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Muita música e debate marcam a Queer Fest, live que acontece neste domingo. Veja a programação

 

Nesse mês do orgulho LGBTQIA+, várias lives tem dominado as plataformas digitais com shows de artistas da comunidade, debates relevantes e muita cultura para celebrar a sigla. E neste domingo, dia 20, não vai ser diferente.

É que a plataforma Lounge vai oferecer pela segunda vez a Queer Fest. Destacando o talento de artistas queer e o poder da união, a nova edição do festival vai ser apresentada pela drag queen Tiffany Bradshaw e terá shows de Enme, Siamese e Kika Boom, que vai apresentar pela primeira vez as músicas do seu mais debut álbum “Kikadão, Vol.1”.

DJ sets da festa VHS (com Gui Tintel e Ciro Iadocico) e do Bloco da Tereza (com DJ Luaninha) também vão embalar a programação da live. Mas além dessas apresentações, o evento também vai trazer nomes promissores da música, de diferentes estilos musicais, dos quatro cantos do país. Afinal, a cena cultura LGBT do Brasil está cada vez mais plural, né?

Se você acha que a Queer Fest vai ser só sobre shows e performances, está muito enganado. Uma mesa mediada pelo filósofo e artista Ali Prando vai reunir cantoras para debater o cenário da música LGBTQIA+ no Brasil e no mundo. A interação também está garantida, já que o público vai ter acesso a uma sala de bate-papo.

O melhor de tudo isso é que esse festival babadeiro é totalmente gratuito! É só acessar www.queerfest.com.br, gelar sua breja ou preparar seu drink e curtir muito essa programação. É assim que a gente gosta.

Não esquece: dia 20, domingo, às 17h, Queer Fest com Kika Boom e muitos outros nomes que fazem da nossa comunidade cada vez mais plural, diversa e criativa. Está imperdível!

Crítica: “Dor & Glória” é uma aborrecida jornada sem o reencontro criativo de Almodóvar

Pedro Almodóvar sempre está nas listas de melhores diretores nos cinéfilos mundo afora, e felizmente. O espanhol provavelmente deve carregar o título de maior diretor gay do Cinema moderno, sem jamais, nos quase 40 anos de carreira, deixar os tópicos LGBTs fora de sua filmografia.

Só com o recorte desse século, Almodóvar, vencedor de dois Oscars, carrega alguns dos melhores filmes do período, como as obras-primas "Fala Com Ela" (2002), "Má Educação" (2004), "Volver" (2006) e "A Pele Que Habito" (2011), o que justifica o evento que é o lançamento de qualquer um dos seus filmes. Não foi diferente com "Dor & Glória" (Dolor Y Gloria).


Estreando diretamente na competição principal do Festival de Cannes 2019, "Dor & Glória" segue Salvador Mallo (Antonio Banderas, um dos ícones do cinema almodovariano, estando presente em oito de seus filmes), um diretor de cinema em declínio. Numa depressão pessoal e artística, ele reencontra algumas figuras chaves de sua vida, o que o faz questionar como chegou até ali e, principalmente, como vai ser dali para frente.

A narrativa se divide basicamente em dois córregos, o presente e a infância de Salvador, nos anos 60, com sua mãe sendo interpretada pela musa mór de Almodóvar, Penélope Cruz (criminalmente subutilizada aqui). Nesse vai e vem - que inclui até a cantora Rosalía num papel coadjuvante -, Salvador decide reatar os laços com Alberto (Asier Etxeandia), o protagonista de um dos seus primeiros - e mais bem sucedidos - filmes. Separados há 30 anos graças a uma briga, o retorno é conturbado, principalmente pela parte de Salvador.


Cheios de problemas físicos e emocionais, o diretor encontra dificuldade em conseguir a simpatia do ex colega porque, durante décadas, massacrou o trabalho que Alberto fez em seu filme, uma impressão finalmente mudada. É ele, também, que abre alas para que Salvador entre no mundo das drogas, uma via de escape com prazo de validade curtíssimo.

Devo confessar a você, leitor, que relutei e me questionei bastante se escreveria ou não sobre "Dor & Glória". Almodóvar é um dos meus diretores favoritos e estava bastante ansioso para o sucessor de "Julieta" (2016), que mesmo sendo um filme competente, é nada memorável. As críticas internacionais teciam elogios aos baldes para o novo longa e tinha tudo para que o jejum de quase 10 anos sem uma fita magistral finalmente tenha chegado ao fim - "A Pele Que Habito" foi o último grande Almodóvar.

Só que não demorou muito para perceber que o jejum continuaria. E os motivos foram vários. Um dos melhores diálogos da película, que na maior parte do tempo é uma aula de metalinguagem, diz que o maior ator não é aquele que sabe chorar diante da câmera, mas o que consegue conter as lágrimas. Fiquei com a frase na cabeça e, enquanto matutava, percebi que a afirmação era uma definição fidedigna para o próprio filme.


Percorrendo pelas dores e glórias de Salvador, a produção parece que está prendendo a emoção em todas as cenas - como se o filme estivesse com medo de ser vulnerável. Há uma camada grossa de letargia sobre o ecrã, e a sensação primordial que me abatia era a de anestesiamento; conseguia produzir sentimento nenhum além do tédio. E a conclusão que cheguei é a mais óbvia possível.

O problema está na composição de Salvador. Bandeiras está bem no papel - nada extraordinário como o prêmio de "Melhor Ator" em Cannes poderia sugerir -, todavia, ele foi moldado para ser a versão cinematográfica do próprio Almodóvar. É só olhar para o pôster: o protagonista está na frente de sua enorme silhueta, que é parecidíssima com a do diretor (isso se não for realmente a sombra de Almodóvar).

"Dor & Glória" sofre do mesmo dano de "Roma" (2018): é particular demais. São construções que fazem muito mais sentido para quem está as realizando, sem um apelo que permita um apreço por parte da plateia - não acho que seja necessário afirmar o elementar, mas sim, estou cozinhando essas afirmações dentro da deliciosa esfera da subjetividade, você pode assistir ao mesmo filme e se sentir tocado como nunca na vida. O pequeno Salvador escrevia cartas para os analfabetos de sua vila, assim como a mãe real de Almodóvar, e essa escolha de roteiro só tem um peso concreto para ele - por possuir um laço afetivo ali. Salvador é um personagem que não denota simpatia pelos traços introspectivos, frios e distantes, um confusão emocional que está presa dentro da cabeça e nada mais.

E tome diálogos que evoquem o amor pela arte e monólogos intermináveis que significam coisa nenhuma para ninguém além de quem está o evocando, e, quando mal pisquei, estava mais interessado no design de produção super bonito e colorido. A superfície de "Dor & Glória" é bem mais atraente que seu conteúdo, um reflexo muito bom para exemplificar o quão raso é seu texto.


Outro ponto gritante é como Almodóvar faz um amontoado de reciclagens de diversos temas já explorados dentro de sua filmografia. Artista em declínio? O homem virando deus através de sua arte e tendo uma mulher como secretária e (quase) serva? "Abraços Partidos" (2009). A exposição da homossexualidade na infância? Um filme dentro do filme? Reencontros de ex amores fracassados? "Má Educação". O ato de ser mãe na terceira idade e como a aproximação com os filhos é dificultada? "Volver". Consumo de drogas que reflete a marginalização de LGBTs? "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). E por aí vai.

"Dor & Glória" atira em inúmeras fórmulas já gastas e acerta em nenhuma. É bem verdade que, com o passar dos anos, Almodóvar retornou em tópicos anteriores, no entanto, ele sempre se superava, indo ainda mais longe que anteriormente e entregando mais camadas de profundidade daqueles que são os temas que fizeram seu cinema ser tão celebrado. "Dor & Glória" passa longe da mesma fortuna. É só ver "A Pele Que Habito", por exemplo, uma revolução dentro da carreira do diretor quando seus tópicos são levados a caminhos tão diferentes e inéditos dentro de seu próprio mundo. O rei espanhol talvez precise de uma renovação que quebre as paredes da caixa que ele mesmo se colocou, senão continuará sendo uma repetição de si mesmo.

Almodóvar, no desejo de mostrar como o Cinema salvou a sua vida, realiza um filme estritamente íntimo, o que ceifa a produção através de seus personagens unidimensionais, tramas de perfumaria e uma narrativa que evoca o sono. O todo deixa um gosto ainda mais árido quando até mesmo dentro da filmografia almodovariana há homenagens à Sétima Arte mais vívidas e verdadeiras, sem a chatice que é mais um filme sobre crise artística e a jornada para o reencontro criativo que em nada enriquece os 40 anos de Almodóvar nas salas escuras mundo afora.

Crítica: banido na África, “Rafiki” é tão resistente quanto suas protagonistas lésbicas

Atenção: a crítica contém spoilers.

Quando "Aquarius" (2016) estreou no Festival de Cannes, com enormes elogios, tínhamos em mãos um escolhido definitivo para nos representar no Oscar, na categoria "Melhor Filme Internacional" (até então nomeada "Filme Estrangeiro"). No tapete vermelho da estreia, a equipe do filme protestou contra o golpe instaurado no governo de Dilma Rousseff. Como é o governo que escolhe o selecionado de cada país, através do Ministério da Cultura, "Aquarius" foi "punido" pelo protesto ao ser esnobado no processo de seleção. O escolhido, "Pequeno Segredo" (2016), é um filme que quase ninguém nem viu.

Tal artimanha política não é exclusividade do circo que é o Brasil - o Quênia fez exatamente o mesmo em 2018. O favorito para a seleção era o lésbico "Rafiki", da celebrada diretora Wanuri Kahiu. O primeiro longa queniano a chegar no Festival de Cannes, não demorou até ele ser banido no país pela "propaganda de incentivo ao lesbianismo", o que é crime nas leis vigentes. A comunidade internacional, óbvio, criticou pesadamente a decisão, o que levou a diretora a processar o país, a fim de conseguir lançá-lo.


O governo baixou uma condição: que a diretora mudasse o final do filme para algo triste, pois o original era "muito positivo e esperançoso". É claro que ela negou, o que piorou a situação: quem fosse pego em posse do filme, seria preso com pena de até 14 anos de prisão, a sentença básica para um homossexual no país. Felizmente, Kahiu venceu o processo, o que permitiu a estreia de "Rafiki", todavia, o governo fez exatamente o mesmo que nosso Ministério da Cultura: chutou o filme da seleção para o Oscar, mesmo sendo o principal do país no período.

Não estou querendo dizer que o prêmio da Academia é o que há de mais importante para a Sétima Arte, mas é inegável o fato de que ela é a maior vitrine cinematográfica que existe, o que torna essas "punições" ideológicas sofridas por "Aquarius" e "Rafiki" ainda mais preocupantes. O retrocesso soa pequeno, todavia, é muito mais que apenas um filme não sendo escolhido, é uma imposição de ideias retrógradas dizendo "quem vale aqui sou eu".


A protagonista de "Rafiki" é Kena, interpretada por Samantha Mugatsia, em seu primeiro papel. A diretora a conheceu em uma festa (!), convidando-a para estrear no Cinema logo como a estrela. Kena é filha de um candidato a política na periferia de Nairobi, e, enquanto se divide entre cuidar da mãe e do mercadinho do pai, conhece Ziki (Sheila Munyiva), filha do candidato rival, o que vai dificultar a aproximação das duas.

É a velha história que conhecemos desde que Romeu e Julieta existem: o melodrama de pombinhos que não podem ficar juntos pela rivalidade das famílias. O molde shakespeariano de "Rafiki" sai das terras italianas para o cerne da África e, mesmo sendo o clássico arquétipo do amor juvenil, explorado ao cansaço absoluto pela arte, possui ainda mais peso por se tratar de um romance lésbico.

A primeira grande impressão em "Rafiki" é seu visual. A obra de Kahiu deseja a celebração do Quênia, e pinta cada quadro com uma explosão de cores. Com um design de produção que mistura Wes Anderson com Spike Lee, há tenro cuidado na composição das cenas, com sacadas verdadeiramente engenhosas: o longa é quase inteiramente cor de rosa, porém, em cenas centradas nos personagens masculinos, a cor sai da tela. Só há vivacidade quando as mulheres dominam o ecrã.

"Rafiki" é contado a partir da visão de Kena, então os maiores desenvolvimentos acontecem ao redor da personagem. Entramos em sua vida, nos conflitos entre os separados pais e na maneira que a garota enxerga a própria sexualidade, completamente aprisionada pelo meio em que vive. Quando surge Ziki, ela não é muito mais que a interessante menina que é filha do outro candidato. A fita não busca um envolvimento por parte da plateia com o mesmo peso entre as duas partes, assim como em "Carol" (2015), quando intimamente conhecemos tanto Therese quanto Carol


E essa escolha narrativa é, na grande maioria das vezes, um problema. Para acreditarmos num romance, precisamos sentir a sintonia do casal, fomentada a partir do ponto que nos apegamos com ambos os envolvidos. Esse é um demérito de "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017), que coloca todo seu peso textual em cima de Elio, o que faz com que Oliver se mostre distante. Felizmente, "Rafiki" encontrou uma saída correta para amenizar os eventuais problemas.

Enquanto Kena é visualmente construída de maneira sóbria, nos moldes de tomboy, Ziki é o extremo oposto. As cores da fotografia são introduzidas na personagem, desde suas roupas até as enormes tranças coloridas. Ziki é imageticamente atraente, sedutora e impossível de passar despercebida. Toda essa composição proposital ajuda na hipnotização do público diante da garota, efeito fidedigno ao abatido em Kena, que nem consegue fingir sua fascinação por Ziki.

Uma escolha acertada da produção foi deixar de fora qualquer cena de sexo. Talvez pela idade das atrizes, talvez pela complexidade da abordagem, "Rafiki" prefere transformar aquele romance num conto de fadas: tudo é filmado com muita delicadeza, sem gratuidades, emoldurados por tons patéis. É um contraste muito bonito a pureza daquele microcosmo com toda a feiura do que habita do lado de fora, quando elas devem escolher entre a felicidade e a segurança.


O primeiro choque social entre a relação das protagonistas vem do fato de que elas são filhas de políticos rivais. Nenhuma das famílias se mostra favorável à união, e isso era quando ali rolava apenas amizade aos olhos de todos, o que reflete o título da obra: "rafiki" é "amigo" em swahili, a língua local, e designação dada aos casais homossexuais para fugir da proibição de serem quem são - os parceiros são sempre chamados de "amigos". A situação piora quando as fofoqueiras de plantão descobrem o romance, o que desencadeia na cena-chave do filme.

Kena e Ziki são espancadas e presas. O mais longe que "Rafiki" vai em termos de opressão, todo o momento é fomentador de um senso grotesco de injustiça. É (quase) o máximo que um sistema absurdo pode proporcionar, quando atos de violência são respaldados pelas leis. Na delegacia, as duas ainda são ridicularizadas pelos policiais, que não enxergam motivos para não humilhar aquilo que há de pior.  Os ritos após continuam a degradação: Ziki é mandada embora do país enquanto Kena é exorcizada - homossexualidade é considerada possessão demoníaca dentro do corpo cultural queniano. "Rakifi" se aproxima de "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017) como vozes modernas empenhadas em expor opressões femininas em solo africano.

Apesar de ser pungente nesse momento, é perceptível a impressão de que a película não vai até aonde deveria. Poderá ser além de satisfatória para o público alvo - adolescentes assim como suas personagens -, no entanto, plateias mais maduras sentirão falta de complexidades e aprofundamentos que não sejam tão facilmente desenrolados como os apresentados. São saídas que soam fáceis e sub-tramas que ficam pelo caminho - o garoto gay que sofre violência constante é super mal aproveitado, um exemplo que cerceia o alcance do todo.

"Rafiki" pode não exercer todo o potencial dramático que prometia, mas é uma exultação para o cinema LGBT pela doçura de sua abordagem, beleza de suas imagens e veracidade de seus temas. É uma das poucas obras que consegue tanto enaltecer quanto criticar um mesmo foco - no caso, a situação sócio-política do Quênia -, sem deixar de evocar todo o prisma feminista em meio de um local engolido pela miséria. Nem todas as tentativas de censura são capazes de impedir a explosão de liberdade da fita, que não abre mão de denunciar o que deve ser mudado, e, desta maneira, é um filme tão resistente quanto suas personagens. "Rafiki" nos recorda que os anseios femininos podem ir muito mais longe que a máxima "boas meninas se tornam boas esposas".

Crítica: “Tinta Bruta” e o cinema de resistência brasileiro quando a cultura vira descartável

Sempre quando tenho a oportunidade, abro espaço nessa singela coluna para enaltecer o cinema nacional, que ainda sofre preconceito dentro do nosso próprio país. Estamos em meio a uma era histórica do audiovisual tupiniquim, com longas fenomenais que infelizmente são mais apreciados lá fora. Acho ainda mais notório quando tais bons filmes são feitos fora do eixo principal da nossa indústria - São Paulo/Rio de Janeiro -, como é o caso de "Tinta Bruta".

Dirigido pela dupla Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, o longa estreou no Festival de Berlim 2018, onde ganhou o Teddy Award, dado ao melhor filme LGBT da seleção - prêmio esse vencido também pelo oscariado "Uma Mulher Fantástica" (2017) e nosso conterrâneo "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" (2014). O Teddy é um dos três grandes prêmios voltados ao cinema LGBT no mundo, junto com a Queer Palm no Festival de Cannes e o Queer Lion no Festival de Veneza, o que garante o prestígio da honraria.

Passado em Porto Alegre/RS, Pedro (Shico Menegat) é um garoto tímido e retraído que, a fim de fugir de uma crise pessoal, ganha fama como "GarotoNeon", se exibindo na webcam em um site gay - seu diferencial é dançar sob a luz negra com tintas fluorecentes. Existem três pontos-chaves dentro da trama que vai conduzir a narrativa da obra. O primeiro deles é o fato de que Pedro está sendo julgado por um crime que inicialmente não sabemos qual é. A primeira cena já é o protagonista no tribunal, com apenas uma pessoa o apoiando, sua irmã, Luiza (Guega Peixoto).


Entrando na intimidade dos irmãos, fica claro que Luiza é a única pessoa que consegue compartilhar o mundo fechado de Pedro. Sem as figuras paternas, eles têm somente um ao outro para cuidar, só que aqui reside a segunda ruptura do roteiro: a irmã está indo embora da cidade, o que deixará Pedro completamente sozinho. Ela demonstra real preocupação com a saúde do irmão, fazendo-o jurar que irá sair de casa todos os dias ao invés de se enclausurar ainda mais.

O terceiro fincamento de narrativa surge quando Pedro descobre que outro cara do mesmo site em que trabalha roubou a ideia de suas tintas neons - e também seus clientes. Pedro vai até o tal concorrente, Leo (Bruno Fernandes) - ou "Guri25", seu nick do site - e descobre que, muito mais que uma cópia, ele é um rapaz simpático até demais, o que gerará um casal no trabalho e na cama.

A trama-central de "Tinta Bruta" é deveras simplória: o florescer de uma relação que surgiu com uma rivalidade. Leo demonstra desde o primeiro momento uma atração por Pedro, todavia, há pesadas e grossas barreiras construídas ao redor do protagonista, um ser estranho que não permite (nem se permite) estranhos em seu universo. O grande valor da película reside nas sutilezas que surgem com o decorrer de sua duração.


"Tinta Bruta" é fundamentalmente um filme urbano: o relacionamento das pessoas com a cidade é fundamental para o entendimento do que a história quer nos contar. A fotografia privilegia vários takes de Porto Alegre, esmagando seus personagens na imensidão de concreto - e é exatamente assim que eles se sentem; é o velho "sozinho no meio da multidão". Por se passar através dos olhos de Pedro, a metrópole é ditadora de solidão, e mesmo com tanto a ser visto, há a latente sensação de que não há lugar para ele.

Quando conhece (quase obrigatoriamente) os amigos de Leo, Pedro nota que tal sentimento é compartilhado. "Todo mundo vai embora da merda dessa cidade", fala um em determinado momento, e o espectador vê personagens chegando e indo embora, num fluxo que, mesmo morando em cidades entupidas de arranhas-céus, muitas vezes não absorvemos. "Tinta Bruta" não foge da agonia da juventude, tema universal e atemporal que o Cinema já explora desde os primórdios - vide "Os Incompreendidos" (1959) e "Juventude Transviada" (1955), grandes nomes a abordarem o tema.

Talvez a sacada mais engenhosa dos diretores é a maneira como a obra observa Pedro, de maneira literal. Seu trabalho é ser visto por estranhos através da internet, e enquanto caminha pela cidade, a fita insere pessoas em suas janelas, como se observassem cada passo do protagonista. O quadro é ainda mais impessoal quando tais pessoas estão em contra-luz, apenas com suas silhuetas à vista. Seja na vida real ou no virtual, Pedro é seguido por seres que não mostram seus rostos.


Essas composições visuais se transformam quando o roteiro expõe o passado de Pedro, e como o bullying sempre se fez presente em sua vida - o que tem relação com o crime que cometeu. Até presente data, ele é ameaçado, humilhado e agredido por ser quem é, o que explica em demasia sua personalidade extremamente fechada, e até porque ele evita sair de casa. No entanto, não conseguia ignorar o fato de que tal personalidade também afeta a plateia, que encontra dificuldade em se conectar com Pedro - sua história é mais imersível, principalmente para quem também é LGBT. Curioso é perceber como a vida de Pedro é composta em cores mortas, encontrando cores apenas na frente da webcam - único momento em que ele se solta.

Como comento no início, acho louvável quando um filme é produzido e filmado fora do eixo industrial do Cinema brasileiro pois acaba, diretamente ou não, sendo um documento. Nós temos cenários no imaginário popular de inúmeras cidades, porém, há tantas outras, centros urbanos em destaque, que não possuem uma "cara". Porto Alegre é capturada com melancolia em "Tinta Bruta", mas sua identidade é guardada e, quem lá reside, vai imediatamente se sentir em casa. Entretanto, a universalidade é mantida sem problemas, revelando como estamos em uma enorme confusão entre os conceitos de "ação" e "movimento": vemos os mesmos lugares e as mesmas pessoas e continuamos com a impressão de que a vida não avança. Quando vamos fazer algo a respeito?

A jornada do protagonista reflete com esmero a jornada do espectador diante do ecrã: o pesar está presente em quase todos os quadros, mas por fim aprendemos que temos que perder para nos libertar. Nessa grande exposição do isolamento urbano, é difícil não se pegar repensando na maneira que estamos inseridos nas cidades e como a constante ocupação do dia a dia nos enclausura ainda mais. Filmes como "Tinta Bruta" largam distantes do puro entretenimento quando levantam a bandeira da resistência e reflexão. E não apenas na abordagem da vivência LGBT, mas também por nascer no auge de um governo que mutila a cultura como vertente descartável de um país. 

Crítica: em “Selvagem”, a vida de um garoto de programa gay não poderia ser menos que o título

Atenção: a crítica contém spoilers.

Félix Maritaud está se tornando um novíssimo ícone LGBT no cinema. O francês de 26 anos participou de três ícones gays seguidos - "120 Batimentos Por Minuto" (2017), "Faca no Coração" (2018) e "Selvagem" (Sauvage), seu mais novo filme. Interpretando personagens gays em todos os três, Maritaud não parece estar interessado em papéis sutis, e cada vez mais abraça filmes que o desafiam em plenitude. De ativista em meio ao boom do HIV nos anos 80 a um ator pornô, é em "Selvagem" que ele encontra o sucesso absoluto.


Dirigido pelo estreante Camille Vidal-Naquet, "Selvagem" segue Léo, um garoto de programa que se apaixona por um colega de esquina, Ahd (Eric Bernard). A obra nos coloca em uma afastada rua que serve como ponto de vários prostitutos, uma vitrine ao céu aberto onde os clientes passam em seus carros e escolhem seus produtos. Léo e Ahd, cada um em um lado oposto da rua, trocam olhares até que um homem contrata ambos para um programa.


O grande diferencial entre os dois é que Léo aceita beijar os clientes, ao contrário de Ahd. O cliente - um cadeirante - tem que pagar por fora só para assistir os dois se beijando, para o deleite de Léo. Ahd se demonstra agressivo com o nível de intimidade, mas não a câmera do filme, nada sutil quando foca nos membros à mostra. Pudores é uma palavra que não existe na vida de um prostituto - e muito menos no seu retrato em audiovisual.

O cadeirante escolhe dispensar Léo e continuar apenas com Ahd, o que desencadeia um gritante ciúmes sobre o protagonista. A persona de Ahd é construída com complexidades pelo roteiro, quando ele diz que não é gay e apenas está ali por sobrevivência - e não perde tempo em ficar com uma menina na frente de Léo. Não seria um filme gay se o amado do protagonista não ficasse com uma mulher, não é mesmo? Apesar de não entregar respostas sobre o modo ambíguo como ele age - é Léo o eixo de toda a trama, sem grandes espaços para outros personagens -, há um ar de auto-depreciação ao redor de Ahd, que usa da agressividade para mascarar a própria homofobia. Em outras palavras, ele rejeita a própria sexualidade, ao que parece.


Léo tenta tirar Ahd da cabeça com o trabalho. Para ele, não existe cliente ruim - ele não pode se dar ao luxo de escolher. Saindo com um idoso, ele expressa absoluto carinho pelo homem, que pergunta "Você não tem nojo de mim?". Léo nega, pois tudo o que ele anseia é afetividade. Fica claro que a prostituição para ele não é pelo sexo, e sim pelo contato físico, pela troca de energia. O protagonista mora na rua, e não existe uma noção familiar ao seu redor - e nem junto com todos os outros prostitutos -, o que é fundamental para cimentar a sua condição: ele não parece ter passado e, consequentemente, futuro. Um ser sozinho no mundo. Não é de se assustar o melhor instante de toda a fita, quando Léo, durante um exame, abraça a médica num ímpeto humano avassalador.

Outro grande aspecto abordado pelo roteiro é o uso de drogas por Léo, uma consequência de toda a marginalização de sua vida. Não há tempo ruim para ele, e tudo é aceitável contanto que o ajude a sobreviver. Não há clientes ruins, não há drogas erradas, não há amizades desaconselháveis, tudo vale quando o assunto é existir. E a produção não tem piedade, principalmente em sequências que envolvem sexo. Quando é contratado por dois homens, Léo se vê nas mãos de caras que gostam de sexo hardcore, batendo e humilhando o garoto de programa, até chegar na cena do dildo. Literalmente uma tortura, a passividade de Léo irrita quando não há respeito nem mesmo com seu corpo, o que rende um momento física e emocionalmente devastador - nem mesmo pago pelo programa ele é.

Enquanto isso, Ahd encontra um homem mais velho que propõe que o prostituto seja seu, um programa fixo, como um namoro por pagamento. Ahd aceita de prontidão, para o desespero de Léo, que ainda nutre um amor pelo companheiro de vida. É claro que não estamos diante de um conto de fadas, e o final feliz é uma utopia, todavia, Léo se agarra como se sua vida dependesse de Ahd, e a faísca mínima de prazer que ainda reside na sua existência é extinguida. A bebida, as drogas e o sexo não preenchem mais o vazio.


Por nada mais valer a pena, Léo aceita o programa com um homem notoriamente conhecido pelo sadismo, e sai ensanguentado. É correta a decisão da película de não mostrar o que aconteceu - àquela altura as tensões estão altas demais para chocar ainda mais. Ele é resgatado por um ex-cliente que, como o corte temporal mostra, vira o cliente fixo de Léo - a mesma configuração que Ahd aceita. A vida soa mais amigável com ele, que pela primeira vez aparece limpo e visualmente saudável.

O "namorado" dá uma condição nova a Léo, e pela primeira vez ele tem um teto. Mas no meio da belamente decorada sala, ele se senta de maneira desconfortável no sofá; na mesa de centro, um bilhete chamando-o de "amor" acima de dinheiro. Tudo vai bem. Mas não para Léo, que foge e abandona todo o cômodo mundo. Enquanto os créditos subiam, uma sensação de ingratidão me abatia, sem entender como ele escolheu voltar para a rua quando tinha tudo na mão, contudo, o título do filme é a explicação perfeita: aquele mundo não era o de Léo, com a selvageria já impregnada em seu ser. O mais correto que lhe restava era aceitar sua própria humanidade, por mais complexa que seja.

"Selvagem" já nasceu como marco dentro do cinema LGBT pelo seu olhar documental de uma condição que preferimos não encarar. Sua sinceridade brutal não é apenas motor de uma sessão de entretenimento (por mais drenadora que ela seja), é ferramenta de comoção social fenomenal da difícil vida de um garoto de programa. Longe de qualquer glamourização, fetichismo e julgamento moral, o filme vira um documento do quão desumanizadora é a marginalização da prostituição - aproximando o homem da selvageria - e manifesto da intragável solidão de seu protagonista, uma mercadoria à baixo preço que está sedenta por qualquer demonstração de afeto. E não estamos todos nós?

Lista: cinco filmes obrigatórios para entendermos a vivência trans

O dia 31 de março é o Dia Internacional de Visibilidade Transgênera. A data foi criada em 2009 pela trans-ativista Rachel Crandall a fim de celebrar a pessoa trans, tornando-se um evento anual nos Estados Unidos e se espalhando pelo mundo. No Brasil nós temos também um dia nacional de luta pela dignidade da pessoa trans, 29 de janeiro, o que espelha a crescente preocupação sobre esse setor da sociedade ainda tão marginalizado.

Uma verdade precisa ser dita: o Cinema é uma arte absurdamente elitizada. Não por acaso temos ainda tão poucos nomes trans dentro da indústria - como um dos maiores expoentes, temos as irmãs Wachowski, diretoras de "Matrix". Todavia, o Cinema com temática trans felizmente vem encontrando cada vez mais espaço não apenas no circuito alternativo, mas também em produções de grandes estúdios e vencedoras de prêmios como o Oscar e o Globo de Ouro. Nada melhor então do que trazer cinco filmes que, de diferentes maneiras, expõem a vivência trans para o público - e ajudam na sua compreensão e humanização. 


Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantastica), 2017

Provavelmente o maior expoente trans do cinema na contemporaneidade, "Uma Mulher Fantástica" ganhou o Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro", o primeiro da categoria dado a um longa com essa temática - e o primeiro chileno. Seguindo a vida de Marina, acompanhamos a montanha-russa que se torna sua vida quando seu namorado morre. Por ser trans, ela é automaticamente culpada pela morte, e vai ter que enfrentar as autoridades e a família do falecido, que estão de prontidão para renegarem sua existência. Não apenas um drama fenomenal, o filme ainda tem um bônus de ter sido interpretado por uma real mulher trans, a maravilhosa Daniela Vega. O título é um daqueles spoilers que não nos incomodamos em receber.

Garotas Perdidas (Pojkarna/Girls Lost), 2015

A abordagem mais extraordinária dessa lista é a do sueco "Garotas Perdidas". Há sim o drama, no entanto, o pilar central da obra é a fantasia: três amigas encontram uma estranha flor e, ao beberem o néctar, descobrem que podem temporariamente se transformarem em meninos. O choque inicial é logo esquecido quando as três vão aproveitar as delícias do privilégio masculino, sem se darem conta de que estão, também, desafiando as próprias certezas sexuais e de gênero; uma delas acaba desenterrando sua transsexualidade quando se vê finalmente no corpo que sempre quis. "Garotas Perdidas" é um triunfo pela inovadora e lúdica aproximação da plateia com o tema e, inegavelmente, por conseguir atores femininos e masculinos tão parecidos e igualmente competentes.

Tomboy (idem), 2011

Laure, de 10 anos, chega na sua nova cidadezinha francesa e aproveita a novidade para, secretamente, viver como um menino, Mickael. A única pessoa que sabe da verdade é sua irmã mais nova, completamente confortável com a dupla identidade do irmão trans. "Tomboy" é um clássico moderno LGBT que explora de maneira genial a ambiguidade de gênero - e como a transfobia é puramente ensinada. O segredo de Mickael está fadado ao fracasso, e as tensões aumentam quando sabemos que a reação do mundo diante de sua transsexualidade não será positiva - nem mesmo dentro de casa, quando sua mãe o obriga a usar roupas femininas. Delicadíssimo retrato da infância, "Tomboy" é um júbilo sobre a liberdade de sermos quem somos. E sempre bom lembrar: EDUQUEM SEUS FILHOS A RESPEITAREM A DIVERSIDADE.

Tangerina (Tangerine), 2015

Temos aqui o filme mais cru da lista: "Tangerina" vai na cola de uma prostituta e sua amiga - ambas interpretadas por atrizes trans -, que, ao descobrirem a traição do cafetão, saem em busca do traidor e sua amante. Qual o cerne do filme? A triste e estreita ligação entre a transsexualidade e a marginalização. É nada confortável encarar de frente os vários tópicos que a obra escancara sem vergonhas, porém, "Tangerina" é um filme sobre como a sororidade é peça indispensável para a sobrevivência de pessoas ainda varridas para debaixo do tapete. Longe de um trato plástico e artificial na tela, "Tangerina" vem como um sopro de ar livre ao dar voz, provocar e abordar uma realidade marginalizadora de forma crível, correta e socialmente relevante. E foi inteiramente filmado com celulares.

Garota (Girl), 2018

O belga "Garota" estreou no Festival de Cannes direto para a aclamação, recebendo vários prêmios e sendo candidato óbvio para a representação do país no Oscar. Para a surpresa geral, dividiu opiniões dentro do cenário LGBT pelo seu olhar sobre uma bailarina trans - inspirado numa história real. É importante lembrarmos que as críticas (tanto positivas quanto negativas) ao redor de "Garota" são válidas e ajudam no crescimento no que tange esse - ainda - tão complexo tema que é a transsexualidade. A sessão é impactante não só pelo o que a fita mostra, mas pelo o que ela gera como sensações, navegando pelas ansiedades, medos e momentos mais obscuros que um ser transsexual passa ao se ver em uma sociedade que não está capacitada para entendê-lo. 

Crítica: se 11 pessoas não tivessem sido mortas, “O Anjo”, baseado em fatos, não existiria

Atenção: o texto contém detalhes da trama e se trata bem mais de uma discussão sobre o papel da cinebiografia do que uma crítica pura e simples.

Já comentei em alguma crítica que a Argentina é a galinha dos ovos de ouro da América do Sul no Oscar. Até o ano passado, era o único país daqui a vencer o prêmio de "Melhor Filme Estrangeiro" na Academia - em 2018 o Chile se uniu aos hermanos com a vitória de "Uma Mulher Fantástica" (2017) -, mas ainda detém o recorde de vitórias e indicações: dois prêmios e outras cinco indicações.

E falando em "Melhor Filme Estrangeiro", sempre deixei claro que essa é a minha categoria favorita em todas as premiações. Procuro assistir não só aos cinco finalistas, mas o maior número de selecionados pelos países mundo afora, e, claro, a Argentina está sempre na minha lista. O selecionado para a edição de 2019 foi "O Anjo" (El Ángel), de Luis Ortega. O filme ganhou respaldo internacional por ser produzida pelo mestre Pedro Almodóvar e sua produtora El Deseo - que já possuem em casa o Oscar da categoria estrangeira.

Selecionado pela Argentina e produzido por Almodóvar? Vou assistir sim. "O Anjo" relata a história real de Carlos Robledo Puch, um serial killer conhecido como "o anjo da morte" que aterrorizou o país na década de 70. Vemos a juventude do protagonista e o que o levou até a prisão - ele está preso até o presente dia, o encarcerado mais longo do país. Interpretado pelo novato Lorenzo Ferro, a estrutura do filme não dá espaço para surpresas.


Por ser uma história verídica, sabemos basicamente tudo o que vai acontecer na tela. Porém, há um atrativo instantâneo: a fotografia e design de produção são estonteantes. Com um filtro carregadíssimo, as cores de "O Anjo" saltam na tela, em uma reprodução fidedigna da época em que se passa. Se tratando de uma produção de Almodóvar, não é de se espantar - os filmes dele são tão visualmente arrebatadores quanto.

Carlitos - como ele gosta de ser chamado - é um jovem rebelde, que fugiu da escola sem os pais saberem e sempre chega com objetos roubados em casa, apesar de afirmar serem empréstimos dos amigos. É um caso nitidamente perdido. A construção ao redor do personagem é bem feita e o transforma em alguém insuportável, que vive numa realidade à parte e dita as próprias regras. Esse tanque de gasolina encontra então Ramón (Chino Darín, filho do rei do cinema argentino, Ricardo Darín), uma chama acesa. Ele é acolhido na família de Ramón, basicamente uma gangue: o pai comete diversos crimes, tudo sob a supervisão da mãe. Esse detalhe me lembrou "O Clã" (2015), fantástico filme argentino sobre uma família de sequestradores - que também foi, no seu ano, o selecionado pelo país ao Oscar.

Com uma trupe, Carlitos aumenta a amplitude de seus crimes, cada vez maiores e mais ambiciosos; ele chega a perder a noção do perigo que corre - e, consequentemente, coloca os outros. A única pessoa que consegue domar um pouco a insanidade crescente do protagonista é Ramón. Há uma forte tensão sexual entre os dois, que viram um Bonnie & Clyde - ou "Eva & Perón", como eles mesmo dizem. Chega a ser bizarro como a relação entre os membros da postiça família de Carlitos, um quadro em que todo mundo é de todo mundo, e até a mãe de Ramón investe sexualmente no amigo do filho.


Na ficha criminal de Carlitos, há 11 homicídios. Quando o primeiro surge na tela, uma linearidade narrativa é rompida: ao atirar (quase acidentalmente) num senhor após arrombar a casa, todas as reações humanamente esperadas são jogadas no lixo. A sequência, totalmente anti-climática, chega a ser uma esquete cômica: a vítima baleada sai andando pela casa sem rumo, sem dar uma palavra, enquanto Carlitos e Ramón o seguem, pegam o que querem e saem tranquilamente, como se uma pessoa não estivesse acabado de receber um tiro.

Daí para frente é ladeia abaixo. A direção não tem o tato para manter o ritmo da fita, que se arrasta de uma maneira enfadonha. Tudo cai na extrema obviedade, diversos acontecimentos não possuem influência direta na trama e até mesmo em sequências antecipadas - como o embate da família de Carlitos com seus crimes -, a letargia é peça preponderante. Contudo, devo parar de criticar a obra em si para entrar nos detalhes que me fizeram escrever esse texto.

Enquanto a película expelia meu interesse lá pelas tantas, um estalo me veio. "O Anjo" é uma cinebiografia, como já sabemos. Qual é o fundamento elementar de uma cinebiografia? Dar vida, na tela do cinema, à uma história real, seja ao redor de uma pessoa ou um grupo delas. E, aprofundando ainda mais nessa teoria, o que faz a cinebiografia ser produzida é sua capacidade de fomentar interesse. Por que contar a vida dessa pessoa? Porque sua história é, de alguma forma, importante, curiosa, divertida, emocionante, enfim, gera algum sentimento que é rotulado como seminal. Pois bem. "O Anjo" é a narração cinematográfica da vida de Carlos Puch. O que fez essa história em específico ir parar no ecrã? O que faz Carlos Puch distinto de qualquer outro transeunte? Ele assassinou 11 pessoas - além de vários outros crimes como roubos, assaltos e estupros.


Quando esse fato me ocorreu, toda a percepção que tive do que estava diante de mim mudou. Fui ainda mais longe, pensando em outros filmes que também são cinebiografias de outros criminosos. "O Lobo Atrás da Porta" (2013), obra-prima brasileira, gira ao redor da "Fera da Penha", assassina da década de 60. Fui desconstruindo minha análise ao chocar "O Lobo" com "O Anjo", a fim de ter uma noção mais justa da problemática que levantei.

A diferença fundamental entre os dois é que, em "O Lobo", a "vilã" é tratada como tal. Carlitos é quase um anti-herói, aquele bandido descolado, charmoso e cheio de personalidade. Até mesmo no momento em que vai ser preso, é posto na tela dançando. Como comento na crítica de "A Casa Que Jack Construiu" (2018), Cinema não é uma escola em imagens e não tem a obrigação de sentar e ensinar mastigadamente o que é certo ou errado, entretanto, um senso de justiça deve ser empregado. No filme de Lars Von Trier, Jack vê seus assassinatos como arte e se delicia enquanto mata e tortura, contudo, o roteiro, mesmo de forma sagaz, julga o protagonista. 

"O Anjo" consegue gerar empatia em um personagem que, naturalmente, repudiaríamos. Sim, quando entramos na vida de qualquer personagem, um processo de humanização é quase inevitável. Há uma lista interminável de vilões apaixonantes na história do Cinema, no entanto, ao adorarmos Anton Chigurh em "Onde os Fracos Não Têm Vez" (2007) ou o próprio Jack de "A Casa Que Jack Construiu", estamos adorando um personagem fictício que tem uma moralidade contestada. Sei bem que "O Anjo" não é um documentário, mas sua fundamentação é real. A cultura é ferramenta incisiva na criação do imaginário popular e das noções que temos socialmente, então, a maneira que falamos de temas intricados, como a violência sobre histórias verídicas, deve ser cuidadosa. No rolar dos créditos, a impressão que a produção deixa de Carlitos é positiva.

Com "O Anjo", um assassino é imortalizado pelo Cinema, e foi preocupante quando caiu a ficha de que, caso não tivesse matado onze pessoas, um filme sobre Carlos Puch não existiria. Não se trata de um filme inspirado em um caso policial, é baseado diretamente nos crimes, com o nome e a trajetória de Carlos Puch no palco principal. Não é isso o fator preponderante que define a forma como uma película passa longe da glória, mas é uma problemática relevante dentro dessa complexa arte que é o Cinema. O que pesa no saldo final é a transformação de um serial killer em uma caricatura, com um senso de justiça que não é compatível com seus próprios atos. 

Crítica: o filme trans “Garota” e quando local de fala não é garantia de competência

De todas as letras da sigla LGBT, o "T" é o que ainda está um pouco atrás no quesito produção cinematográfica. Mas nos acalmemos: o cinema trans, felizmente, vem crescendo ano a ano, não só em termos de produção, mas também em qualidade. Só vermos "Uma Mulher Fantástica" (2017), o primeiro longa trans a vencer o Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro" ano passado - e merecidamente. A obra chilena foi aclamada mundo afora tanto pelo filme em si como por um detalhe relevante: sua protagonista, a fabulosa Daniela Vega, é uma mulher trans.

Essa é uma discussão que circula a indústria: buscar artistas LGBTs para realizarem filmes LGBTs. A problemática é moderna, e demonstra como o público está consciente da importância por trás da representatividade, porém, um efeito extremista vem sendo posto na mesa. Podemos observar bem com as críticas ao redor de "Garota" (Girl), escolhido da Bélgica para representar o país nas premiações internacionais. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor de vários prêmios no Festival de Cannes 2018, incluindo a Queer Palm, mostra exclusiva para longas LGBTs, o filme tem sido desvalidado por sua protagonista, Lara, ser interpretada por um garoto cis, Victor Polster.

Somando a isso, o diretor da fita, Lukas Dhont, também é um homem cis. O resultado? "Garota" foi taxado de "filme trans para pessoas cis", um limitador alarmante. Sim, eu também sou um homem cis, contudo, me preocupo fortemente com representações diversas no Cinema, principalmente no meio LGBT, já que estou dentro dessa população. Fui assistir a "Garota" receoso, esperando um trabalho que transforma sua protagonista em objeto, não em sujeito. Felizmente, obtive o oposto.

Antes mesmo de entrar nos trâmites da narrativa, preciso discorrer sobre o processo de produção de "Garota". Em primeiro lugar, a ideia do filme surgiu quando Dhont quis fazer um documentário sobre a vida de Nora Monsecour, bailaria trans belga. Ao declinar a proposta, Monsecour se uniu a Dhont para criarem um filme de ficção baseado na vida da mulher, com a própria Nora sendo co-roteirista (apesar de pedir para ser deixada de fora dos créditos).

Só isso derruba o argumento de "cisgenerização" do filme: há uma base sólida de fundamentação do que está na tela. Mesmo evitando a mídia, Nora foi a público dar diversas entrevistas defendendo o filme, que dividiu a comunidade LGBT e recebeu pesadas retaliações. Todavia, até mesmo a escalação de Victor Polster é justificada. A produção fez testes com 500 pessoas, e só 7 delas eram mulheres trans. Polster nem estava nesse grupo, e sim naquele que fez a audição para os bailarinos figurantes - ele é dançarino profissional. Nora escolheu pessoalmente Polster como protagonista juntamente com os produtores e estava presente nos sets durantes as filmagens.


Aonde quero chegar com tudo isso é: nós não podemos dizer quem pode falar o que dentro da arte. Não devemos segregar temáticas para determinadas pessoas em nome da inclusão, porque, ao invés de incluirmos, estamos excluindo. A celebração da diversidade deve ser posta na mesa por quem quiser celebrá-la. Sebastián Lelio, diretor de "Uma Mulher Fantástica", não é trans, e isso não o impediu de realizar um filme maravilhoso.

É claro, a vivência de alguém trans rende muito mais ao contar uma história trans que a imaginação de uma pessoa cis, todavia, querer silenciar "Garota" por não ser dirigido e protagonizado por trans é um desserviço. Isso só vira algo ruim em três pontos. 1: quando a produção tem condições de recrutar artistas que fazem parte da minoria em específico; 2: quando o tratamento dado para essa minoria é desrespeitoso e; 3: quando o trabalho desse artista que emula a minoria é ruim.

Temos exemplo de filme que tem os três pontos na ficha? Temos sim, "A Garota Dinamarquesa" (2015). O filme sobre uma das primeiras mulheres trans a se submeter à cirurgia de resignação sexual é dirigido por Tom Hooper (ganhador do Oscar), protagonizado por Eddie Redmayne (ganhador do Oscar) e distribuído pela Universal (uma das maiores produtoras do planeta). A escolha do diretor e do ator foram feitas, também, por motivos mercadológicos. Seus trabalhos - sim, entrando na enorme esfera da subjetividade - são rasos e injustificáveis. Mesmo dando visibilidade, "A Garota Dinamarquesa" é ruim dentro do cinema trans.

Durante a sessão de "Garota", fica visível a preocupação dos envolvidos em dar um respeitável trato à vida de Lara, de 15 anos. Logo em uma das primeiras cenas, a vemos furando as orelhas, ação tão simplória, mas que ainda define bastante nossas barreiras de gênero - ela, por ter nascido "homem", não teve as orelhas furadas quando pequena. Lara vive em um ambiente bastante acolhedor, com seu pai, Mathias (Arieh Worthalter), trabalhando duro para compreender sua transexualidade. Ela a leva às consultas e demonstra preocupação com a saúde da filha.

Só que Lara, no pico da adolescência, está cansada da espera. Seu corpo é uma prisão, e ela quer ao máximo passar logo pela cirurgia de resignação - e não de "mudança de sexo", como é popularmente chamada. O roteiro explica com detalhes os procedimentos que ela será submetida, gerando efeitos distintos e curiosos. O pai fica aflito com a descrição da cirurgia, complexa, demorada e de pós-operatório longo, no entanto, para Lara, é música para seus ouvidos. A ânsia de se encarar no espelho e se sentir totalmente realizada com o corpo é maior que qualquer medo da maca médica.


Lara também passa pela terapia com um psicólogo especializado na vivência trans. Particularmente, busco me aprofundar em relatos de pessoas transgêneras sobre tanto sua visão de mundo como as etapas que passam na vida, e o filme é fidedigno quando entra na terapia: sua função é fazer com que Lara entenda seu corpo e consiga dialogar de uma maneira mais pacífica consigo mesma. A questão é que ela trata a ideia da cirurgia como um deus ex machina, aquilo que vai resolver todos os seus problemas.

Acho que o serviço mais importante que "Garota" faz no âmbito da educação básica da plateia é quando Mathias pergunta se Lara está interessada em algum menino da escola. Ela rapidamente responde "Como você sabe que eu gosto de meninos?". A cena, bem descontraída, é uma pontuação clara de que identidade de gênero e sexualidade são coisas totalmente distintas, uma confusão recorrente.

E tem, também, o balé. A melhor óptica dessa arte no Cinema desde "Cisne Negro" (2010), "Garota" encontra sucesso ao embarcar na rotina de treino de Lara. A fotografia requintada, ainda melhor pelo trabalho de edição, observa o corpo da protagonista sem a sensação de fetichismo - como temos em "Love" (2015) -, e essa observação é inevitável. No balé, o instrumento que produz a arte é o próprio corpo. Além disso, há gritante binarismo dentro da dança, o que faz a existência de Lara ali ainda mais rica.

Com a pesada rotina de treinos, Lara entra numa espiral de ansiedade. Ela aumenta por conta própria a dosagem de hormônios que toma e fica obcecada por uma mudança imediata. A pressão externa massacra - ela está diariamente rodeada de meninas com corpos que ela mesma deseja ter -, o que aumenta ainda mais a pressão interna. Quando mal notamos, o balé deixa de ser algo gracioso e prazeroso para virar um desconto físico da menina. Cada passo que destrói os seus pés existe para esconder a dor psicológica que a consome.


O contexto aqui empregado é prisma do quão ainda estamos despreparados para entender a transexualidade. Mesmo em uma realidade favorável - com boas condições financeiras e uma família acolhedora -, Lara está afogada em dilemas. Ela se distancia do pai e acompanhamos sua lenta danificação emocional, que vai ecoar no físico. Muitas críticas apontam o dedo para isso, chamando o filme de estereotipação da riqueza, o que acho patético. Os conflitos emocionais de uma pessoa LGBT podem ser atenuados pelo contexto em que ele habita, mas não é uma certeza de pacifismo. A relação que temos conosco é muito profunda para ser resumida dessa forma. Até mesmo a maneira como a crítica enxerga o filme, em pólos tão distintos, é sinal da necessidade que ainda temos em ampliar os estudos do tema.

Enquanto mantinha um olhar clínico em cima de Victor Polster, lembrava de "Tomboy" (2011), que possui a situação oposta: é um filme sobre um menino trans interpretado por uma menina cis. E, assim como Zoé Héran - protagonista de "Tomboy" -, Polster está magnífico no ecrã. Sua entrega é louvável, tanto nas complicadas sequências de dança como nos vários momentos em que ele dá vida àquela menina trans cheia de bloqueios. Há verdade, há paixão e há excelência em tudo que está ao seu redor. Ele é um dos raros exemplos de atores cis a fazerem jus à escalação em papéis trans, como Felicity Huffman em "Transamérica" (2005) e Georges Du Fresne em "Minha Vida em Cor-de-Rosa" (1997). Mas sim, precisamos de mais Danielas Vegas e mais "Tangerine" (2015), interpretado também por atrizes trans.

É importante lembrarmos que as críticas (tanto positivas quanto negativas) ao redor de "Garota" são válidas e ajudam no crescimento no que tange esse - ainda - tão complexo tema que é a transexualidade. A sessão é impactante não só pelo o que a fita mostra, mas pelo o que ela gera como sensações, navegando pelas ansiedades, medos e momentos mais obscuros que um LGBT passa ao se ver em uma sociedade que não está capacitada para entendê-lo. Porém, a maior lição que retirei de "Garota" foi óbvia: o local de fala é importante, mas não garante coisa alguma, principalmente se tratando de expertises artísticas. Sua bagagem não vai, necessariamente, fazer um bom filme. Felizmente, não foi o caso de "Garota", um delicado filme baseado na vivência de uma real mulher trans, não uma fantasia erotizada de uma pessoa cis.

Crítica: “Boy Erased” demanda a sessão ao expor as insanidades da terapia de cura gay

"Boy Erased: Uma Verdade Anulada" é um daqueles filmes que chegam com um timing perfeito. Apesar de estarmos na apoteose do Cinema LGBT, com nomes imersos na temática sendo cada vez mais produzidos e indo parar nas maiores premiações do mundo, estamos, também, embarcando em uma era da intolerância. Um dos pontos mais falados do lado conservador é a "cura gay".

Nem precisa ser um PhD em Psicologia para saber que a tal da cura gay é uma balela completa, porém, falar essa obviedade ainda é necessária. "Boy Erased" conta a história real de Jared (Lucas Hedges, indicado ao Oscar por "Manchester À Beira Mar"), um garoto de 18 anos que é mandado pelos pais, Nancy (Nicole Kidman) e Marshall (Russell Crowe), a uma clínica de terapia de reabilitação sexual. Jared é filho de um pastor e já nasceu rodeado pela religião, sem saber como equilibrar seus anseios e sua fé.


Um filme contemporâneo, é irônico como, logo no início, o enquadramento foca numa placa dizendo que os Estados Unidos é a "terra das oportunidades" - mas as oportunidades são só para algumas pessoas. Mas a ironia se torna pavor ao cair a ficha de que tudo o que está na tela é real e está acontecendo agora. A fita se utiliza de uma estrutura não-linear, indo e vindo na linha temporal numa tentativa de fugir do óbvio.

A maior parte da duração é dedicada para o que acontece dentro da clínica. Desde o momento em que Jared põe o pé no local, uma atmosfera de tensão paira quando as incontáveis regras são proferidas. Para resumir, há uma perda absoluta da privacidade, com os jovens não podendo nem ao mesmo ir ao banheiro sozinhos. Não é exagero chamá-los de "internos", afinal, a clínica mais parece uma prisão carcerária. Inclusive, a reabilitação é chamada de "Programa de Refugiados".


É impossível não lembrar de outro filme com a mesmíssima temática e lançado no mesmo ano: "O Mau Exemplo de Cameron Post" (2018), que retrata a vida de uma garota lésbica indo parar em um campo de conversão sexual. Também baseado em uma história real, as comparações entre "Cameron Post" e "Boy Erased" são inevitáveis. A grande diferença além do gênero das produções - "Cameron" é totalmente feminino, dirigido por uma mulher, Desiree Akhavan -, é que "Cameron" foca nos aspectos emocionais de sua protagonista diante da conversão, caindo bem mais no coming of age; "Boy Erased" coloca ênfase em explorar as narrativas construídas pela terapia.

Todo o desenrolar se inicia com o embate de Jared com o pai, um aspecto que aflige qualquer filho: o peso das expectativas dos pais. É fato que "Boy Erased" nunca chega num nível de sutileza ou requinte de um "Pária" (2011), só para citar outro longa LGBT com a mesma discussão, todavia, o filme de Joel Edgerton - que também atua, como Victor, o "líder" da clínica - sabe da importância de pontuar como LGBTs sofrem ainda mais no seio de famílias religiosas. O pai de Jared chega a dizer que, caso o garoto não aceite entrar na terapia, será expulso de casa - e dói saber que a realidade pode chegar a ser bem mais cruel do que isso.

A estratégia básica da terapia é colocar dois pólos que jamais podem entrar em contato: a homossexualidade é o oposto absoluto da religião, um caminho aberto pelo próprio Satanás. Assim como a religião em si, o processo é moldado à base do medo. O próximo passo é construir uma árvore genealógica onde cada indivíduo deve explorar todos os "defeitos" familiares, que vão desde abuso de drogas, aborto e associação ao crime, afinal, na lógica deles, Jared é gay porque um tio era alcoólatra (?).


Essa é uma lógica retirada do próprio livro que rege a vida religiosa extrema. Com um gráfico, Victor fala como a homossexualidade está irremediavelmente ligada aos pecados do estupro, assédio, AIDS e solidão, tudo o que não cabe no antro da heterossexualidade. Escolher o caminho contrário a deus é um beco sem saída, o que nos traz a outra máxima: homossexualidade é uma escolha.

Sempre me assombro quando ainda preciso dar esse discurso sobre a "opção sexual": você, oh hétero, conte-me como foi a emocionante aventura que o levou a escolher gostar do sexo oposto. Sabemos que não existe uma resposta para isso, porém, mesmo se existisse, mesmo se a sexualidade fosse passível de escolha, não seria uma escolha válida e legítima? O ato de escolher não invalida coisa alguma, matando a lógica absurda dos discursos reacionários.

O que é martelado na cabeça de quem se submete à terapia é que eles devem ter vergonha da própria natureza, um crime humano sem tamanho. "Deus não te ama assim", diz Victor para um garoto gay que não aceita a reabilitação, levando a sexualidade para o campo moral. Não satisfeitos, o próximo nível é físico, como um intensivo militar: eles devem manter uma pose de "macho", não podendo nem cruzar as pernas. Qualquer traço feminino é repudiado, nada diferente do que está em todos os lugares da vida real; o machismo sufoca. Para tais terapias, o homem de "verdade" é o homem de deus, afogado em masculinidade tóxica.


O nível extremo das estratégias do local chega quando a violência sai da opressão emocional e parte para a física. Um dos jovens sofre um crime gigante quando a clínica monta um funeral e chama sua família, que o espanca com uma bíblia em cima de um caixão. Até a irmã caçula, se debulhando em lágrimas, é obrigada a bater no irmão com a palavra do altíssimo. Deus deve estar orgulhoso do bom trabalho do homem de bem. Victor, no dia seguinte, fala com um belo sorriso: "Me sinto revigorado".

É interessante a dinâmica que o longa aborda sobre as estratégias de sobrevivência daqueles que estão obrigados ali. Os personagens de Troye Sivan e Xavier Dolan, dois ícones gays da música e cinema, respectivamente, desenvolvem planos particulares e bem diferentes para enfrentar aquele inferno: o de Dolan evita todo e qualquer contato com homens e o de Sivan engole a frase "fake it till you make it", apenas fingindo que tudo está funcionando para ir embora.

Todas essas discussões de "Boy Erased" são postas de maneira competente na tela, entretanto, a fita não vai além de um molde elementar nem gera uma carga emocional acima da média. É tudo legal, mas nada fora de série - nem mesmo as atuações, apesar de Hedges, Kidman e Crowe estarem bem confortáveis nos papéis. A parte técnica segue a "normalidade", sem inovações ou momentos que sejam memoráveis. Não dá para saber se é uma acomodação ou medo de arriscar - com exceção da já citada montagem temporal.

"Boy Erased" demanda a necessidade de sua sessão quando expõe as insanidades das criminosas terapias de conversão sexual. O filme demonstra o quanto a opressão e marginalização da identidade sexual só gera problemas, apesar de não conseguir seu lugar no panteão das obras-primas do Cinema LGBT. Bem mais voltado para os que acreditam que a religião é capaz de curar algo que não é uma doença, a produção mostra sádicos sendo alimentados pelo dinheiro de cristãos e expurgando seus ódios em cima de cabeças fáceis, tudo em nome de deus. A mensagem final é de suma importância: a verdade não pode ser anulada.

Crítica: “Bohemian Rhapsody” é ótimo enquanto greatest hits (como filme, beira o desastre)

Indicado a 05 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Ator (Rami Malek)
- Melhor Montagem
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

Cinebiografias são uma vertente da Sétima Arte predestinadas ao fracasso. É um trabalho hercúleo fugir do molde formulaico, que se resume em ascensão, queda e redenção, principalmente quando o personagem central é de largo conhecimento do público; quanto mais famoso, mais óbvia a cinebiografia. A batalha de "Bohemian Rhapsody" foi árdua.

Freddie Mercury é uma das figuras mais icônicas da cultura pop, e, juntamente com o Queen, mudaram a música para sempre. Envolto de muita mídia enquanto vivo, a vida de Freddie é, em grande parte, tão conhecida quanto os clássicos da banda. O que falar em um filme que não seja uma repetição?

O "Bohemian" que conhecemos é uma das inúmeras versões produzidas do longa, que desde 2010 passa de mão em mão. Se houve um filme que comeu o pão que o diabo passou, foi ele: vários atores e diretores foram entrando e saindo, na maior parte das vezes por "diferenças criativas". Nem mesmo o trato final ficou livre de caos por trás das câmeras, quando o diretor Bryan Singer foi demitido no meio das filmagens por simplesmente não aparecer (?) no set, além de constantes brigas com Rami Malek, o protagonista. Pelo menos o sucesso comercial de "Bohemian" foi estrondoso, com uma bilheteria passando os 800 milhões de dólares e recordes quebrados para todos os lados - o longa é a maior cinebiografia em termos de arrecadação na história, o que reflete o legado do Queen.

"Bohemian Rhapsody" é aberto pelos preparativos do Live Aid, a mais famosa apresentação da banda. A narrativa usa enquadramentos fechados para criar uma áurea de mistério, sem revelar a caracterização de Malek, enquanto joga "Somebody To Love" nas alturas, para colocar a plateia no mood. É rápido esse prelúdio, mas entrega tudo o que podemos esperar pela frente, para o bem e o mal.


A duração total da fita é de 135 minutos, um filme robusto. Por isso me assustou como o primeiro ato é uma correria desenfreada. Em meia hora, Farrokh Bulsara já é Freddie Mercury e o Queen já está em turnê nos Estados Unidos. Todo o desenvolvimento necessário para dar continuidade aos atos seguintes são deixados de lado, como se o principal da obra fosse jogar a persona de Mercury o mais rápido possível na tela.

As três primeiras cenas são pontuações narrativas fundamentais, que não recebem zelo. Farrokh é um descendente persa que não quer seguir os passos do pai, um homem rígido e nada compatível com a personalidade efervescente do protagonista. Ele rasga as expectativas, as regras e o próprio nome, na ânsia de possuir uma identidade que sirva para ele mesmo. Soa familiar? É a mesma história do filho rebelde que sofre com as amarras familiares e deve se libertar a fim de seguir seus sonhos.

Próxima sequência é Freddie no show da banda Smile em um pub britânico. O vocalista pede demissão e, adivinhem, lá está Freddie pronto para assumir o microfone. Claro, ele é rejeitado pela aparência, convencendo rapidamente Brian May (chega a chocar como Gwilym Lee está igual ao real Brian) e Roger Taylor (Ben Hardy) quando solta a voz. A introdução de Freddie abusa da casualidade para se transformar em algo que foi feito só para colocá-lo ali dentro. Não há cuidado, não há construção. Mal piscamos e já temos Mercury mudando o nome da banda para Queen, já com a logo desenhada. 


Há um oco gigante nas sequências que fincam personagens e acontecimentos. O filme começa com Mercury já sendo o Mercury que todos conhecemos: o roteiro de Anthony McCarten não possui a sensibilidade de crescer o protagonista; não sabemos quais as influências do cantor, seus gostos, sua história. Freddie Mercury em "Bohemian" nasceu exatamente no primeiro minuto do filme. Não consegui me surpreender com esse fato, já que McCarten é especialista em escrever cinebiografias básicas: é dele o roteiro de "O Destino de uma Nação" (2017) e "A Teoria de Tudo" (2014).

Em uma das entrevistas pós desistência, Baron Cohen afirmou que queria um filme proibido para menores de 18, com exibição da realidade de Freddie sem censura, enquanto a banda, consultora criativa da obra, queria um produto para a família. Essa escolha tem impacto fundamental para o desenrolar da película. "Bohemian" é concretamente um filme comercial e, pior, redutivo. A existência de Mercury é diminuída a fim de não chocar, e até mesmo seu lado homossexual é posto na tela com todo o cuidado para não "ofender" a plateia - premissa desrespeitosa por si só. 

O nível vai mais abaixo e diversos alívios cômicos são metralhados, geralmente ao redor do personagem de Ben Hardy, o "palhaço" da turma. Sem nunca receberem o foco com dignidade, os membros restantes do Queen são coadjuvantes de apoio para Rami Malek, em uma performance que entrega competência. Mas, particularmente, o ator não conseguiu me convencer por completo, sempre atrás de uma camada de artificialidade, assim como sua prótese dentária. É inegável que existem momentos em que ele está fisicamente a reencarnação de Mercury, todavia, não há uma demonstração de real estudo além do "vamos copiar cada movimento de Freddie".


A necessidade de facilitação da película também passa pela parte técnica. É involuntariamente cômico como os personagens são introduzidos na tela: com uma construção climática e enquadramentos misteriosos, os atores são exibidos como numa novela mexicana, desesperados em causar impacto. E "Bohemian" teve o azar de competir na temporada com outro longa musical: as sequências no palco de "Nasce Uma Estrela" são realizadas por um diretor, um fotógrafo e um editor que sabem extrair potência do que foi feito, coisa que "Bohemian" não chega perto.

Se diversos aspectos da fita beiram o desastre, não dá para fugir do prazer que são duas sequências, capazes de valer toda a sessão: o Live Aid e a gravação da música-título. O Live Aid foi, sem dúvidas, a cena-chave das filmagens, e o esforço valeu a pena; é o encerramento perfeito e arrepiante para a obra e basicamente coloca o público no meio do show. Contudo, tenho grande apreço pela gravação de "Bohemian Rhapsody", feita no ecrã de maneira inteligente: vamos recebendo pequenos fragmentos da canção antes do tiro final com a versão completa. A batalha da banda com a gravadora, que se recusa a lançar a faixa como single, é deliciosa.

Essa é a moral: a grandeza de "Bohemian Rhapsody" mora exatamente naquilo que ele não fez, as músicas, enquanto suas qualidades cinematográficas são escassas. O filme foi arquitetado pelas pessoas erradas: há mais incompetências do que expertises. Se tirarmos o nome de Freddie Mercury, a produção poderia ser sobre qualquer cantor na montanha-russa da fama, o que demonstra a abissal falta de personalidade da fita. Como celebração da obra do Queen, "Bohemian Rhapsody" atinge a plateia com precisão - correr no fim da sessão para ouvir um greatest hits é caminho sem volta. Como Cinema, no entanto, a história é outra.

E não dá para fugir da esmagadora impressão de que, caso estivesse vivo, Freddie odiaria esse higienizado filme, que passa longe do espírito transgressor que ele era dentro e, especialmente, fora dos palcos.

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