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Lista: as 10 melhores fotografias do Cinema em 2020

 

Para abrir as listas de "Melhores de 2020" aqui no Cinematogafia, depois de um dos anos mais instáveis da história da Sétima Arte, aqui estão as 10 melhores fotografias do ano, aquelas que nos fizeram falar "dá o Oscar para esse enquadramento". Mas antes de tudo, o que é fotografia?

A fotografia - ou cinematografia, no jargão técnico mais apropriado - é o termo que mais sofre quando alguém elogia o "visual" do filme. Ao contrário do que se pode presumir, a fotografia não é necessariamente tudo o que está na tela, tudo o que podemos ver; ela é a "impressão" do roteiro, ou seja, os enquadramentos, movimento de câmera, uso de filtros, manipulação de cores, exposição de luz e afins.

Quando alguém solta um "olha a paleta de cores maravilhosa desse filme!", muitas vezes ele não está falando da fotografia, e sim do design de produção - a chamada "direção de arte", que compõe todo o aparato físico que está no ecrã. As cores, parte visual mais emblemática, entra tanto na fotografia - pelo trabalho do colorista - como na direção de arte - no trabalho do cenógrafo - e nos figurinos - no trabalho do figurinista. São departamentos distintos e realizados por profissionais diferentes; é a união de todos que fazem um filme ser "bonito" (ou não, caso propositalmente).

Então, o que a lista está julgando é o trabalho de câmera juntamente com a colorização das películas. O critério de inclusão dos citados é o de sempre: ter estreado nacionalmente (em salas comercias, festivais ou plataformas de stream) em 2020 ou ter chegado à internet sem data de lançamento previsto. Preparado para fazer a linha cult na próxima roda de amigos e falar das fotografias mais estonteantes do cinema em 2020? Aqui as 10 melhores pelo Cinematofagia:


Mank

Cinematofragia: Erik Messerschmidt. Edição de Cor: Eric Weidt.

"Mank", novo filme de David Fincher, tem todos os elementos que fazem a Academia tremer da base: é uma homenagem ao eleito "melhor filme de todos os tempos", "Cidadão Kane" (1941). O longa não apenas vai até os passos que levaram à produção do clássico como remonta perfeitamente a rodagem de um filme na Era de Ouro de Hollywood, e a fotografia não poderia ficar de fora. Pesadamente inspirada no trato visual de "Kane", revolucionário dentro do quesito, todo quadro da cinematografia de Erik Messerschmidt aponta para a grandiosidade das películas de época. Pelo menos a indicação ao Oscar da categoria o filme leva - e se ganhar a estatueta, não será surpresa.

A Primeira Vaca

Cinematografia: Christopher Blauvelt. Edição de Cor: Sam Fischer.

Jogando o espectador para o séc. XIX, no interior dos Estados Unidos, "A Primeira Vaca" é uma obra que exala simplicidade à primeira vista, mas é muito mais complexa do que aparenta. A amizade improvável de dois homens, que mudará os rumos de toda a cidadezinha em que vivem, é capturada com uma fotografia estonteante de Christopher Blauvelt, sabiamente executada em um plano mais quadrado, um dos principais elementos que fazem o público embarcar no período.

911

Cinematografia: Jeff Cronenweth. Edição de Cor: Dave Hussey.

Lady Gaga, conhecida pelos videoclipes extravagantes e produções faraônicas, é uma cinéfila de carteirinha, já tendo referenciado inúmeros filmes ao longo da carreira. Com "911", curta em parceria com o aclamado diretor Tarsem Singh, o patamar é elevado para níveis raramente vistos na cultura pop. Inspirando em nomes como "A Cor de Romã" (1969), "8½" (1963) e "A Montanha Sagrada" (1973), a execução imagética realizada pelas mãos de Jeff Cronenweth é de cair o queixo, não se contendo em abocanhar imagens belíssimas como ousando em enquadramentos que denotam toda a carga de sua temática.

Casa de Antiguidades

Cinematografia: Benjamín Echazarreta. Edição de Cor: Mickaël Commereuc.

Se "Casa de Antiguidades" frustrou enquanto obra, sua fotografia deve em nada. Fincado no Brasil atual, em uma colônia de leite sulista, o longa busca retratar as garras do racismo e ageísmo da nossa sociedade. Como era de se esperar, esse retrato vai ganhando ares cada vez mais fantasiosos para encaminhar suas discussões para campos além do óbvio, e a cinematografia de Benjamín Echazarreta é um dos transportes dessa viagem sempre imageticamente bonita.

Devorar 

Cinematografia: Katelin Arizmendi. Edição de Cor: Sam Daley.

"Devorar" pode ser usado com excelente estudo de como a fotografia deve ir bem além de um elemento "bonito" dentro do filme: ela é usada para potenciar a atmosfera da narrativa. Seguindo uma dona de casa de classe alta que passa os dias na tediosa rotina doméstica, Katelin Arizmendi é largamente influenciado por "O Bebê de Rosemary" (1968), ao atirar a maternidade em um campo que beira o sobrenatural e a questionar de formas corajosas e longe de toda a glamourização a obrigação imposta sobre as mulheres no ato de procriar.

Viveiro

Cinematografia: MacGregor. Edição de Cor: Gary Curran.

O objetivo de quase toda cinematografia é emoldurar o ecrã da maneira mais natural e real possível, contudo, o caso de "Viveiro" vai para o extremo oposto. O filme necessita de uma cinematografia totalmente artificial para dar vida ao seu estranho roteiro, e MacGregor atinge sem dificuldades o propósito. Com seu design de produção esteticamente correto é fachada para a trama, com a fotografia escondendo toda a bizarrice com uma estética que passeia por "Edward Mãos de Tesoura" (1990) e "O Show de Truman" (1998), e transforma a casa própria, uma das mais desejadas paisagens, em um verdadeiro labirinto em que cada esquina é um pesadelo.

O Chalé

Cinematografia: Thimios Bakatakis.

Um dos elementos mais seminais para a construção de um bom terror é a fotografia - e não é de admirar que os melhores filmes do gênero também possuem cinematografias de sucesso. "O Chalé" entra nesse panteão: a película nada contra a maré do modelo atual de cinema de terror, acomodado em berrar sustos, e edifica sua atmosfera com muito cuidado, trabalhando com sugestões e temáticas geralmente tratadas com pobreza. A fotografia - do mesmo responsável por "O Lagosta" (2015) e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017) - é fundamental na imersão da história quando captura luzes naturais de maneira não convencional, no limiar entre claridade e escuridão.

1917

Cinematografia: Roger Deakins. Edição de Cor: Greg Fisher.

O atual detentor do Oscar de "Melhor Fotografia", falar do trato visual de "1917" é chover no molhado: a maneira como o longa foi filmado é espetacular. A fotografia de Roger Deakins - que também levou o Oscar por "Blade Runner 2049" (2017) - faz um preciso balé coreografado enquanto segue os protagonistas incessantemente. Editado para parecer uma rodagem sem cortes, o trabalho de câmera rende sequências que já entraram para a história do Cinema pela precisão e poder - e aqui, os exemplos são vários.

Maria & João: Conto de Bruxas

Cinematografia: Galo Olivares. Edição de Cor: Mitch Paulson.

"Maria & João" foi uma fita quase universalmente subestimada, tanto pelo público como pela crítica. É claro, a releitura da história clássica poderia ser muito mais potente caso não cedesse a comodismos (o final é particularmente fraco), todavia, há um elemento indiscutivelmente fantástico aqui: sua cinematografia. "Maria & João" aprendeu com "A Bruxa" (2015) a como fazer um filme de época no aparato visual. Cheio de simbolismos, cores artificiais e enquadramentos irretocáveis, Galo Olivares - em seu trabalho de estreia na cadeira de cinematógrafo em um longa - mostra a que veio sem sutilezas.

O Poço

Cinematografia: Jon D. Domínguez.

Quando um filme longe dos cofres bilionários de Hollywood consegue um feito além da média em termos técnicos, sabemos que é um sucesso. "O Poço", produção espanhola, é um desses filmes. "O Poço" impressiona pelo requinte técnico – e é a estreia do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, mais um motivo para potencializar a boa realização da película. Toda a concepção visual da trama é realizada fantasticamente; quase inteiramente filmado em um único cômodo, o que exigiu o triplo da cinematografia de Jon Domínguez, que foi capaz de dar o tom correto da claustrofóbica trama.

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Crítica: “Suor” e os bastidores da vida nada colorida de uma blogueira fitness

 

Um dos campos mais férteis de estudo na arte atual é uma das revoluções do tempo moderno: as redes sociais. Elas estão presentes nas nossas vidas há relativamente pouco tempo, mas já mudaram nossa forma de viver de maneira drástica. Já temos vários artefatos do audiovisual que discorrem sobre esse impacto - da série "Black Mirror" aos filmes "Ingrid Vai Para o Oeste" (2017) e "Rede de Ódio" (2019), por exemplo -, e temos mais uma obra para agregar na discussão: o sueco "Suor" (2020), do diretor Magnus von Horn, um dos escolhidos na Mostra de Cinema de São Paulo 2020.


O filme segue Sylvia (Magdalena Kolesnik), uma influencer fitness com mais de 600 mil seguidores. A sequência de abertura é o resumo ideal de como ela construiu sua imagem perante o público: em um aulão no meio de um shopping com várias pessoas. A câmera inquieta passeia pela cachoeira de endorfina impulsionada pela blogueira, que é idolatrada pelos seguidores. Após uma aula, uma das alunas diz que Sylvia mudou sua vida ao dar um novo sentido a ela.


Sylvia vai para os bastidores e, ainda afogada em adrenalina, mostra os corredores de sua vida, cheia de frases motivacionais sobre como o corpo almejado só depende de você! Porém, quando a câmera é desligada, a vida da guru fit não é tão colorida assim.



A fama acaba isolando a protagonista, sempre ao redor de pessoas que a amam pela imagem mostrada nas lives do Instagram, ou seja, ninguém a conhece de verdade. Esse mote, a velha desglamourização de atividades atreladas a prestígio, é um dos estudos que mais gosto no Cinema - temos "Cisne Negro" (2010) com o balé, "Demônio de Neon" (2016) com a moda e "Bingo: O Rei das Manhãs" (2017) com a televisão, por exemplo -, então "Suor" era um dos meus mais desejados da seleção da Mostra.


Sylvia faz uma live deixando um pouco de lado sua versão positive vibes e chora ao desabafar o quanto se sente sozinha. O resultado é um puxão de orelha de seu empresário, pois os patrocinadores não ficaram felizes com o vídeo e não acham uma boa ideia atrelar o produto àquilo.


Aqui, já caí em um buraco negro. Eu, formado em Comunicação, claramente já estudei muito sobre redes sociais, mas nunca tinha parado para pensar no absurdismo que é o fenômeno dos influencers. Vamos destrinchá-los. Um influencer é uma pessoa cujo trabalho é ser uma vitrine - como sabiamente já disse Nicole Bahls, "eu sou uma embalagem". Eles não exatamente trabalham com algum talento ou vocação, e sim com suas imagens (no aspecto geral, claro). Quando uma empresa vai escolher um blogueiro para atrelar seu produto, dois são os fatores que mais pesam: como aquela pessoa tem ligação com o produto e quantos seguidores ele possui.


A partir de então, um influencer deve se tornar em uma máquina perfeita. Não há espaço para erros, para fraquezas, para problematizações, caso contrário, o que lhe dá dinheiro – seus patrocinadores – cairão fora. É claro que nem vou entrar nos méritos de pessoas (reais) claramente erradas – e até criminosas – que não perdem dinheiro mesmo com a exposição do caso: o número de jogadores de futebol acusados dos mais diversos e delitos e continuam com o contrato em mãos está aí para provar. Mas voltando, Sylvia carrega o peso dos seus 600 mil seguidores com a responsabilidade de ser intocável em sua conduta.



É bem óbvio que ser uma pessoa de caráter é (ou deveria) ser requisito básico para viver em sociedade, contudo, somos humanos, logo, iremos errar. A cobrança em cima de quem tem milhares de olhos acompanhando cada passo é multiplicada caso comparada com a mesma cobrança de alguém anônimo – e o vídeo de Sylvia está longe de ser um erro, todavia, é motivo o suficiente para o puxão de orelha. Ela segue com sua vida perfeita entre lives com Q&A e recebimentos de mimos para serem divulgados a seus seguidores.


Há uma cena bastante intrigante na metade da sessão: Sylvia está em um shopping e é parada por uma fã altamente entusiasmada. Ela claramente não reconhece a mulher, porém, pelo interesse da fã em simplesmente estar na sua presença, aceitar sentar para tomar um suco. Na mesa, a mulher desata a contar sobre sua vida, no entanto, no momento em que Sylvia também se abre, a fã ignora e pede por uma selfie. É a comprovação de que as pessoas estão interessadas apenas na blogueira, não na pessoa. Elas querem apenas poder dizer que estão com aquela que tem 600 mil seguidores no currículo.


Enquanto sua vida profissional decola, conseguindo marcar uma entrevista no maior programa matinal do momento, Sylvia acompanha quase impotente sua vida pessoal estagnar. A coisa piora quando ela vê que sua mãe está de namorado novo. Não fica explícito, mas lá uma áurea ao redor da protagonista, como ela se indagasse como a mãe consegue um par, mas ela, jovem, bonita e poderosa, segue na solidão.


A partir de então, o texto muda totalmente de foco. Todo o viés da existência digital de Sylvia é deixado de lado para focar na guerra fria entre ela e a mãe apaixonada. Concomitantemente, um stalker aparece na vida dela, estacionando o carro na porta do seu prédio e mandando vídeos através das redes.


Fica inegável a maneira como a sessão sofre uma perda de interesse quando o foco principal é mudado; as personas das pessoas ao redor de Sylvia não são ricas o suficiente para que o espectador se sinta compensado pelo desvio na roda. A subtrama do stalker é bastante promissora, principalmente por ser uma protagonista mulher (cultura do estupro está aí na ativa), mas nem isso recebe um tratamento à altura. A maneira como o tema é encerrado mostra que Von Horn deixou escapar uma película que refletisse a grandiosidade do primeiro ato.


Carregado por uma atuação competente de Magdalena Kolesnik, a blogueira fit que trocaria os 600 mil seguidores por um amor de verdade, “Suor” acompanha discussões pertinentes e composições cinematográficas que mostram como a produção sabia por onde começar – perceba como quase todo figurino de Sylvia perante as câmeras é cor de rosa, uma tentativa visual de impor uma alegria não tão presente ali –, entretanto, acaba deixando inúmeras discussões sobre o fenômeno dos influencers de lado, fomentando debates que não estão necessariamente na tela.



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Crítica: “Casa de Antiguidades” frustra quando não atinge seu potencial de resistência


Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

O principal nome brasileiro na Mostra de Cinema de São Paulo é "Casa de Antiguidades", estreia do diretor João Paulo Miranda Maria. O longa foi escolhido para a seleção do Festival de Cannes 2020 - que veio a ser cancelado por conta da pandemia -, angariando ainda mais atenção ao redor da obra, um dos fortes nomes nacionais para a representação do país na categoria "Melhor Filme Internacional" no Oscar 2021.

A obra é estrelada por Antônio Pitanga no papel de Cristóvão, um idoso trabalhador que saiu do Goiás para uma fábrica de leite em uma colônia alemã do sul. A escolha do ator, por si só, é emblemática. Pai da também atriz Camila Pitanga, Antônio é um dos maiores nomes no Cinema Novo brasileiro, internacionalmente conhecido pelos trabalhos ao lado de Glauber Rocha, Anselmo Duarte e Cacá Diegues. Cristóvão é o primeiro papel do ator em quase uma década, e sua retomada é um acerto não apenas em termos de técnica performática, mas também como misticismo ao redor de sua pessoa.


Uma das primeiras cenas é o personagem conversando com seu chefe. O patrão, dono da fábrica, fala majoritariamente em alemão e diz como, mesmo estando há anos no local, Cristóvão terá o salário reduzido graças à "crise". "Ele é preto e velho, onde acharia algo melhor que isso?", diz o presidente do local para a secretária, que não traduz a fala. Só o público é cúmplice do que real está acontecendo ali.

A vida de Cristóvão do lado de fora da fábrica é bastante solitária. Ele não pega o ônibus para voltar para casa, preferindo ir a pé (os motivos ficam na mente do público). Em casa, sua única companhia é um cachorro com três patas, que é torturado por um grupo de crianças empenhado em infernizar a vida do homem. Em meio a tanta turbulência, uma casa abandonada próxima à sua começa a manifestar objetos que não estavam previamente ali, e acaba se tornando uma segunda casa para Cristóvão.

"Casa de Antiguidades" remonta algumas características presentes no Cinema Novo, como a fusão entre o cultural e o espacial - lembra do drone em formato de nave em "Bacurau" (2019)?, pois é, mesma coisa. A roupa de trabalho de Cristóvão mais parece um traje de astronauta, e, divertidamente, há referências charmosas ao redor da construção imagética, como no momento em que o protagonista observa uma máquina da fábrica com brilhantes luzes vermelhas que refletem em seu "capacete" como em "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968). Essa dicotomia visual é o primeiro elemento da mistura entre o "real" e a "fantasia" que permeia a atmosfera da sessão. 

E, assim como "Bacurau", "Casa de Antiguidades" tem como base textual um câncer da sociedade brasileira: o racismo. Cristóvão está no seio de um movimento separatista, que deseja retirar a "Região Sul" (entre aspas porque, malandramente, o movimento puxa São Paulo no bolo) do resto do país com o argumento de que o "Norte" atrasa a nação pela sua ignorância e corrupção. A coisa é tão absurda que a reunião que evoca com bravura o amor à pátria sulista é feita em alemão. O palanque que Hitler usava nos anos 40 deve estar orgulhoso.

O protagonista assiste a tudo sem entender uma palavra, claro, e é coagido a assinar um abaixo-assinado defendendo a independência da região. Ele, também, ganha uma camisa com a bandeira do "novo país", que é rasgada para servir de curativo para o pobre cachorro. Cristóvão se sente um verdadeiro alienígena em meio àquelas pessoas - seja pela sua cor ou pela sua língua. Todavia, ele não abaixa a cabeça, mesmo sufocado com a uma pressão cultural da maioria. Durante uma cantoria alemã, ele levanta o berrante e interrompe a celebração. Aqui é Brasil, meu irmão.


"Casa de Antiguidades" é um filme marcado pelo silêncio. Cristóvão se deixa sumir em meio às suas memórias, emoções e solidão, já condicionado a saber que sua existência naquele lugar é daquela forma. A tal casa, com os objetos que magicamente aparecem, acaba sendo uma extensão de sua própria consciência, produzindo artefatos que, de alguma forma, se conectam com a história do protagonista. 

Até aqui, a fita demonstrava bastante poder perante as temáticas escolhidas, principalmente pelo seu aspecto folclórico (o Brasil é rico demais em lendas e mitos, sendo terreno fértil para o Cinema), porém, a partir do momento em que a casa é explorada com mais profundidade, a narrativa começa a se perder. Várias tramas são abertas e esquecidas pelo caminho ou não finalizadas com relevância - como toda a situação da mulher no bar, ou as crianças que atormentam o protagonista, ou a própria fábrica e o movimento separatista. Até mesmo a relação do achado do protagonista com a casa não é tão explicada - ela simplesmente está lá.

Vamos descendo por um buraco onírico cada vez que Cristóvão vai achando algo da casa - como o pôster e a pintura rupestre por baixo de um xingamento pichado na parede. Dá para entender muito bem o que está acontecendo - como na sequência em que ele se transforma em um boi -, no entanto, muitos porquês não existem. Lá pela metade da película, deixei de tentar manter uma linha de raciocínio e simplesmente embarcar na viagem do filme e observar quais caminhos ele me levaria - e o trajeto foi se tornando cada vez menos motivador.

"Casa de Antiguidades" é um dos tipos de filmes mais frustrantes que existem: aqueles que almejam ser desvendados e não produzem uma vontade no espectador de tentar entender. É desapontador uma obra trazer tantos pontos de discussões urgentes e sabermos que eles poderiam ter um impacto muito maior. Por exemplo, há várias pichações com o malfadado número 17 na mesma casa que é usada como ameaça para Cristóvão, um símbolo de resistência contra o fascismo que poderia ter uma voz muito mais incisiva com escolhas mais coesas nesse trabalho que, apesar dos muitos méritos, não é sólido o suficiente para ser memorável. Agrega no Novíssimo Cinema Brasileiro, que põe o dedo nas mazelas contemporâneas (como "Que Horas Ela Volta?", 2015; "As Boas Maneiras", 2017; e "Temporada", 2018), mas não se destaca à altura do potencial.


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Crítica: “Nova Ordem” e o terror do real com o nascimento de uma ditadura

Michel Franco é um daqueles diretores que não importa o projeto, se tem sua assinatura, vai chamar a atenção. E o motivo é bem simples: seus filmes são sempre controversos. Com “Nova Ordem” (Nuevo Orden), sua nova empreitada, não foi diferente. Desde a estreia no Festival de Veneza 2020, onde ganhou o Leão de Prata (equivalente ao segundo melhor longa da competição), houve muita expectativa – para o bem ou para o mal – ao redor da película.

Não por acaso, “Nova Ordem” foi o filme de abertura da Mostra de Cinema de São Paulo 2020 – e teve ingressos esgotados. Ele segue a mesma fundamentação de todo o cinema de Franco: explanar como somos capazes dos piores atos com nosso próximo, então, nenhum dos seus filmes são sessões agradáveis, do estudo sobre o bullying em “Depois de Lúcia” (2012) ao drama familiar de “As Filhas de Abril” (2017) – ambos na minha lista dos 100 melhores filmes da década.


“Nova Ordem” é aberto com vários fragmentos de imagens, um prelúdio dos acontecimentos que virão. Logo em seguida, entramos no casamento de Marianne (Naian Gonzalez Norvind), uma jovem de classe alta. Toda a família e convidados aproveitam o pomposo casamento, trazendo presentes caríssimos que são guardados dentro do cofre particular da casa.

Do lado de fora, não tão longe do alcance dos seguranças na porta da recepção – que guardam a entrada e saída de autoridades na festa –, uma enorme manifestação acontece. Os revoltosos estão destruindo o que encontram pela frente em protesto à imensa desigualdade social. Há um detalhe importante para ser falado: o filme se passa em 2021.

Sim, no ano seguinte, porém, de qualquer forma, no futuro. “Nova Ordem” é uma distopia. Melhor dizendo, “Nova Ordem” é o nascimento de uma distopia. A fita tem vários pontos focais que, ao longo da exibição, vão se revezando, no entanto, o primeiro ato é quase exclusivo dentro do casamento. Vemos um fiel retrato da burguesia, e o acontecimento em si só é reflexo irretocável de como o roteiro deseja estudar o abismo social: os ricos estão tão presos em suas bolhas que fazem um casamento em meio a uma crise social fortíssima.

E isso se dá graças à essa falsa bolha em que eles vivem. Eles estão tão certos de que estão em segurança que não faz diferença a manifestação ali próxima. Seus altos muros sempre os guardarão. Essa bolha é momentaneamente perfurada com a chegada de um ex-empregado da mansão: a esposa do homem precisa de uma caríssima e urgente cirurgia, e ele vai até a casa dos antigos patrões pedir por dinheiro.


Cada membro da família da protagonista age de uma forma diferente. A mãe consegue arrumar parte do dinheiro, mas é um pouco ríspida ao informar que aquilo é o suficiente. O pai e o irmão querem que o homem desapareça da casa e Marianne é a única verdadeiramente preocupada com a situação. Aqui, me peguei ponderando sobre vários mecanismos que estão além da narrativa imposta pelo filme.

Dentro das discussões sociais que estamos inseridos, principalmente no atual momento, há uma forte rejeição contra a figura do burguês. É claro, isso permeou a história de qualquer nação capitalista, porém, essa impressão é latente nos dias de hoje, essa era da problematização. E isso é um efeito necessário, afinal, a distribuição precária de riquezas é uma das maiores mazelas desse sistema tão falho. Contudo, ao sentar diante de “Nova Ordem”, quase involuntariamente separamos os personagens da seguinte forma: os ricos são os vilões e os pobres as vítimas.

Quando Marianne decide fazer o que pode para salvar a vida do empregado, já pensamos “olha lá o filme querendo dizer que nem todo rico é ruim”. E sim, pasmemos, essa afirmação é verdadeira. Diante da arte (e vou deixar só nesse campo, já que na vida real seria muito complexa tal ideia), costumamos cair em binarismos fáceis que por vezes deturpam nosso entendimento diante de alguma obra – e me enquadro aqui também. Foi trabalhoso me desvincular da ideia de que toda aquela burguesia é feita por pessoas odiosas e tentar me colocar no lugar das mais diferentes existências explanadas pela película. As pessoas são não totalmente más ou totalmente boas, e essa complexidade não pode ser deixada de fora quando analisamos nossos comportamentos.

Graças a uma série de (inteligentes) encontros e desencontros, Marianne sai da festa antes dela ser invadida pelos manifestantes fortemente armados, que realizam um verdadeiro massacre. Eles roubam, humilham e matam sem pensar duas vezes, e a sequência é dirigida com absurdo poder – e desde de antes do estopim. Franco vai aumentando o fogo debaixo dessa panela de pressão com elementos banais, mas que fazem toda diferença para quem assiste: é uma torneira jorrando água verde, uma sirene gritando ao fundo ou um carro de polícia passando às pressas na frente da casa. Há uma movimentação ao redor da festa que vai engolindo-a, e a tensão é milimetricamente construída quando a plateia sabe que a desgraça está a minutos de acontecer – e os personagens não só não têm ideia do caos iminente como serão cercados sem escapatória.


Tal construção me remeteu bastante ao filme “Mãe!” (2017), última obra-prima de Darren Aronofsky. Ambos os filmes fazem progressões de ansiedade bem similares e se utilizam na violência desenfreada para chegar no mesmo ponto. A partir do momento em que Marianne sai da casa, começamos a ter ciência da dimensão do que está acontecendo – todavia, como é de praxe no cinema de Franco, as coisas vão ainda mais longe. Os militares aproveitam o caos e crise para dar um golpe de Estado e assumir o poder. Soa familiar?

O ritmo do filme é alucinante, a fim de espelhar uma realidade que a América Latina conhece tão bem: a ditadura – e, confesso, tive que parar o filme em alguns momentos para conseguir respirar. As coisas acontecem rápido demais e, quando percebem, os personagens estão presos em um governo violentamente opressor e que trata as pessoas como objetos de extração de interesses. Vários são sequestrados, torturados, estuprados e mortos não apenas para o bel-prazer dos militares, mas também como chantagem para as famílias: elas devem pagar resgates com valores absurdos.

Daí para frente a situação só piora. Franco, muitos poderão dizer, chega a ser sádico com o terror desenfreado que atira em cima de seus personagens, mas nada é longe demais do que qualquer ditadura não conheça. Aqui mesmo no Brasil, sabemos dos horrores que até hoje maculam nossa história. É uma temática assustadora, e visualizar até onde vai a maldade das pessoas em posição de extremo poder é de causar calafrios, porém, deve ficar claro essa impressão para que tenhamos cuidado com nossas democracias.

“Nova Ordem” é mais uma enciclopédia de Michel Franco sobre a maldade humana, mas dessa vez com fortíssimo viés político. Sua moral é óbvia: em um mundo sem a menor empatia e afogado em egoísmo e corrupção, todos nós perdemos. Em meio a uma onda do conservadorismo, do reacionarismo e do fascismo que vêm assolando inúmeras nações mundo afora, a distopia do longa choca pela gigante proximidade com o real. Assistir a este nascimento de uma ditadura termina tão forte, alarmante e pretensioso graças à escolha do diretor de não dar uma aula de História no ecrã, e sim realizar um verdadeiro filme de terror.


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Crítica: “O Problema de Nascer” derrapa com o choque sem consequências

Um dos filmes mais polêmicos do Festival de Berlin 2020 - e detesto a palavra "polêmico" pela frivolidade do uso -, o austríaco "O Problema de Nascer" (The Trouble With Being Born) chegou na Mostra de Cinema de São Paulo 2020 como um dos principais da vitrine para novos diretores - no caso, Sandra Wollner, em seu segundo longa. Durante sua première na Alemanha, vários presentes se retiraram antes dos créditos finais rolarem na tela, mas por qual motivo?


O longa se passa pela óptica de uma androide. A robô, chamada de Elli (Lena Watson), "vive" para substituir a filha de um homem de meia idade que desapareceu há uma década - no melhor estilo "Black Mirror"  (2011-presente) ou "Alpes" (2011). Acompanhamos a existência da máquina em seus tediosos dias, sempre à espera do "pai" retornar para casa. A questão (que fez muitos desistirem da sessão) é que o homem mantém uma """"relação"""" com a androide.



Sim, o homem tem uma espécie de """"relacionamento"""" (não consigo dar menos aspas que isso) com uma robô que substitui sua filha de dez anos. Pois é. Fica bem entendível o motivo para muitos se negarem a navegar pela trama. A primeira parte da duração é focada na vida da protagonista com o "pai". Tudo começa de maneira idílica, com os personagens à beira da piscina, aproveitando a natureza, uma família e cenário totalmente convencionais, contudo, a diretora começa lentamente a introduzir enquadramentos estranhos, que denotam uma relação bizarra sem revelar muita coisa.


A montanha-russa, que sabemos que está chegando naquele ponto que virará uma queda livre, cai com alguns freios, mas cai o suficiente para chocar. A sutileza (acertada) da produção em mostrar nada quando, ao mesmo tempo, grita, consegue causar calafrios. Somos encaminhados por meio dos sons, como um beijo que não conseguimos ver ou um cinto sendo aberto fora do enquadramento. É verdadeiramente uma agonia.


Por mais assustador que seja as próximas palavras que colocarei diante dos seus olhos, a impressão que fica é que a robô é """"apaixonada"""" pelo homem. Todavia, é óbvio que ela está programada para """"sentir"""" o que o homem quiser, ou seja, ela é mero canal dos desejos medonhos do "pai". Por mais aficionado ele seja pela criatura, ele está constantemente com os ouvidos atentos para qualquer sinal da verdadeira filha. Em um momento, enquanto conserta a robô que foi danificada em uma cena que prefiro não relembrar, ele ouve a filha sumida gritando na floresta ao lado da casa, e larga a robô imediatamente para procurá-la. Não seriam esses os termos corretos, mas ali a androide percebe seu verdadeiro propósito: ela é apenas uma substituta que jamais será compara com a "original".


Ela então vai embora e acaba esbarrando com um cara que a "rouba": ele a leva para a casa da mãe para a androide "viver" como o irmão da idosa, morto há gerações. Há uma interessante discussão de gênero aqui quando nos é revelado como somos apegados às convenções de gênero - robôs não possuem gênero, entretanto, não possuímos nem um artigo neutro para designá-la, apenas o binarismo "a robô" ou "o robô".



Durante toda a exibição, há uma narração da androide, que repete o que lhe é contado. Ela é um vazo oco à espera de ser preenchida com memórias que significam nada para ela, mas fazem toda a diferença para a pessoa com quem ela vai interagir, humanizando-a. Quando ela começa a "conviver" com a idosa, seu sistema dá defeito, misturando as memórias do "pai" original com a da idosa, e esta percebe que há algo de muito errado com a criatura.


"O Problema de Nascer" já traz um título bastante explicativo: a robô em momento algum queria existir, mas não é programada para questionar o porquê. O longa reverte a lógica clássica do cinema de ficção-científica com robôs: Elli não anseia a liberdade ou deseja ser humana. Ela apenas é. Ela não questiona, não diz "não", apenas faz estritamente o que lhe é programada. E, mesmo sendo uma base poderosíssima de estudo, que sem dúvidas recai no nosso próprio modo de existir, essa é, também, a recaída da obra.


O filme termina passivo demais diante de uma tema que não permite tal escolha: a pedofilia. Ao final da sessão, corri para ler entrevistas com a diretora e entender suas motivações - que sim, foram compreendidas -, no entanto, quando a robô é puro objeto dos prazeres mais nojentos do criador, há uma aceitação latente. Eu sempre falei: Cinema não é uma escola na tela e não tem compromisso em ensinar o que é certo ou errado de maneira didática, porém, com uma temática tão difícil, é problemático não haver algum grau de pontuação de condenação diante das ações do pai.


É claro que o objetivo da diretora não foi, nem de longe, fazer um freak-show de pedofilia - a atriz mirim teve o nome e o rosto real preservado, usando uma prótese para caracterizar a androide -, no entanto, quando não critica narrativamente o ato após expô-lo de maneiras terríveis (há uma cena em que o pai retira a língua e a vagina da robô para lavar), temos um problema. "O Problema de Nascer" é um filme bem triste sobre como nossa existência é atrelada aos fantasmas das pessoas e acontecimentos que já se foram, entretanto, perde uma boa oportunidade quando não se preocupa em responsável na medida correta.



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Lista: filmes com mulheres que se relacionam com uma criatura não-humana que as satisfazem como homem nenhum

Essa é uma lista de extrema importância - talvez a mais importante que fiz até hoje. Existe um sub-sub-sub-sub-sub-sub-gênero no Cinema (ou assim chamo essa repetição quase involuntária de uma estrutura) que me fascina enormemente: filmes em que a protagonista se cansa dos machos da mesma espécie e faz sexo com com alguma criatura não-humana que consegue satisfazê-la como homem nenhum antes. Sim.

E como não amar obras que estudam isso? É verdade, a variedade de películas ao redor da estrita narrativa selecionada é pouca, mas cada um não consegue ser menos que obra-prima, porque né. Pois bem, os critérios de seleção aqui foram: o filme deve ter como protagonista uma mulher; o sexo deve ser elemento fundamental dentro da trama; e ela deve se relacionar com algum tipo de criatura não-humana, seja ela qual for - por isso, filmes como "A Bela e A Fera" (1991; 2017) não cabem (a Fera é humano, só está transformado; e o sexo não é fundamental para a narrativa).

Ordenei os filmes em ordem cronológica, todavia, todos imperdíveis - e, curiosamente, são todos dirigidos por homens. Uma maratona com essas pérolas do patriarcadicídio é mais que bem-vinda, não é mesmo?


Possessão (Possession), 1981

Direção de Andrzej Żuławski, Alemanha/França.
Desconfiando que sua esposa Anna está o traindo, Mark resolve seguir os passos da mulher para descobrir a verdade. Para ela, em meio a uma séria crise conjulgal, a obsessão do marido a leva aos braços (ou, na verdade, aos tentáculos) de uma criatura bizarra. "Possessão", clássico cult dos anos 80, é uma parábola insana da Alemanha no pós-Guerra Fria. Com uma atuação lendária de Isabelle Adjani como a protagonista, o filme de Żuławski, inspirado em hentais e obras asiáticas como a xilogravura "O Sonho da Mulher do Pescador" (1814), é peça icônica do terror que estaria por vir.

A Região Selvagem (La Región Salvaje), 2016

Direção de Amat Escalante, México.
Em um dia como outro qualquer, um meteorito cai em uma região comum do México. Com ele, um alienígena veio de carona, e seu objeto é......sexo. Do outro lado, há uma mãe sexualmente frustrada já que seu marido na verdade é um homossexual enrustido que a trai com o irmão da esposa. A premissa de "A Região Selvagem" é caótica, e ilustra as hipocrisias e preconceitos da nossa sociedade. No fundo, nada mais é do que uma obra sobre uma mulher se reerguendo depois de tragédias familiares e tentando sobreviver dentro de uma sociedade machista, misógina, ultrarreligiosa e homofóbica, percalços que todos nós conhecemos tão bem. Um longa sobre uma mulher que encontrar o prazer nos tentáculos de um alienígena não poderia ser menos que sensacional - não por acaso é pesadamente inspirado por "Possessão".

A Forma da Água (The Shape of Water), 2017

Direção de Guilhermo Del Toro, EUA.
Um dos melhores vencedores do Oscar de "Melhor Filme" do século, "A Forma da Água" segue uma tímida e reprimida mulher muda. Pela sua deficiência, ela se isola da maior parte do mundo, jamais encontrando um par. A situação muda quando ela conhece, dentro da instalação militar secreta na qual trabalha, um anfíbio humanoide vindouro da Amazônia, capturado para estudos. Só que ela se apaixona perdidamente pela criatura, que, de uma maneira muito estranha, se afeiçoa à ela na mesma medida. "A Forma da Água" traz um dos romances mais absurdos da história da Sétima Arte e consegue ainda mais sucesso quando aquele amor é tão verdadeiro sem que suas partes troquem uma palavra falada sequer.

***

Crítica: a cultura do cancelamento e como a Netflix estragou o ótimo “Lindinhas”

Atenção: o texto contém detalhes da obra.

Lá estava eu na minha passeada pelo Twitter quando vejo a hashtag "#CancelNetfix" nos Trend Topics, os assuntos mais falados do mundo no momento. Pensei que seria revolta de fãs por alguma série sendo cancelada pela plataforma ou algo do tipo, então continuei rolando a timeline. A hashtag permanecia no dia seguinte, junto com mais uma: "#Pedoflix". Okay, algo sério estava acontecendo.

E o que aconteceu foi: na última quinta (09), a Netflix lançou o filme "Lindinhas" (Mignonnes) no seu catálogo. O longa, uma produção francesa e senegalesa, estreou no Festival de Sundance no comecinho de 2020, recebendo ótimas críticas e o prêmio de "Melhor Direção" para sua realizadora, Maïmouna Doucouré - e a Netflix correu para adquirir os direitos de exibição internacional. Como podemos ver, até Sundance tudo estava indo bem, o problema começou quando a Netflix colocou as mãos no filme.

E a bomba estourou quando a plataforma decidiu o marketing promocional da obra: o pôster escolhido era bastante diferente da arte original. Como vemos abaixo, o cartaz francês é colorido e celebrativo, mostrando suas protagonistas em posição de alegria e liberdade, o que quase todo coming of age quer exalar na tela. No entanto, a arte feita pela Netflix coloca as meninas em um figurino curtíssimo e poses provocantes. Elas, no filme, têm 11 anos. Juntamente com o nome do filme, "Lindinhas", a falta de contextualização da cena em questão (que está no filme) gerou revolta na internet, e com muita razão. Nem é preciso ser um entendedor de semiótica para ver a discrepância entre as duas imagens e o que elas querem vender - e, ironicamente, a Netflix fez exatamente o que a obra critica.

Pôster original francês X Pôster internacional feito pela Netflix

A revolta virtual levou a Netflix a soltar uma nota de desculpas, dizendo: "Nós estamos profundamente arrependidos pela arte inapropriada que usamos para 'Lindinhas'. Não é correto - e nem representa o filme. Nós atualizamos as artes e descrições do filme". É meio alarmante pensar que a arte passou por diversas pessoas e departamentos e ainda assim conseguiu ver a luz do dia sem ser barrada. A retratação da plataforma demonstra que reivindicações online são, sim, efetivas, e a vida poderia seguir. Mas não seguiu.

O terreno já estava capinado e adubado para o que chamamos de "cultura do cancelamento": a Netflix estava permanentemente maculada pelo júri da internet, acusada de promover a pedofilia (?). Até o momento que escrevo este texto, o filme está sendo massacrado pelo público, com nota 2.1/10 no Imdb e um assustador 0.6/10 no Metacritic, o extremo oposto dos comentários da crítica. Tive que parar tudo e assistir ao filme para saber se o cancelamento em massa era fruto de justiça ou pura histeria coletiva - e, confesso, só soube da existência da fita por meio da turba com foices nas redes sociais.

A película gira ao redor de Aminata (Fathia Youssouf Abdillahi), uma menina recém-chegada em Paris com a família, vindoura do Senegal. Eles agora moram em um dos bairros pobres da capital, e Amy carrega o peso da religião de sua família nas costas. Desde sempre ela ouve como a mulher deve respeitar e obedecer seu marido, e que suas vidas orbitam ao redor do matrimônio. Aminata olha tudo com cara de que concorda com nada daquilo. Na nova escola, ela conhece um grupo de meninas que, apesar de dividir o corpo geográfico com Amy, vive em um universo totalmente diferente: elas usam roupas curtas, não andam "na linha" e possuem um grupo de dança - chamado de "As Lindinhas". Os olhos de Amy se enchem ao ver a realidade delas.

Aqui está um dos pilares fundamentais do coming of age, quando uma protagonista quer se encaixar em um mundo que não é seu - imediatamente lembrei do ótimo "Garotas" (2014), da proprietária do cinema francês contemporâneo, Céline Sciamma. Ambos, além de se passarem no mesmo lugar, anseiam ir até o cerne da relação de um grupo de meninas que crescem a partir dos laços ali criados.

Dentro de casa, o dilema de Amy é com o pai: ele chegará do Senegal com outra esposa - a cultura permite a poligamia dos homens. Ela vê como a mãe tenta esconder a dor de saber que o marido escolheu outra mulher e como é irrelevante para ela seus sentimentos sobre o fato. Sua tia empurra a ideologia da religião à força na menina, sendo preparada para "virar uma mulher" (a partir da menstruação), o que apavora Amy.


E lá está ela: sufocada entre duas culturas tão opostas e tão fortes. Uma enclausura a figura feminina enquanto a outra a liberta, contudo, essa liberdade extrapola os limites do bom senso - e o roteiro critica os dois extremos. A fita não tem rodeios em filmar como as meninas estão cada vez mais cedo abraçando uma cultura que as sexualiza. Por meio de videoclipes e Instagrans, elas estão a um clique das selfies de figuras como Kim Kardashian e Kylie Jenner, a um clique de videoclipes como o de "WAP" da Cardi B e Megan Thee Stallion, com seus corpos volumosos em roupas minúsculas e reveladoras (e totalmente dentro dos seus direitos absolutos de existirem, não pense o oposto).

Com o montante de atenção e apreço, é aquele tipo de corpo e life style que é o desejado, principalmente para garotas, que sofrem desde sempre a pressão por uma beleza inatingível. Esse tipo de conteúdo é apropriado para garotas daquela idade? Quem deve fiscalizar isso? Importante pontuar que toda a produção ao redor das atriz mirins (que arrasam) foi feita com supervisão dos pais, apoiando as discussões do texto. "Eu explicava tudo que estava fazendo e as pesquisas que fiz antes de escrever a história. Fui muito sortuda que os pais das meninas também eram ativistas, estão estávamos todos no mesmo lado. Naquela idade, as meninas já tinham visto aquele tipo de dança. Qualquer criança com um celular pode achar esse tipo de imagem nas redes sociais hoje em dia", disse a diretora sobre a motivação por trás do filme.

Amy e suas novas amigas treinam exaustivamente para um concurso de dança que acontecerá em breve. Enquanto assistem a vídeos no YouTube, vão aprendendo novos passos para garantir o prêmio - e o filme pincela em vários momentos o quão sexualizado será o produto final, todavia, choca quando vemos a coreografia executada no concurso. É desconcertante ver menininhas de 11 anos rebolando e fazendo gestos sexuais, aprendidos nos smartphones, e Doucouré faz questão de mostrar a reação da audiência presente diante do espetáculo horrendo: todos vão de incredulidade a total assombro. Uma mãe na plateia cobre os olhos da filha.

Então "Lindinhas" levanta questionamentos urgentes: de quem é a culpa por tudo isso? É das meninas, que não possuem discernimento na malpropriedade da dança? É da facilidade de acesso do mundo moderno, com conteúdos infinitos nas mãos de quem possuir um aparelho conectado com a internet? É dos pais das meninas, que não tomam cuidado com o tipo de material consumido pelas filhas? É da sociedade, que incentiva cada vez mais cedo a "adultizar" crianças e adolescentes em cima de salto alto, croppeds e batons?

Não dá para apontar o dedo para um culpado: todos nós somos. As meninas são as últimas a serem responsabilizadas por não possuírem base sólida para entender a dimensão de seus atos, e isso é reflexo, também, da falta de educação sexual em casa e nas escolas. Garotas são distanciadas ao máximo de qualquer debate na temática, ilustrado na cena em que uma delas encontra uma camisinha usada e as outras surtam achando que ela, só por ter tocado, "pegou AIDS". Com discussões acerca, as meninas se reforçariam de armaduras para se proteger, afinal, vivemos na cultura do estupro. Ao esconder o sexo da vida delas, a sociedade acaba fortalecendo a postura predatória do homem.


O roteiro vai superficial e acertadamente na figura dos pais das meninas - com exceção da família de Amy. Não há muita noção dessas figuras, como se elas se educassem sozinhas, uma triste realidade. E como culpar esses pais tão pobres, que não possuem tempo de fiscalizar com afinco a educação dos filhos quando devem se desdobrar para trabalhar e sobreviver? Uma delas fala que basicamente não vê mais os pais, criando-se na vida, nas ruas. O sistema é cruel demais e são camadas em cima de camadas que vão piorando a situação daquelas garotas.

Já percebemos que o roteiro de Doucouré não apenas coloca no ecrã um leque de problemáticas ao redor da vida de crianças e adolescentes diante da sexualização (com alguns exageros que poderiam ser lapidados) como também introduz questionamentos que vão além da tela. Então por que tantos comentários odiosos? O que justifica uma nota 0.9 para o filme? A resposta está no olhar de patrulha. Esse conceito - que tive contato por meio da maravilhosa cantora Mahmundi - é sobre como estamos 24h por dia esperando um deslize de alguém na internet e como levamos esse deslize para níveis desproporcionais a fim de recebermos o certificado de "desconstruidão". Como a Netflix errou feio no marketing de "Lindinha", a histeria coletiva deitou e rolou.

Em momento n-e-n-h-u-m o longa glorifica o comportamento das meninas, pelo extremo contrário: é um filme bastante triste e desconfortável sobre a lamentável situação que resume tão bem a realidade do lado de cá. Lembra da Melody? A cantora mirim de (agora) 13 anos viralizou nas redes, e é só você entrar no Instagram dela para notar uma imagem longe de alguém de 13 anos. Muita revolta já aconteceu pela forma como a carreira da menina - gerenciada pelo pai - é cunhada na sexualização, e isso é só um exemplo dentro de milhares, famosos ou anônimos. Já viu as fotos de adolescentes com seios marcados por baixo das camisas e muita maquiagem e pensou "Nossa, eu nessa idade estava brincando" enquanto eles posam em fotos sensuais ou adultizadas? Pois é. É uma montanha-russa o desenvolvimento de Amy: ela começa brincando com o irmão, passa pela adultização que desmorona seu emocional e termina em uma das cenas mais lindas do ano, quando finalmente volta a ser criança.

Entrando na hashtag "#Pedoflix", vi váaaarios tweets com a cena do concurso e legendas inflamadas sobre como a Netflix reforça a pedofilia com o filme. É um desserviço (para dizer o mínimo) pegar uma cena, retirar de todo o seu contexto e postar em rede social para ganhar likes e levar para frente uma ideia que não existe. É muito apelativa a facilidade de dar RT em comentários assim, afinal, é mais prático assistir a um vídeo de 1 minuto e cunhar uma opinião do que assistir aos 96 minutos de duração. Em tempos que tanto se fala em "fake news", tirar conclusões a partir de tweets assim é o mesmo que ler uma manchete e afirmar sem ler toda a matéria (e se ela é, de fato, verdade). Esse é um dos enormes males da maneira como consumimos internet atualmente: tomamos como verdade sem nos aprofundarmos no tópico.

Maïmouna Doucouré, que obviamente não teve poder algum na forma como seu filme foi inicialmente vendido, disse em entrevista que que se chocou com o número de ameaças de morte que recebeu com a explosão do filme pós-Netflix. Ela não foi consultada sobre as estratégias de marketing adotadas e recebeu um telefonema do próprio CEO da plataforma, desculpando-se pelo ocorrido. No entanto, era tarde demais. O fenômeno ao redor de "Lindinhas" é um afinco estudo sobre a cultura do cancelamento e como as pessoas estão ávidas para eleger o anticristo da semana e derramar ódio sem total embasamento. Se a Netflix errou ao criar a arte inadequada para a obra, é um erro pequeno perto da narrativa criada contra o filme, que culpabiliza (e ameaça) não apenas uma indústria, mas pessoas reais como eu e você. "Lindinhas" encontra precisão enquanto complexa e desafiadora arte contra o patriarcado e um bom objeto de estudo (apesar de involuntário) sobre a criação de percepções na internet em tempos de redes sociais.

Antes de cancelar qualquer coisa, certifique-se.


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Crítica: “Host”, o primeiro terror da quarentena, e a pior chamada já feita no Zoom

Um filme de terror com a atual pandemia do COVID-19 não seria algo que demoraria a aparecer, tinha certeza – tragédias e dramas reais são terrenos férteis para a ficção do gênero –, mas jamais imaginei que teríamos um pronto durante a pandemia. “Host” foi lançado no último dia 30 na plataforma Shudder e aproveita o momento não apenas para gerar um filme, mas também para entreter quem está na mesma situação que seus personagens - trancafiados dentro de casa como uma pessoa de caráter que respeita o isolamento social.

“Host” conta a história de um grupo de amigos que, assim como eu e você, tentam estreitar a distância por meio de videoconferências em tempos de distanciamento físico. O ecrã da película é a tela de um computador, mais especificamente através do aplicativo Zoom – que viu sua popularidade atingir níveis jamais imaginados desde o início da quarentena –, então sim, “Host” é um autêntico “browser horror”. Esse “sub-subgênero” se trata de obras que têm o computador como local dos acontecimentos; alguns exemplos: “V/H/S: Viral” (2014), “Cam” (2018); "Buscando" (2018); “The Den” (2013, o melhor disparado de todos do formato); e, é claro, “Amizade Desfeita” (2014).


O browser horror é o que há de mais moderno no impacto da tecnologia no ato de contar uma história. Porque não se trata de elementos técnicos – a tecnologia atual é capaz de construir universos inimagináveis por meio de efeitos especiais –, e sim de transformar a própria tecnologia. Ela é a própria história. E chamo de “sub-subgênero” porque ele é uma ramificação de um subgênero bem famoso (e saturado) do terror: o found-footage, aquelas fitas que simulam uma gravação real – os “A Bruxa de Blair” (1990) da vida. O que faz do browser horror uma novidade interessante é o ineditismo de seu formato – ainda temos poucos nomes lançados –, porém, com certeza, será mais uma artimanha que cairá no desgaste. Mas isso é uma conversa para outra hora.

A comparação de “Host” com “Amizade Desfeita” é inevitável. Realmente me questionava durante a exibição como fica a questão de direitos autorais, porque “Host” é basicamente uma cópia de “Amizade Desfeita”, só mudando o aplicativo usado (em “Amizade” era o Skype) e o pontapé do horror. De resto, tudo igual. E nem aponto isso como um defeito, é apenas uma contestação. Ou não, talvez seja um defeito, afinal, “Host” em momento algum consegue soar como algo inédito ou fresco – já vimos tudo aquilo antes e da mesma forma.


Todavia, temos que levar em consideração vários elementos. Ao contrário de “Amizade Desfeita”, distribuído pela gigante Universal, “Host” é um filme independente. Tudo o que se passa na frente das “webcams” (entre aspas porque obviamente não eram câmeras de notebooks) foram montados e gerenciados pelos próprios atores, incluindo os efeitos visuais como cadeiras sendo arrastadas pelo vento ou objetos voando de prateleiras. O trabalho é bem aquela parceria com amigos em que cada um faz sua parte para sair o todo, e o todo funciona.

Mas focando no roteiro – co-escrito pelo diretor, Rob Savage. Cinco amigas (há um sexto amigo, mas ele sai da chamada antes do rolê começar de fato) decidem fazer uma sessão espírita com uma médium. Ah, gente, vamos fazer o que hoje? Que tal jogar Gartic? Ou melhor, que tal uma sessão espírita? Vamos! Uma das regras dadas pela médium é que os espíritos não podiam ser desrespeitados, caso contrário, algo de ruim poderia acontecer. Uma das meninas finge que ouviu a presença de um suicida, e é claro que a brincadeira vai ser o chamariz da ruína de todos. Quem nunca em um filme de terror fez o oposto do que era dito?

Uma das coisas que mais gostei em todo o roteiro é que ele não apela para qualquer tipo de drama prévio, ou trauma, ou carga emocional, ou mistério do passado. A história começa e termina bem ali, sem precisar se apoiar em qualquer outra coisa, e isso é bastante difícil de ser realizado. É verdade que o filme é um média-metragem – possui apenas 55 minutos –, o que obviamente diminui espaço para erros, no entanto, ainda é um bom sucesso um arco absolutamente construído em 1h. As relações das personagens não possuem qualquer relevância além do fato de que elas são amigas, e ponto final. Todo o resto necessário para o entendimento é construído na tela.

E, sendo curto, o caos não demora a acontecer; e por ser um filme tão familiar, sentamos exatamente para ver espíritos sem pena dos pobres personagens. Então, sim, temos jump scares. Eu, este assíduo amante do terror, já comentei inúmeras vezes como os sustos são uma bengala que enfraquece o gênero ao ser usada de maneira gratuita – tanto que o público em geral baseia a qualidade de um filme de terror na quantidade de sustos que ele possui, e os estúdios têm total ciência disso, por isso somos maltratados com bombas como “Annabelle” (2014) e similares. Contudo, no caso de “Host”, os sustos são (na maior parte) bem pensados. Tirando o último deles, que fica gritante quando acontecerá, os sustos funcionam por aliar imprevisibilidade (na medida do possível, claro) com a qualidade do que nos assusta. Há uma cena na escada que me fez pular da cadeira, e, depois de tantos e tantos filmes de terror, me assustar é difícil.


Mas não só de “Amizade Desfeita” vive “Host”. O filme é uma pequena colcha de retalhos de vários nomes do terror, usando referências charmosas. Por exemplo, há uma cena em que uma das meninas joga um pano no ar e ele fica no formato do espírito, clara referência ao fantasma clássico de lençol – inclusive há essa cena em “O Homem Invisível” (2020). Em outro momento, uma das personagens joga farinha no chão para ver os passos do espírito, igual em “Atividade Paranormal” (2007). O espírito, inclusive, andou assistindo à franquia e adorava abrir todas as prateleiras das cozinhas com a mesma violência de Toby. E pessoas sendo arrastadas de um lado para o outro? Temos sim.

Foi muito bom ver, também, o cuidado da produção em não usar a pandemia como um cenário sem peso para o roteiro. As personagens comentam como está sendo o distanciamento e o que fazem nesse “nOVo NoRMaL”, além de cumprimentarem as pessoas fora do isolamento com uma batidinha de cotovelos – fiquei pensando como, daqui a 50 anos, poderemos relembrar com apuro como foram esses meses tão marcantes nas nossas vidas ao assistir ao filme. Mas o melhor é na sequência em que uma das garotas, ao sair de casa visando fugir do espírito, coloca sua máscara e corre para a rua. A menina estava sendo seguida por uma entidade sobrenatural assassina e MESMO ASSIM lembrou de colocar a máscara, pois já bastava uma ameaça para matá-la. Hoje não, corona vírus. Você, que diz que saiu de casa e esqueceu a máscara, não tem desculpa, dê meia volta e vá buscá-la.

“Host”, o primeiro terror da quarentena, tem tudo o que a ela precisa: é um filme de terror curto, divertido, bem realizado e com sustos para entreter a plateia. Além disso, se passa na tela de um computador, e com os cinemas fechados, temos a imersão completa quando deixamos de lado nossos desktops para darmos lugar à tela de trabalho amaldiçoada das personagens. Se não é inédito e beira o plágio, aproveita o momento para ser um filme certo na hora certa, porque, há quase meio ano trancados dentro de casa, tudo o que queremos são alguns minutos de espairecimento, e nada melhor do que espairecer com demônios sanguinários no Zoom. Não vale mais reclamar daquela aula vista pelo aplicativo, as pobres meninas tiveram uma sessão bem pior.


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Lista: 10 filmes com tramas que se passam em até 24h

Ah, o Cinema, que arte maravilhosa, não é mesmo? Capaz de nos levar para diferentes lugares, épocas e até realidades, a Sétima Arte é uma caixinha inesgotável que não conhece limites. Com histórias enormes que abocanham gerações, costumamos associar um filme com a captura de um longo período de tempo. Mas e aquelas que se passam durante um dia?

Talvez seja ainda mais difícil fazer um arco narrativo com começo, meio e fim quando a duração desse arco é de até 24h. O que pode acontecer de tão definitivo nesse meio tempo? Trouxe 10 filmes que mostram como absolutamente tudo pode mudar em apenas um dia.

O critério para a escolha foi, além da qualidade, claro, o fato do longa em questão ter sua trama desenvolvida em até 24h. São filmes do mundo inteiro, com diferentes abordagens, temáticas e técnicas de filmagem para darem vida ao dia em questão na tela. Nossa vida pode mudar num piscar de olhos, e é tão fascinante quanto assustador aceitar isso. Como sempre, todos os textos são livres de spoilers e prontos para te convencer a embarcar em cada um dos dias.


Direções (Posoki), 2017

Direção de Stephan Komandarev, Bulgária.
"Direções" faz com que o espectador entre no banco do carona de inúmeros taxistas durante um dia quando um motorista comete assassinato e suicídio por não conseguir pagar as taxas altíssimas do banco. O filme de Stephan Komandarev é um road movie búlgaro, porém, poderia estar nas ruas brasileiras: aquela noite é um espetáculo misantropo e entra nas veias urbanas com o intuito de fixar no globo ocular da plateia uma cidade cuja esperança já foi embora. De suásticas nazistas pichadas nas paredes à corrupção impregnada em cada um pelo sistema capitalista, "Direções" é uma irretocável obra-prima que extrai o que há de mais extraordinário no pessimismo artístico.

Tangerina (Tangerine), 2015

Direção de Sean Baker, EUA.
"Tangerina" vai na cola de uma prostituta e sua amiga - ambas interpretadas por atrizes trans -, que, ao descobrirem a traição do cafetão, saem em busca do traidor e sua amante. Qual o cerne do filme? A triste e estreita ligação entre a transsexualidade e a marginalização. É nada confortável encarar de frente os vários tópicos que a obra escancara sem vergonhas, porém, "Tangerina" é um filme sobre como a sororidade é peça indispensável para a sobrevivência de pessoas ainda varridas para debaixo do tapete. Longe de um trato plástico e artificial na tela, "Tangerina" vem como um sopro de ar livre ao dar voz, provocar e abordar uma realidade marginalizadora de forma crível, correta e socialmente relevante. E foi inteiramente filmado com celulares.

Victoria (idem), 2015

Direção de Sebastian Schipper, Alemanha.
"Victoria" é a definição do rolê que você pensa "deveria ter ficado em casa". A protagonista está em uma festa e conhece um cara, rapidamente criando uma forte ligação. Mas os amigos do rapaz devem sair para quitar uma dívida, arrastando Victoria junto. Esse filme alemão não apenas é uma corrida madrugada adentro como leva o título desta lista ao extremo pé da letra: é inteiramente filmado sem cortes, ou seja, o filme começa e termina exatamente como está na tela. E não se trata de falsos planos-sequência - como em "Birdman" ou "1917" -, a câmera é ligada e só desliga 138 minutos depois. Uma experiência pra lá de única.

Bom Comportamento (Good Time), 2015

Direção de Josh Safdie & Benny Safdie, EUA.
O filme que apagou de vez qualquer dúvida vampiresca do talento de Robert Pattinson enquanto ator, "Bom Comportamento" segue o protagonista fazendo um malsucedido assalto a banco e vendo seu irmão sendo preso. Ele corre contra o tempo para salvar a própria pele e tirar o irmão da cadeia antes que a polícia e outra gangue agarre seu pescoço. O “Depois das Horas” desse século, “Bom Comportamento” é um filme de amor bandido bastante sincero, que consegue compor personagens e situações para gerar a simpatia do público, mesmo com personas tão problemáticas. E possui os créditos finais mais bem valorizados dos últimos tempos.

A Última Parada (Fruitvale Station), 2013

Direção de Ryan Coogler, EUA.
O filme de estreia do futuro diretor de "Pantera Negra", "A Última Parada" é sobre o último dia de vida de Oscar Grant, homem negro assassinado pela polícia em 2009. A legitimação do porte de arma por meio dos integrantes das polícias o tornam "seres superiores", quase com permissão para matar. Um filme revoltante que mostra o abuso de poder pela polícia e como essa vã superioridade pode custar com a vida de muitos - e não se surpreenda caso a vida de George Floyd, que teve o mesmo destino de Grant, também vire filme.

4 Meses 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni 3 Săptămâni și 2 Zile), 2007

Direção de Cristian Mungiu, Romênia.
No final da década de 80, no declínio do Comunismo romeno, uma estudante busca por um aborto, ilegal no país. Com a ajuda de uma amiga, ela conhece um médico clandestino apto para o procedimento, mas ele cobra muito mais do que o esperado quando descobre o real avanço da gravidez. "4 Meses 3 Semanas e 2 Dias", vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, é genial já pelo título, e, além de trazer um tema difícil e controverso, consegue ser um ato sobre como uma decisão pode impactar a vida de mais pessoas que gostaríamos. A protagonista tem apenas aquele dia para escolher qual será o rumo da sua vida dali para frente.

Clímax (Climax), 2018

Direção de Gaspar Noé, França/Bélgica.
"Clímax" não é uma produção recomendável, mas pelos motivos corretos: quando um grupo de dançarinos descobre que a bebida da festa foi batizada com LSD, o lado mais animalesco de cada um vem à superfície. Excluindo um rápido prólogo com entrevistas dos personagens, embarcamos na noite medonha dentro de um galpão que não garantirá a sobrevivência até a manhã seguinte. Esse é um filme que não só demanda como suga o emocional do público, tão massacrado quanto os personagens, presos em uma bolha ácida que não escolheram e nem podem escapar. E talvez seja a impotência - tanto nossa como deles - que faz "Clímax" tão bizarro.

Gravidade (Gravity), 2013

Direção de Alfonso Cuarón, EUA/Reino Unido.
Um dos filmes definitivos não apenas para o sub-gênero "cinema espacial", mas para toda a arte, "Gravidade" dispensa grandes apresentações. Quando um desastre acontece e deixa uma astronauta à deriva e sozinha na imensidão do cosmo, ela deve reaver toda a força e coragem para conseguir voltar à Terra. A montanha-russa intergalática de Afonso Cuarón (que lhe rendeu a primeira leva de Oscars) é uma experiência tão competente que houve quem jurasse que a fita havia de fato sido filmada no espaço. Não dá para julgar.

Os 8 Odiados (The Hateful Eight), 2015

Direção de Quentin Tarantino, EUA.
Todo lançamento de um filme do Tarantino é um verdadeiro evento, mas o parto de "Os 8 Odiados" foi mais complicado. O roteiro vazou em 2014, a produção foi cancelada até que o diretor mudou de ideia, reescreveu o roteiro e as filmagens começaram. Confinados num pensionato no meio de uma nevasca, Tarantino reconstrói a Guerra Civil americana para escancarar o racismo enraizado na sociedade, com, claro, muitos baldes de sangue, humor negro e performances brilhantes. Poderia, sim, ser um pouco mais curto (são mais de 3h), porém quando a marcha engata, temos uma loucura eufórica com boas doses de tensão e divertidas sacadas, além do usual domínio de cena de Tarantino, capaz de orquestrar grandes cenas num local e tempo restritos. O último bom filme do diretor - fãs de "Era Uma Vez em Hollywood" favor não tumultuar.

O Segredo da Cabana (The Cabin in the Woods), 2012

Direção de Drew Goddard, EUA.
Uma galera jovem vai aproveitar as férias em uma cabana na floresta, local que vai ser o túmulo de muitos. Saindo em um trailer pela manhã, o plano por trás da simples viagem é fazer com que ninguém veja a luz do sol no dia seguinte. Soa familiar? Sim, essa é uma premissa pra lá de conhecida, e é proposital. "O Segredo da Cabana" vai no que há de mais óbvio e clichê no terror norte-americano e, de forma sagaz, reinventa uma roda já há muito tempo gasta. Um terrir legítimo (terror + comédia), o filme enterrou essa história específica de maneira criativa, lúdica e que jamais deixa a bola cair, criando camadas cada vez mais eletrizantes. O clímax, uma enorme homenagem ao gênero, é sensacional.

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