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Crítica: “O Problema de Nascer” derrapa com o choque sem consequências

Um dos filmes mais polêmicos do Festival de Berlin 2020 - e detesto a palavra "polêmico" pela frivolidade do uso -, o austríaco "O Problema de Nascer" (The Trouble With Being Born) chegou na Mostra de Cinema de São Paulo 2020 como um dos principais da vitrine para novos diretores - no caso, Sandra Wollner, em seu segundo longa. Durante sua première na Alemanha, vários presentes se retiraram antes dos créditos finais rolarem na tela, mas por qual motivo?


O longa se passa pela óptica de uma androide. A robô, chamada de Elli (Lena Watson), "vive" para substituir a filha de um homem de meia idade que desapareceu há uma década - no melhor estilo "Black Mirror"  (2011-presente) ou "Alpes" (2011). Acompanhamos a existência da máquina em seus tediosos dias, sempre à espera do "pai" retornar para casa. A questão (que fez muitos desistirem da sessão) é que o homem mantém uma """"relação"""" com a androide.



Sim, o homem tem uma espécie de """"relacionamento"""" (não consigo dar menos aspas que isso) com uma robô que substitui sua filha de dez anos. Pois é. Fica bem entendível o motivo para muitos se negarem a navegar pela trama. A primeira parte da duração é focada na vida da protagonista com o "pai". Tudo começa de maneira idílica, com os personagens à beira da piscina, aproveitando a natureza, uma família e cenário totalmente convencionais, contudo, a diretora começa lentamente a introduzir enquadramentos estranhos, que denotam uma relação bizarra sem revelar muita coisa.


A montanha-russa, que sabemos que está chegando naquele ponto que virará uma queda livre, cai com alguns freios, mas cai o suficiente para chocar. A sutileza (acertada) da produção em mostrar nada quando, ao mesmo tempo, grita, consegue causar calafrios. Somos encaminhados por meio dos sons, como um beijo que não conseguimos ver ou um cinto sendo aberto fora do enquadramento. É verdadeiramente uma agonia.


Por mais assustador que seja as próximas palavras que colocarei diante dos seus olhos, a impressão que fica é que a robô é """"apaixonada"""" pelo homem. Todavia, é óbvio que ela está programada para """"sentir"""" o que o homem quiser, ou seja, ela é mero canal dos desejos medonhos do "pai". Por mais aficionado ele seja pela criatura, ele está constantemente com os ouvidos atentos para qualquer sinal da verdadeira filha. Em um momento, enquanto conserta a robô que foi danificada em uma cena que prefiro não relembrar, ele ouve a filha sumida gritando na floresta ao lado da casa, e larga a robô imediatamente para procurá-la. Não seriam esses os termos corretos, mas ali a androide percebe seu verdadeiro propósito: ela é apenas uma substituta que jamais será compara com a "original".


Ela então vai embora e acaba esbarrando com um cara que a "rouba": ele a leva para a casa da mãe para a androide "viver" como o irmão da idosa, morto há gerações. Há uma interessante discussão de gênero aqui quando nos é revelado como somos apegados às convenções de gênero - robôs não possuem gênero, entretanto, não possuímos nem um artigo neutro para designá-la, apenas o binarismo "a robô" ou "o robô".



Durante toda a exibição, há uma narração da androide, que repete o que lhe é contado. Ela é um vazo oco à espera de ser preenchida com memórias que significam nada para ela, mas fazem toda a diferença para a pessoa com quem ela vai interagir, humanizando-a. Quando ela começa a "conviver" com a idosa, seu sistema dá defeito, misturando as memórias do "pai" original com a da idosa, e esta percebe que há algo de muito errado com a criatura.


"O Problema de Nascer" já traz um título bastante explicativo: a robô em momento algum queria existir, mas não é programada para questionar o porquê. O longa reverte a lógica clássica do cinema de ficção-científica com robôs: Elli não anseia a liberdade ou deseja ser humana. Ela apenas é. Ela não questiona, não diz "não", apenas faz estritamente o que lhe é programada. E, mesmo sendo uma base poderosíssima de estudo, que sem dúvidas recai no nosso próprio modo de existir, essa é, também, a recaída da obra.


O filme termina passivo demais diante de uma tema que não permite tal escolha: a pedofilia. Ao final da sessão, corri para ler entrevistas com a diretora e entender suas motivações - que sim, foram compreendidas -, no entanto, quando a robô é puro objeto dos prazeres mais nojentos do criador, há uma aceitação latente. Eu sempre falei: Cinema não é uma escola na tela e não tem compromisso em ensinar o que é certo ou errado de maneira didática, porém, com uma temática tão difícil, é problemático não haver algum grau de pontuação de condenação diante das ações do pai.


É claro que o objetivo da diretora não foi, nem de longe, fazer um freak-show de pedofilia - a atriz mirim teve o nome e o rosto real preservado, usando uma prótese para caracterizar a androide -, no entanto, quando não critica narrativamente o ato após expô-lo de maneiras terríveis (há uma cena em que o pai retira a língua e a vagina da robô para lavar), temos um problema. "O Problema de Nascer" é um filme bem triste sobre como nossa existência é atrelada aos fantasmas das pessoas e acontecimentos que já se foram, entretanto, perde uma boa oportunidade quando não se preocupa em responsável na medida correta.



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