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Charlize Theron é uma mercenária imortal no novo trailer de “The Old Guard”, novo filme da Netflix

Charlize Theron anda embarcando em uns papéis bem bacanas em filmes de ação desde "Mad Max: Estrada da Fúria", filme em que interpretou a já clássica Furiosa. Já foi vilã em "Velozes e Furiosos: 8" e protagonista badass em "Atômica". Agora ela é uma imortal em "The Old Guard", o novo filme da Netflix que estreia no próximo dia 10 de julho.

Um novo trailer foi divulgado nesta quinta-feira (02) e mostra um pouco sobre a trama. Em "The Old Guard", acompanharemos Andromache of Scythia, uma imortal que precisa proteger Nile (KiKi Layne), uma nova imortal descoberta. O bacana é que já neste trailer descobrimos que os personagens não são totalmente imortais: em algum momento o "poder" perde efeito, eles só não sabem quando.


Além de Charlize e Kiki, o longa-metragem conta com Chiwetel Ejiofor ("Doutor Estranho e o Multiverso da Louruca") e Matthias Schoenaerts ("Red Sparrow"). "The Old Guard" conta com a direção de Gina Prince-Bythewood, responsável por alguns episódios de séries como "Todo Mundo Odeia o Chris" e o filme "Além dos Limites".

Os 10 melhores filmes de 2020 (até agora)

A melhor época do ano para o escritor que cá se encontra é a época de fazer as listas de melhores do mundinho cinematográfico no ano. Gasto horas catalogando tudo o que assisti até a marca temporal que quero fechar (seja a de metade do ano, ano inteiro ou da década), a fim de trazer a você, leitor, o que considero o suprassumo dos lançamentos (dentro da enorme cerquinha da subjetividade, é claro). Mas 2020 está sendo um ano diferente.

Com a pandemia, a indústria cinematográfica parou. Não há filmes em produção no momento, e os já finalizados foram adiados até que as salas de cinemas possam ser reabertas. O mercado brasileiro - ironicamente - acabou sofrendo menos com isso por receber filmes que já rodaram em outros países meses antes - vários do Oscar 2020, por exemplo, que estrearam internacionalmente em novembro e dezembro, só chegaram aqui após a virada da década. No entanto, mesmo com o fluxo de obras sendo drasticamente reduzido, ainda conseguimos assistir a filmes imperdíveis que salvaram nosso ano (e nossa quarentena). Aqui estão meus 10 longas favoritos de 2020 (até agora).

De indicados e vencedores do Oscar a pérolas de todos os cantos do mundo, os critérios de inclusão da lista são os mesmos de todo ano: filmes com estreias em solo brasileiro em 2020 - seja cinema, Netflix e afins - ou que chegaram na internet sem data de lançamento prevista, caso contrário, seria impossível montar uma lista coerente. E, também de praxe, todos os textos são livres de spoilers para não estragar sua experiência - mas caso você já tenha visto todos os 10, meu amor por você é real. Preparado para uma maratona do que há de melhor no cinema mundial até agora?


10. Queen & Slim (idem)

Direção de Melina Matsoukas, EUA.
"Queen & Slim" é um daqueles filmes corretos lançados no momento correto. Seguindo o casal protagonista, a vida dos dois é permanentemente afetada quando são parados com um policial branco, que - por basicamente nada - quase os mata. Em legítima defesa, Slim atira no policial, desencadeando uma fuga nacional enquanto protestos contra abusos raciais rolam pelo país. Estreia no Cinema de Melina Matsoukas, diretora de vários videoclipes, como "Formation" da Beyoncé, é bastante intrigante - e também triste - que "Queen & Slim" tenha sido lançado poucos meses antes de George Floyd perder a vida. Floyd não foi o primeiro (e, infelizmente, não deve ser o último) a passar pelo o que passou sob o poder de um sistema que não encontrou falhas ao longo do caminho, e sim foi construído para ser assim, o que faz de "Queen & Slim" um quadro e um aviso de uma sociedade claramente doente.

9. Nunca Raramente Às Vezes Sempre (Never Rarely Sometimes Always)

Direção de Eliza Hittman, EUA/Reino Unido.
O aborto é um dos temas mais controversos da nossa sociedade atual, encontrando discussões muito calorosas sobre os dois extremos do debate. "Nunca Raramente Às Vezes Sempre" é a carta-aberta de Eliza Hittman sobre a temática. Uma garota de 17 anos está grávida e, com a ajuda da melhor amiga, vai até Nova Iorque para realizar um aborto. A superfície do longa carrega características que, de maneira previsível, nos dará a ideia de irresponsabilidade por parte da garota, contudo, o roteiro nos empurra para um mergulho muito complexo que explica tudo o que ocasionou a protagonista estar ali. A cena que dá título ao filme já é uma das mais incríveis do ano pela veracidade e dor que o corpo feminino está sujeito nas mãos do patriarcado.

8. O Poço (El Hoyo)

Direção de Galder Gaztelu-Urrutia, Espanha.
"O Poço" talvez seja o filme mais badalado de 2020. Não por ser o mais assistido ou o melhor, mas por ter sido lançado em um terreno absurdamente fértil para fomentar suas discussões - e foram inúmeras ao longo das semanas após a Netflix jogar a obra em seu catálogo. Conhecemos uma prisão vertical que tem uma curiosa (e cruel) forma de alimentar seus detentos: através de um poço, onde o andar de baixo comerá o que sobrou do andar de cima. As discussões de “O Poço” soam óbvias – é só você ler a sinopse que a fundamentação central da fita estará presente. Sim, esse é um filme que quer mostrar como a estruturação do Capitalismo é falha, desumana e cruel – e provavelmente você, proletariado, já sabe disso. “O Poço” é uma alegoria brilhantemente terrível da natureza humana que gera indagações ao mesmo tempo que executa um trabalho de gênero delicioso.

7. E Então Nós Dançamos (And Then We Danced)

Direção de Levan Akin, Geórgia/Suíça.
A melhor fita LGBT do ano até o momento, "E Então Nós Dançamos" vem de um país que você talvez nem saiba onde se encontra: a Geórgia, um pequeno país na divisa entre a Europa e a Ásia. Com um cinema ainda proporcional ao tamanho do país, não se engane, a Geórgia é dona de filmes fantásticos, e "E Então Nós Dançamos" foi o selecionado ao Oscar 2020. Um dançarino vai ter que escolher entre aceitar sua sexualidade em um país sufocantemente homofóbico ou viver uma mentira assim que outro dançarino chega em sua escola. A dança georgiana, presente em todo o filme, é usada como catalizador desse amor proibido que termina, também, como um belíssimo documento cultural - e, sem surpresa, foi recebido com protestos pedindo o cancelamento das sessões. No entanto, o filme foi lançado, uma vitória para a resistência LGBT.

6. Devorar (Swallow)

Direção de Carlo Mirabella-Davis, EUA.
Esse pequeno horror indie causou desde a estreia no Festival de Tribeca ano passado, e, ainda bem, não ficou apenas no shock value: uma jovem e recém-casada mulher tem dificuldade em manter o casamento e a vida doméstica. Afogada em tédio e distanciamento emocional, ela descobre que está grávida, fato que desencadeia um transtorno que a faz engolir os mais diferentes objetos. "Devorar" recebeu uma embalagem colorida, harmônica e deliciosa, um contraste perfeito para toda a carga obscura de sua trama. Carregado pela atuação exemplar de Haley Bennett, o filme é uma mistura de "Grave" (2016) com "O Bebê de Rosemary" (1968), transformando o drama de sua protagonista em potência do horror. Bon appétit, baby.

5. Viveiro (Vivarium)

Direção de Lorcan Finnegan, Irlanda.
Todo ano precisamos de pelo menos um longa que seja a definição de "amei, mas não entendi", e "Viveiro" é o nome perfeito para isso. Quando um casal visita um conjunto habitacional em busca de um imóvel e fica preso nas ruas com casas totalmente iguais, rapidamente percebem que foi sua última decisão na vida. Estamos vivenciando uma fase interessante na mistura de horror e ficção científica, casando criatividade com as colunas dos dois gêneros: atmosfera e reflexão. "Viveiro" sem dúvidas não é um longa para qualquer paladar: é uma fita lenta, estranha, sufocante e que não vai entregar seus segredos de mão beijada. Sua beleza imagética esconde toda sua bizarrice com uma estética que passeia por "Edward Mãos de Tesoura" (1990) e "O Show de Truman" (1998), e transforma a casa própria, uma das mais desejadas paisagens, em um verdadeiro labirinto em que cada esquina é um pesadelo.

4. Joias Brutas (Uncut Gems)

Direção de Josh Safdie & Benny Safdie, EUA.
Adam Sandler é um ícone do cinema norte-americano, mas pelos motivos errados. Ele já possui nada mais nada menos que NOVE Framboesas de Ouro (que premia o que há de pior no Cinema), inclusive sendo o detentor do recorde de maior número de prêmios em uma noite: "Cada Um Tem a Gêmea Que Merece" (2011) foi indicado a sete Framboesas e ganhou todas. Todavia, Hollywood adora ver um nome falido encontrando o Olimpo com alguma fita, e Sandler encontrou com "Joias Brutas". Os diretores, os irmãos Josh e Benny Safdie, adoram pegar atores considerados ruins e transformarem em donos de prêmios - como Robert Pattinson com "Bom Comportamento" (2017) -, e o Olimpo de Sandler foi fabuloso: dono de uma joalheria, ele é viciado em jogos de azar e vai levar a vida de todo mundo ao redor numa montanha-russa eletrizante, marca dos irmãos Safdie. "Joias Brutas" é um estudo de personagem raro e imperdível que entrega muito mais que um ator ruim conseguindo quebrar o estigma.

3. O Chalé (The Lodge)

Direção de Veronika Franz & Severin Fiala, Reino Unido/EUA.
O segundo filme da dupla austríaca que nos presenteou o clássico moderno "Boa Noite Mamãe" (2014), "O Chalé" satisfará o paladar de quem gosta do tipo de terror do primeiro. Duas crianças perdem a mãe quando ela se suicida depois de um ex-marido começar a namorar uma mulher nova. O pai tenta (com insistência) aproximar os filhos da namorada, que possui um passado macabro e, segundo a prole, possui algo de muito errado. Eles ficam presos em uma cabana, e situações inexplicáveis desafiam a sanidade de todos. "O Chalé" nada contra a maré do modelo atual de cinema de terror, acomodado em berrar sustos, e edifica sua atmosfera com muito cuidado, trabalhando com sugestões e temáticas geralmente tratadas com pobreza. A religião católica já perdeu as contas de quantos filmes a tomam como ethos de maneira preguiçosa, sem agarrar o quão assustador pode ser quando roteirizada da maneira certa, e "O Chalé" é um desses exemplos de sucesso, ainda mais louvável quando não possui uma trama sobrenatural, bengala batida e saturada dentro do gênero.

2. Os Miseráveis (Les Misérables)

Direção de Ladj Ly, França.
O vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2019 ao lado da obra-prima tupiniquim "Bacurau" (2019), "Os Miseráveis" é mais um filme a analisar a brutalidade da polícia (majoritariamente contra pessoas negras), tendo a França depois da vitória na Copa do Mundo 2018 como palco principal. Indicado ao Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional", o filme possui vários polos que se chocarão da mesma forma como os diferentes contextos culturais do caldeirão que é Paris, tendo um policial que atira em uma criança negra como estopim de uma revolta. É um daqueles filmes enormes, que não terminam com o rolar dos créditos, permanecendo com o espectador por muito tempo ao pôr no ecrã tantos debates pertinentes e atuais.

1. 1917 (idem)

Direção de Sam Mendes, Reino Unido.
Filme de guerra chegando em premiações, alguém ainda aguenta isso? "1917" teve o trabalho inicial de conseguir conquistar um público cansado de um molde bélico feito para arrepiar a epiderme de premiações, e o resultado é (quase) irretocável - não por acaso ganhou três Oscars e sete BAFTAs. Com foco na Primeira Guerra Mundial, o trabalho segue dois soldados que são mandados em uma missão a fim de evitar um combate ainda maior e mais trágico. Filmado com a técnica de plano sequência - como se não houvesse cortes -, "1917" possui a consciência de que toda a fotografia, som, direção de arte e qualquer elemento técnico não sustenta uma arte que é, primordialmente, o ato de contar uma história. Os pequenos tropeços são ínfimos em meio à experiência visual e sensorial que imerge o espectador nos horrores e nas glórias desse período, sendo um daqueles filmes que nos recorda o quão impressionante e indispensável é a Sétima Arte. Nenhuma outra mídia seria capaz de causar o mesmo impacto.

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Crítica: “A Assistente” traz uma ótica importante para o assédio no trabalho

Julia Garner tem apenas 26 anos, mas já se encontra no caminho perfeito para cair nas graças de Hollywood. A garota já possui um Emmy - de "Melhor Atriz Coadjuvante" pela série "Ozark" (2017-) - começou a carreira liderando dramas indies - como "Everything Beautiful Is Far Away" (2017) e o delicioso "A Fita Azul" (2012), além da ponta no clássico adolescente "As Vantagens de Ser Invisível" (2012). Ela agora retorna em mais um protagonismo que mostra todo o seu talento.

Ela é Jane em "A Assistente" (The Assistant"), estreia da diretora, roteirista e produtora Kitty Green no cinema de ficção. A australiana é conhecida pelos seus documentários, e o estilo jamais foge da tela do seu novo longa. Jane é a assistente do título, trabalhando em uma produtora de filmes. Ela é a primeira a chegar - quando o sol ainda nem apareceu - e a última a sair. Com sua mesa exatamente ao lado do escritório principal, ela é incumbida de fazer absolutamente tudo o que aparecer por lá.

A película segue exatamente um dia na vida de Jane. De tirar xérox de documentos a pegar comida e lavar a louça, Jane faz o que ninguém mais quer fazer. Em um local majoritariamente ocupado por homens, ela pode até ser chamada de "empregada" do lugar pelo leque sem coesão de atividades. O que mandarem, ela faz.


Enquanto limpava o escritório do chefe - um personagem que em momento nenhum aparece na tela -, ela encontra um brinco, e fica claro para o espectador que o ocorrido não é surpresa para a protagonista. Ela sabe que o chefe leva mulheres até lá para encontros sexuais, e sobra para Jane ter que lidar com a esposa do patrão, afinal, ninguém mais quer segurar esse abacaxi. A obra encontra muito sucesso ao ser capaz de falar apenas com imagens, com gestos e olhares de seus personagens.

Os encontros privados do chefe são de conhecimento geral. Até mesmo piadas são feitas sobre isso, como no momento em que um personagem se senta no sofá da sala presidencial e alguém fala, com gracejo, "Não sente jamais nesse sofá". Todos ao redor caem na gargalhada, menos Jane. Mesmo estando lá por apenas cinco semanas, ela já está ciente da conivência de todos com o que se passa por trás daquelas portas.

Apesar de que, sim, isso seria um embaraço, de início não fica muito explícito o motivo pelo qual Jane se demonstra tão desconcertada pelas traições do chefe. A resposta não demora: uma jovem (e bela) garçonete chega do interior para trabalhar como secretária no piso principal. Como alguém tão nova e sem a menor experiência já foi escalada para um trabalho tão importante? Na ida até o hotel - reservado pelo chefe para a garota -, ela revela a Jane que conheceu o patrão no restaurante que trabalhava, e aí estava a chave para todo o mistério. Ela foi contratada para ser aliciada, e parecia não ter a menor noção do que aconteceria.

O chefe não estava meramente pulando a cerca, ele usava seu status para conseguir sexo de jovens e vulneráveis mulheres que aspiravam subir na carreira. E Jane, que não queria perder o emprego, era conivente de maneira obrigada. Ela abaixava a cabeça para não ser demitida, mesmo com os telefonemas agressivos do patrão - que resultavam em humilhantes pedidos de desculpas da assistente.


Querendo por um fim na situação, Jane vai até o Recursos Humanos da empresa. Ela, completamente envergonhada, mal consegue formular frases com sentido, todavia, a mensagem é bem clara para o gestor. A opressão de todo o sistema grita ainda mais quando o gestor passa a impressão de que já sabia de tudo e que fará nada para ajudar, ameaçando o emprego de Jane. Ela vai embora da sala sem prestar a queixa, só para ser mais uma vez repreendida aos berros pelo patrão, que foi informado pelo RH.

A câmera da fita quase nunca deixa o rosto de Jane, e Julia Garner acrescenta mais uma performance incrível em seu currículo. O roteiro de Green auxilia e muito na sensação de que a protagonista é engolida pelo trabalho, seja nas cenas em que ela abdica de sua vida pessoal ou nas sequências em que vemos outras pessoas passando ao lado de Jane sem nem ao menos notá-la. Ali, ela era invisível, e deveria ser. O gestor de RH até solta: ela não deveria se preocupar porque não fazia o tipo do patrão. Grande alívio.

Possuindo apenas 85 minutos, uma obra relativamente curta, o ritmo do filme deveria ser mais dinâmico, porém, Green derrama seu estilo anterior e filma aquele dia de Jane de forma documental, indo nos mais irrisórios momentos da sua jornada. É quase hercúleo fugir da morosidade da narrativa em alguns momentos, que acaba caindo na chatice e na impressão de que o filme poderia ser muito mais, não nego, no entanto, tudo é trabalhado para que sintamos da maneira mais cristalina o que Jane sente convivendo com aquelas pessoas e aqueles desafios.

As engrenagens que fazem "A Assistente" andar são bem claras: o longa é mais um reforço da arte na solidificação da importância do movimento "Me Too", que denuncia o assédio na indústria do entretenimento - outro exemplo é o vencedor do Oscar "O Escândalo" (2019). Vemos por meio de Jane, carregada por uma atuação sensacional de Julia Garner, como já existe uma roda bastante delimitava e preparada para silenciar toda e qualquer mulher envolvida nas artimanhas que evocam os comportamentos predatórios dos homens em posição de poder. Mesmo não conseguindo parar essa roda, a protagonista é a ponta de um iceberg de sororidade que precisa vir à superfície assim como as portas que escondem assédios precisam ser abertas. Mas o que esperar de uma empresa que não contrata sequer uma pessoa preta?


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Crítica: “Queen & Slim” e a brutalidade policial em tempos de #VidasNegrasImportam

No dia 25 de maio de 2020, em Minneapolis, Minnesota, EUA, morria George Floyd, um homem negro de 46 anos. Sua morte ocorreu quando um policial branco, Derek Chauvin, se ajoelhou por nove minutos no pescoço de Floyd, asfixiando-o. Floyd foi detido por tentar trocar uma nota falsa de 20 dólares, e, mesmo sem oferecer resistência, foi morto pelo policial. O caso rendeu uma onda massiva de protestos ao redor do mundo que reflete sobre como vidas negras são tratadas pelas autoridades.

Bastante próximo a isso, temos o filme "Queen & Slim", longa de estreia de Melina Matsoukas no Cinema. Seu currículo é bastante extenso no mundo dos videoclipes - é dela o vídeo de "Just Dance" da Lady Gaga, "We Found Love" da Rihanna e, o mais famoso, "Formation" da Beyoncé. E, mais uma vez, Matsoukas tratava no vídeo ganhador do Video Music Award de "Clipe do Ano" a maneira como a polícia trata o corpo negro.

"Queen & Slim" segue o primeiro encontro do casal título. Queen (Jodie Turner-Smith) é uma advogada negra que não parece tão entusiasmada para estar com Slim (Daniel Kaluuya, indicado ao Oscar por "Corra!", 2017). Os dois se conheceram por meio do Tinder, e Queen, que acabara de perder um processo e ver seu cliente sendo condenado à morte, precisava de uma distração.

Após o desconfortável jantar, Slim dirige até a casa de Queen, mas no trajeto é parado por um policial branco. Não há grandes motivos para a abordagem - o rapaz realmente fez uma leve derrapagem na pista vazia -, e, mesmo sem um mandato, exige vasculhar o porta-malas do carro. Os protagonistas sabem que têm nada de comprometedor ali, porém, está estampado em seus rostos a preocupação. Por quê? Eles são negros.

No comunicado à central de polícia, a cor dos dois é repassada com ênfase. A situação rapidamente foge do controle quando o policial desnecessariamente aponta a arma para Slim e atira na perna de Queen, terminando morto quando Slim o alveja. A mulher, advogada, sabe que o destino dos dois está selado a partir de então. Dois negros matam policial branco em abordagem, a condenação é certa, não importando todos os meios que chegaram até aquele fim. Os dois fogem e deixam tudo para trás a fim de não serem presos.


A fita inteligentemente guarda os créditos iniciais todos esses primeiros minutos, só aparecendo quando a dupla decide fugir. Com a tela preta, ouvimos os dois nervosamente discutindo o que fazer enquanto os créditos rolam, como se suas vidas começassem a partir de agora. E a impressão não poderia ser mais verdadeira. Queen é incisiva ao dizer que, caso eles sejam pegos, virariam propriedade do Estado, e a escolha de palavras não poderia ser mais correta. Ela, pelos anos de experiência jurídica, sabe bem o quão diferente é o rumo entre um branco e um negro na mão da polícia.

A partir de então, a película se torna um road movie enquanto os dois fogem estradas afora. Horas depois, parando em uma lanchonete, eles descobrem que a viatura policial possuía uma câmera e o vídeo do caso está em todas as redes sociais. Enquanto a trama principal se desenrola, há uma paralela: manifestações em favor de Slim e Queen quando o noticiário informa que o policial morto já esteve envolvido na morte de um homem negro, que resultou em punição nenhuma. Sem querer, os protagonistas desencadearam um tsunami de revolta, exatamente como George Floyd no mundo real.

Tendo que abandonar todo o passado, os dois acabam tendo somente um ao outro. "Queen & Slim" é, também, um romance, e no decorrer da fuga vemos o casal conhecendo detalhes da vida um do outro, principalmente por parte de Queen, bastante reservada. É verdade que há certo clichê quando começamos o filme com o arquétipo "casal-que-não-se-gosta-mas-eventualmente-irão-se-apaixonar", todavia, a construção desse relacionamento é feita de maneira tão sensível que é capaz de superar qualquer adversidade narrativa. A forma como Queen se abre, camada por camada, é de uma beleza raramente alcançada em um filme.

Escrito por Lena Waithe - a primeira mulher negra a vencer um Emmy de "Melhor Roteiro de Comédia" -, o texto da fita é, na maior parte, bastante correto. Há, inclusive, claras indiretas para "Green Book: O Guia" (2018), o malfadado vencedor do Oscar de "Melhor Filme"; algumas sequências são bem similares (como a dos trabalhadores no campo, "emblemática" em "Green Book"), e o carro em que o casal passa a maior parte do longa é gritantemente parecido com o carro do protagonista do filme de Peter Farrelly. Gera revolta lembrar que o filmequinho de Farrelly saiu premiado com o Globo de Ouro de "Melhor Filme" quando, segundo Melina, a Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood (que promove o Globo) se negou a assistir "Queen & Slim" - e, de fato, recebeu zero indicações.


No entanto, com 132 minutos de duração, a obra escorrega na artificialidade em alguns momentos. Com o ar de "nada a perder", os protagonistas fazem algumas decisões bem puxadas, como na cena em que eles param a fuga para entrar em um bar. Para ser justo, o momento ajuda a solidificar a sensação de que a população negra está do lado dos dois, entretanto, é inegavelmente imprudente. Outras, por fim, são totalmente descartáveis, como a cena do cavalo. Queen para o carro ao lado de um grande campo cheio de cavalos e conta uma história que em nada acrescenta, mas nem é esse o problema do momento. Slim diz que quer montar em um dos cavalos, mas Queen urge para que eles continuem na fuga - mas foi ela quem decidiu parar.

As faltas de sutileza da fita são provenientes de uma ação de revolta da produção, que quer deixar de forma bem didática (até demais) como as autoridades estão enraizadas com o racismo - partindo do ponto que a polícia é cunhada na defesa de pessoas brancas contra os escravos revoltosos após a abolição. Isso pode até afastar um pouco o filme de um estado mais polido e maior, mas "Queen & Slim" é deveras humano e urgente para que detalhes o atrapalhem no grito de justiça e direitos para a população negra. Gera um vazio perceber que a plateia só descobre os nomes reais dos protagonistas depois de uma sucessão de tragédias, desencadeadas por um policial racista.

É bastante intrigante - e também triste - que "Queen & Slim" tenha sido lançado nos cinemas norte-americanos poucos meses antes de George Floyd perder a vida - o filme estreou no final de 2019 por lá. Floyd não foi o primeiro (e, infelizmente, não deve ser o último) a passar pelo o que passou sob o poder de um sistema que não encontrou falhas ao longo do caminho, e sim foi construído para ser assim, o que faz de "Queen & Slim" um quadro e um aviso de uma sociedade claramente doente.


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Lista: 11 filmes que ilustram como vidas negras importam

Sempre busquei, na minha posição de crítico, dar luz a filmes e temáticas que não chegam no grande público - por inúmeros motivos. Papel obrigatório do cargo, temos que disseminar como pudemos obras que saiam no modelo mais comercial e de fácil acesso - a roda do mercado já faz esse tipo de filme chegar em todos os cantos -, e uma dessas buscas particulares são por filmes negros.

Como questionar o privilégio branco que possuo de uma forma que não ajude somente a mim? Esse é o objetivo da presente lista. Escolhi 11 filmes com protagonismo negro que fortalecem a onda do #BlackLivesMatter - que, espero, seja uma luta diária, não um modismo que nos faz colocar hashtags em rede social. O Cinema é uma das maiores armas para a quebra de paradigmas e conscientização de pautas em prol do bom funcionamento social.

A lista em questão possui 11 fitas de todos os cantos do mundo, que, em algum grau, debatem como a vida negra existe dentro do contexto escolhido. Todos os textos são livres de spoilers e escolhi filmes dirigidos por homens e mulheres, brancos e negros, que se unem para nos lembrar o óbvio:

VIDAS NEGRAS IMPORTAM



Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight), 2016

Direção de Barry Jenkins, EUA.
O que ainda resta para falar do maior vencedor do Oscar de "Melhor Filme" do século? É inegável que "Moonlight" seja um filme triste, todavia, ao mesmo tempo, é uma obra genialmente bela, tocante e verdadeira. Aqui temos um olhar brilhante de Barry Jenkins sobre temas muitas vezes esquecidos no cinema, mas urgentes, necessários e representativos como o ser gay, o ser negro, o ser periférico, o que solidifica sua inestimável importância social. Porém, você não precisa se enquadrar em algum desses três “seres” para sentir a delicadeza devastadora que “Moonlight” provoca – mas caso se encaixe, essa é uma história para toda uma vida. A de Chiron e a sua.

As Boas Maneiras (idem), 2017

Direção de: Juliana Rojas & Marco Dutra, Brasil.
Uma empregada negra é contrata para trabalhar na casa de uma rica mulher branca. A patroa está grávida, e a empregada cuida de tudo enquanto percebe que a situação está mais estranha do que à princípio parecia. "As Boas Maneiras", mais uma dádiva da dupla Rojas & Dutra, é uma fábula urbana que trabalha os gêneros terror e fantasia de maneira notória, demonstrando, sem titubear, o quanto nosso Cinema é rico ao unir criatividade com crítica social. O abismo entre os mundos daquelas duas mulheres é escancarado de maneira bizarra.

Pária (Pariah), 2011

Direção de Dee Rees, EUA.
De uma das maiores expoentes do cinema negro norte-americano - Dee Rees -, "Pária" coloca no palco Alike, uma garota de 17 anos que passa por uma batalha interna para se aceitar como lésbica. Chamado de "semiautobiográfico" por Rees (que também é lésbica), a obra é o "Moonlight" feminino: explora as dores específicas que uma pessoa negra sofre por ser gay. Alike ainda tem o peso de ser mulher e estar fincada numa família religiosa, mais um prego na cruz que deve carregar. Visual e socialmente estonteante, "Pária" é uma pérola do Cinema em todos os quesitos, mesmo percorrendo caminhos familiares. É a sinceridade da película que arrebata.

Os Iniciados (Inxeba), 2017

Direção de John Trengove, África do Sul.
Boicotado por manifestações homofóbicas, "Os Iniciados" caiu nos braços da crítica tanto pela repressão escancarada que sofreu quanto pela qualidade ao retratar um amor gay batendo de frente com tradições africanas. Um dos melhores e mais relevantes retratos da masculinidade tóxica que o cinema já viu, "Os Iniciados" é película primordial para citarmos nossos próprios privilégios ao passo que os notamos: vivemos num corpo social que permite liberdade das amarras do patriarcado em vários níveis, enquanto naquele meio do filme não há escapatória. Esse "Moonlight" versão africana, que foi semifinalista ao Oscar 2018, se diferencia da fatia gay no cinema ao trazer grande e valioso reforço cultural para compor suas situações, encurralando seus personagens, encarcerados em tradições tóxicas que oprimem e rendem discussões fortes, cruas e urgentes no ecrã.

Eu Não Sou Uma Bruxa (I Am Not A Witch), 2017

Direção de Rungano Nyoni, Zâmbia/Inglaterra.
Se “Os Iniciados” é a exposição de tradições masculinas africanas, “Eu Não Sou Uma Bruxa” é sobre ritos femininos no continente, mais precisamente a cultura da bruxaria. Obra fundamentalmente sobre mais uma exploração feminina sob gananciosas mãos do homem, dessa vez temos um contexto inédito no cinema, o que a faz ainda mais relevante. O plano de fundo da produção pode extrapolar as tradições africanas e se encaixar em diversos modos de tratamento rebaixador e degradante que a figura da mulher passa em diversas sociedades até presente momento. Documento cultural necessário e visualmente espetacular, "Eu Não Sou Uma Feiticeira" é realização cinematográfica que se apropria do status de "obra-prima".

Corra! (Get Out), 2017

Direção de Jordan Peele, EUA.
O último terror a chegar no Oscar de "Melhor Filme", "Corra!" é um evento cultural e marco no gênero. Um jovem negro finalmente vai à casa dos pais da namorada branca. Há toda uma tensão velada, que parte do próprio protagonista, mas todos não param de falar o quanto estão de braços abertos para a diversidade do casal, o que, não surpreendentemente, é faxada para um plano maquiavélico. O longa não está preocupado em esconder seus clichês e óbvias referências; o que “Corra!” está preocupado é em compor momentos que elevam o seu gênero, carregado por cenas geniais e discussões sobre racismo postas de maneira lúdica, esperta e incisiva pelas lentes do diretor/roteirista Jordan Peele - que levou o Oscar de "Melhor Roteiro Original". Nunca um filme foi tão inteligente ao expor como a cultura negra é apropriada.

Infiltrado Na Klan (BlacKkKlansman), 2018

Direção de Spike Lee, EUA.
Spike Lee é porta-voz do cinema afro-americano há décadas, e provavelmente ele encontrou seu nirvana em 2018. "Infiltrado na Klan" é fincado sobre uma louca história real de um policial negro que arma um plano para se infiltrar na Ku Klux Klan, a seita de supremacia branca que assola os EUA até hoje. A pertinência temporal do longa consegue assustar quando a KKK começa a mostrar suas garras em pleno séc. XXI, consequentemente, o tapa na cara de "Infiltrado na Klan" é forte. Sem o intuito de educar brancos (e sim de empoderar negros), o filme é um terror da realidade - a última cena é para aniquilar qualquer segurança da época em que vivemos (e estamos, literalmente, vivendo)

Garotas (Bande de Filles), 2014

Direção de: Céline Sciamma, França.
Céline Sciamma é uma das mais fabulosas cineastas em atividade; todo o seu Cinema é baseado na análise de gênero em diversos contextos, épocas e abordagens. Seu ímpeto para fazer "Garotas" surgiu pela falta de filmes franceses que estudem o foco do filme: a adolescência de meninas negras no país. Ao ser questionada porquê produzir o longa sendo uma mulher branca, falou "eu não quis dizer como vivem as pessoas negras, e sim a cara da França e da juventude que eu estava vendo". "Garotas", ao focar na vida de sua protagonista tentando se encaixar, discorre por raça, gênero e classe sem perder a delicadeza. A cena com "Diamonds" da Rihanna vale por tudo.

Tangerina (Tangerine), 2015

Direção de Sean Baker, EUA.
"Tangerina" vai na cola de uma prostituta e sua amiga - ambas interpretadas por atrizes trans -, que, ao descobrirem a traição do cafetão, saem em busca do traidor e sua amante. Qual o cerne do filme? A triste e estreita ligação entre a transsexualidade e a marginalização. É nada confortável encarar de frente os vários tópicos que a obra escancara sem vergonhas, porém, "Tangerina" é um filme sobre como a sororidade é peça indispensável para a sobrevivência de pessoas ainda varridas para debaixo do tapete. Longe de um trato plástico e artificial na tela, "Tangerina" vem como um sopro de ar livre ao dar voz, provocar e abordar uma realidade marginalizadora de forma crível, correta e socialmente relevante. E foi inteiramente filmado com celulares.

Atlantique (idem), 2019

Direção de Mati Diop, Senegal.
Mati Diop fez história ao ser a primeira mulher negra a competir no Festival de Cannes, e "Atlantique" saiu com o segundo maior prêmio de sua edição. Alguns anos no futuro, na capital Dakar, um grupo de trabalhadores embarca para, clandestinamente, chegar na França a fim de uma vida melhor. Ada fica desolada quando descobre que seu namorado faz parte do grupo, e ainda mais devastada quando a notícia da morte de todos chega na cidade. Um drama político, discutindo a crise de imigração na Europa e o atual contexto econômico da África, "Atlantique" criativamente adota temas sobrenaturais para contar essa história de amor além do plano físico. Pode soar muitas vertentes, mas o filme está nas mãos de uma diretora totalmente ciente do poder de seu texto e imagens.

Um Limite Entre Nós (Fences), 2016

Direção de: Denzel Washington, EUA.
"Um Limite Entre Nós" é um filme de atuações e diálogos, com um conjunto que preza pela observação daqueles espelhos de vida, repleto de análises sobre o conceito de família, autoridade e cumplicidade entregues com bastante crueza e honestidade. É um longa complexo e denso, atuado com maestria por Viola Davis e Denzel Washington. Muito mais do que explorar um difícil arranjo familiar, Denzel consegue extrair brilho dos renegados pela sociedade ao entrar pela porta da frente no mundo onde a população negra era designada, revelando suas batalhas, seus dramas e suas dores. A obra se torna um quadro representativo importante a partir do quintal de uma família negra nos anos 50 quando vemos que, 70 anos depois, muitas daquelas situações não mudaram. Assim, a importância do filme grita.

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Lista: 10 filmes sobre as complexidades da maternidade

A relação mais universalmente humana é a de uma mãe com suas crias. De histórias de amor incondicional até as dificuldades desse elo (supostamente) natural e a ruptura de um amor absoluto, a maternidade foi tema de inúmeros filmes que ousam desafiar os meandros do relacionamento. Essa lista é sobre isso.

Selecionei 10 filmes do cinema contemporâneo que abordam a maternidade nos mais diversos contextos. De dramas russos até terrores norte-americanos, são filme que, ou possuem o relacionamento como palco principal, ou que são elementos fundamentais da trama. Bom deixar claro que não se tratam de fitas para se ver no almoço de domingo, e sim películas que estão interessadas em discutir as complexidades da maternidade e o que significa a relação - acho bem mais interessante trazer obras que discorram de maneiras não óbvias uma das bases da nossa sociedade. Todos os textos são, como sempre, livres de spoilers.


Tully (idem), 2018

Direção de: Jason Reitman, EUA.
Marlo, mãe de dois, está esperando o terceiro e não planejado filho. Uma das crianças possui um problema de desenvolvimento que médico nenhum consegue diagnosticar, e a mulher se vê afogada em ansiedade sobre os desafios que já possui e os que ainda estão pela frente, até que surge Tully, a babá. A maternidade é um evento dito como o maior na vida de uma mulher, um período fabuloso que não pode ser definido por nada além de “uma dádiva”, então é muito subversivo ver como “Tully” se preocupa em quebrar essa imagem de glamourização: é claro que a gravidez é um marco, todavia, ninguém tem coragem de contar todos os lados não-tão-agradáveis. 

Mommy (idem), 2014

Direção de: Xavier Dolan, Canadá.
"Mommy", quinto filme de Xavier Dolan, retoma o tema central de seu cinema, retratando o relacionamento conturbado de Steve, o filho, e Die, a mãe. O garoto, cheio de transtornos mentais, toca o terror onde passa, dificultando a vida da mãe. A situação muda quando eles conhecem Kyla, sua vizinha, que passa a integrar a família. O filme usa de uma sacada visual sensacional: a maior parte dele se passa dentro de um quadrado. Não temos a tela cheia, apenas um quadrado, refletindo a situação claustrofóbica e tensa dos personagens. Quando eles conseguem algum momento de paz, a tela literalmente se abre, num efeito belíssimo que consegue deixar uma marca visual sem precedentes.

Hereditário (Hereditary), 2017

Direção de: Ari Aster, EUA.
Um dos mais refinados terrores já feitos, “Hereditário” já é aberto com a morte da matriarca de uma família. Quem assume as rédeas é Annie, que não espera que a ida da avó iria impactar permanentemente a vida dos dois filhos. Um dos maiores sucessos do filme de estreia de Ari Aster é em desenvolver caprichosamente o drama familiar, principalmente o quão tenso se torna o laço entre Annie e o filho mais velho. Annie é a força-motriz de todo o enredo e é muito interessante ver o limiar entre amor e ódio que tragédias podem traçar no seio de uma família.

Projeto Flórida (The Florida Project), 2017

Direção de: Sean Baker, EUA.
Contado através da ótica das crianças, a produção é o retrato agridoce de uma fatia esmagada à margem e varrida para debaixo do tapete: a nova geração de sem tetos. Carregado por uma das melhores performances da década – de Brooklynn Prince, que tinha SEIS anos durante as filmagens –, seguimos os pequenos criando seus contos de fada para burlarem aquela precária condição, culminando num dos finais mais puros e desoladores já colocados na tela do Cinema. Quem liga o público e as crianças é Halley, mãe adolescente que claramente não tem noção da responsabilidade que possui.

Ondas (Waves), 2019

Direção de: Trey Edward Shults, EUA.
Um jovem lutador tem um empecilho na carreira quando sobre uma lesão. Ainda por cima, sua namorada está grávida e sem intenção de abortar, o que o faz entrar em uma espiral de ódio. "Ondas" é um drama muito realístico que se senta no meio de uma família e como os atos do protagonista impactam a todos. Quem tenta sustentar tudo é a mãe adotiva do garoto, que, mesmo sendo atacada por não ser a mãe biológica, permanece de pé para o que é mais importante, sua família, provando que laços vão muito além do sangue.

A Hora de Voar (Lady Bird), 2017

Direção de: Greta Gerwig, EUA.
Christine Lady Bird McPherson está saindo da escola e vê seu universo como um utóptico conto de fadas. Porém a princesa aqui não possui um castelo, nem príncipe encantado, nem sapato de cristal. Fazendo o contraponto perfeito da solar personalidade de Lady Bird temos sua fada madrinha, sua mãe Marion. Sua personagem é deveras complexa: devendo cuidar da casa, ela se vê com a responsabilidade de cuidar do marido desempregado e depressivo, dos filhos nada fáceis e da sua própria vida, dividida entre o papel de dona de casa e enfermeira com jornada dupla. Mesmo totalmente diferentes, as duas devem aprender a colocar o incontestável amor acima de tudo.

Nessa atual e urgente onda feminina de denúncias contra abusos, acompanhar a luta de uma mãe em busca de justiça pela morte da filha é a história que precisávamos ver. Um dos mais originais e bem escritos roteiros da década “Três Anúncios” deixa chover sarcasmo para apontar o dedo na cara da hipocrisia, do ódio e de como caminhamos sob uma estrutura aparentemente sem conserto. Com seus personagens escancaradamente conturbados e situações ácidas, temos em mãos uma produção atemporal - ou você acha que Frances McDormand, vencedora do Oscar pelo papel, querendo honrar a memória da filha e colocando todos os homens ao redor em seus devidos lugares não será um clássico?

Que Horas Ela Volta? (idem), 2015

Direção de: Anna Muylaert, Brasil.
A maior obra-prima do nosso cinema nessa década e pilar central dos novos rumos que viriam a seguir, "Que Horas Ela Volta?" transcende a barreira regional para entrar no panteão internacional ao unir uma história que tanto reflete as rachaduras da nossa sociedade quanto universaliza seus dramas. Carregado por uma louvável atuação de Regina Casé, que não assustaria caso fosse indicada ao Oscar, o próprio título surge a partir da indagação de um filho sobre sua mãe. O longa de Anna Muylarte – que teve o título traduzido para “A Segunda Mãe” no mercado estrangeiro – mostra um lado cultural bem brasileiro, a de empregadas cuidando dos filhos de outras mulheres. Mas e os filhos dessas empregadas?

As Filhas de Abril (Las Hijas de Abril), 2017

Direção de: Michel Franco, México.
As Filhas de Abril" tem uma menina de 17 anos que faz de tudo para que a mãe não descubra sua gravidez. Quando Abril tem a revelação, ela se mostra compreensiva e apta a ajudar no que puder, retrato de uma sororidade lindíssima entre aquelas mulheres. Pobre coitada da plateia que não tem ideia do abismo logo ali do lado. Falar mais que isso é entregar a história, todavia, essa é uma película que demonstra o próprio slogan: "o amor de uma mãe não conhece limites". Prepare-se para ver seu queixo cair.

Sem Amor (Loveless), 2017

Direção de: Andrey Zvyagintsev, Rússia.
Um casal à beira do divórcio nutre ódio mútuo que torna a mera aproximação insustentável. Sobra para o filho deles, esquecido e renegado, já que os pais estão ocupados demais se odiando. Quando o menino foge e desaparece (após uma das cenas mais devastadoras do ano – a da porta), a mãe deverá deixar de lados as diferenças para achar a criança. A situação extrema costura seus personagens de maneira homeopática, construindo uma trama universalmente afiada que consegue tirar a fé do espectador pelos momentos frios e egoístas do homem. “Sem Amor” é nome absoluto do que há de melhor da misantropia na Sétima Arte. Nem todo mundo nasceu para ter filhos.

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Lista: 10 filmes com 10 línguas que você talvez não tenha ouvido

Minha categoria favorita do Oscar é a de "Melhor Filme Internacional", a antiga "Filme Estrangeiro". Ela é, de longe, a seleção mais variada que a Academia consegue escolher, e isso se baseia na fundamentação da categoria: vislumbrar a cultura dos mais diferentes países por meio do Cinema. Com uma arte dominada pela língua inglesa, é enriquecedor ter contato com uma linguagem que, caso não fosse um filme, talvez jamais conheçamos.

O oligopólio é tão verdadeiro que, nos 92 anos do Oscar, apenas um filme não-inglês venceu a estatueta de "Melhor Filme", o coreano "Parasita", aqui em 2020. Eu, que vasculho as seleções anuais de "Filme Internacional" a fim de ter uma bagagem bem diversificada, busco me aprofundar em línguas que nem sabia que existiam. Então, a lista em questão visa compartilhar essas buscas.

Aqui estão 10 filmes falados (em parte ou inteiramente) em 10 línguas que o grande público provavelmente nunca ouviu na vida. Obviamente, os longas não foram escolhidos somente pela língua, possuindo todos qualidade o suficiente para serem muito mais que um portfólio cultural - você também notará que separei especificamente alguns nomes LGBTs porque sempre bom. Como sempre, todos os textos são livres de spoilers, captando apenas o que cada um tem de melhor para fazer você correr e assistir.


O Confeiteiro (האופה מברלין/The Cakemaker), 2017

Língua: Hebreu
Direção de: Ofir Raul Grazier
Thomas, um confeiteiro alemão, tem um romance secreto com Oren. O sigilo não se deve à sua sexualidade, e sim porque Oren é casado com uma mulher. Quando o namorado morre ao voltar para Israel, Thomas decide ir até a casa do falecido a fim de descobrir o que aconteceu. Só que, ao conhecer a esposa, ele não revela a verdade, e vai se tornando cada vez mais íntimo da viúva. Drama LGBT fincando no meio de Israel é interessante por si só, e o hebreu é uma das línguas mais antigas do mundo, ressurgindo no séc. XIX. "O Confeiteiro" venceu "Melhor Filme" no Ophir, o Oscar de Isreal, um belo feito para um longa gay.

Flores (Loreak), 2014

Língua: Basco
Direção de: Jon Garaño & Jose Mari Goenaga
Um buquê de flores é deixado na porta de uma mulher. Sem cartão ou identificação do remetente, ela acha curioso, mas deixa para lá. Só que outro buquê surge, e outro, e outro, e outro, e aquelas simples flores mudarão a vida dela. A língua basca é proveniente da região de Basco, que fica ao norte da Espanha, e diferente claramente das línguas da região por preceder o latim. "Flores" foi o primeiro filme em basco escolhido para o Oscar de "Melhor Filme Internacional", um feito e tanto, seja como ineditismo, seja como reconhecimento cultural, já que o espanhol é uma das línguas mais faladas em todo o mundo.

Os Iniciados (Inxeba), 2017

Língua: Xhosa
Direção de: John Trengove
"Os Iniciados", escolhido da África do Sul na corrida do Oscar - e sendo semifinalista -, é um filme LGBT que segue rituais de passagem da masculinidade na cultura africana e como a toxidade da figura do macho é difundida nas mais impensáveis sociedades. Recebido com extrema repressão em solo africano pelo conteúdo gay, é um triunfo a produção da fita pela temática dentro da língua Xhosa, falada por 18% da população africana em países como África do Sul, Zimbábue e Lesoto, ainda opressores e com perseguições severas contra minorias.

A Ilha dos Assobios (La Gomera), 2019

Língua: Silbo
Direção: Corneliu Porumboiu
Um policial deve libertar um empresário corrupto da cadeia, mas, para isso, deve entrar em um plano que o força a ir até a ilha La Gomera a fim de aprender o Silbo, língua secreta dos envolvidos no plano. "A Ilha dos Assobios" é majoritariamente falado em romeno, uma língua bem distante da nossa por si só, todavia, vai mais longe ao apresentar o Silbo, que é "falado" por meio de assobios. É fascinante ver os diálogos, quase cantados como pássaros, e a obra faz questão de ensinar na tela como ela funciona - e parece dificílima por ser nada similar com qualquer dialeto popular.

E Então Nós Dançamos (და ჩვენ ვიცეკვეთ’/And Then We Danced), 2019

Língua: Georgiano
Direção de: Levan Akin
Você deve até ter ouvido falar da Geórgia, mas sabe onde fica? O pequeno país fica na divisa entre Europa e Ásia e não possui um cinema tão difundido, mas há películas fantásticas por lá, como o escolhido do país para o Oscar 2020: "E Então Nós Dançamos" foi mais uma obra gay que sofreu retaliação pela população conservadora, e o filme expõe muito bem o quão homofóbica é a sociedade de lá. Conhecida pela sua dança, a história - que inegavelmente segue uma cartilha de filmes do molde - fica mais fascinante pela língua e pelo estudo cultural do país.

Atlantique (idem), 2019

Língua: Wolof
Direção de: Mati Diop
Um romance sobrenatural, "Atlantique" tem o Senegal como núcleo de sua trágica história: um casal tem a relação permanentemente abalada, mas há amores que perduram a eternidade. "Atlantique" foi um marco no seu lançamento: é o segundo filme senegalês consecutivo a ser selecionado pelo Oscar e foi o primeiro em wolof (língua da região do Senegal e Mauritania) e dirigido por uma mulher negra a vencer um prêmio no Festival de Cannes. O maior solidificador da desconhecida língua no Cinema moderno, sem dúvidas.

A Gangue (Плем'я/Plemya), 2015

Língua: Língua de Sinais Ucraniana
Direção de: Myroslav Slaboshpytskiy
Se você acompanha o Cinematofagia, sabe que não perco uma oportunidade de aclamar um dos melhores filmes já feitos. A experiência de assistir "A Gangue" é totalmente única: ele é "falado" em língua de sinais ucraniana, ou seja, você não ouvirá um só diálogo através da voz a sessão inteira. E melhor: não existe legenda para coisa alguma (propositalmente). O diretor - que também não era fluente na língua, precisando de um tradutor para ensaiar com os atores - quis produzir uma sensação jamais vista ao restringir ao máximo os diálogos, testando se o amor e o ódio precisam ou não de tradução. E não precisam. Pena para quem é fluente na língua, que não pode vivenciar o que quase todo mundo vivenciou.

Eu Não Sou Uma Bruxa (I Am Not A Witch), 2017

Língua: Bemba
Direção de: Rungano Nyoni
"Eu Não Sou Uma Bruxa" está bem próximo de "Os Iniciados": ambos vão no interior da África explanar um aspecto cultural acerca do gênero. O filme de Rungano Nyoni vai até a Zâmbia retratar como a tradição da opressão de bruxas ainda é algo recorrente na região, e usa a língua local, a bemba. Mesmo sendo bem desconhecida na cultura popular, é falada por mais de 4 milhões de pessoas na região da Zâmbia, Congo, Tanzânia e Botsuana. "Eu Não Sou" venceu o BAFTA (o Oscar britânico) de "Melhor Estreia", o primeiro falado em bemba a levar um BAFTA em toda a história.

Um Homem Íntegro (لِرد‎/Lerd), 2017

Língua: Persa
Direção de: Mohammad Rasoulof
Farto da política suja de sua cidade, Reza leva toda sua família para o campo, preferindo migrar léguas até a cidade do que conviver com o sistema. Só que a corrupção vai afetar sua vida de qualquer forma. "Um Homem Íntegro" traz um dos personagens mais perseverantes do Cinema quando Reza enfrenta tudo e todos para manter sua integridade, destinada ao fracasso. O Cinema iraniano é um dos mais espetaculares da atualidade e a língua persa uma das mais sonoramente envolventes.

Rafiki (idem), 2018

Língua: Suaíli
Direção de: Wanuri Kahiu
"Rafiki" é uma fita orgulhosa de suas origens. O título em suaíli foi vendido internacionalmente sem tradução, e carrega todo o peso de uma trama: significa "amigo", o termo que as pessoas homossexuais no Quênia chamam seus parceiros. A língua preenche a tela e a diretora Wanuri Kahiu pinta seu país da forma mais colorida que pode para celebrar a resistência de suas personagens em um país que condiciona a mulher ao papel de esposa. Sem surpresas, foi banido no país natal por ser uma "propaganda ao lesbianismo", o que é contra-lei - e, após brigas judiciais para a liberação do filme, o governo queniano de pirraça ignorou o longa na seleção para o Oscar.

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