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Crítica: "Transamérica" ultrapassa barreiras regionais para se tornar um complexo filme trans

Protagonizado pela vencedora moral do Oscar, "Transamérica" é belíssimo, desafiador e ícone do cinema LGBT
Não posso afirmar com 100% de certeza, mas acho que o primeiro filme com temática trans que vi na vida foi “Transamérica”, há nem sei quantos anos. Na época, me recordo, já possuía certo conhecimento sobre a transexualidade e seus meandros, mas o filme me encaminhou por trajetos bem profundos sobre essa realidade, virando um ícone para mim; assim como muitos possuem “Orações Para Bobby” (2009) como o início de suas vidas dentro do cinema LGBT, ou, no caso em específico, do cinema gay.

Então se eu afirmar que “Transamérica” seja o primeiro grande nome do cinema trans na contemporaneidade, posso estar sob efeito da minha vivência. Mesmo não sendo o primeiro, ou o melhor, ou o mais importante, que seja, é um dos melhores debates LGBTs dentro da Sétima Arte neste novo século.

O filme conta a história de Bree, uma mulher trans a alguns dias da sua cirurgia de redesignação sexual, que recebe uma ligação informando que Toby precisa de ajuda. O problema é que Toby é o filho de 17 anos que Bree não sabia que tinha, tomando conhecimento após a morte da mãe do garoto. Ela então é forçada pela psicóloga a resolver a questão, caso contrário não poderá realizar a cirurgia na data marcada.


Bree vai até Nova Iorque, onde está Toby, para ajudar como puder e rapidamente ir embora, afinal, sua prioridade é a cirurgia, o momento mais importante de sua vida. Todavia, a situação é mais complexa do que o esperado: Toby é viciado em drogas e não quer voltar para casa. Mesmo não possuindo laços afetivos com aquele menino que nunca viu na vida, Bree se vê obrigada a depositar gentilmente o filho no lar mais fácil e próximo.

De carro, seguimos a viagem dessa dupla incomum através das estradas norte-americanas. Então, sim, “Transamérica” é um autêntico roadmovie, os filmes de viagem tão famosos no país. Só que os dilemas daquela viagem são deveras particulares. Toby nunca conheceu o pai, e não tem ideia de que Bree seja exatamente ele (ou, melhor dizendo, que Bree era ele). Ela diz que está ali à trabalho da igreja, que tem como objetivo ajudar jovens em situações de risco, o que é um disfarce perfeito para não levantar as suspeitas do garoto.

E ele nem se questiona se aquela estranha mulher, constantemente preocupada em estar sempre coberta, é ou não uma missionária religiosa. Sua cabeça está mais ocupada pensando em chegar em LA e procurar pelo pai, que, segundo ele, possui muito dinheiro. Bree engole seco ao ouvir o relato de Toby, sem saber qual será seu próximo passo, mesmo tendo consciência que a inevitável verdade está mais perto a cada quilômetro percorrido. Ela decide então levar o garoto de volta à casa do padrasto, a saída mais fácil para aquela complicação.


Na mesma estrada que leva Bree e Toby até a verdade, estão vários percalços decisivos para a velocidade que essa verdade chegará. O primeiro baque é a descoberta de que a mãe de Toby se suicidou, e que o padrasto tem abusado psicológica e sexualmente do garoto, gerando uma das cenas mais impactantes da película. O homem, desconcertado, abraça e diz que estava sentindo falta de Toby, que responde: “Eu sei do que você sentiu falta. Da minha boca, da minha bunda”, o que culmina em agressão física. O plano mais fácil foi por água abaixo, entretanto, nem mesmo a urgência de se livrar do problema pode permitir que Bree deixe o filho nas mãos daquele homem.

O jeito é levar Toby até Los Angeles, a fim de fazer com que ele esteja mais perto de realizar seu sonho: ser um astro de cinema. Pornô. Quando Bree vai urinar à beira da estrada, Toby descobre sua transexualidade, o maior medo da mulher, que virá a se concretizar quando ele a chama de “aberração” e “traveco” na frente de um estranho. Ainda é necessário apontar que esse comportamento é reflexo da nossa sociedade transfóbica? Acho que já está mais que claro.

Um ponto que merece destaque é o fato de Toby ser gay - ou bissexual, já que ele beija uma garota em uma cena, apesar de demonstrar gostar de homens, prostituindo-se com um caminhoneiro em determinado momento da fita. Mesmo estando todos na mesma sigla, há todo um universo que separa a homossexualidade da transexualidade. Apesar de ser duas populações oprimidas e em busca de seus direitos civis, é primordial aceitar que o ser gay possui privilégios que o ser trans não possui. A identidade de gênero é ainda mais passível de intolerância que a sexualidade.


Só em o próprio corpo depender da decisão de terceiros já encerra os argumentos. Bree passou por anos de terapia e troca de médicos para finalmente receber o laudo de que pode realizar a cirurgia, com uma condição ainda vista como doença ou transtorno."Transamérica" passeia por todos os pormenores da condição transexual de maneira bem delicada, sem transformar o filme numa reportagem, dando ênfase aos dramas na tela.

E não é de se espantar quando o roteiro de Duncan Tucker leva a protagonista até a casa de seus pais, que há muito não a vê. Bree passa a película dizendo que os pais estão mortos, porém de uma forma figurativa, já que eles rejeitam sua existência após a descoberta do seu gênero. A mãe então, interpretada por uma afetada Fionnula Flanagan, que insiste em chamar a filha no masculino e pelo nome de batismo. "Eu quero meu filho de volta" ela diz, ouvindo como resposta "Você nunca teve um filho, mãe".

A ficha técnica do longa informa que a produção se enquadra nos gêneros drama e comédia. Passamos a fita inteira só recebendo o drama, com a comédia reservada pela tresloucada família de Bree. Há um choque entre a saída do tom bem sério para o início dos ares cômicos, encabeçados pela dondoca riquíssima que é a matriarca. A direção toma cuidado para não ultrapassar o limite da caricatura, apesar da mãe ser um clichê ambulante e exagerado; porém é um contrabalanço que funciona com toda a sobriedade de Bree.


E é ela, ou melhor, a atuação de Felicity Huffmann que funciona como o ímã para tudo, diegeticamente ou não. A atriz, famosa pela série "Desperate Housewives", está nada menos que genial no papel. Com uma maquiagem para retirar seus traços mais "femininos", ela consegue tanto entregar os momentos de altíssima emoção quanto cenas mais descontraídas - ela espantando cobras no meio do mato é hilário. Indicada ao Oscar de "Melhor Atriz", a derrota de Huffmann para Reese Witherspoon é só mais uma das inúmeras injustiças da Academia, principalmente nessa categoria.

Além da maquiagem, toda a composição visual de Bree é milimetricamente feita para potencializar sua persona. Desde as roupas sempre em tons de rosa e roxo, até os acessórios e a expressão corporal da atriz, tudo é brilhantemente unido para gerar uma personagem icônica. Num debate sobre a transexualidade, a imagem é peça fundamental, afinal, estamos falando de corpo, e corpo é o trato imagético de quem somos.

Kevin Zegers na pele de Toby não está muito atrás. O ator dá vida a um personagem complicadíssimo. É fato que ele é desprezível em vários momentos, mas toda a carga de formação do garoto deve ser levada em conta. Gay, 17 anos, sem um pai, com a mãe morta e sendo abusado pelo padrasto, ele cai nas drogas e na prostituição. É a situação em que o meio molda o indivíduo, e Zegers é bem sucedido em carregar todas as nuances de um poderoso personagem.

"Transamérica" faz jus ao seu nome e é um filme inegavelmente americano: as músicas country da trilha, o formato roadmovie e a ressignificação do "sonho americano"; todavia, imperativamente é feliz ao ultrapassar as barreiras geográficas e culturais para se tornar universal, numa obra que cumpre genialmente o papel de tecer as dificuldades da vida de uma pessoa transexual. Com um roteiro complexo, desafiador e que não poupa discussões, é um júbilo acompanhar uma trama tão cheia de camadas que faz com que seus personagens aprendam sobre si mesmos no decorrer da estrada - e a plateia não está isenta disso.

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