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Crítica: “1917” é um exemplo concreto do quão única é a arte do Cinema

Aclamado na indústria com vários prêmios, "1917" já nasce como um dos melhores filmes de guerra já feitos na história
Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Fotografia
- Melhor Design de Produção
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som
- Melhores Efeitos Visuais
- Melhor Trilha Sonora

Atenção: a crítica contém spoilers.

É divertido acompanhar como uma temporada do Oscar pode ser imprevisível. Se na abertura da janela do Oscar nós tínhamos "O Irlandês" (2019) e "História de um Casamento" (2019) na crista da onda, foi só começarem as premiações da indústria que o quadro virou. Nem mesmo Sam Mendes  (diretor de "Beleza Americana", 1999, e "007: Operação Skyfall", 2012) acreditou quando "1917" venceu "Melhor Filme: Drama" e "Melhor Direção" no Globo de Ouro 2020, o pontapé de uma campanha que, pelo visto, está destinada a terminar com o Oscar de "Melhor Filme" na estante.

"1917" segue dois soldados no meio da Primeira Guerra Mundial, Blake (Dean-Charles Chapman, o único rei decente que vimos em "Game of Thrones") e Schofield (George MacKay, cristal de "Capitão Fantástico", 2016). Blake é escolhido para uma missão quase impossível: ele deve, com a ajuda de Schofield, entregar uma carta que vai impedir um ataque das tropas britânicas e evitar a morte de todos. O destino? O campo de batalha do outro lado do campo alemão.

Não é a premissa mais empolgante do universo. Filmes bélicos chegando no Oscar já estão cansados, e não precisávamos de mais um - principalmente possuindo o favoritismo. Não estava empolgado para 2h de filme histórico nas trincheiras da WWI, porém, vi um vídeo promocional com o making of de uma das cenas e meu queixo caiu. A fita foi filmada como um grande plano-sequência - o que "Birdman" (2015) fez recentemente -, mas indo ainda mais longe. Os cortes de "1917" são bem cuidadosos para não ficarem explícitos, precisando de um olho mais atento para ver onde uma cena começa e termina - com exceção de um momento na metade da duração -, e é por isso que o filme não foi indicado ao prêmio de "Melhor Montagem". Para completar, a narrativa busca precisão na passagem do tempo, começando no fim da tarde e terminando no começo da manhã seguinte.


Um dos problemas que tenho com muitos filmes de guerra habita na motivação dos personagens. Sabemos os fatos históricos, sabemos quem está do lado de quem, mas muitas vezes falta um combustível humano e particular, afinal, a história em questão tem que ser única de alguma maneira. Blake e Schofield possuem a obrigação de levar a carta, contudo, há o fator emocional: o irmão de Blake está na linha de frente do grupo que vai atacar os alemães, então ele fará de tudo para chegar a tempo de salvar a vida de todos aqueles homens.

Não dá para não falar o óbvio: a forma como o filme é filmado é espetacular. A fotografia de Roger Deakins - vencedor do Oscar por "Blade Runner 2049 (2017) - faz um preciso balé coreografado enquanto segue os protagonistas. Dentro das apertadas trincheiras, há um jogo brilhante que reveza entre fotografá-los de frente e de costas, gerando uma fluidez fundamental para tirar a narrativa da morosidade. A mise en scène é explorada lindamente, sempre dando destaque aos vários ambientes que Blake e Schofield encontram pela frente. O design de produção então, de tirar o fôlego. Dos casebres abandonados às planícies destruídas pela guerra, todo o aparato visual de "1917" é impecável e um grande sucesso para o realismo da obra.

"1917" é bastante feliz em solidificar o viés humano de uma situação que esquece disso. Bem verdade que, às vezes, o roteiro dá uma pendida para o emocionalismo, chegando perto de ultrapassar a linha do apelativo, mas até mesmo algumas escolhas - como a cena com a mulher francesa - ajudam a retirar o filme da crueldade que é a guerra. Schofield claramente não queria estar ali - ele demonstra raiva por Blake tê-lo escolhido para partir com ele -, entretanto, seus desejos particulares são irrelevantes quando a vida de tantos estão em jogo. Felizmente, o roteiro abdica da jornada do herói e não santifica seus personagens - talvez por não se tratar de uma cinebiografia (ninguém aguenta mais!!!1); o texto foi inspirado em uma história contada pelo avô de Sam Mendes.


Alfred Hitchcock dizia que o cinema é "a vida sem as partes chatas", e o roteiro de "1917" sabe disso. Por ser uma narrativa ininterrupta, não teria como todas as cenas serem recheadas com ação, então há cuidado nas passagens entre os pontos altos da sessão. Claro que a narrativa dá uma leve estancada, principalmente porque estamos viciados na adrenalina, porém, tudo é muito compensado quando o caos cai em cima dos dois soldados. Inclusive, são nessas "pausas" que a produção encontra vários momentos de extrema delicadeza, como a cena do soldado cantando enquanto toda a tropa espera o momento de avançar na batalha.

Um grande erro em filmes de guerra é a suspensão da atmosfera de perigo. Nem por um segundo duvidamos que a missão dos protagonistas será cumprida no final das duas horas, mas a fita não descansa em tornar o trajeto num inferno. Um grande momento é a cena do avião sendo abatido. Primeiro, ele deliciosamente despenca dos céus diretamente de encontro com Blake e Schofield, e Blake acaba morto pelo piloto. É uma quebra de expectativa bem grande, e o lembrete do filme de que, na guerra, todos os lados perdem. Uma sequência bem triste, foi genial ver que o melhor estava ainda por vir. Uma tropa inglesa aparece no local e dá uma carona para Schofield. Ele, dentro de um caminhão com vários soldados, é focado no extremo centro da tela; os outros conversam aleatoriedades, contudo, a câmera não foge do rosto do protagonista, completamente aquém do que está acontecendo ao redor. Ele não consegue estar presente tamanha a dor pela morte de Blake. É um momento precioso.

Filmes de guerra são um mote que nunca guardei no coração. Claro que há exemplos que coloco minha estante de filmes favoritos, entretanto, abraçando os indicados ao Oscar na última década, a maioria é pura decepção - "Sniper Americano" (2014), "Até o Último Homem" (2016), "Dunkirk" (2017). Jamais pensei que "1917" poderia ser tão arrebatador a ponto de, em várias cenas, ter que me segurar para não chorar. Seja em sequências de apelo sentimental ou por puro milagre visual (o momento dos mísseis é avassalador), o longa é um sucesso por não ser pura perfumaria, uma exibição de poder técnico vazio - cof cof, "O Rei Leão" (2019), cof. Claro que todo o aparato técnico da película chama bem mais atenção que a história em si (pela técnica ser tão perfeita e a trama ser simples e direta), contudo, Sam Mendes usa muito bem seus arsenais para potencializar o drama, o que garante o tamanho apreço da indústria pelo filme. Se não fosse tudo tão bem feito, talvez o enredo não tivesse tanta força.

"1917" é uma excelente produção para nos lembrar da grandiosidade do Cinema - que mídia poderia nos dar uma sessão como a de "1917"? Qual outro formato conseguiria fomentar o mesmo impacto? Indo muito adiante da necessária pretensão de filmes de guerra (que estão cada vez mais ambiciosos), a fita possui a consciência de que toda a fotografia, som, direção de arte e qualquer elemento técnico não sustenta uma arte que é, primordialmente, o ato de contar uma história. Os pequenos tropeços são ínfimos em meio à experiência visual e sensorial que imerge o espectador nos horrores e nas glórias desse período. E quanto maior a qualidade do formato que você esse gigante videogame cheio de fases, obstáculos e objetivos, melhor ele será.

disqus, portalitpop-1

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