2019), um filme sobre a equidade de recursos e como somos egoístas nessa coisa doida chamada "sobrevivência". A película espanhola refletia bem a loucura em supermercados e a falta de produtos pela compra desenfreada - álcool em gel mesmo, ninguém achava.
 

Pulamos para 2021. Em pleno mês de setembro do corrente ano, estamos caminhando para uma realidade menos caótica pelo avanço das vacinas (defenda o SUS), porém, a quarentena ainda é um fantasma mais que presente. No último dia 02, chegou nas plataformas de stream o filme "A Nuvem Rosa", longa de estreia de Iuli Gerbase. A primeira coisa que vemos sobre o filme, nos segundos iniciais, é um cartão informando que o roteiro foi finalizado em 2017 e as filmagens em 2019. "Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência". É raro vermos uma pontuação tão incisiva sobre um aspecto não-diegético, então por que aquela informação era tão vital para ser a abertura da obra?

A história se passa em algum presente ou futuro mais-do-que-próximo. Giovana (Renata de Lélis) é uma mulher que conhece Yago (Eduardo Mendonça) em uma festa e leva-o para passar a noite em sua casa (empoderadíssima, virei fã). Pela manhã, sirenes disparam ao redor da cidade, e os noticiários informam que nuvens tóxicas cores-de-rosa surgiram ao redor do mundo, matando quem entra em contato em apenas 10 segundos. A regra é fechar todas as portas e janelas e o que quer que dê acesso ao mundo externo, trancafiando todas as pessoas no lugar em que elas estiverem no momento - quem estava em casa, parabéns pela sorte.

Ali estava Giovana com Yago, um homem que ela conhece há menos de 24h. As primeiras reações são um misto de preocupação e frivolidade: por mais que eles levem a sério o que estava acontecendo, há uma latente impressão de "isso vai passar logo". E a partir de então, a câmera de Gerbase se instala claustrofobicamente dentro da casa de Giovana - mais uma fita para a lista de "filmes que se passam inteiramente em um só lugar".

A diretora foi bem esperta na tentativa de manter o espectador junto com os personagens naquela casa. Com exceção do rápido prólogo, não saímos das paredes da residência - até mesmo na cena em que Giovana conhece Yago, estamos afundados em um background escuro, sem conseguir visualizar o local da festa, apenas os personagens. Até esquecemos que um dia aqueles dois sentiram a brisa de uma rajada de vento.

Então, estranhamente, "A Nuvem Rosa" "previu" a pandemia. A distopia natural, no entanto, vai para caminhos que fogem da obviedade fomentada pela premissa. Ao contrário de nomes como "Contágio" (2011, que também se aproxima demais do nosso real) e qualquer longa que se baseia em algum tipo de "fim do mundo", "A Nuvem Rosa" não está tão interessado em estudar o que acontece do lado de fora das paredes de Giovana, focando quase que inteiramente na relação forçada dos dois protagonistas.


Em um momento, Giovana fala que ela e Yago são como um "casal indiano" que se conhece apenas no dia do casamento e devem aprender a conviver um com o outro a partir dali. Esse é o cerne da fita. Banhados por uma áurea rosa emanada pelas nuvens, os dois, que começaram como um lance de fim de noite, mantêm a relação que não estava prevista - e muito é questionado a partir disso. Quando o tempo vai passando e as nuvens não dão sinal de desistência, a situação fica mais precária.

Aqui também está uma das melhores escolhas técnicas e narrativas do filme, a maneira que ele cria as elipses temporais da história. Não há sinais cronológicos diretos de quanto tempo eles estão ali, explorados pelas mudanças físicas dos protagonistas, como o crescimento dos cabelos e da barba de Yago. No começo pode parecer um pouco estranho navegar pelo enredo sem uma bússola temporal, todavia, embarcamos sem problemas quando percebemos qual foi a estratégia selecionada por Gerbase, executada com êxito a partir da montagem certeira.

O primeiro grande estudo do roteiro é a convivência forçada. Giovana e Yago funcionavam muito bem nos primeiros tempos de quarentena, tendo o trabalho (agora home-office) para distrair e fugir da monotonia da rotina, porém, estar 24h por dia ao lado de alguém que você não escolheu se torna um peso cada vez mais difícil de ser carregado.


Giovana com frequência se comunica com amigos e parentes por meio de chamadas de vídeo. Sua irmã mais nova estava na casa de uma amiga quando a nuvem surgiu, estando lá desde então. Uma amiga está sozinha no apartamento depois que o namorado foi à uma padaria no momento que desencadeia a história, prendendo-o lá. Sua saúde mental vai degringolando pela ausência de contato humano, correndo em busca de válvulas de escape que se mostram inúteis, como a compra de um cachorro-robô.

É então entramos no segundo grande estudo do texto, o contato físico. O talo, a pele. Com as relações cortadas com Yago, ele e a protagonista desenrolam estratégias para suprir o desejo sexual - ele através de sexo virtual; ela, por meio de um vizinho de janela. Se ali a coisa não é tão ortodoxa, há situações bem piores: a irmã mais nova liga para Giovana e diz que o pai da amiga engravidou duas outras garotas que também estão lá desde o incidente da nuvem. Sim, o pai engravidou as amigas (menores de idade) da filha - esse momento me recordou "Miss Violência" (2013), uma referência bem-vinda.

E, para o espanto de ninguém, Giovana acaba grávida de Yago - um "bebê da pandemia". A chegada da criança é um ótimo elemento de elipse temporal, com o público podendo mensurar com mais precisão a passagem do tempo - e somos engolidos pelo crescimento da criança e a certeza de que eles continuarão presos ali. É triste pensar que o menino jamais pisou os pés fora daquela casa.


A maior previsão da obra, que deixaria Nostradamus abismado, é a galera que celebra a nuvem. Temos vídeos de youtubers falando como o conjunto de gás tóxico colorido do lado de fora na verdade é uma bênção, vinda para ensinarmos a vivermos de forma melhor. Coatches se aproveitam para vender estilos de vidas vitoriosos, independente da ameaça mortal ao lado da janela. Soa familiar? É o desgosto absoluto.

Com a depressão afogando Giovana, ela ganha de aniversário um óculos de realidade virtual. O presente é um ponto de virada na relação de todo mundo, pois a mulher acaba se perdendo naquela realidade artificial criada pelo óculos - no melhor estilo "Black Mirror" (2011-). Ela vai se distanciando cada vez mais da família para "viver" qualquer simulação dada pelo VR, chegando a espalhar areia em um quarto para se sentir ainda mais em uma praia. Ela anda pela casa de maiô e só interage com alguém nos rápidos momentos em que está fora da praia de led.

Uma das escolhas feitas pelo roteiro pode ser uma faca de dois gumes: raramente temos conhecimento de como está funcionando o mundo exterior. Não sabemos como está o governo, as autoridades e qualquer tipo de poder institucional que reja aquele Brasil, e isso é uma decisão correta. Não interessa os comos e os porquês da nuvem e das configurações que se iniciaram a partir dela - e, curiosamente, por estarmos dentro de uma realidade parecida, a falta dos porquês não é uma deficiência, pelo contrário. Sabemos muito bem como é estar ali - por mais que tenhamos mais liberdade de ir e vir que Giovana e Yago.

Com um final igual um acidente que vemos acontecer, mas podemos fazer nada acerca, "A Nuvem Rosa" fortalece uma veia grossa do novíssimo cinema nacional, a extrapolação criativa de enredos que hiperbolizam nossa realidade a fim de estudá-la e criticá-la - como "As Boas Maneiras" (2017), "Bacurau" (2019), "Trabalhar Cansa" (2011) e "Divino Amor" (2019). Essa veia contraposta o estilo mais clássico da nossa indústria, o "cinema verdade" ("Aquarius", 2016; "Que Horas Ela Volta?", 2015; "Tropa de Elite", 2007; "Temporada", 2018; etc), e não quer fincar as unhas no crível, pelo contrário, almejando desenvolvimentos mais fantasiosos que (absurdamente) soam mais do que reais - e a explanação de "A Nuvem Rosa" sobre o "novo normal" é um espelho desconfortável de ser encarado.

Crítica: “Casa de Antiguidades” frustra quando não atinge seu potencial de resistência


Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

O principal nome brasileiro na Mostra de Cinema de São Paulo é "Casa de Antiguidades", estreia do diretor João Paulo Miranda Maria. O longa foi escolhido para a seleção do Festival de Cannes 2020 - que veio a ser cancelado por conta da pandemia -, angariando ainda mais atenção ao redor da obra, um dos fortes nomes nacionais para a representação do país na categoria "Melhor Filme Internacional" no Oscar 2021.

A obra é estrelada por Antônio Pitanga no papel de Cristóvão, um idoso trabalhador que saiu do Goiás para uma fábrica de leite em uma colônia alemã do sul. A escolha do ator, por si só, é emblemática. Pai da também atriz Camila Pitanga, Antônio é um dos maiores nomes no Cinema Novo brasileiro, internacionalmente conhecido pelos trabalhos ao lado de Glauber Rocha, Anselmo Duarte e Cacá Diegues. Cristóvão é o primeiro papel do ator em quase uma década, e sua retomada é um acerto não apenas em termos de técnica performática, mas também como misticismo ao redor de sua pessoa.


Uma das primeiras cenas é o personagem conversando com seu chefe. O patrão, dono da fábrica, fala majoritariamente em alemão e diz como, mesmo estando há anos no local, Cristóvão terá o salário reduzido graças à "crise". "Ele é preto e velho, onde acharia algo melhor que isso?", diz o presidente do local para a secretária, que não traduz a fala. Só o público é cúmplice do que real está acontecendo ali.

A vida de Cristóvão do lado de fora da fábrica é bastante solitária. Ele não pega o ônibus para voltar para casa, preferindo ir a pé (os motivos ficam na mente do público). Em casa, sua única companhia é um cachorro com três patas, que é torturado por um grupo de crianças empenhado em infernizar a vida do homem. Em meio a tanta turbulência, uma casa abandonada próxima à sua começa a manifestar objetos que não estavam previamente ali, e acaba se tornando uma segunda casa para Cristóvão.

"Casa de Antiguidades" remonta algumas características presentes no Cinema Novo, como a fusão entre o cultural e o espacial - lembra do drone em formato de nave em "Bacurau" (2019)?, pois é, mesma coisa. A roupa de trabalho de Cristóvão mais parece um traje de astronauta, e, divertidamente, há referências charmosas ao redor da construção imagética, como no momento em que o protagonista observa uma máquina da fábrica com brilhantes luzes vermelhas que refletem em seu "capacete" como em "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968). Essa dicotomia visual é o primeiro elemento da mistura entre o "real" e a "fantasia" que permeia a atmosfera da sessão. 

E, assim como "Bacurau", "Casa de Antiguidades" tem como base textual um câncer da sociedade brasileira: o racismo. Cristóvão está no seio de um movimento separatista, que deseja retirar a "Região Sul" (entre aspas porque, malandramente, o movimento puxa São Paulo no bolo) do resto do país com o argumento de que o "Norte" atrasa a nação pela sua ignorância e corrupção. A coisa é tão absurda que a reunião que evoca com bravura o amor à pátria sulista é feita em alemão. O palanque que Hitler usava nos anos 40 deve estar orgulhoso.

O protagonista assiste a tudo sem entender uma palavra, claro, e é coagido a assinar um abaixo-assinado defendendo a independência da região. Ele, também, ganha uma camisa com a bandeira do "novo país", que é rasgada para servir de curativo para o pobre cachorro. Cristóvão se sente um verdadeiro alienígena em meio àquelas pessoas - seja pela sua cor ou pela sua língua. Todavia, ele não abaixa a cabeça, mesmo sufocado com a uma pressão cultural da maioria. Durante uma cantoria alemã, ele levanta o berrante e interrompe a celebração. Aqui é Brasil, meu irmão.


"Casa de Antiguidades" é um filme marcado pelo silêncio. Cristóvão se deixa sumir em meio às suas memórias, emoções e solidão, já condicionado a saber que sua existência naquele lugar é daquela forma. A tal casa, com os objetos que magicamente aparecem, acaba sendo uma extensão de sua própria consciência, produzindo artefatos que, de alguma forma, se conectam com a história do protagonista. 

Até aqui, a fita demonstrava bastante poder perante as temáticas escolhidas, principalmente pelo seu aspecto folclórico (o Brasil é rico demais em lendas e mitos, sendo terreno fértil para o Cinema), porém, a partir do momento em que a casa é explorada com mais profundidade, a narrativa começa a se perder. Várias tramas são abertas e esquecidas pelo caminho ou não finalizadas com relevância - como toda a situação da mulher no bar, ou as crianças que atormentam o protagonista, ou a própria fábrica e o movimento separatista. Até mesmo a relação do achado do protagonista com a casa não é tão explicada - ela simplesmente está lá.

Vamos descendo por um buraco onírico cada vez que Cristóvão vai achando algo da casa - como o pôster e a pintura rupestre por baixo de um xingamento pichado na parede. Dá para entender muito bem o que está acontecendo - como na sequência em que ele se transforma em um boi -, no entanto, muitos porquês não existem. Lá pela metade da película, deixei de tentar manter uma linha de raciocínio e simplesmente embarcar na viagem do filme e observar quais caminhos ele me levaria - e o trajeto foi se tornando cada vez menos motivador.

"Casa de Antiguidades" é um dos tipos de filmes mais frustrantes que existem: aqueles que almejam ser desvendados e não produzem uma vontade no espectador de tentar entender. É desapontador uma obra trazer tantos pontos de discussões urgentes e sabermos que eles poderiam ter um impacto muito maior. Por exemplo, há várias pichações com o malfadado número 17 na mesma casa que é usada como ameaça para Cristóvão, um símbolo de resistência contra o fascismo que poderia ter uma voz muito mais incisiva com escolhas mais coesas nesse trabalho que, apesar dos muitos méritos, não é sólido o suficiente para ser memorável. Agrega no Novíssimo Cinema Brasileiro, que põe o dedo nas mazelas contemporâneas (como "Que Horas Ela Volta?", 2015; "As Boas Maneiras", 2017; e "Temporada", 2018), mas não se destaca à altura do potencial.


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Listas: os 10 melhores filmes brasileiros da década

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) escolheu para a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2019 o tema "a democratização do acesso ao cinema do Brasil". Quando divulgada, no último domingo (03), achei incrível, não apenas por ter o Cinema como principal interesse da minha vida, mas por ter sido uma escolha corajosa. Há meses, o atual governo brasileiro tenta sucatear o viés cultural do país, suspendendo o repasse de verbas para a Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Então, o tema foi político. O que me surpreendeu foi a avalanche de comentários contra o tema, que foi chamado de "inútil", "desnecessário" e até "elitista". Não dá para fingir que o Cinema seja uma arte absolutamente abrangente (aliás, alguma arte é?), contudo, é exatamente por isso que é importante discutir meios de democratizar seu acesso. Em um estado social que vê a cultura como elemento descartável, deixa de ser importante para ser urgente - e temos que fazer nossa parte enquanto cidadãos em valorizá-la, enquanto público em consumi-la, enquanto profissionais em analisá-la (você pode acompanhar tudo o que escrevemos sobre o cinema nacional clicando na tag).

Aproveitando as discussões ao redor da temática, decidi abrir minhas listas de melhores da década escolhendo os 10 maiores filmes brasileiros do período. Nosso cinema ainda reside envolto de muito preconceito, visto como ruim ou de baixa qualidade, o que é um absurdo sem tamanho. E, melhor ainda, vimos na atual década um ressurgimento da nossa indústria, um movimento que chamamos de "novíssimo cinema nacional". Estamos, sim, ainda longe de possuímos uma consolidada indústria - a massiva reação negativa com o tema do ENEM é um dos reflexos -, contudo, tivemos pelo menos uma obra grande o suficiente para figurar nas listas de melhores do planeta. O cinema tupiniquim é incrível, necessário e, acima de tudo, político e resistente. Valorizá-lo nunca foi tão crucial.


10. A Vida Invisível

Direção de Karim Aïnouz, 2019.
O último escolhido da década para representar o Brasil no Oscar (que não vê indicação nossa há décadas) segue duas irmãs que são separadas pela união de homens. "A Vida Invisível" nos leva até os anos 50 com um estudo bastante detalhado das formas nefastas de atuação do patriarcado, que silencia e invisibiliza a existência feminina. Se por um lado é deprimente ver como o corpo social masculino continua o mesmo mais de meio século depois, podemos manter as esperanças quando tantas conquistas foram asseguradas pelo feminismo. "A Vida Invisível" nos lembra o quanto devemos às mulheres.

9. Aquarius

Direção de Kleber Mendonça Filho, 2016.
O selecionado moral do Brasil ao Oscar 2017, "Aquarius" é uma dos maiores (e melhores) representantes do nosso cinema para o mundo. Liderado por uma atuação antológica de Sonia Braga, o embate principal de Clara e a construtora é por si só fascinante, mas "Aquarius" possui subtramas belíssimas como 1 sexualidade 2 feminina 3 pós-câncer na 4 velhice, debatendo sobre o resgate de memória e a luta do velho vs. novo. E o que falar de uma das melhores cenas finais da nossa história? "Aquarius" é igual Maria Bethânia. Intenso.

8. Trabalhar Cansa

Direção de Juliana Rojas & Marco Dutra, 2011.
Dirigido por dois dos melhores diretores brasileiros contemporâneos, "Trabalhar Cansa" é um retrato cinematograficamente potente da classe média com apropriações inteligentes do terror, elementos primordiais para o sucesso desse clássico absoluto - inclusive já virou praxe dentro do cinema de Rojas e Dutra, vide "As Boas Maneiras" (2018), que quase entra nessa lista. Com cenas bizarras e construções homeopáticas da sensação de que há algo muito errado ali, o verdadeiro protagonista de "Trabalhar Cansa" é o bendito mercado erguido sobre um prédio infectado. E sua doença se espalha rapidamente.

7. Tropa de Elite 2: o Inimigo Agora é Outro

Direção de José Padilha, 2010.
"Tropa de Elite" é, sem muito quebrar cabeça, o filme mais famoso do nosso país - talvez de todos os tempos. Alguém já esqueceu da loucura que foi quando as cópias piradas se alastraram pelos quatro cantos do Brasil antes mesmo do filme chegar - com sucesso - aos cinemas? Se o primeiro se manteve pelo boca a boca, "Tropa de Elite 2" se mantém pela altíssima qualidade. Muito mais que a polêmica com a violência policial, "O Inimigo Agora é Outro" eleva sua história num patamar bem acima ao trazer um retrato quase documental da complexa e preocupante realidade do Rio de Janeiro, uma ponta do iceberg em solo nacional. Aquele traveling do tribunal é a prova irrefutável de sua expertise.

6. Aos Teus Olhos

Direção de Carolina Jabor, 2017.
"Aos Teus Olhos" é um acerto atual que se utiliza de tratamento quase documental em sua ficção e supera os rótulos de "bem feito", "boas atuações" ou "ótima trilha sonora" pra entrar na esfera do debate, função seminal da Sétima Arte quando estuda um boato levado à uma proporção inimaginável. No momento em que as opiniões das pessoas se tornam notícias e, consequentemente, verdades, estamos com legítimas armas em formato de smartphones, e só conseguiremos manter uma internet responsável quando aprendermos que o linchamento virtual e a externalização de ódios via mensagens instantâneas são a apoteose do mau uso das novas tecnologias. Tão próximo da gente, tão nosso dia a dia que assombra.

5. Boi Neon

Direção de Gabriel Mascaro, 2015.
Enterrando-nos no complexo interior nordestino, transitamos de forma bastante sensível pela vida dos personagens que, por si só, são quebras absolutas de arquétipos. O protagonista é vaqueiro, mas seu sonho é ser estilista. O diretor/roteirista já remonta sentidos e foge do senso comum - o personagem é hétero. Quem dirige o caminhão da turma não é um dos peões, e sim Galega. E ainda temos uma garotinha fora da forma de bolo "princesa" e uma grávida com dois empregos. São sutilezas e pequenos detalhes que desconstroem um meio ainda tão precário em algo mais compatível com as demandas sociais da nossa atualidade, retratando de forma neon uma região sempre mostrada em preto & branco.

4. O Lobo Atrás da Porta

Direção de Fernando Coimbra, 2013.
Devo contar a minha experiência ao assistir "O Lobo Atrás da Porta": não sabia que se tratava de um filme baseado em fatos, mais especialmente na "Fera da Penha", crime que também não conhecia. Tudo isso teve um impacto ainda maior na sessão pela maneira que a película amarra as pontas soltas do mistério, numa construção social fidedigna nessa obra-prima poderosíssima. Com algumas das cenas mais revoltantes que dos últimos tempos no cenário tupiniquim, essa ode ao cinema nacional trata de assuntos sérios como o aborto e o machismo e ainda traz Leandra Leal no melhor momento da carreira.

3. Divino Amor

Direção de Gabriel Mascaro, 2019.
O Brasil do futuro é um cabaré gospel com música eletrônica e luzes neon, segundo o metafórico e latente "Divino Amor": a religião evangélica virou a nova constituição e é a base da lei e dos costumes do povo. O ethos construído pelo roteiro une o conservadorismo hipócrita com os pecados da carne, vendo o fundamentalismo não ter vergonha ao se arvorar do bacanal como veículo de encontro com deus. Num país que parece não haver regras, justiça e equidade, sob o lema "deus acima de tudo", o bordel sagrado (e bizarro) de "Divino Amor" soa preocupantemente plausível.

2. Bacurau

Direção de Kleber Mendonça Filho & Juliano Dornelles, 2019.
Um marco histórico na cultura nacional, vendo o Brasil pela primeira vez levar o "Prêmio do Juri" no Festival de Cannes, "Bacurau" é uma dádiva que levanta a mão e grita "o cinema nacional resiste". E mais ainda: o cinema nordestino - que parece ser o polo principal da indústria contemporânea brasileira. Pondo seu local geográfico no protagonismo, é a terra que faz brotar o mandacaru que sabe onde estão os valores mais importantes de uma sociedade, e que não tem medo de descer a peixeira em quem tenta oprimi-la ou apagá-la. No faroeste psicodélico e distópico de "Bacurau", o Nordeste não vai pensar duas vezes antes de cair na capoeira, então não se meta.

1. Que Horas Ela Volta?

Direção de Anna Muylaert, 2015.
A maior obra-prima do nosso cinema nessa década e pilar central dos novos rumos que viriam a seguir, "Que Horas Ela Volta?" transcende a barreira regional para entrar no panteão internacional ao unir uma história que tanto reflete as rachaduras da nossa sociedade quanto universaliza seus dramas. Carregado por uma louvável atuação de Regina Casé, que não assustaria caso fosse indicada ao Oscar, a obra escancara nossa cultura da servidão ao jogar com papéis hierárquicos e como devemos urgentemente rever a existência do quartinho da empregada, reclusa nos corredores da casa grande. Jessica, conte conosco para tudo.

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E só para reforçar:

Crítica: “A Vida Invisível”, nosso representante ao Oscar, e o patriarcado tropical do dia a dia

Foi uma agradabilíssima surpresa quando "A Vida Invisível" venceu o prêmio de "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar" do Festival de Cannes 2019, acompanhando a vitória de "Bacurau" (2019) na competição principal, que levou o Prêmio do Júri. A vitória de dois filmes brasileiros numa mesma edição é reflexo da fase atual que nosso cinema vive – não por acaso, os dois foram os principais na disputa para a seleção do Oscar 2020 de “Melhor Filme Internacional” (o antigo “Filme Estrangeiro”).

"A Vida Invisível" é o primeiro longa brasileiro a vencer a "Um Certo Olhar", que só nos últimos tempos viu como ganhadores diversas obras-primas, como "Dente Canino" (2009), "Depois de Lúcia" (2012), "A Ovelha Negra" (2015), "Um Homem Íntegro" (2017) e "Fronteira" (2018). Mais uma honraria em seu currículo foi a escolha do filme para nos representar no Oscar, em uma acirrada disputa: “A Vida Invisível” foi o escolhido por um voto de diferença de “Bacurau”.

É necessário compreender que, se tratando do Oscar, as escolhas são feitas como uma campanha política. Vence quem melhor vender seu trabalho, não o melhor trabalho em si. Por isso, “A Vida Invisível” foi uma escolha muito acertada, mesmo não sendo o melhor filme nacional do ano. Os motivos são vários, porém destaco três pontos importantes.

O primeiro é que “Bacurau” possui um plot que coloca norte-americanos em posições bastante controversas para a Academia – imagine os votantes vendo gringos da forma que foram expostos no filme (não darei spoilers acerca). O segundo é que a história de “A Vida Invisível” é de mais fácil digestão por focar no melodrama, à la Pedro Almodóvar – e melodrama faz a Academia tremer na base. O terceiro é que a obra tem Fernanda Montenegro no elenco, a única atriz brasileira a ser indicada ao Oscar em toda a história, ou seja, é figura familiar. Depois da desastrosa escolha de “O Grande Circo Místico” (2018) na última edição, é para respirar aliviado ter um selecionado à altura da qualidade do cinema tupiniquim.

“A Vida Invisível” entra na intimidade de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), no Rio de Janeiro da década de 50 - curiosidade: assisti ao filme em companhia do diretor Karim Aïnouz e ele disse que o título foi alterado de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", o nome do livro de Martha Batalha que inspirou o filme, para o atual por focar na vida de inúmeras mulheres invisibilizadas, não apenas na de Eurídice (e que seu título internacional favorito é o da Alemanha, "A Saudade das Irmãs Eurídice e Guida"). Filhas de imigrantes portugueses, as garotas são pesadamente reprimidas pelos pais, e desde o início demonstram as dinâmicas diante da repressão: enquanto Guida faz de tudo para burlar as rígidas regras do pai, Manuel (interpretado por Antônio Fonseca), Eurídice se molda de acordo com as leis paternas.


Guida se esgueira para cair na noite com seu namorado grego, e foge com ele sem aviso, para o desespero de Eurídice e a vergonha do pai. O evento é decisivo na vida de todos da família. Sem o apoio da rebelde irmã, Eurídice dança ainda mais conforme a música, aceitando o casamento arranjado com Antenor (Gregorio Duvivier), sem nunca ter visto o homem despido. Ela recebe, de uma amiga, dicas do que seria a noite de núpcias, mas nada a prepararia para um sexo tão brutal de um homem que via a esposa apenas como máquina de prazer particular - a sequência é proposital e corretamente horrível. Ela nem resiste, tão condicionada a obedecer o que viria de qualquer homem.

Enquanto isso, Guida volta da Grécia grávida e sem marido – a relação com o namorado acabara tão rápido como começara. Uma mulher fugida que retorna prenha e descasada era o que havia de mais humilhante para a imagem de uma família, e Manuel expulsa a filha de casa aos berros. Guida só queria saber de uma coisa, onde estava a irmã. O pai mente: Eurídice, exímia pianista, teria ido estudar em Viena. Ir até a Áustria se tornara, então, o objetivo de Guida.

A dinâmica do filme se torna essa: o pai mentindo para as duas irmãs. Eurídice imagina uma vida ensolarada nas praias da Grécia para Guida e Guida escreve sobre como Eurídice deve estar ocupada sendo uma famosa pianista e dando autógrafos aos europeus. A realidade é que ambas estão na mesma cidade. É deprimente ver como as irmãs projetam uma realidade para a outra que, a cada dia, mais impossível fica graças ao patriarcado. A película, maliciosamente, introduz uma cena em que as duas por pouquíssimo não se esbarram, gerando genuína tensão na plateia, ansiosa para o enfim reencontro das duas, que vão embora sem imaginar que a irmã estivera ali momentos antes. É astuto, então, lembrar da primeiríssima cena, onde as irmãs se perdem em uma floresta e, mesmo gritando o nome uma da outra, jamais conseguem se reunir, uma metáfora visual da trama.

Guida inicialmente decide abandonar o bebê recém-nascido, mas muda de ideia e resgata a criança quando conhece Filomena (Bárbara Santos, que também estava conosco na sessão), uma poderosa mulher negra que a acolhe como filha. Há uma forte ligação entre as duas através da sororidade, e Filomena é uma revolucionária em meados do séc. XX quando Guida noite após noite procura o homem da sua vida e ela responde com um esperto "A gente não precisa de homem para nos divertimos!".


Já Eurídice evita veementemente engravidar, pois isso atrapalharia o caminho rumo ao estrelato no piano. Antenor, em contrapartida, não dá a mínima, e a mulher acaba engravidando. O roteiro finca suas garras em um lado feminino até hoje repudiado: quando a mulher deliberadamente não quer ser mãe em prol de sua carreira. Para Eurídice, isso era inapropriado, com a família sendo o que há de mais importante na vida feminina. Rejeitar a maternidade era um crime. Ou ainda é? A personagem sofre um enorme baque ao ver seu sonho escorrer pelos seus dedos com uma criança indesejada por vir e a censura de todos os machos ao seu redor em relação ao seu sonho.

"Você não se importa com seu marido? Com sua família?", questiona Antenor. "Ele está completamente certo", acrescenta Manuel. E assim segue a vida de Eurídice, esbofeteada constantemente pela mão fantasmagórica do machismo. Talvez o viés mais afiado dentro do filme é o lado sexual de sua protagonista: para ela, o sexo é uma ferramenta de adestramento do marido, nunca um ato de prazer. Em uma emblemática cena, Antenor deseja transar em cima do piano da esposa enquanto ela toca, e ela insistentemente sugere o sofá. Ela não faz isso porque anseia a interação, e sim para que o marido não destrua o piano. Ela quer salvar o que lhe é mais caro e usa o sexo para isso.

A obra executa um belíssimo (e preocupante) estudo acerca do matrimônio. As mulheres são, há séculos, ensinadas desde sempre a perseguirem o casamento, a tábula de salvação de suas vidas. Os homens, é claro, não são educados com os mesmos fins. De uma forma bem aberta, o casamento nas lentes do filme é um contrato capitalista, pois estamos falando de relação de posse. O amor romântico existe para aprisionar as pessoas em regras egoístas que as tornam objetos, principalmente em relação a mulher - contudo, o patriarcado não é benéfico nem mesmo para o homem. Como se não bastasse, todas essas obrigações sociais são pintadas como um mar de rosas. Eurídice, no presente, ouve um "Foram 67 anos de casamento, que bonito!" do filho, e ela (e nós) sabemos que houve nada belo vindo dali; a protagonista penou naquele relacionamento infeliz, incapaz de quebrar suas correntes. Quem nunca viu o casamento dos avós com décadas adentro virando o exemplo de relação perfeita, sem saber das agressões que aconteceram por trás dos sorrisos fotográficos?

Majoritariamente passado na década de 50 - apenas as duas últimas cenas ocorrem no presente -, por mais desconfortável que seja a realidade daquelas mulheres, é um alívio ver como a vida feminina conseguiu mais direitos e liberdades 60 anos depois. O roteiro passeia por várias situações que exemplificam como o corpo feminino é subserviente ao homem - Guida não pode tirar o passaporte sem a permissão do marido que não existe -, e dá para ficar esperançoso em relação aos ritmos das conquistas feministas, porém, por outro lado, o homem continua igual mais de meio século depois. Aquele Antenor é o retrato fiel de tantos e tantos homens que fazem o Brasil ser o quinto país no ranking de feminicídios. "A Vida Invisível" não leva os atos às últimas consequências, mas é um filme sutilmente violento.

Aïnouz, após a sessão e os aplausos, falou que a película não se tratava de um filme feminista, mas sim uma obra contra o machismo, e essa é uma boa definição. Aquele microuniverso de classe média, de renegação social, de pobreza e marginalização, emula tantas e tantas histórias de resistência que qualquer um pode se sentir envolvido. Forte quando foca nas intimidações do patriarcado e emocionante quando entra no amor incondicional de duas irmãs que se separam graças à maquiavélica união de homens, "A Vida Invisível" é, além de sensacional exemplo do nosso majestoso cinema nacional no Oscar, um garboso melodrama que se torna um documento da nossa sociedade que deve, e muito, à vida feminina. Ter como uma das últimas cenas o rosto de Fernanda Montenegro afogada em saudade é lindo demais.

Crítica: “Bacurau” e um Nordeste que não pensa duas vezes antes de meter a peixeira

Atenção: a crítica contém spoilers.

O Festival de Cannes 2019 foi um evento histórico para o cinema brasileiro; três diretores levaram prêmios na disputa: Karim Aïnouz com "A Vida Invisível" (o representante nacional para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional"), levando "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar"; e Juliano Dornelles & Kleber Mendonça Filho com "Bacurau", o primeiro tupiniquim a ganhar o Prêmio do Júri na história. Qual a semelhança entre os três? São todos nordestinos - Aïnouz é cearense enquanto a dupla Dornelles & KMF são pernambucanos.

"Bacurau" é o primeiro deles a estrear em solo brasileiro. Bacurau é um vilarejo nos confins do interior de Pernambuco. Teresa (Bárbara Colen) chega para o enterro da matriarca da cidade, ponto de virada no destino daquelas pessoas, coincidentemente ou não. Mas antes mesmo de dirigirmos pelas estradas de terra batida que nos levam a Bacurau, o longa começa bem distante, no espaço. Os créditos iniciais, ao som de "Não Identificado" na voz de Gal Costa, passeia pelas estrelas até focar no globo terrestre.

Nesse balé espacial, a câmera passa sem pudores por um satélite, flutuando despreocupadamente no que parece ser o céu acima do continental Brasil. Ao nos jogarmos no solo, o choque é gritante: demorei a conseguir por os pés no filme quando não entendia a relação de uma abertura tão contrastante com o meio em que a história se passa. Um letreiro avisa: estamos em um futuro próximo. As discrepâncias são propositais.

A própria música que nos dá boas-vindas já ilustra o que está por vir: "Minha paixão há de brilhar na noite no céu de uma cidade do interior como um objeto não identificado". A tecnologia dissonante está presente na vida dos habitantes de Bacurau, que estranham quando o vilarejo simplesmente some do mapa (literalmente): ao abrir um Google Maps da vida, não há rastro de Bacurau. Logo depois, os sinais de celulares caem misteriosamente, o caminhão pipa que abastece a população é baleado e pessoas começam a surgir assassinadas. E muito bom lembrar que, enquanto Teresa se aproxima de Bacurau, passa por um caminhão recheado com caixões tombado na estrada. Prelúdio para desgraças maior do que esse?


O primeiro ato do filme é bem lento, atento em construir uma atmosfera que em momento nenhum dá uma amostra do que existe por trás de cada cacto do sertão, todavia, dá para sentir o gosto de que há algo macabro, esperando o momento certo de dar as caras. O acontecimento que abre o segundo ato é a chegada de dois motoqueiros, que estão fazendo trilha pelo sertão.

"Vocês vieram conhecer o museu?", questiona uma das moradoras aos forasteiros, que declinam. "Ah mas o museu é muito bom", joga outra, e os visitantes continuam negando o convite, que logo vão embora. A cena é deveras emblemática e importantíssima para entendermos o que "Bacurau" quer nos dizer por trás da superfície árida do ecrã. Pensemos: o que toda cidade do interior desse país tem como lugar turístico principal: uma igreja. Bacurau também tem uma igrejinha muito simpática, contudo, ela não funciona eclesiasticamente: foi transformada em um depósito.

Os moradores de Bacurau não convidam os visitantes a irem na igreja da padroeira da região, e sim para irem até o museu. Eles são enfáticos quando afirmam a belezura que é a casinha com objetos e fotos do local, então, o que está sendo dito aqui? Quando a igreja é fechada e o museu se torna a atração turística, Bacurau está nos dizendo que o que mais importa para eles não é a religião, e sim a história.

A alegoria, muito sutil, é o primeiro grande reforço da obra em enaltecer o que há de valoroso naquela realidade: a identidade de seu povo. No futuro, as pessoas abrem mão da fé para valorizar a memória acima de tudo, afinal, é ela que molda a cultura de um local - e particulariza sua gente. Os visitantes, ao declinarem o convite de conhecer o museu, estão, narrativamente, informando sobre o pouco interesse na história. Soa familiar?


A câmera se desgruda de Bacurau e segue os motoqueiros, que estão com um grupo de norte-americanos em uma casa igualmente no meio do nada. São eles os responsáveis por todas os infortúnios quando estão criando um caos gradativo para gerar pânico e, assim, matar todos os habitantes de Bacurau. A cena é grotesca pelos absurdos que são jogados na mesa: os americanos estão em uma missão, garantindo pontos por cada pessoa assassinada. Tudo soa ainda pior quando há dois brasileiros ajudando a empreitada, encabeçada por uma figura misteriosa que fala nos pontos nos ouvidos dos "caçadores" gringos.

Os brasileiros informam que estão ajudando os americanos porque são do sul do país, a região rica e imigrante. "Nós somos quase como vocês", diz um deles, para a gargalhada dos estrangeiros, que dizem que ambos não são brancos. O estudo da xenofobia não poderia ser mais direto: tanto os "opressores" quanto os "oprimidos" (que bizarramente auxiliam os "opressores") tratam o nordestino como animais para o abate, seres sub-humanos que podem ser exterminados como divertimento.

A partir daqui, "Bacurau", que vinha sendo um drama, abocanha elementos do suspense e terror, principalmente dos slashers - os filmes com assassinos sanguinários caçando suas vítimas. Com a sacada da pontuação por morte, transformando o macabro em um jogo, conseguimos lembrar desde "O Albergue" (2005) até "A Deusa da Vingança" (2016). E, é claro, quando os peões são pontos no tabuleiro, "Bacurau" é um faroeste legítimo, alucinante e que faz qualquer um pular da cadeira.

O tratamento é bem binarista: Dornelles e KMF não estão aqui para tecer complexos aparatos psicológicos para seus personagens enquanto indivíduos com diferentes antecedentes. Os gringos são ruins, os habitantes de Bacurau são vítimas, e é assim mesmo, preto no branco. O que sustenta - com folga - essa dicotomia é tanto o cuidado do roteiro ao expor seus acontecimentos quanto o contexto histórico e social que "Bacurau" encontra em seu lançamento. Nada é gratuito.


A prova da falta de gratuidades é a pluralidade do povo de Bacurau: tem desde médicos e prostitutas até assassinos de aluguel e rebeldes renegados. Em algum momento, todos possuem diferenças que os fazem lutar entre si mesmos, como facções dentro do vilarejo, contudo, diante do perigo externo, a rabugenta Domingas de Sônia Braga (perfeita) e o cangaceiro não-binário de Silvero Pereira (mais perfeito ainda) sentam no mesmo lado da trincheira.

O filme ressignifica o cangaço enquanto unidade disposta a lutar contra o medo. O avanço da tropa gringa é recebido com preparação, e é milagroso ver o local escolhido para refugiar o povo de Bacurau: é a escola que garante a proteção de todos. O simbolismo alegórico mais uma vez dá um tapa na cara quando escolhe estrategicamente suas interpretações quanto ao real, e Bacurau pode ser fictícia, mas é governada por um prefeito inútil que controla desde a liberdade quanto os recursos, dados em muitas vezes de maneira precária. Não poderia ser mais verdadeiro.

"Bacurau" está lado a lado do que, sem modéstias, chamo de "Santíssima Trindade do cinema nacional moderno": "Que Horas Ela Volta?" (2015) de Anna Muylaerte e "Divino Amor" (2019) do também nordestino Gabriel Mascaro. Os três, cada um com sua abordagem, estudam, criticam e expõem os impropérios e desigualdades do nosso país de maneira igualmente brilhante e extremamente necessárias enquanto caminhamos para uma realidade que parece ter a cultura como elemento desimportante. Juntos, as três obras-primas tupiniquins não apenas comprovam a qualidade do nosso cinema como evocam o espírito de mudanças nesse país tão plural e que tem tanto a melhorar.

Se o povo de Bacurau, o vilarejo, dá o sangue para manter sua identidade viva contra quaisquer ameaças, "Bacurau", o filme, é uma dádiva que levanta a mão e grita "o cinema nacional resiste". E mais ainda: o cinema nordestino - que parece ser o polo principal da indústria contemporânea brasileira. Pondo seu local geográfico no protagonismo, é a terra que faz brotar o mandacaru que sabe onde estão os valores mais importantes de uma sociedade, e que não tem medo de descer a peixeira em quem tenta oprimi-la ou apagá-la. No faroeste psicodélico e distópico de "Bacurau", o Nordeste não vai pensar duas vezes antes de cair na capoeira, então não se meta.

Crítica: “Morto Não Fala”, nosso “Invocação do Mal”, engrossa o mercado de terror nacional

Se o terror é um dos gêneros mais lucrativos em outros mercados, no Brasil é nicho. Ainda não temos uma cultura cinematográfica solidificada que foque na produção de nomes dentro do gênero, mas essa realidade está mudando. Estamos em meio a um boom de interesse da indústria pelo terror, e películas do gênero surgem cada dia mais, como "Um Ramo" (2007), "Trabalhar Cansa" (2011), "Quando Eu Era Vivo" (2014), "O Animal Cordial" (2018), "Virgens Acorrentadas" (2018) e "As Boas Maneiras" (2018) - e com certeza há mais, sem conseguir chegar na superfície das grandes distribuições.

Mesmo mesclando elementos do gênero ou indo com mais sede ao pote, ainda não tínhamos sido agraciados por um terror que esteja num patamar que o retire do puro Cinema B - o que há de mais comum, quando o horror cai na sátira ou trash, o que não é um demérito. Finalmente nossos problemas acabaram: "Morto Não Fala" está aqui para resolver essa questão.

Dirigido por Dennison Ramalho, com um currículo vasto dentro do gênero, o filme segue os passos de Stênio (Daniel de Oliveira, em mais uma boa performance para a carreira - vide "Aos Teus Olhos", (2018). Antes mesmo de o conhecermos enquanto pessoa, o conhecemos enquanto profissional: o homem é platonista noturno de um necrotério e possui o dom de falar com os mortos. Nas longas madrugadas de trabalho, ele conversa com os cadáveres, sabendo de suas histórias e quais os tortuosos caminhos os levaram até sua maca.


Obviamente, a fita não perde tempo tentando explicar como Stênio possui a habilidade, e isso não importa. Para minha surpresa, li diversos comentários cheios de reclamação sobre o filme não explanar isso, mas "O Sexto Sentido" (1999) por acaso dá a explicação de como o protagonista enxerga gente morta? Assim como na clara fonte de "Morto Não Fala", tal pontuação diminuiria o filme - não dá pra explicar de modo crível algo que é impossível. A suspensão da descrença é o mínimo que o filme pede.

No seio de uma grande metrópole, apesar de não ficar claro qual (me pareceu ser o Rio de Janeiro), o necrotério raramente está vazio. E, como terror nato, os mortos que chegam até Stênio não padeceram de causas naturais: ensanguentados e muitas vezes com partes faltando, o primeiro baque que abre as portas para o horror é a exposição dos corpos em ruínas, e a obra não poupa litros de sangue - o gore explícito pode revirar o estômago da plateia. As sequências com autópsias são fidedignas e conseguem arrepiar, aliando o body horror com o fantástico. É quase divertido acompanhar o protagonista dialogando com o cadáver enquanto costura sua caixa torácica.

Se é a violência que leva os defuntos até Stênio, o roteiro inteligentemente enfia suas garras no corpo social: a maioria dos mortos é negra, mais especificamente homens, marginalizados e periféricos. Vindouros de presídios, caídos por rivalidade de gangues ou por acidentes naturais sobre suas precárias moradias, "Morto Não Fala" vai à fundo da roda de extermínio que funciona no nosso país. Um deles, um homem que foi dedurado para a polícia, conta melancolicamente sobre sua árdua vida; o assassinato do pai realizado por ele mesmo e o irmão, visando proteger a mãe, vítima de abusos; e a forma como a miséria hereditária leva essas pessoas ao derradeiro fim. É como um vírus que delimita o prazo de validade dessa população.


Enquanto trabalha no corpo de um conhecido da região onde mora, Stênio descobre que sua esposa, Odete (Fabíula Nascimento, que aclamo sempre que aparece por aqui), está o traindo com o dono da venda da esquina, Jaime (Marco Ricca). Stênio então rapidamente levanta um plano: culpar Jaime pela morte do homem dedurado, indo até a favela e falando com o irmão do falecido, líder da gangue e sedento por vingança.

Inúmeras configurações do terror passeiam por toda a duração de "Morto Não Fala", contudo, o que une toda a produção de maneira sólida é o drama familiar. Bem verdade que "Morto Não Fala" possui um formato saturado - será se precisamos de ainda mais versões de espíritos bagunçando a vida dos vivos? Odete repudia o marido e sua medíocre vida, encontrando em Jaime a válvula de escape da conclusão doméstica que ela não esperava - o adultério alivia os filhos rebeldes, as contas acumuladas e o casamento falido. Situações que colocam o marido traído em posição de retaliação existem desde que o mundo é o mundo, porém, a fita encontra o sucesso da novidade ao mudar o passarinho que assovia na orelha do corno tal informação: agora é um cadáver.

Os rumos sofrem drásticos desvios quando, no momento que a morte encomendada de Jaime surge, Odete está com ele, o que também a leva ao assassinato. Mesmo Stênio não prevendo, o choque inicial dá lugar a uma lúgubre sensação de superioridade por parte do protagonista, que tortura psicologicamente a esposa, impotente diante do fato de que ele foi o culpado. A dinâmica entre Stênio e o corpo de Odete é fabulosa, o momento que a premissa básica do filme encontra maior força.


A partir de então, a vida do homem vira um inferno: usar informação dada por um morto para matar inocentes é maldição certeira. O espírito de Odete coloca o Satanás no chinelo ao passar a aterrorizar a própria família; é então que "Morto Não Fala" deixa de ser uma mistura de "Cadáver" (2018) com "Se7en: Os Sete Crimes Capitais" (1995) para virar "Invocação do Mal" (2013). São portas escancaradas, móveis saindo do lugar e personagens sendo arremessados por forças invisíveis, e não consigo lembrar de uma produção nacional que entre nesse formato, popularizado por Hollywood.

E não tome isso como um demérito: é interessantíssimo ver um filme brasileiro indo onde obras gigantes dominam e se saindo tão polido. Tanto em termos de linguagem como técnico, "Morto Não Fala" deve em nada aos inúmeros e malfadados filmes que se apropriam do sobrenatural enquanto filhotes das maiores produtoras do planeta, e vai mais longe, superando-os. E isso se deve ao cuidado do roteiro em sedimentar todos os caminhos antes de cair no eletrizante clímax, com demônios arrastando as pobres vítimas. "Morto Não Fala" é um terror que respeita o que há de mais elementar na arte, que é seu texto, o que o mantém fixo. Há, sim, fragilidades, principalmente quando cai no lado mais pipocão ou quando se torna demasiadamente expositivo, todavia, nada que abale irremediavelmente seu trabalho.

Um crítico internacional analisando "Morto Não Fala" com certeza não vai receber o mesmo impacto que um brasileiro; e não por motivos de regionalismos - o filme é deveras internacional, tanto que atualmente possui generosos 89% de aprovação no Rotten Tomatoes. Afirmo pois, para alguém aquém da nossa indústria, não existirá a mesma sensação de glória ao ver uma produção verde-e-amarelo no mesmo nível do que é lançado quase diariamente no quintal deles. Saindo vencedor no drama, no suspense e no terror, "Morto Não Fala" é uma revelação que engrossa as colunas de um gênero cada vez mais visado dentro de um país ainda tão monotemático.

Crítica: o Brasil do futuro de “Divino Amor” é um luminoso cabaré gospel

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Brasil, 2027. A sociedade tupiniquim caminhou para um sistema ultra-religioso, com a palavra de deus sendo a lei básica. Uma tabeliã, Joana (Dira Paes), vive com plenitude dentro do novo país, e usa de sua função para dificultar divórcios, afinal, o casamento é o que há de mais sagrado no mundo. Aliás, sua vida é quase plena: ela e o marido, Danilo (Julio Machado), há tempos tentam ter um filho, sem sucesso, a provação extrema do altíssimo.

"Divino Amor", novo filme de Gabriel Mascaro, diretor pernambucano do maravilhoso "Boi Neon" (2015), estreou em dois dos maiores festivais do planeta, Sundance e Berlim, saindo ovacionado de ambos: atualmente conta com incríveis 86 pontos no Metacritic, uma das maiores notas do ano. Junto com "Bacurau", vencedor do Festival de Cannes, temos dois fortíssimos nomes para representar o Brasil no Oscar 2019, caso o novo Ministério da Cultura não surte como nos últimos anos, indicando longas sem a menor chance em nome de um conservadorismo patético - "Aquarius" (2016) e "Benzinho" (2018) sendo boicotados, um crime para nossa cultura.


Por meio de uma infantil narração onipresente, o texto de "Divino Amor" coloca na mesa as regras desse Brasil gospel. A religião evangélica está agora presente em todos os cantos, incluindo em versão drive thru - o fiel chega com seu carro para uma rápida palavrinha com um pastor, que coloca um hino de louvor para fortalecer a fé. Os retangulares templos ficaram obsoletos, e as festividades agora são ao céu aberto, em shows entupidos de pirotecnia e música eletrônica a fim de saudar deus. Joana ama tudo isso.


É muito engenhosa a forma com que o roteiro finca as normas e dá as naturalidades para o que é normal dessa realidade tão distópica. E é impossível não lembrar da série "The Handmaid's Tale" (2017-presente), um também futuro estadunidense à base da religião; a grande diferença entre as duas obras é o foco óptico. Em "Handmaid's", June nos conduz por meio das ruas opressoras de sua vida, enquanto em "Divino Amor" é Joana a porta-voz, que, ao contrário de June, celebra o sistema.

Não existe uma noção de resistência ou revolução dentro de "Divino Amor": tudo funciona (quase) dento da perfeição almejada. A película não está interessada em gerar uma sensação de quebra, de luta, e sim questionar como algo tão radical é prejudicial até mesmo para aqueles que tanto gozam de seus prazeres. Notem: por ser um sistema baseado no evangelho, todas as configurações são heterossexuais. Não existe o menor resquício de homossexualidade, com a união do homem e mulher sendo irretocável.

Fica bem claro que a fita não está, em segundo algum, batendo palmas para o que surge no ecrã, pelo contrário. Há uma pungente ironia que dosa perfeitamente o ridículo e o desconfortável, entrando cada vez mais nas insanidades desse Brasil onde a burocracia é sagrada. E Joana faz tudo o que pode para dificultar os divórcios, manipulando, mentindo e omitindo detalhes para que os casais permaneçam unidos diante dos olhos do Senhor - e ela guarda com imenso amor uma estante cheia de fotos dos casais que ela conseguiu evitar a separação. Deus está lá em cima em festa.


E, dentro desse governo, existe a Divino Amor, uma seita (essa palavra não é dita, todavia, é a melhor definição para aquilo) que funciona como ritual de inicialização dos casais nas escrituras. Há dinâmicas de grupo, leitura da palavra e procedimentos menos ortodoxos. Joana e Danilo fazem trocas de casais com os novatos, e a erótica câmera do filme não tem pudores em capturar o inquietante swing divino sob luzes neon - curiosamente, vários casais saíram da sessão em que eu estava já na primeira cena de sexo. Puritanos, vejo bem.

Esse é o novo Brasil, um cabaré gospel. O ethos construído pelo roteiro une o conservadorismo hipócrita com os pecados da carne, convenientemente convertidos em dádivas quando o lema da Divino Amor é "Quem ama divide". O fundamentalismo não tem vergonha ao se arvorar do bacanal como veículo de encontro com deus, porém não se engane: o bordel instaurado é muito bem controlado, com cada corpo e status social sendo verificado por máquinas nas entradas de todas as instituições, no melhor estilo "Black Mirror" (2011-presente).

Outra grande dualidade do longa é a configuração do relacionamento da protagonista: matriarcal, é ela quem sai de casa para trazer o sustento, enquanto o marido trabalha na pequena loja de flores que fica onde os dois moram. É mais uma forma de conservadorismo que une o passado e o futuro, que acolhe traços opressores sem deixar de soar moderneco - quando lhe convém, é claro. A culpa também é do marido do insucesso da procriação, mesmo se submetendo a diversos (e constrangedores) procedimentos de fertilização - in vitro é fora de questão, coisa do diabo. A semente dada por deus deve ser plantada diretamente na mulher.

É aí que Joana finalmente engravida. Aos prantos, ela ora com fervor, enchendo o todo poderoso de agradecimentos pela graça alcançada. Só que, ao extrair o DNA do feto, ele não é compatível com Danilo. A melhor cena da obra, a protagonista vai se apavorando cada vez que digita o nome dos vários homens com quem transou na Divino Amor, e todos incompatíveis. Sua única solução é óbvia: o filho no seu ventre é a volta do Messias.


O grande sucesso de "Divino Amor", um estranho drama que mistura ficção-científica com humor negro, é provido pela linguagem escolhida por Gabriel Mascaro. Toda a bizarrice (que não é pouca) é conduzida de maneira fluida por meio dos planos sequências que não quebram as cenas, quase como se a trama estivesse numa câmera lenta que combina magistralmente com a áurea sacra do filme.

A união de luzes naturais, em momentos que mal conseguimos ver o que está acontecendo, com luzes artificiais coloridíssimas, geram imageticamente esse futuro desconcertante que cega o fiel - e em diversos momentos me remetia a "Demônio de Neon" (2016) quando o filme de Mascaro adotava uma atmosfera onírica pelas cores e músicas narcotizantes. Dira Paes realiza uma performance competente quando doa seu corpo por inteiro, sem jamais soar caricata - talvez por ser um peão que reforça seu meio. É belo ver como a fita a enquadra, muitas vezes em contra-luz, como se deus estivesse banhando-a em toda a sua glória.

Apesar da era de resseção cultural tupiniquim, estamos emergindo através do Cinema, com nomes cada vez mais criativos ao unirem ineditismos com críticas sociais. Um efeito colateral benigno das pressões de um país em crise, temos, por exemplo, o fabuloso "As Boas Maneiras" (2018), que também escorre bizarrices para estudar nosso país - o mesmo que aconteceu na Grécia com a chamada "Estranha Onda Grega": movimento cinematográfico que surgiu com sua depressão econômica - vide "Dente Canino" (2009), "Chevalier" (2015) e "Piedade" (2018). Talvez estejamos diante de um novo apogeu.

O mais assustador de "Divino Amor" é sua consonância com o agora do nosso país: cada vez mais reacionário e com a bancada evangélica em plena força. O exagero do ufanismo religioso é prato cheio dentro da arte, e a película a escancara acidamente, na mesma medida em que alerta o avanço do fanatismo. Não é difícil vislumbrar essa realidade que tem a certidão de casamento como o principal documento, afinal, já está sendo valorizada a procriação e a família normativa na nossa pequenina distopia, sob o lema "deus acima de tudo". Num país que parece não haver regras, justiça e equidade, o cabaré sagrado de "Divino Amor" soa preocupantemente plausível.

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