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Crítica: sexo com alienígena revela nossos preconceitos no desconcertante "A Região Selvagem"

O que poderia ser só um drama sobre uma mulher traída se torna um poderoso (e bizarro) sci-fi com uma das mais incríveis cenas do ano
É bastante raro vermos filmes de ficção-científica saindo de países que não sejam do eixo EUA-Reino Unido. O motivo é bem fácil de ser apontado: obras do gênero demandam, em sua maioria, de efeitos especiais, uma tecnologia ainda não tão acessível (para uma boa produção, claro). Se pegarmos este século, todos os sci-fis vencedores do Oscar de "Melhores Efeitos Visuais" ("Avatar", "A Origem", "Gravidade", "Interestelar" e "Ex Machina: Instinto Artificial") foram produzidos nesse eixo.

Então, quando vemos um sci-fi vindouro de um país fora dessa realidade, e, principalmente, feito longe dos cofres bilionários de Hollywood, é uma surpresa mais que positiva. "A Região Selvagem" é um longa mexicano que veio para provar que nem só de cifras altíssimas vive o sci-fi. O filme abre com um meteorito negro lentamente se aproximando do ecrã. A rocha gigante cai em uma montanha ao lado de uma cidadezinha mexicana (como informa a sinopse, pois não é mostrada a queda), e tal evento vai mudar a vida dos habitantes daquele lugar de forma que eles jamais imaginaram, pois, junto com o meteorito, veio um alienígena pronto para o caos e o prazer.


Concomitantemente, Alejandra (Ruth Ramos) é uma esposa dedicada à família. Mesmo não realizada sexualmente, ela vive feliz para seu marido Ángel (Jesús Meza), seus dois filhos e Fabian (Eden Villavicencio), seu irmão. O que ela não sabe é que Ángel e Fabián mantêm uma relação escondida. Fabián, que é enfermeiro, conhece Verónica (Simone Bucio), uma estranha mulher que chega em seu consultório com uma mordida na cintura, feita, segundo ela, por um cachorro. O espectador sabe que ela está mentindo, pois, na cena anterior, a vemos com um tentáculo do tal et.

Fabián e Verónica vão ficando cada vez mais amigos depois da consulta. Há uma tensão sexual partindo do lado de Verónica, sem retribuição, claro, já que Fabián é gay assumido, e essa relação começa a irritar Ángel. O homem é um retrato fidedigno de um estereótipo homossexual: aquele que se esconde atrás da fachada de "pai de família". Enciumado que o cunhado esteja com uma "namorada", Ángel, provavelmente bissexual (não vamos trabalhar com o binarismo "gay" e "hétero"), usa seu lado hétero da forma mais machista possível, humilhando Fabián sempre que pode, como na cena em que diz que não quer que seus filhos fiquem perto de Fabián para elas não se contaminarem com a "viadagem" - isso enquanto manda mensagens dizendo que deseja o cunhado. Toda a situação faz com que Fabián "termine" o relacionamento, para a revolta de Ángel. 


No dia seguinte, Fabián é encontrado inconsciente e sem roupa em um lago, e todas as suspeitas do expectador caem imediatamente sobre Ángel, mas a situação não é tão clara quanto parece. Alejandra então busca Verónica para tentar descobrir o que aconteceu com o irmão, quando descobre o caso do marido. Ela se vê entre a cruz e a espada: por um lado, devastada pela traição; por outro, sem saber como canalizar todos esses sentimentos, já que o irmão está em coma.

De uma forma bastante bizarra, ela encontra no alienígena a fuga para todo o caos que virou sua vida - sim, transando com ele. Seu "rito de iniciação" é deveras assustador: ela é drogada por um casal de idosos que cuidam do bichinho de estimação, preso num celeiro no meio do nada. Temos aqui o segundo relance da sua anatomia, entregue com pequenos enquadramentos, sem revelá-lo por inteiro.

Verónica, uma espécie de filha adotiva dos idosos, funciona como isca para levar pessoas até a criatura, já que essa a machucou durante o último encontro - e a fome (de sexo?) do bicho tem que ser saciada. Intencionalmente ou não, há uma grande alegoria sobre tráfico sexual aqui, todavia, como numa Síndrome de Estocolmo, o que poderia ser um estupro acaba se tornando algo consensual quando Alejandra agradece Verónica por tê-la levado ao et, que emana uma área sexual - a cena do bacanal de diversos animais é desconcertantemente genial - como o monolito de "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968), clara referência para o diretor, e sua influência ao redor do universo.


E é de cair o queixo como conseguiram criar um monstro tão incrível com um orçamento baixo. Desde a sua forma que lembra um polvo, até a sua textura, a sua cor e os seus movimentos criados pelo CGI, Toda a composição imagética da criatura é excepcional, icônica e, acima de tudo, real. A cena praticamente explícita do sexo entre Alejandra e o et é um dos momentos mais impactantes do ano pela crueza e veracidade - e provavelmente inspirada em "O Sonho da Mulher do Pescador", hentai de Katsushika Hokusai que mostra uma mulher transando com polvos; e, evidentemente, o clássico atemporal "Possessão" (1981).

O filme não explica inúmeras coisas, como por exemplo: o que o alien realmente quer? Ele transa com homens e mulheres, mas parece se cansar de algumas pessoas e, assim, se tornar perigoso. Não há um padrão de comportamento, com tudo soando bastante inconstante, o que o torna ainda mais temível. Verónica, temerosa pela sua vida, não pode mais transar com a criatura depois de esta tê-la mordido, no entanto, é tarde demais para a mulher: ela até tenta ter relações com homens (humanos mesmo), mas nenhum deles consegue satisfazê-la como o alienígena.


Com a notícia do coma de Fabián, não demora até que o caso dele com Ángel caia na mídia. Amat Escalante, diretor e roteirista do longa, escancara a maneira como o machismo está impregnado na sociedade: a capa inteira de um jornal é tomada pelo caso de Ángel e Fábian, e a manchete ("Traía a esposa com o cunhado: viadinho é deixado em coma por recusar sexo") revela muito. Ángel não está errado por ter traído a esposa, ele está errado por tê-la traído com um homem. E é isso em específico que o perturba, a descoberta de que ele se relacionava com o mesmo sexo.

Toda a construção de personagem de Ángel é milimetricamente feita para refletir diversas hipocrisias e preconceitos da sociedade. Em uma cena, quando Alejandra diz que o casamento acabou, Ángel pergunta furioso se ela está ficando com outro cara - ele, que traiu a esposa, querendo tirar satisfação da ex-esposa. A vã superioridade masculina, construída a gerações, faz com que o cérebro do macho ache normal ele trair a mulher, mas ela fazer o mínimo perto disso é um crime. A questão aqui é de propriedade, com o corpo feminino existindo para servir as vontades do homem.

"A Região Selvagem" é bastante hipnótico, onírico e subjetivo, deixando que o espectador crie suas próprias verdades sobre o que está na tela. Porém, no fundo, nada mais é do que uma obra sobre uma mulher se reerguendo depois de tragédias familiares e tentando sobreviver dentro de uma sociedade machista, misógina, ultrarreligiosa e homofóbica, percalços que todos nós conhecemos tão bem. É verdade, "A Região Selvagem" não cairá no gosto do grande público pela selvageria e hermeticidade, entretanto, um filme sobre mulheres que não se sentem sexualmente satisfeitas com os machos da mesma espécie e só conseguem encontrar o prazer nos tentáculos de um alienígena não poderia ser menos que obra-prima.

disqus, portalitpop-1

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