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Crítica: lésbicas, bolos, coelhos e o nada discreto charme da burguesia em “A Favorita”

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Atriz (Olivia Colman)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Emma Stone & Rachel Weisz)
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem
- Melhor Figurino
* Crítica editada após as indicações ao 91º Oscar

Olá. Meu nome é Gustavo Hackaq. Se você não me conhece, deve, a partir de agora, saber um dos principais fatos acerca da minha pessoa: Yorgos Lanthimos é meu diretor favorito da atualidade. Em todas as críticas que já publiquei no Cinematofagia para filmes do cineasta - "O Lagosta" e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" -, eu não perco a oportunidade de aclamá-lo. Mas com "A Favorita" (The Favourite), um medo permaneceu ao meu lado até começar a sessão.

O motivo é direto: essa foi a primeira obra lanthimaniana a não ter o roteiro feito pelo grego, e seus roteiros eram o principal atrativo de sua filmografia. Sua criatividade fora de série, que criou universos riquíssimos, foi o que o levou ao Oscar, que o fez acumular prêmios em Cannes e ser cada vez mais aclamado - "A Favorita" é o 12º filme mais ovacionado de 2018 no Metacritic e a maior nota da carreira do diretor.

"A Favorita" foca nos bastidores políticos da Inglaterra do séc. XVIII, quando duas primas - Sarah (Rachel Weisz) e Abigail (Emma Stone) - lutam entre si pelo favoritismo da Rainha Anne (Olivia Colman). Baseado na disputa real, o roteiro não está preocupado com apuração histórica e solta os cachorros na briga familiar. Esse aspecto é um ponto correto dentro da trama, que passa longe de uma aula de história - você não precisa saber o que está acontecendo politicamente no período além de que a Grã-Bretanha está em guerra com a França.


O enredo é aberto com Sarah sendo o braço-direito de Anne enquanto tesoureira da corte - é ela que mantém maior proximidade com a Rainha. O lugar privilegiado permite que ela tenha controle direto nos rumos políticos do país, já que Anne possui uma saúde muito debilitada e não consegue manter o foco nas estratégias de guerra. Há verdadeira cumplicidade entre as duas, e o sistema funciona mesmo com a personalidade explosiva da Rainha.

Depois do roteiro, a característica mais marcante de Lanthimos é sua direção de atores. Ele cunhou um estilo que joga fora a naturalidade, engessando seus atores em moldes estranhos e até propositalmente artificiais - o ápice desse estilo habita em "Cervo Sagrado". "A Favorita" é o que foge mais da estranheza, todavia, é uma explosão com suas atrizes, principalmente com Olivia Colman.

Colman é uma das melhores atrizes da atualidade, no entanto, ainda não possui o reconhecimento que merece - ela tem um papel bem pequeno em "O Lagosta" e rouba todas as cenas em que põe o pé. Por "A Favorita", venceu o prêmio de "Melhor Atriz" no Festival de Veneza 2018, o abre-alas de uma campanha gigante, à altura de sua performance. Rainha Anne é hilariamente instável, gritando por coisas irrisórias e se afogando em todo o seu poder. É curioso como ela lembra bastante a Rainha Vermelha de "Alice no País das Maravilhas" (2010), já que ambas berram ordem sem propósito por mero prazer.


Porém, Anne não é uma caricatura ambulante. O roteiro a constrói de forma cuidadosa, costurando suas nuances de personalidade: ela perdeu 17 filhos (o número é real), e, para cada um deles, há um coelho como "substituto". A excentricidade não é perfumaria; Anne é infantil e imatura, alguém que foi colocada num trono e que não entende o que realmente representa. É como se Sarah fosse a adulta que impõe ordem, enquanto Anne é a criança que destrói tudo. Ela brinca com o país e a guerra da mesma maneira que uma menina joga bonecas de um lado ao outro.

Abigail chega na corte com a cara na lama, vindo após perder tudo pela irresponsabilidade do pai. Antes uma lady, agora vira empregada no palácio, até ajudar a sanar as dores na perna da Rainha, amarrando sua atenção. Devido à fraqueza física da regente, Abigail vê ali uma oportunidade única de deixar de ser plebe para voltar à burguesia.

Com diversas manipulações, ela vai se metendo dentro do quarto da Rainha, até que descobre que ela e Sarah têm um romance secreto, escândalo que poderia arruinar o reino. A oportunidade faz o bandido, e Abigail não pensa duas vezes antes de agarrá-la. No entanto, não se engane: o binarismo de mocinhos e vilões não existe tão gritantemente em "A Favorita"; apesar dos jogos de Abigail, ela foi empurrada até o fundo do poço pelas mãos do pai. Há motivações sólidas para sua ambição, mesmo que os caminhos escolhidos sejam moralmente duvidosos.


Sarah rapidamente percebe que a chegada de Abigail é uma cilada. Ela realmente ama e se importa com Anne, e ver sua amada escorrendo pelas suas mãos devido à manipulação da prima é um alerta de que ela precisa se livrar da rival e "fura-olho". O que começa como uma guerra-fria, com cada uma lentamente expondo seu descontentamento com a outra, passa para o âmbito físico, com agressão e tentativa de assassinato. Anne nem ao menos percebe o que está de fato acontecendo, e adora ver as duas se digladiando por sua atenção.

É claro que é aqui que reside o âmago de "A Favorita": tudo é solidificado para a batalha das primas - e não dá para esconder o quão bizarramente engraçada é essa briga, principalmente com a estética sarcástica de Yorgos e diálogos anacrônicos do roteiro. Mas é importante pontuar como a situação é exemplo perfeito das loucuras do período monárquico.

Com a concentração de poder em duas mãos, as insanidades correm soltas, com Anne servindo como símbolo absoluto de uma época. Até mesmo sua saúde é simbólica, uma rainha doente que reflete um sistema enfermo e cunhado sob interesses particulares. O contraste entre o quarto de Anne e o quarto dos empregados é dantesco, a ponta do icebergue de uma elite ocupada demais com o próprio bolso.


A fotografia abocanha os luxos do palácio sem vergonha, com takes irretocáveis do design de produção e figurinos estonteantes da película, um sucessor natural de "Barry Lyndon" (1975) e novo integrante de clássicos da Sétima Arte a passearem pela época - como "Amadeus" (1984) e "A Morte de Luís XIV" (2016). Com a câmera fincada sobre um eixo fixo, ela gira com rapidez a fim de exprimir visualmente a narrativa recheada de ironia e sagacidade.

Não só dentro do filme, Weisz e Stone estão numa quebra de braço nas premiações quando as duas estão estupendas na tela. Vencedoras do Oscar, ambas não se deixam serem tragadas por Anne e seus gritos, segurando as pontas e comandando atenções. Não se trata de uma rivalidade feminina gratuita pelo zelo do texto ao montar suas personas e status sociais - e Stone merece atenção não só por ser o foco óptico principal da narrativa, mas também por ter conseguido fazer um sotaque britânico autêntico.

"A Favorita" é, em primeiro lugar, um filme sobre mulheres difíceis em uma época difícil e em posições difíceis. A obra encanta na riqueza de detalhes narrativos e visuais, e quando suas protagonistas - três monstros na tela - não dão a mínima para a guerra do lado de fora de seu palácio, mais preocupadas com a batalha que acontece ali dentro - o destino da nação pouco importa quando é seu status que está em jogo. Mesmo não tendo o roteiro assinado por Yorgos Lanthimos, o longa é mais uma prova da genialidade do cineasta enquanto contador de histórias. "A Favorita" é uma luta real pelo favoritismo de uma insana rainha que escancara o nada discreto charme da burguesia.

Pegue o seu lencinho e vem ouvir "Estrada", single de estreia do Cais


Sabe aquela dorzinha de aceitar que um relacionamento não tem mais para onde ir? É sobre isso que canta o Cais, duo paulistano que na última semana estreou o seu primeiro single, "Estrada". O Cais é formado por Fábio Lamounier e Peo Tavares, músicos de São Paulo que dividiram o projeto com o mundo pela primeira vez esse ano, traduzindo experiências da própria vida em música.

O clipe de "Estrada" foi gravado em  Barra Velha e Penha, litoral norte de Santa Catarina, e traz os encontros e desencontros de um casal gay no final de seu relacionamento. Cada plano mostra uma enorme delicadeza e cuidado com detalhes, e o cenário de imensidão do mar intensifica a sensação de vazio dos versos.

A composição é própria de Peo e Fábio, com produção de Rafael Paiola. O duo compartilhou nas redes sociais do Cais que "Estrada" é inspirada na consciência do fim, de quando uma história se torna uma lembrança. Dá para se identificar, né? O resultado foi um som saudoso e intimista, que traz consigo o universo de particularidades de um relacionamento LGBT.

Aproveita para curtir o Cais também no Spotify:

Lista: (mais) 10 filmes fundamentais da melhor década pro cinema LGBT

Depois da Parte 1 da minha lista com 10 filmes LGBTs dessa década para amarmos com todas as cores, recebi um chuva de comentários sobre milhares de nomes que ficaram de fora do corte final - o que é normal, não dá para abarcar tudo com apenas 10 posições. Mesmo não sendo feita por ordem de preferência, o alto número de comentários só me provou algo: estamos vivendo na melhor fase para o cinema LGBT na história.

Ano após ano temos recebido longas exemplares a tratarem das dores e amores do ser LGBT, o que é incrível. Desde "Moonlight" vencendo o Oscar de "Melhor Filme" até outros nomes figurando entre os melhores do século, a indústria está cada vez mais de olho e com cuidado na hora de escolher histórias dessa população - senão cai no jargão do "pink money" - cof cof, "A Garota Dinamarquesa", cof.

E pelas tensões políticas que todo o planeta está vivendo, celebrar esse cinema é de vital importância, porque muito mais do que entreter, esses filmes nos ajudar a resistir - e educar plateias sobre a diversidade. Sem mais delongas, aqui estão mais 10 filmes LGBTs para guardarmos no coração. A lista segue o mesmo esquema da Parte 1: sem ordem de preferência, apenas boas dicas entre famosos e desconhecidos, vencedores do grandes prêmios e pérolas anônimas. Vamos militar? Sempre.


A Criada (Ah-ga-ssi/The Handmaiden), 2016

Qual letra aborda? LB.
Uma garota é contratada para ser a criada de uma rica mulher, trancafiada pela tirania do tio. A tal mulher não sabe que a garota está planejando um golpe para por as mãos em sua herança, enquanto a garota também não sabe que vai se apaixonar pela mulher. Dizer que "A Criada" é um espetáculo visual deslumbrante é chover no molhado, mas algo impossível de não ser citado - uma rápida olhada no trailer já garante o arrebatamento. Melhor ainda é a forma que a trama é construída: vemos a mesma história duas vezes, partindo de pontos de vistas diferentes, que se unem no último ato. "A Criada" é um quebra-cabeças sensual e venenoso - como não concorreu ao Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro"?

Pária (Pariah), 2011

Qual letra aborda? L.
Se "Moonlight" é o filme gay-negro definitivo da nossa geração, "Pária" assume o trono no cinema lésbico. A premissa é bem simples: Alike (nome muito perspicaz) tem 17, é uma garota negra e pobre do Brooklyn que luta contra os desejos internos, já que sua família religiosa ameaça acabar com sua paz. O que faz de "Pária" um sucesso é a maneira que entramos na vida da protagonista e como a diretora Dee Rees dá luz aos problemas da vida lésbica, negra e periférica. Chega a ser um crime como esse longa não recebe a atenção devida - principalmente com outros nomes bem inferiores sendo tão mais famosos. "Pária" se encaixa perfeitamente com "Moonlight" ao demonstrarem o poder social da Sétima Arte, dando voz aos marginalizados.

Gerontofilia (Gerontophilia), 2013

Qual letra aborda? GB.
Se "Pária" vem com um argumento simplista, "Gerontofilia" não dá a mínima para a discrição: um garoto larga a namorada quando descobre possuir forte atração por homens idosos. Quando sua mãe começa a trabalhar num asilo, ele conhece Peabody, um oitentão que se torna seu proibido namorado. Foi uma decisão correta do diretor Bruce La Bruce em retirar toda a sexualidade explícita da tela, algo sempre presente em seus filmes, para dar lugar aos pormenores do relacionamento - e as dificuldades das pessoas engolirem o relacionamento gay e interracial de um adolescente com um idoso. Um verdadeiro turbilhão de temas radicais ao mesmo tempo, a película retrata os acontecimentos de maneira terna, mesmo sem alcançar os grandes ares que poderia. Porém, só pela quebra da tranquila superfície de temas, "Gerontofilia" merece seu lugar ao sol.

No Caminho das Dunas (Noordzee Texas/North Sea Texas), 2011

Qual letra aborda? GB.
O belga "No Caminho das Dunas" segue duas fases da vida de Pim: quando ele é criança e adolescente. Ele já sabe, desde cedo, que possui forte atração pelo vizinho Gino, alguns anos mais velho. Com o desabrochar da puberdade, os dois desbravam os vales da sexualidade juntos, até que esse "juntos" seja cada vez mais íntimo. O longa não se dá ao trabalho de mostrar a construção da relação - ela já existe e a encontramos em processo - e nem possui os conflitos internos da sexualidade - Pim sempre se mostra confortável com o fato de ser gay -, preocupando-se em aproximar o público do imo da ligação. Mesmo com destinos previsíveis, é reconfortante assistir ao trabalho delicado e orgânico por trás (e pela frente) das câmeras de "No Caminho das Dunas".

Tomboy (idem), 2011

Qual letra aborda? T.
Cinema LGBT aliado com o coming of age é figura carimbada - os dois aparecem unidos em demasia. O que não satura esse casamento é a maneira única que cada florescimento de identidade, sexualidade e gênero é abordada. Em "Tomboy", bem no centro dessa equação, Laure aproveita a mudança de bairro para assumir uma nova persona: Michael, o garoto que sempre esteve dentro de si. A reviravolta da situação é ter uma menina se apaixonando por ele, que não sabe mais como manter a mentira. "Tomboy" é muito, mas muito mais que exímio filme trans, é uma viagem indescritível sobre a infância, posta no ecrã com um trato delicadíssimo - algo que não seria conseguido sem o corpo de atores mirins de cair o queixo. Não satisfeito, o longa escancara como crianças podem ser tão cruéis ao serem naturalizadas com a intolerância. EDUQUEM SEUS FILHOS A RESPEITAREM A DIVERSIDADE.

Quando se Tem 17 Anos (Quand on a 17 Ans/Being 17), 2016

Qual letra aborda? G.
Damien é um garoto branco que vive com a mãe, uma médica. Um dia ele é agredido por um outro garoto na escola, Tom, numa explosão que vai além do motivo principal: Damien é gay. Só que Tom também é. "Quando se Tem 17 Anos" passa longe do clichê casal-que-começa-se-odiando-e-termina-junto quando soterra a plateia com temas que caminham longe da superfície. Muito mais que a temática gay, a película discorre sobre o quão profunda é a rachadura da discrepância social. Tom é negro e adotado, tendo que trabalhar na fazenda do pai e se deslocando quilômetros até a escola, enquanto Damien é absolutamente privilegiado. A raiva do oprimido é externalizada de maneira errada, mas rende um texto pungente sobre a descoberta da sexualidade e morte da identidade imposta, dando espaço para discussões importantes como raça, família e instituições de poder.

Crepúsculo (Rökkur/The Rift), 2017

Qual letra aborda? G.
É raro vermos um longa LGBT que esteja fora da caixa drama-romance, e "Crepúsculo" é uma ótima exceção. O filme caminha sobre o suspense e o terror ao colocar um casal de ex-namorados numa casa no meio do nada. Enquanto discutem tanto o relacionamento terminado como as novas andanças de suas vidas, Gunnar percebe que há algo de errado em tudo ali. Desde sua fotografia estupenda até uma direção que usa os clichês do gênero para realizar uma obra competente, "Crepúsculo" consegue gelar a espinha com um clima austero e agoniante - há uma das cenas mais assustadoras do ano aqui. O filme pode não explicar todas as suas pontas, deixam o espectador nadar na subjetividade, no entanto algo é fato: a obra comprova que quebrar a regra #1 da Dua Lipa é uma péssima ideia.

Além das Montanhas (Dupa Dealuri/Beyond The Hills), 2012

Qual letra aborda? L.
Cristian Mungiu é um dos meus diretores contemporâneos favoritos - é dele uma das maiores obras-primas do século, "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias". O romeno, porém, nunca ganhou notoriedade fora da roda cinéfila, então aqui vai uma tentativa de "mainstremizar" seu cinema. "Além das Montanhas" leva a religião a um patamar além ao chocá-la com a vivência lésbica. Alina e Voichita se separam quando a última vai parar num monastério. Tencionando levar a mais-que-amiga de volta, Alina encontra uma mulher completamente diferente, submersa na opressiva realidade ortodoxa, que se volta rapidamente contra Alina: ela, por ser lésbica, é acusada de estar possuída pelo demônio. Mungiu mostra em meio a uma técnica primorosa até que ponto o fanatismo religioso pode deturpar a visão crítica do real e eleva a situação ao máximo, sem maquiagem, para revelar quais as suas consequências.

Thelma (idem), 2017

Qual letra aborda? L.
Se você acompanha as listas do Cinematofagia, já deve conhecer "Thelma" (é a terceira lista que o filme aparece, de nada, Joachim Trier). A obra é um conto sobrenatural de super-herói à moda norueguesa, com a personagem-título descobrindo seus poderes quando se apaixona perdidamente por uma colega de sala. Outro exemplar a discutir a vivência LGBT com a religião, "Thelma" é um expurgo das amarras sacras que enforcam a protagonista, libertando-se através de suas habilidades e do conturbado amor pela amiga. Recheado com simbolismos visuais arrebatadores - a cena em que Thelma engole uma cobra, representação da aceitação do desejo e do pecado -, o filme é uma fresca abordagem para o cinema LGBT e o encurralamento que essa população passa.

Um Estranho no Lago (Stranger by the Lake), 2013

Qual letra aborda? G.
O nome mais explícito da lista, "Um Estranho no Lago" se passa inteiramente numa praia de nudismo onde homossexuais vão para apreciar a vista, se é que você me entende. Franck é frequentador assíduo, tanto da praia como do bosque ao lado, usado para relações sexuais. Certa manhã ele conhece Michel, novato na área, sem saber do quão perigoso ele é. Alain Guiraudie trata do desejo pelo perigo de forma exemplar, inserindo-nos no universo daquele lago de forma escancarada e necessária para que sintamos na pele - e no resto do corpo - os dilemas de Franck em busca do que todo mundo quer: um amor. Suspense de primeira linha sobre tesão e tensão.

***

Mesmo com agora 20 nomes, quais os filmes LGBTs modernos que merecem destaque para que o mundo inteiro aclame? Como na primeira vez, podem jogar os comentários - se a obra for desconhecida, melhor ainda. E a Parte 3 vira realidade em breve.

Crítica: "Desobediência" nos lembra que amar é um ato de provocação para sermos quem somos


Nesse maravilhoso mês de junho comemora-se o Mês do Orgulho LGBT, e, ressuscitando minha lista com 10 filmes LGBTs modernos para amarmos, muita gente soltou os filmes que ficaram de fora, o que é natural. Ao fazer a lista, doía ter que deixar alguns nomes tão bons no escanteio, porém, durante a discussão, percebi que isso era, na verdade, algo bom. Queria dizer que estamos bem servidos de filmes LGBT para caber em muito mais que apenas uma lista de 10 nomes. Spoiler alert: parte 2 da minha lista sairá.

Vendo o apogeu do cinema LGBT na contemporaneidade com "O Segredo de Brokeback Mountain" (2005), a impressão que fica  é que os temas só foram abordados na Sétima Arte recentemente, o que é um equívoco. Assim como a própria diversidade de gênero e sexualidade, o Cinema, desde o primórdio, abordava tais tópicos: em 1919 nascia o média-metragem alemão "Diferente dos Outros". O filme de Richard Oswald foi feito para bater de frente à uma lei alemã que condenava a homossexualidade como "ofensa criminal", sendo o primeiro filme pró-gay da história. A obra foi censurada e diversas cópias destruídas pelos nazistas, mas felizmente o filme foi salvo. Quase 100 anos depois, cá estamos, ainda usando o cinema como ferramenta de conscientização.

Quando falamos de cinema lésbico em específico, encontramos um obstáculo a mais, simbiótico da própria existência feminina: a fetichização. Esse fenômeno acontece quando uma obra lésbica é usada no intuito de estimular o prazer masculino, em produções geralmente dirigidas por homens. Um filme lésbico ser dirigido por homens não é um problema - é um reflexo da indústria como um todo, ainda dominado por mãos masculinas -, e sim quando a representatividade é engolida pelo estereótipo, algo inerente na realidade da mulher na sociedade.


Apesar de existirem em menor número que os filmes gays - estou usando o binarismo sem excluir obras que retratam a bissexualidade -, o cinema lésbico encontra cada vez mais espaço graças à demanda do público. Pérolas como "Cidade dos Sonhos" (2001), "Monster: Desejo Assassino" (2003), "Minhas Mães e Meu Pai" (2010), "Pária" (2011), "Azul é a Cor Mais Quente" (2013), "Carol" (2015) e "Princesa Cyd" (2017) são exemplos crescentes tanto dos grandes estúdios quanto de produtores independentes a explorarem as vastas facetas da realidade lésbica. E o montante vai crescendo ano após ano.

"Desobediência" é o novo grande expoente a tentar um lugarzinho ao lado dos citados. Dirigido pelo recém vencedor do Oscar, Sebastián Lelio - ganhador do prêmio de "Melhor Filme Estrangeiro" pela obra-prima "Uma Mulher Fantástica" (2017) -, o longa nos enterra numa comunidade judaica ortodoxa em Londres. Lá é o berço de três amigos de infância: Ronit (Rachel Weisz, de "O Lagosta"), Esti (Rachel McAdams, de "Spotlight") e Dovid (Alessandro Nivola, de "Demônio de Neon"). O roteiro não entrega grandes detalhes do passado do trio, mas sabemos que Ronit fugiu daquele opressor mundo, então Esti e Dovid seguiram as tradições e acabaram se casando.

Porém há um detalhe crucial: Ronit e Esti são o amor uma da outra, e o motivo da ruptura social de Ronit foi a descoberta do romance das duas durante a adolescência. Ronit, que agora vive em Nova Iorque, é considerada uma renegada entre a estrita comunidade em que Esti permanece fiel, e seu retorno - para o funeral do seu pai, o rabino daquele povo - será como uma pedra caindo sem graciosidade num calmo lago.


Ronit pondo os pés na cidade é como uma tempestade se aproximando. Há um clima tenso não dito entre os presentes, principalmente por ela não saber que Esti agora é casada com Dovid. Mas o matrimônio não é força o suficiente para impedir a atração entre ambas. Esti até tenta, todavia, aquele ímã gigante que é Ronit é tudo o que ela queria.

Durante uma caminhada entre as duas, Ronit questiona o motivo para Esti ter se casado com um homem. O motivo é óbvio: ela está dançando conforme a música. No entanto, aquela música não é no mesmo ritmo que sua própria canção. Esti não é bissexual, ela mesma afirma não gostar de homens, porém aquela sociedade é a única que ela conhece, e, para se manter membro dela, as regras devem ser aceitas.

Ronit, no entanto, não está interessada em seguir os passos daquela lambada. Num jantar com parentes e amigos, ela diz não querer ter filhos, um ultraje silencioso para a mesa. Uma mulher então afirma que Ronit deve ter filhos e se casar, pois "é o jeito que tem que ser". "É o jeito que tem que ser ou é uma obrigação? Se eu me casar, depois de dez anos eu acabaria me matando, ou esse seria o sentimento". O clima do jantar está morto. Engraçado que Esti até esboça certa empatia pelas ideias, apesar de não ousar externalizá-las. Mas solta uma reflexiva frase sobre como as mulheres, ao colocar o sobrenome dos maridos após o casamento, abdicam-se de suas próprias identidades. Por que os homens não fazem o mesmo?


A veia feminista de "Desobediência" é latente. O próprio título é moldura exemplar para isso; mesmo não sendo uma obra sobre mulheres estraçalhando as regras sociais como ele pode sugerir, há a subversão naquele romance cheio de amarras proibidas. O contexto em si ajuda a potenciar a transgressão e dá uma conotação fresca para a inserção da homossexualidade dentro da religião, afinal, poucos filmes exploram o judaísmo como plano de fundo; em sua grande maioria, o embate é contra a fé católica.

A luta da natureza versus religião não é nova na arte, e o Cinema não fica de fora. "Desobediência" consegue seu lugar ao sol ao atingir um nível de emoção que supere as obviedades sem sair da atmosfera sóbria que o contexto social pede. Estamos diante de uma situação muito complexa para os três peões desse triângulo amoroso torto. Ronit é assombrada pelo passado e se sente culpada por ter abandonado suas raízes em busca de libertação; Esti deliberadamente escolhe o encurralamento por não possuir vivência além das grades daquela condição; e não podemos esquecer de Dovid, que vê a esposa escapar de suas mãos com a chegada de Ronit.

Mas não há religião capaz de superar a ânsia entre Esti e Ronit, que rende a cena de sexo elementar da produção, carregada por potentes atuações de suas atrizes, que poderão arrematar indicações ao Oscar 2019 caso a fita perdure na mente dos votantes. O ápice da química entre as duas Rachels, a sequência é composta com muita delicadeza e crueza, possuindo uma coreografia notável: a primeira peça que Ronit tira de Esti não é algum dos seus artefatos de vestuário, como era de se esperar, e sim sua peruca. Mais cedo na película, vemos que Esti usa a peruca para se encaixar no modelo perfeito de esposa judaica, tirando-a apenas no banho e quando vai dormir. Ao ser a primeira coisa a sair do corpo de Esti, Ronit está simbolizando a ruptura entre a fé e o desejo, imageticamente falando. Esti está, por fim, despida do peso do judaísmo.
"Me chame pelo seu nome que eu te chamo pelo meu" "Rachel" "Rachel" "Rachel" "Rachel"

As cores presentes no filme são preponderantes para a orquestração do clima austero onde as personagens estão instaladas. Durante toda a duração, peguei-me pensando como "Desobediência" é o oposto de "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017). Enquanto o filme de Luca Guadagnino é ensolarado, colorido e vibrante pelo trabalho fotográfico e cenográfico, valorizando os tons de azul, verde e amarelo daquela bucólica casa italiana; "Desobediência" é frio e opaco, dotado de tons de marrom e preto de uma Londres nada aconchegante. Se o romance de Oliver e Elio era tão cheio de aceitação do meio, o visual do longa de Lelio é prisma fundamental para assimilarmos a maneira como o relacionamento das protagonistas não é bem vindo.

E Sebastián Lelio segue comprovando como é um dos melhores diretores da atualidade a tratar dos dramas femininos. Com três filmes seguidos a explorarem as vidas de suas personagens - "Glória" (2013), "Uma Mulher Fantástica" e "Desobediência" -, seus roteiros extraem magicamente a doçura e os percalços particulares da realidade de Glória, Marina e Ronit. Sendo "Desobediência" seu primeiro longa fora do Chile e, consequentemente, em inglês, seu estilo conseguiu manter-se intacto na transposição de estúdios, sendo mais um cineasta a não deixar de ser quem é ao chegar mais perto de Hollywood.

"Desobediência" tinha em mãos material suficiente para ser apenas outro filme LGBT que coloca seus personagens contra a intolerância da religião, mas é produção de valor pelo domínio cinematográfico de todos os elementos na tela. E é exatamente aqui que está o fator diferenciador entre o filme "mais um" e o "notável". Nome a surgir para fortalecer o cinema lésbico, "Desobediência" é manifesto que supera gêneros para nos lembrar que amar é um ato de provocação, e algumas transgressões são imprescindíveis para que possamos alcançar a liberdade absoluta de sermos quem somos.

Crítica: "Transamérica" ultrapassa barreiras regionais para se tornar um complexo filme trans

Não posso afirmar com 100% de certeza, mas acho que o primeiro filme com temática trans que vi na vida foi “Transamérica”, há nem sei quantos anos. Na época, me recordo, já possuía certo conhecimento sobre a transexualidade e seus meandros, mas o filme me encaminhou por trajetos bem profundos sobre essa realidade, virando um ícone para mim; assim como muitos possuem “Orações Para Bobby” (2009) como o início de suas vidas dentro do cinema LGBT, ou, no caso em específico, do cinema gay.

Então se eu afirmar que “Transamérica” seja o primeiro grande nome do cinema trans na contemporaneidade, posso estar sob efeito da minha vivência. Mesmo não sendo o primeiro, ou o melhor, ou o mais importante, que seja, é um dos melhores debates LGBTs dentro da Sétima Arte neste novo século.

O filme conta a história de Bree, uma mulher trans a alguns dias da sua cirurgia de redesignação sexual, que recebe uma ligação informando que Toby precisa de ajuda. O problema é que Toby é o filho de 17 anos que Bree não sabia que tinha, tomando conhecimento após a morte da mãe do garoto. Ela então é forçada pela psicóloga a resolver a questão, caso contrário não poderá realizar a cirurgia na data marcada.


Bree vai até Nova Iorque, onde está Toby, para ajudar como puder e rapidamente ir embora, afinal, sua prioridade é a cirurgia, o momento mais importante de sua vida. Todavia, a situação é mais complexa do que o esperado: Toby é viciado em drogas e não quer voltar para casa. Mesmo não possuindo laços afetivos com aquele menino que nunca viu na vida, Bree se vê obrigada a depositar gentilmente o filho no lar mais fácil e próximo.

De carro, seguimos a viagem dessa dupla incomum através das estradas norte-americanas. Então, sim, “Transamérica” é um autêntico roadmovie, os filmes de viagem tão famosos no país. Só que os dilemas daquela viagem são deveras particulares. Toby nunca conheceu o pai, e não tem ideia de que Bree seja exatamente ele (ou, melhor dizendo, que Bree era ele). Ela diz que está ali à trabalho da igreja, que tem como objetivo ajudar jovens em situações de risco, o que é um disfarce perfeito para não levantar as suspeitas do garoto.

E ele nem se questiona se aquela estranha mulher, constantemente preocupada em estar sempre coberta, é ou não uma missionária religiosa. Sua cabeça está mais ocupada pensando em chegar em LA e procurar pelo pai, que, segundo ele, possui muito dinheiro. Bree engole seco ao ouvir o relato de Toby, sem saber qual será seu próximo passo, mesmo tendo consciência que a inevitável verdade está mais perto a cada quilômetro percorrido. Ela decide então levar o garoto de volta à casa do padrasto, a saída mais fácil para aquela complicação.


Na mesma estrada que leva Bree e Toby até a verdade, estão vários percalços decisivos para a velocidade que essa verdade chegará. O primeiro baque é a descoberta de que a mãe de Toby se suicidou, e que o padrasto tem abusado psicológica e sexualmente do garoto, gerando uma das cenas mais impactantes da película. O homem, desconcertado, abraça e diz que estava sentindo falta de Toby, que responde: “Eu sei do que você sentiu falta. Da minha boca, da minha bunda”, o que culmina em agressão física. O plano mais fácil foi por água abaixo, entretanto, nem mesmo a urgência de se livrar do problema pode permitir que Bree deixe o filho nas mãos daquele homem.

O jeito é levar Toby até Los Angeles, a fim de fazer com que ele esteja mais perto de realizar seu sonho: ser um astro de cinema. Pornô. Quando Bree vai urinar à beira da estrada, Toby descobre sua transexualidade, o maior medo da mulher, que virá a se concretizar quando ele a chama de “aberração” e “traveco” na frente de um estranho. Ainda é necessário apontar que esse comportamento é reflexo da nossa sociedade transfóbica? Acho que já está mais que claro.

Um ponto que merece destaque é o fato de Toby ser gay - ou bissexual, já que ele beija uma garota em uma cena, apesar de demonstrar gostar de homens, prostituindo-se com um caminhoneiro em determinado momento da fita. Mesmo estando todos na mesma sigla, há todo um universo que separa a homossexualidade da transexualidade. Apesar de ser duas populações oprimidas e em busca de seus direitos civis, é primordial aceitar que o ser gay possui privilégios que o ser trans não possui. A identidade de gênero é ainda mais passível de intolerância que a sexualidade.


Só em o próprio corpo depender da decisão de terceiros já encerra os argumentos. Bree passou por anos de terapia e troca de médicos para finalmente receber o laudo de que pode realizar a cirurgia, com uma condição ainda vista como doença ou transtorno."Transamérica" passeia por todos os pormenores da condição transexual de maneira bem delicada, sem transformar o filme numa reportagem, dando ênfase aos dramas na tela.

E não é de se espantar quando o roteiro de Duncan Tucker leva a protagonista até a casa de seus pais, que há muito não a vê. Bree passa a película dizendo que os pais estão mortos, porém de uma forma figurativa, já que eles rejeitam sua existência após a descoberta do seu gênero. A mãe então, interpretada por uma afetada Fionnula Flanagan, que insiste em chamar a filha no masculino e pelo nome de batismo. "Eu quero meu filho de volta" ela diz, ouvindo como resposta "Você nunca teve um filho, mãe".

A ficha técnica do longa informa que a produção se enquadra nos gêneros drama e comédia. Passamos a fita inteira só recebendo o drama, com a comédia reservada pela tresloucada família de Bree. Há um choque entre a saída do tom bem sério para o início dos ares cômicos, encabeçados pela dondoca riquíssima que é a matriarca. A direção toma cuidado para não ultrapassar o limite da caricatura, apesar da mãe ser um clichê ambulante e exagerado; porém é um contrabalanço que funciona com toda a sobriedade de Bree.


E é ela, ou melhor, a atuação de Felicity Huffmann que funciona como o ímã para tudo, diegeticamente ou não. A atriz, famosa pela série "Desperate Housewives", está nada menos que genial no papel. Com uma maquiagem para retirar seus traços mais "femininos", ela consegue tanto entregar os momentos de altíssima emoção quanto cenas mais descontraídas - ela espantando cobras no meio do mato é hilário. Indicada ao Oscar de "Melhor Atriz", a derrota de Huffmann para Reese Witherspoon é só mais uma das inúmeras injustiças da Academia, principalmente nessa categoria.

Além da maquiagem, toda a composição visual de Bree é milimetricamente feita para potencializar sua persona. Desde as roupas sempre em tons de rosa e roxo, até os acessórios e a expressão corporal da atriz, tudo é brilhantemente unido para gerar uma personagem icônica. Num debate sobre a transexualidade, a imagem é peça fundamental, afinal, estamos falando de corpo, e corpo é o trato imagético de quem somos.

Kevin Zegers na pele de Toby não está muito atrás. O ator dá vida a um personagem complicadíssimo. É fato que ele é desprezível em vários momentos, mas toda a carga de formação do garoto deve ser levada em conta. Gay, 17 anos, sem um pai, com a mãe morta e sendo abusado pelo padrasto, ele cai nas drogas e na prostituição. É a situação em que o meio molda o indivíduo, e Zegers é bem sucedido em carregar todas as nuances de um poderoso personagem.

"Transamérica" faz jus ao seu nome e é um filme inegavelmente americano: as músicas country da trilha, o formato roadmovie e a ressignificação do "sonho americano"; todavia, imperativamente é feliz ao ultrapassar as barreiras geográficas e culturais para se tornar universal, numa obra que cumpre genialmente o papel de tecer as dificuldades da vida de uma pessoa transexual. Com um roteiro complexo, desafiador e que não poupa discussões, é um júbilo acompanhar uma trama tão cheia de camadas que faz com que seus personagens aprendam sobre si mesmos no decorrer da estrada - e a plateia não está isenta disso.

Crítica: contrastes brasileiros como ferramentas para o terror no bizarro "As Boas Maneiras"

Atenção: o texto contém detalhes da trama.

Como você bem sabe - ou deveria saber -, nesse Mês do Orgulho LGBT eu decidi focar em filmes com a temática aqui no Cinematofagia - só clicar na tag da coluna para ler todas as críticas caso tenha perdido alguma. A melhor parte de jogar o texto no mundo é o debate que ele gera. Depois de ler meus comentários para "Com Amor, Simon" (2017), uma amiga veio ponderando sobre como precisamos de filmes LGBTs que não discorram diretamente sobre as lutas e glórias de ser uma pessoa fora da hétero-cisnormalidade, e isso é bem verdade.

É evidente que o Cinema, essa arte tão absoluta no que tange o discurso, é ferramenta inevitável para os comentários sociais, então mostrar as dores e amores dos LGBTs é necessário. No entanto, também precisamos de filmes que encaixem essa população em situações corriqueiras, sem que suas batalhas específicas sejam o foco principal. Essa narrativa desassocia diretamente essa fatia com as reivindicações de direitos, afinal, ser LGBT não é apenas ser LGBT. Temos várias outras histórias dentro de nós, e, em muitas delas, nossa sexualidade e/ou gênero não é o prato principal na mesa.


Pois bem, quis o destino que o próximo filme a cair no meu colo fosse exatamente um que trouxesse personagens LGBTs sem que suas sexualidades fossem o mote da película. Estou falando do brasileiro "As Boas Maneiras", recém estreado em solo tupiniquim e vencedor do prêmio de "Melhor Filme" no Festival do Rio 2017. Dirigido pela melhor dupla de diretores em atividade no país - Juliana Roja e Marco Dutra -, a fita conta a história de Ana (Marjorie Estiano, em ótima atuação), uma rica e solitária mulher que contrata Clara (a hipnótica Isabél Zuaa) para ser babá de seu filho ainda não nascido. Conforme a gravidez vai avançando, Ana começa a apresentar comportamentos cada vez mais estranhos e sinistros hábitos noturnos que afetam diretamente Clara.


Se você já assistiu ao curta da dupla, "Um Ramo" (2007), e a obra-prima "Trabalhar Cansa" (2011), sabe que os dois gostam de passear pelo terror e suspense psicológico - seus trabalhos solos também refletem essa predileção: "Quando Eu Era Vivo" (2014) do Dutra e "O Duplo" da Rojas são exemplos do que chamamos "exercício de gênero". Em "As Boas Maneiras" não é diferente. O longa claramente se divide em duas partes bem distintas, que chamarei de Parte 1 e Parte 2, quase como se dois filmes diferentes se unissem parar contar uma mesma história.

A sessão já começa com o primeiro contato entre Ana e Clara. Essa, mulher negra, pobre e que está devendo o aluguel do mês, chega no luxuoso flat de Ana para sua entrevista de emprego. Ela dá logo de cara com uma candidata, eloquente e bem aparentada, enquanto ela é simples e sem referências. O curso de enfermagem, seu maior trunfo do currículo, nem chegou a ser finalizado pelas dificuldades da vida. Mas há algo que faz Ana escolher aquela mulher tão diferente ao invés de todas as outras que, sem dúvidas, devem ter currículos bem mais polpudos.

A montagem, sem perder tempo, nos tira do apartamento da patroa até a casa de Clara. A esperta fotografia começa o trajeto com um enquadramento bem aberto para focar tanto as casinhas da periferia quanto os riquíssimos arranha-céus de uma metrópole construída à base de CGI, a fim de potencializar a discrepância daquele lugar pé-no-chão para os prédios futurísticos com cobertura de vidro. Seja pela porta gigantesca da entrada de Ana até a geladeira dupla, o choque de realidades é gritante e, principalmente, brasileiro.


Entre todas as discussões sociais que a tela escancara, há a todo o momento um pesada áurea de que há algo de errado ali. Não sabemos se é aquela misteriosa empregada ou a estranha patroa, que, juntas, se tornam ainda mais desconcertantes - e a mise-en-scène impulsiona a impressão, como por exemplo: há um plano que enquadra toda a sala de Ana com seus móveis e objetos opulentes, mas, também, a carcaça de um boi embaixo de uma mesa, peça incompatível com todo o resto. Porém, ignorando todas as variáveis, os dois polos acabam demonstrando magnetismo, como se elas desde sempre precisassem uma da outra. A gravidez de Ana só reforça todos esses efeitos, tendo em vista que não há sinal do pai da criança.

Vamos desvendando os passos de Ana até aquele momento com muita calma. Ela precisa de um tempo para se sentir confortável ao lado de Clara e, assim, contar quais caminhos a vida escolheu para ambas terminarem juntas no sofá da sala. O pai foi um caso de uma noite só, que sumiu no mundo, fazendo com que a família de Ana a mandassem para a capital com o intuito de realizar um aborto. Todavia, a mulher mantém o bebê, o que a faz cortar relações com a família.

A soma dessa variável com a gravidez cada vez mais estranha de Ana gera a equação perfeita para ela ficar dependente de Clara, a única efetivamente ao seu lado. Apesar do pré-natal mostrar um bebê forte e saudável, a pressão da mãe está alta, e o médico corta a carne da sua dieta, o que gera a primeira grande ruptura entre a relação daquelas duas mulheres. Durante uma noite sonâmbula, Ana beija e morde Clara, num ato animalesco de prazer e fome. E essas ânsias não serão saciadas tão facilmente.


A primeira parte de "As Boas Maneiras" caminha sem medo sobre um o solo do suspense psicológico, bebendo largamente na fonte de "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos maiores clássicos do terror da história - que, coincidência ou não, estreou há 50 anos na mesma semana de "As Boas Maneiras". Ana e Rosemary compartilham inúmeras similaridades, e a fita faz questão de deixar isso bem claro com o andar do primeiro bloco. O jogo que a plateia entra para desvendar quem é o peão dissonante entre as duas é desvendado com a aproximação do fim da gravidez de Ana, que culmina na sequência máxima de terror da obra.

Se você é daqueles que deseja sentar na frente de um filme sabendo o menos possível dele, talvez nem esteja lendo isso agora caso ainda não tenha visto "As Boas Maneiras". Mas é fácil saber - ou pelo menos supor - que estamos diante de uma fita que traz a figura do lobisomem: é só olhar para o pôster ou alguma das imagens promocionais - ou pegando a referência ao Lobo Mal da Chapeuzinho Vermelho quando o médico diz que o bebê tem "grandes olhos, grande boca e grandes mãos". Curiosamente, a palavra "lobisomem" só é mencionada na duração uma vez, entretanto, o relato de Ana sobre a noite com o pai do seu filho - ilustrado lindamente em animação - é o último prego para cimentar nossas certezas: ele era um lobisomem e, assim, seu filho também será.

E, quebrando a expectativa gerada pela comparação com "O Bebê de Rosemary", que não revela a imagem do bebê, a criatura de "As Boas Maneiras", fofamente batizada de Joel, é mostrada em todo seu esplendor. O ápice do terror do longa é alcançado aqui, e só é conseguido a partir de competentes efeitos especiais, que constroem um bichinho fidedigno, raro elemento de um gênero tão pouco explorado dentro do cinema nacional: o terror e a fantasia.


E aqui se encerra a Parte 1 do filme. A Parte 2 segue os passos de Joel e como ele deve lidar com sua condição e o meio que o cerca. Todo o tom narcotizante é inteiramente deixado de lado para dar lugar ao folclórico, quase um conto de fadas macabro. A mudança de narrativa é um choque bem grande, já que temos a impressão, no clímax da primeira metade, que a película está chegando ao fim. Demoramos um pouco para submergimos no novo filme que se inicia, principalmente por ele ser bem maior do que imaginamos - a fita completa tem 2h15min de duração.

Essa troca de conduções pode fazer com que a plateia se desligue do filme, que agora é uma fábula com traços de musicais (!). É bem verdade que a parte final é menos impactante que a primeira, e possui os momentos mais fracos de toda a obra - as cenas cantadas poderiam ter sido cortadas da edição para acelerar o ritmo -, porém é um complemento interessante ao primeiro segmento, consumindo agora outras fontes, como a do filme "Grave" (2016), que narra a vida de uma garota canibal, criada pela família como vegetariana para não despertar sua fome de carne - o mesmo estilo de vida que Joel é condicionado para sua própria proteção.

O cinema nacional infelizmente tende a cair na repetição, então "As Boas Maneiras" joga todos os arquétipos dos nossos clichês pela janela para dar lugar a uma trama incomum, fantástica e com muito frescor. Essa fábula urbana é um trabalho de gênero notório que demonstra sem titubear o quanto possuímos criatividade para sairmos da mesmice, entregando mercadorias cinematográficas aquém de nenhum lugar. Mesmo indo longe demais para uma plateia mais comercial, "As Boas Maneiras" é um louvor em concepção e realização, com um gore pontual que mostra que o sangue é verde e amarelo nesse bizarro filme sobre uma mulher lésbica que tem a vida mudada por um bebê lobisomem.

Crítica: "Com Amor, Simon" não é subversivo o suficiente para ser rotulado como ícone gay

Eu sou como você. Na maior parte, minha vida é totalmente normal. E, assim como muita gente, talvez até você mesmo, eu sou gay. Acho importante contar como foi todo o processo que me levou até aqui. Bem, ao contrário do protagonista de "Com Amor, Simon" (Love, Simon), que disse que percebeu sua sexualidade com 13 anos, sei desse fato desde que me entendo por gente. No começo, para mim, era algo absolutamente natural e que não fazia diferença na minha vida; mas, quando a gente cresce e vai se inserindo no meio, vemos que esse natural é bem diferente do natural dos outros.

Não sei se aconteceu com o Simon, mas nunca passei por grandes crises de sexualidade, me culpando ou desejando não ser como eu sou. Aquilo era mais uma característica como qualquer outra, apesar de diferente. Talvez por eu sempre ter sido muito certo do que sentia, o "ser gay" nunca foi um peso grande demais para carregar. Me pegava, sim, me questionando sobre ou o porquê, mas nada mudaria o fato de que eu era, então para que quebrar a cabeça?

E eu posso dizer: tive muita sorte com a reação da minha família quando o que era uma suspeita se tornou realidade - porque bater nos 20 anos sem nunca aparecer com uma namoradinha é o alerta principal, não é mesmo? Porém, incrivelmente, eu não cheguei contando: foram eles que vieram até mim afirmando. Por eu lidar de forma muito simples com isso, nunca senti a necessidade de contar, afinal, que diferença faria? Além disso, como o Simon brilhantemente pontua em um momento da fita, é uma injustiça universal termos que nos "assumir" enquanto uma pessoa heterossexual não precisa ter a conversa, sem ter necessidade de se reafirmar para todos como nós. Então sempre fiquei na minha mesmo.

Para resumir, todas as tormentas do se descobrir e se afirmar gay não teve grandes impactos em mim, o que, sei bem, é uma experiência que foge à regra. No entanto sou adepto à força do Cinema em conseguir gerar proximidade da plateia para com a história, mesmo se ela não partilhe das tramas que estão na tela. Minha última crítica, para "Os Iniciados" (2017), trazia um romance gay proibido no meio do interior da África do Sul, um contexto absolutamente aquém do meu, mas, olha só, tão distante e tão próximo ao mesmo tempo.


Dei todo esse relato pessoal para mostrar como um mesmo tema pode render abordagens tão distintas a partir de experiências únicas. E, também, com o intuito de revelar o quanto os tormentos de Simon não foram os mesmos que os meus. Mas isso faz diferença? Em tese, não deveria. "Com Amor, Simon" conta a história de um garoto gay que, prestes a entrar na faculdade, ainda não conseguiu externalizar sua sexualidade para o mundo, mesmo desejando o jardineiro da casa à frente. Certo dia, ele começa a conversar com Blue, pseudônimo de outro gay da mesma escola, que escolheu o anonimato para discutir sobre sua orientação. Também escondendo-se atrás de um fake, Simon cria uma afinidade com o tal garoto, até que seus e-mails são descobertos por Martin (Logan Miller), que passa a chantageá-lo.

"Com Amor, Simon" é baseado no livro "Simon vs. a Agenda Homo Sapiens", de Becky Albertalli, sucesso literário que rapidamente ganhou vida na telona. Voltado para o público jovem, o filme segue os passos das páginas e visa atingir a galera mais nova, quando a sexualidade está aflorando e, claro, trazendo uma tempestade de dúvidas. Um grande feito da produção é que ela é o primeiro filme gay adolescente a ser distribuído por uma das maiores produtoras de Hollywood, a 20th Century Fox. É um reflexo absoluto de como as demandas sociais por representação estão chegando até a indústria, que, sem esconder, visa o lucro em cima disso.

E o lucro veio: "Com Amor, Simon" já arrecadou quase 3,5X o valor gasto de produção. Mesmo não sendo um blockbuster a render milhões, é a prova de que há interesse por essas histórias. O maior sucesso, por sua vez, veio do público: no CinemaScore, ferramenta norte-americana de voto popular, a fita recebeu nota "A+", a maior existente - apenas 77 filmes na história conseguiram o feito. Nascia aí um clássico gay?

Fácil perceber o motivo - concordar é outra história. Toda a trama é o cume do oxigênio americano: high-school, amigos descolados na cafeteria entre aulas, festas regadas com bebidas e pegação, dúvidas sobre os crushes e selfies cheias de likes. A receita para qualquer um dizer "Sim, por favor!" está escancarada, até mesmo para quem não vive essa realidade; estamos tão calejados com mercadorias norte-americanas que o mundo do high-school é quase íntimo. Não tem como fugir caso você consuma a mídia hegemônica.


Quer mais? "Com Amor, Simon" é uma obra que se insere no mais absoluto presente. É um filme que está passando agora. É só ouvir várias das músicas da trilha sonora, como "No" da Meghan Trainor, "Bad Romance" da Lady Gaga, "As Long As You Love Me" do Justin Bieber, "Feel It Still" do Portugal The Man, etc. Toda a atmosfera busca capturar quem está vivendo na atual era, sejam pelas músicas, sejam pelos diálogos, sejam pelas tecnologias, enfim.

Então sim, estamos diante de uma fita urgente. E "urgente" não no sentido de "importante", mas no sentido de "temporalmente afiado". Particularmente, sempre fico temeroso com filmes que abraçam o "agora" de forma tão explícita, pois os mesmos são os que mais sofrem com o efeito do tempo: em 10 anos "Com Amor, Simon" pode já estar datado. Na verdade, ele já nasceu datado. Mesmo a todo o momento deixando claro que é um longa moderno, parece que os personagens estão dentro de um filme dos anos 90 quando vemos seus embates.

E isso é efeito colateral do maior erro da película: não saber dosar os acontecimentos com a faixa etária de seus próprios personagens. Lembrando, Simon e sua trupe estão quase saindo do nosso ensino médio, todavia, há diversas tramas, diálogos e interações que são dignas de garotos do fundamental. Há uma cena onde Abby (Alexandra Shipp, a melhor atriz a pisar nesse filme) é forçada por Martin a gritar no meio de uma lanchonete que é "uma incrível mulher" e que merece "um super-herói", cena digna daqueles nomes baratos da Sessão da Tarde, e esse é só um exemplo.


Ah, mas é um filme de adolescentes, não tinha como fugir mesmo disso, você pode pensar, o que não é verdade. De "Meninas Malvadas" (2004) a "Tragedy Girls" (2017), este com a maravilhosa Alexandra Shipp como protagonista, os nomes de filmes que se passam no mesmíssimo universo de "Com Amor, Simon" sem cair nos clichês ou na babaquice estão aí vivos e respirando sem a ajuda de aparelhos. A inteligência repousa na capacidade dos diretores e roteiristas em usar os chavões em benefício próprio, como os dois citados fazem brilhantemente.

Mas vamos lá, qual o homossexual que não consegue minimamente se identificar com Simon? É bem verdade que não dá para não dizer "entendo tanto isso" em pelo menos uma cena, ou até derramar uma lágrima ou duas. A produção é muito bem intencionada, e trata de um conflito em específico e importante de ser debatido: quando o gay sai do armário forçadamente. Apesar dos meios serem bastante fracos dentro do roteiro, a trama da expulsão de Simon do seu armário é uma realidade que pode ser cruel para quem não está preparado a dar esse grande passo, e sua explanação é uma boa aula para quem não é gay.

No entanto, o filme está longe de ser o ícone LGBT que tanto parece ser - seja pela forma que se vende, seja pela aceitação do grande público. Note: Simon vive numa família rica, absolutamente unida e feliz, mora em sua lustrosa casa no subúrbio e goza de todos os privilégios em ser branco e heteronormativo. Todos ao seu redor estão ali prontos para acolhê-lo após a relevação de sua sexualidade. Simon tem (quase) nada de subversivo. Essa pontuação não quer dizer que filmes com esse arquétipo não possam existir, vamos lá, com calma. Um dos maiores sucessos gays da década, "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017), é o amontoado das mesmas características: um romance gay entre dois homens brancos sob uma planície ensolarada italiana.


A grande diferença é: "Me Chame Pelo Seu Nome" é um longa sobre um amor de verão. Seu "objetivo" é retratar o nascimento e a morte dessa paixão, e só. "Com Amor, Simon" tem como meta ser um exemplo de aceitação e orgulho gay. Porém, seu porta-voz não possui força o suficiente para quebrar grandes barreiras e se tornar ícone - efeito idêntico ao da quase-tragédia "Stonewall: Onde o Orgulho Começou" (2015), que tira o protagonismo das mãos dos verdadeiros nomes para colocar sob os cuidados de um cara branco e "fora do meio". E ambos são exemplos de obras que aparentam fazer mais do que fazem de fato.

Sim, há uma fatia considerável de fofura e até certo carisma nos corredores da película, mas nada é capaz de mascarar o comodismo presente nas representações escolhidas. É um louvor ver o círculo de amigos de Simon, cheio de diversidade ao contrário de tantos filmes embranquecidos do subgênero, contudo é Simon a estrela da parada. E ele é o tipo mais comum de garoto que pode existir, quase vivendo num conto de fadas urbano, a única diferença é sua sexualidade. Prefiro pensar com todo o amor no coração que isso não se trata de uma higienização da homossexualidade - as escolhas das características do protagonista não foram arbitrárias -, então percorro esse aspecto sem tanta retaliação, mas é inegável: Simon não é um representante de verdade para a classe LGBTQ. Seu filme tampouco, a não ser que você esteja no 2º ano do fundamental.

"Com Amor, Simon" é um filme que atingiu moderado sucesso comercial e largo apreço das plateias por ser uma produção que existe para satisfazer seu público alvo, entretanto, ao se limitar dentro do nicho jovem, acaba cerceando todos os outros consumidores, e o preço deve ser pago. Com uma narrativa maculada que subestima seus próprios personagens, temos aqui uma fita que pode até ajudar quem começa a discutir sobre sua própria homossexualidade, todavia é mercadoria plastificada que, sim, merece ser feita, mas está gritantemente atrás em termos de importância e relevância de tantos outros longas LGBTQs.

Teríamos uma história bem mais notável dentro do cinema gay e, talvez, dentro da Sétima Arte como um todo caso o protagonista fosse aquele colega de escola de Simon: subutilizado, negro, afeminado e que sofre preconceito na frente do nosso dito herói - que faz nada para ajudá-lo, diga-se de passagem. Ele, que põe a cara para bater todos os dias e se autoafirma mesmo com os opressores percalços, é a verdadeira revolução de "Com Amor, Simon".

Crítica: "Os Iniciados" e as garras da homofobia que aprisionam e sufocam por meio de tradições

Assim como qualquer subgênero da Sétima Arte, o cinema LGBT cria seus próprios clichês. Como há um montante bem maior de filmes sobre a homossexualidade masculina, seus lugares-comuns são ainda mais evidentes. Você já deve ter cansado desses exemplares dignos da Sessão da Tarde com tragédias, HIV, finais fúnebres e aquela história água-com-açúcar sobre autoaceitação.

Não que esses temas não precisem mais serem discutidos, porém já foram explanados dentro de um mesmo molde à exaustão, e precisam de elementos muito marcantes para deixarem de ser só "mais um". Por isso sempre fico tão entusiasmado quando encontro um filme LGBT que trata dos dramas comuns dessa população com uma trama diferente. Foi o caso de "Os Iniciados" (Inxeba/The Wound).


A película segue os passos de Xolani (Nakhane Touré), um mentor no ritual de iniciação dos garotos daquela cultura, conhecido na África do Sul como "Ulwaluko". Ele aceita assegurar o sucesso do ritual de Kwanda (Niza Jay Ncoyini), um garoto homossexual que é forçado pelo pai a enfrentar a tradição para enfim se tornar "homem" (heteronormativamente falando). O que ninguém sabe é que Xolani só aceita a tarefa para voltar ao acampamento do ritual e reencontrar Vija (Bongile Mantsai), outro mentor e seu amante.

"Os Iniciados" foi o selecionado da África do Sul para concorrer ao Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro" na edição de 2018, ficando entre os semifinalistas - mas deveria ter sido indicado, afinal é bem melhor que alguns dos finalistas. Logo de cara, na conversa entre o pai de Kwanda e Xolani, somos direcionados às ideologias que percorreremos ao longo da fita: o homem diz que o filho é muito "fraco" por ter sido mimado pela mãe, traços gritantes do patriarcado. Ser gay é ser associado à fraqueza, como um homem que deu errado; e, claro, a culpa disso é da mãe, não do pai.


Rapidamente entramos nos rituais, explorados na tela com vastidão de detalhes. Superando um traço Discovery Channel, somos apresentados aos ritos daquela cultura e vemos que os mesmos seguem passos bem cruéis. Tendo como principal prática a circuncisão, sem anestesia e na frente de todo mundo, os garotos devem gritar "Eu sou um homem!" durante o processo. Chorar é algo impensável naquele momento. A ferida do procedimento é o símbolo principal da masculinidade, e é o que manterá os garotos ali, sendo oficialmente homens quando o ferimento cicatrizar - por isso o nome original do filme, "A Ferida", em tradução literal. Os agora chamados "iniciados" ficam sobre os cuidados dos mentores, que são responsáveis pelos ensinamentos e a cicatrização do corte.

Nesse meio tempo, Xolani dá suas escapadas para encontrar Vija. Ambos representam papéis sociais bem distintos. Xolani é tímido, retraído, resguardado. Sua orientação sexual o prendeu dentro de si próprio, criando uma armadura para se proteger de quaisquer ameaças. Já Vija é o macho alfa. Musculoso e viril, ele percorreu o caminho de manter um casamento de fachada para legitimar sua pose heterossexual. Entre os amigos, eles dizem não ver a hora de sair do acampamento só com homens e aproveitar dos prazeres dos órgãos sexuais femininos - não com essas doces palavras, é claro.


Os dois só conseguem se despir de todas as máscaras que há anos constroem quando estão juntos sozinhos: a áurea de rejeição de aproximação que reside em Xolani e toda a dureza do típico macho de Vija são esquecidos nos reencontros, havendo bastante ternura entre eles. Enquanto Xolani ainda nutre uma esperança de que o relacionamento possa se alongar além do curto espaço de tempo dos rituais, Vija está decido a continuar com a esposa, o que parte o coração do nosso protagonista. E, em meio a isso, há Kwanda, também homossexual, que representa um terceiro viés dessa realidade: o gay homofóbico.

Se na nossa sociedade brasileira encontramos inúmeros gays que demonstram ódio pela própria condição, imagine entre aqueles que fazem o Ulwaluko. Mesmo a África do Sul sendo o país mais desenvolvido do continente, o filme se passa na zona rural do país, interior mesmo, em que os costumes machistas são solidificadores de caráter. Kwanda vê Xolani dormindo nu ao lado de Vija e ameaça contar a todos o caso, ao invés de ficar minimamente feliz por ter pessoas que compartilham de sua realidade.

O que não é de causar espanto, mediante todo esse tratamento sobre a homossexualidade, o longa foi recebido no país com enormes críticas, vendo manifestações contra seu lançamento. Chamado de "culturalmente insensível" por mostrar os rituais "secretos", a mídia internacional logo abraçou o filme, citando outras obras do país que exibiam o Ulwaluko e não receberam o mesmo bloqueio. A questão aqui era óbvia: o filme foi mal recebido não pelos rituais na tela, e sim por trazer a homossexualidade.


A homofobia deixou de se maquiar quando sessões tiveram que ser canceladas pelo país após os atores serem ameaçados de morte (!) por terem participado da produção, sendo forçados a se manterem escondidos pelo nível de vandalismo e violência ao redor do lançamento. O filme então foi reclassificado com "X18", o que seria um nível acima do nosso "Proibido para menores de 18 anos", já que o rótulo é reservado para obras que contenham pornografia hardcore, o que passa longe do conteúdo de "Os Iniciados".

De uma forma bem irônica, toda a confusão ao redor do filme só comprovou sua importância. Mesmo se passando num contexto que a extrema maioria das pessoas pelo mundo não irá se identificar, "Os Iniciados" retrata de forma irretocável como o machismo sufoca, o patriarcado ataca e nossa cultura homofóbica silencia. Interessante notar que, juntamente com a obra-prima "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017), a produção se torna um conjunto perfeito sobre os males das tradições, com "Iniciados" trazendo os ritos masculinos e "Feiticeira" os femininos.
 
Um dos melhores e mais relevantes retratos da masculinidade tóxica que o cinema já viu, "Os Iniciados" é obra primordial para citarmos nossos próprios privilégios ao passo que notamos: vivemos num corpo social que permite liberdades das amarras do patriarcado em vários níveis, enquanto no centro do interior africano não há escapatória. Esse "Moonlight: Sob a Luz do Luar" (2016) versão africana se diferencia da fatia gay no cinema ao trazer grande e valioso reforço cultural para compor suas situações, encurralando seus personagens, encarcerados em tradições tóxicas que oprimem e rendem discussões fortes, cruas e poderosas no ecrã.

Crítica: "Dirty Computer" é incrível em suas partes, mas um computador defeituoso como conjunto

Obs.: para diferenciar e deixar o texto mais claro, o filme será chamado de "Computador Sujo", a tradução literal do seu título, enquanto o álbum será referido como "Dirty Computer". Você pode assisti-lo completo (em inglês) no link oficial abaixo.



Uma tendência na música que parece se solidificar de vez é a moda dos "álbuns visuais". O conceito nada mais é do que um álbum musical que possui trabalhos audiovisuais acompanhando todas as músicas, entregando dois modos de consumir o material.

Se você imediatamente pensou na Beyoncé, não é por acaso: ela reascendeu a fama dos visual albums neste século com o "Beyoncé" (2013) e o "Lemonade" (2016), mas não se engane; essa forma de divulgação existe desde a década de 60. Os Beatles foram quem começaram o que se tornaria o "álbum visual" que conhecemos hoje com "Os Reis do Iê Iê Iê" (1964), filme que acompanhava o álbum "A Hard Day's Night". Os exemplos que seguem a mesma linha são vários: "Purple Rain" (1984) do Prince, que rendeu o álbum de mesmo nome; "Moonwalker" (1988), filme de Michael Jackson para o álbum "Bad"; e o famigerado "O Mundo das Spice Girls" (1997), divulgando o "Spiceworld".


"A Hard Day's Night" - meu álbum favorito da banda, inclusive - não é de fato um "álbum visual". O produto visual que o acompanhava era na verdade um filme - com estreia nos cinemas e tudo. É aqui que entra o "Computador Sujo", filme de Janelle Monáe para a promoção do seu terceiro álbum de estúdio, "Dirty Computer".

Então não, o "Dirty Computer" não é um álbum visual; "Computador Sujo" é um filme musical, como "La La Land" (2016) ou "Moulin Rouge: Amor em Vermelho" (2001). A própria descrição no link oficial do trabalho acrescenta: "vídeo emocional: filme narrativo que acompanha um álbum musical". E também não, esse texto não está aqui para discorrer sobre o "Dirty Computer" - o álbum -, e sim sobre o "Computador Sujo" - o filme. São materiais absolutamente distintos, então suas análises também.


O média-metragem - de 46 minutos - segue Jane 57821 (Monáe), uma androide presa numa instalação governamental. Ela foi capturada por ser bissexual, algo que vai contra a nova sociedade totalitária, obstinada a apagar todas suas memórias e transformá-la num "computador limpo". O filme então passeia pelo presente da robô, que questiona sua condição e as regras opressoras do seu mundo, enquanto ela encontra seu grande amor, Zen (Tessa Thompson), agora uma espécie de enfermeira "limpa" - suas memórias já foram excluídas.

Antes do lançamento do filme, Monáe já havia lançado quatro trechos do trabalho em forma de videoclipes para quatro canções - "Make Me Feel", "Django Jane", "Pynk" e "I Like That". O que percebíamos era que, apesar de possuírem temas similares, os vídeos não se encaixavam dentro de um único universo, então como todos poderiam possuir conexões dentro do filme? A saída foi uma faca de dois gumes: os clipes são na verdade memórias e sonhos da protagonista, e assistidos concomitantemente aos técnicos responsáveis por apagá-los.


Digo que a ideia foi uma faca de dois gumes pois, ao mesmo tempo em que se mostra uma solução criativa e absolutamente prática para a realização do todo - os diretores dos clipes não são os mesmos diretores dos filmes -, há uma ruptura narrativa muito grande em alguns segmentos. Enquanto "Pynk" se encaixa sem esforços na narrativa da trama, partes como a de "I Like That" são abstratas demais para fazer sentido dentro do contexto geral - apesar da implícita resolução de que ali seria um sonho ou uma fantasia.

Como toda ficção científica, um dos aspectos mais importantes para a consolidação da atmosfera da obra é seu design de produção, ou como o mundo futurista foi imageticamente criado. Com efeitos especiais competentes - temos carros voadores e robôs espiões -, "Computador Sujo" esbanja pretensão com seus enquadramentos milimétricos e formas geométricas que misturam cyberpunk com afrofuturismo, em cenas absolutamente lindas. Desde a maca negra onde Jane é submetida à "limpeza" até os acessórios dourados usados pelos computadores limpos, gerando uma áurea de santidade, há bastante esmero e cuidado na formulação visual do filme, que remete desde de "Blade Runner: o Caçador de Androides" (1982) até "O Quinto Elemento" (1997).


A fotografia, aliada com a direção de arte, faz contrastes interessantes de cores, principalmente o azul e o rosa, que dialoga com uma das canções presentes no filme, "Pynk". Um hino feminista sem fronteiras, Monáe canta sobre a apropriação de cores por gênero, o velho "azul para meninos e rosa para meninas". Para ela o rosa é marca de orgulho e está tudo bem os meninos ficarem com o azul, pois ela e todas as mulheres são rosa por dentro e por fora. Em momentos de maior tensão, o azul é a cor presente, enquanto o rosa é dedicado para as cenas mais leves e emocionantes.

Porém, logo de cara há um aspecto defeituoso: as atuações. Enquanto há algumas performances passáveis apenas com bom grado, como a de Tessa Thompson, nem Monáe, que fez bom trabalho em "Moonlight: Sobre a Luz do Luar" (2016) e "Estrelas Além do Tempo" (2016), está em grande momento. Há sempre uma película de estranheza e artificialidade, como se os atores não estivessem confortáveis ou familiarizados com os eventos do roteiro.


E esse aqui é outro problema: o roteiro é muito óbvio, raso e previsível. Assim como o álbum, o filme discorre sobre liberdade sexual feminina, orgulho negro, ativismo LGBT e a onda conservadora que o planeta vem enfrentando, todos temas importantíssimos e que renderiam uma obra sem precedentes, porém, não há muito aprofundamento nos 46 minutos. Os segmentos musicais conseguem encontrar apogeus impressionantes, porém a narrativa fílmica jamais consegue acompanhar a grandeza dessas partes, o que deixa o todo defeituoso.

Com atuações medianas e um roteiro fraco, o que aparentava ser uma obra-prima do afrofuturismo vai cada vez mais se revelando pobre, pouco inspirado e com saídas deveras elementares. É claro que há um apreço cinematográfico por trás de alguns aspectos da produção, todavia, os números musicais são muito mais requintados do que os momentos com a narrativa convencional, talvez por conta da diferença de direção/produção, o que é reflexo perfeito da obra geral: exemplar em suas partes, rasa como conjunto. Como um suposto álbum visual, "Computador Sujo" é um sucesso - os clipes são obras-primas. Como filme em si, que é a sua real proposta, é um computador defeituoso. O Oscar foi cancelado.

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