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Crítica: "Estrelas Além do Tempo" supera suas limitações para se revelar um importante retrato do empoderamento negro feminino

O longa resgata a corrida do homem no espaço e reconhece (de forma clichê, mas eficiente) três cientistas negras esquecidas pela história popular
Indicado ao Oscar de:
- Melhor Filme
- Melhor Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer)
- Melhor Roteiro Adaptado

O ano de 2016, mesmo com todas as loucuras, conseguiu um ótimo saldo: foi um momento incrível para o cinema negro. Vários exemplares conseguiram chegar ao grande público por meio de festivais e grandes premiações, como “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, “Loving”, “O Nascimento de Uma Nação”, “Cercas” e outros, todos fortes nomes na edição de 2017 do Oscar. Se são filmes bons ou não, isso é outra história. O fato importante aqui é a representatividade.

Um dos maiores nomes desse movimento representativo é “Estrelas Além do Tempo”, novo longa de Theodore Melfi. O filme resgata a história de três importantes cientistas da NASA na corrida espacial dos EUA contra a Rússia: Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughn (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe). O que elas têm em comum? São todas mulheres negras. Esse fato acabou colocando suas histórias e suas enormes contribuições de lado, algo que o filme se propõe a consertar.

Imagem: Divulgação/Internet
Logo quando o contexto em que a obra se insere fica claro, já sabemos o que sairá dali. Guerra Fria, corrida espacial, quem coloca o primeiro homem no espaço, então terá fortes exaltações norte-americanas em detrimento da então Rússia soviética. O filão de grande filme estadunidense com grandes nomes estadunidenses evocando a glória estadunidense é receita certa para o Oscar (a maior premiação estadunidense), e o filme não se mostra tímido ao deixar essa vertente bastante clara, introduzindo a bandeira do país em diversos frames e colocando discursos reais de J.F. Kennedy. E os exemplos de filmes que já pegaram carona dessa receita são inúmeros: na história recente da premiação, “Ponte de Espiões”, “Sniper Americano”, “Capitão Phillips”, “Lincoln”... Todos indicados a “Melhor Filme” em seus respectivos anos. 

Então, sim, “Estrelas Além do Tempo” é um típico “enlatado do Oscar”, que sempre aparecem ano após ano na ânsia de conseguir algumas indicações. Isso é algo ruim? Bem, não. Porém, para entrar nessa forma de bolo, o filme acaba se limitando, o que é algo ruim. Quer exemplos? “A Teoria de Tudo”, “O Jogo da Imitação”, “O Discurso do Rei”, “A Garota Dinamarquesa”... Alguns bons, outros presos em suas fronteiras, mas todos tendo o Oscar como “objetivo final”. Onde “Estrelas Além do Tempo” se encaixa aqui? No grupo de longas que consegue atingir alguma relevância.

Imagem: Divulgação/Internet
Ao resgatar um evento histórico tão conhecido, a ida do homem ao espaço, a própria reconstituição de época é uma importante peça para o bom funcionamento do filme, e aqui tudo está em ordem: direção de arte e figurinos conseguem nos transpor com facilidade à década de 60 e seus arcaicos aparelhos eletrônicos. Usando bastante cores, o filme é fotografado de forma simples e correta, porém conseguindo encher os olhos – algo que “O Jogo da Imitação” fez de forma bem similar. 

Mas, muito mais que o visual, o filme se preocupa em introduzir a vida de suas três protagonistas, quais foram suas contribuições à NASA, e, claro, ao movimento negro, além de explorar as formas de segregação existentes na época à fim de gerar a reflexão no espectador atual. Pessoas brancas e negras possuíam polos de trabalho separados, onde a mera presença de uma pessoa negra no “polo branco” causava estranheza. Quando Katherine, genial matemática, é chamada para trabalhar no centro do Projeto Mercury, ou seja, no polo branco, os olhos não conseguiam esconder o espanto e a curiosidade de vê-la ali – e nem só por ser uma pessoa negra, mas por ser também uma mulher. Na enorme sala, todos ali são homens brancos; a única mulher presente é a secretária. Uma mulher negra assumindo um posto importante e fora do esperado era um absurdo, todavia, nem assim ela conseguia o respeito de seus colegas, que não aceitavam dividir o café com ela – outro bule com o rótulo “Negra” foi colocado na sala.

Imagem: Divulgação/Internet
E o filme desenvolve de forma aguçada uma grande tirada para demonstrar essa segregação: como Katherine poderia ir ao banheiro se no polo só havia “banheiros brancos”? Ela tinha que ir até o polo negro, quase 1km de distância, para essa finalidade. Vemos suas – literalmente – corridas até o seu centro para não atrapalhar o trabalho, já que só em chegar perto do banheiro branco ela já era bombardeada com olhares reprovativos. Tudo soa bastante cômico pela montagem do longa, que só mascara uma realidade absurda – realidade esta escancarada pela personagem num surto de raiva, momento importantíssimo para a obra, realizado com grande poder por Taraji P. Henson, totalmente desglamourizada. Até o vestuário era ferramenta desse apartheid para ela: saia abaixo dos joelhos, saltos e colar de pérolas. “Deus sabe que vocês [brancos] não pagam negros o suficiente para comprarmos pérolas”.

As dificuldades das outras duas co-protagonistas eram diferentes, mas tão revoltantes quanto. Dorothy, interpretada por uma sóbria Octavia Spencer, vencedora do Oscar por "Histórias Cruzadas", deseja o cargo de Supervisora do seu setor, algo que ela já faz, mas sem receber o salário da categoria. Suas súplicas são sempre negadas por Vivian Mitchell (uma apática Kirsten Dunst), afinal, ela não poderia ter uma mulher negra no mesmo patamar. Já Mary, engenheira, deseja subir de cargo, no entanto é impedida quando um dos requisitos para isso é ter cursado aulas de engenharia numa escola branca, ou seja, impossível para ela. "Se você fosse um homem branco, ainda sonharia em ser engenheiro"?, peguntam a ela. "Eu não precisaria sonhar. Já seria um". A burocracia é feita exclusivamente para impedir o avanço de pessoas negras.

Imagem: Divulgação/Internet
Talvez o ponto mais curioso de “Estrelas Além do Tempo” é na “adaptação” para as telas de Katherine Johnson. Na vida real, a cientista tem a pele branca, porém, por ter descendência africana, era considerada negra – assim como, hoje, latinos são considerados pessoas “de cor” nos EUA, fazendo um paralelo. Para simplificar essa questão, presumimos, a produção decidiu escolher uma atriz com a pele negra, Taraji P. Henson, para interpretá-la. Esse fato só mostra como a concepção de raça é questão bastante complexa no país e passíveis de grandes preconceitos.

Se esse ponto foi usado em prol do fácil entendimento do público de forma bem positiva, afinal, um longa de duas horas é incapaz de abordar tudo de forma perfeita, vários outros macetes são forçados e elementares demais. Todo o preconceito na tela fica longe do sutil, é aberto demais para que o espectador saiba imediatamente o que está se passando sem jamais ter a menor dúvida em segundo algum. O personagem de Jim Parsons existe basicamente para ser o preconceituoso modelo, aquele que passa o filme olhando com assombro para Katherine, tratando-a mal, sendo arrogante, mostrando-se incrédulo diante do sucesso da parceira negra e tudo mais. Não há sutilezas, não há sub-textos, é tudo gritante na tela. Funciona? Obviamente, todavia é como os sustos com barulhos altíssimos nos filmes de terror: você pula da cadeira, mas soam preguiçosos.

Imagem: Divulgação/Internet
Colocando estrelinhas na cartela do filme, um dos seus maiores acertos é fazer com que a parte física e matemática seja completamente irrelevante. As três mulheres são inteligentíssimas, e passam o filme falando jargões técnicos e uma infinidade de números, mas o espectador não tem necessidade de entender tudo isso, porque a parte teórica é algo acessório – o filme preocupa-se com a representação histórica de suas personagens, não dos meandros matemáticos que as mesmas fizeram. É claro que encher quadros com fórmulas é parte essencial para a composição do filme, porém quem está diante da tela não precisa nem acompanhar as lógicas que seguem as partidas de foguetes e as órbitas na gravidade zero, só suas implicações.

Ao contrário de muitos “enlatados do Oscar”, inclusive alguns citados no início do texto, “Estrelas Além do Tempo” supera suas limitações e clichês aos ser um filme relevante, destrinchando a importância do reconhecimento negro de forma bastante comercial, o que soa cinematograficamente frouxo, mas sem ter seu valor diminuído enquanto ferramenta de empoderamento negro feminino – principalmente quando voltado para as massas. Não conseguimos esquecer que, acima de tudo, estamos falando de dignidade humana, algo dado em doses menores àquela parcela oprimida da sociedade, o que a obra trabalha de forma satisfatória. Para ser bem sincero, é uma delícia ver mulheres negras usando suas inteligências para se auto-empoderar e colocar homens brancos no chinelo.

Eles deixam mulheres trabalharem na NASA não porque usamos saia, mas porque usamos óculos”.

* Crítica editada após os indicados ao Oscar 2017

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