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Crítica: “A Vida Invisível”, nosso representante ao Oscar, e o patriarcado tropical do dia a dia

Foi uma agradabilíssima surpresa quando "A Vida Invisível" venceu o prêmio de "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar" do Festival de Cannes 2019, acompanhando a vitória de "Bacurau" (2019) na competição principal, que levou o Prêmio do Júri. A vitória de dois filmes brasileiros numa mesma edição é reflexo da fase atual que nosso cinema vive – não por acaso, os dois foram os principais na disputa para a seleção do Oscar 2020 de “Melhor Filme Internacional” (o antigo “Filme Estrangeiro”).

"A Vida Invisível" é o primeiro longa brasileiro a vencer a "Um Certo Olhar", que só nos últimos tempos viu como ganhadores diversas obras-primas, como "Dente Canino" (2009), "Depois de Lúcia" (2012), "A Ovelha Negra" (2015), "Um Homem Íntegro" (2017) e "Fronteira" (2018). Mais uma honraria em seu currículo foi a escolha do filme para nos representar no Oscar, em uma acirrada disputa: “A Vida Invisível” foi o escolhido por um voto de diferença de “Bacurau”.

É necessário compreender que, se tratando do Oscar, as escolhas são feitas como uma campanha política. Vence quem melhor vender seu trabalho, não o melhor trabalho em si. Por isso, “A Vida Invisível” foi uma escolha muito acertada, mesmo não sendo o melhor filme nacional do ano. Os motivos são vários, porém destaco três pontos importantes.

O primeiro é que “Bacurau” possui um plot que coloca norte-americanos em posições bastante controversas para a Academia – imagine os votantes vendo gringos da forma que foram expostos no filme (não darei spoilers acerca). O segundo é que a história de “A Vida Invisível” é de mais fácil digestão por focar no melodrama, à la Pedro Almodóvar – e melodrama faz a Academia tremer na base. O terceiro é que a obra tem Fernanda Montenegro no elenco, a única atriz brasileira a ser indicada ao Oscar em toda a história, ou seja, é figura familiar. Depois da desastrosa escolha de “O Grande Circo Místico” (2018) na última edição, é para respirar aliviado ter um selecionado à altura da qualidade do cinema tupiniquim.

“A Vida Invisível” entra na intimidade de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), no Rio de Janeiro da década de 50 - curiosidade: assisti ao filme em companhia do diretor Karim Aïnouz e ele disse que o título foi alterado de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", o nome do livro de Martha Batalha que inspirou o filme, para o atual por focar na vida de inúmeras mulheres invisibilizadas, não apenas na de Eurídice (e que seu título internacional favorito é o da Alemanha, "A Saudade das Irmãs Eurídice e Guida"). Filhas de imigrantes portugueses, as garotas são pesadamente reprimidas pelos pais, e desde o início demonstram as dinâmicas diante da repressão: enquanto Guida faz de tudo para burlar as rígidas regras do pai, Manuel (interpretado por Antônio Fonseca), Eurídice se molda de acordo com as leis paternas.


Guida se esgueira para cair na noite com seu namorado grego, e foge com ele sem aviso, para o desespero de Eurídice e a vergonha do pai. O evento é decisivo na vida de todos da família. Sem o apoio da rebelde irmã, Eurídice dança ainda mais conforme a música, aceitando o casamento arranjado com Antenor (Gregorio Duvivier), sem nunca ter visto o homem despido. Ela recebe, de uma amiga, dicas do que seria a noite de núpcias, mas nada a prepararia para um sexo tão brutal de um homem que via a esposa apenas como máquina de prazer particular - a sequência é proposital e corretamente horrível. Ela nem resiste, tão condicionada a obedecer o que viria de qualquer homem.

Enquanto isso, Guida volta da Grécia grávida e sem marido – a relação com o namorado acabara tão rápido como começara. Uma mulher fugida que retorna prenha e descasada era o que havia de mais humilhante para a imagem de uma família, e Manuel expulsa a filha de casa aos berros. Guida só queria saber de uma coisa, onde estava a irmã. O pai mente: Eurídice, exímia pianista, teria ido estudar em Viena. Ir até a Áustria se tornara, então, o objetivo de Guida.

A dinâmica do filme se torna essa: o pai mentindo para as duas irmãs. Eurídice imagina uma vida ensolarada nas praias da Grécia para Guida e Guida escreve sobre como Eurídice deve estar ocupada sendo uma famosa pianista e dando autógrafos aos europeus. A realidade é que ambas estão na mesma cidade. É deprimente ver como as irmãs projetam uma realidade para a outra que, a cada dia, mais impossível fica graças ao patriarcado. A película, maliciosamente, introduz uma cena em que as duas por pouquíssimo não se esbarram, gerando genuína tensão na plateia, ansiosa para o enfim reencontro das duas, que vão embora sem imaginar que a irmã estivera ali momentos antes. É astuto, então, lembrar da primeiríssima cena, onde as irmãs se perdem em uma floresta e, mesmo gritando o nome uma da outra, jamais conseguem se reunir, uma metáfora visual da trama.

Guida inicialmente decide abandonar o bebê recém-nascido, mas muda de ideia e resgata a criança quando conhece Filomena (Bárbara Santos, que também estava conosco na sessão), uma poderosa mulher negra que a acolhe como filha. Há uma forte ligação entre as duas através da sororidade, e Filomena é uma revolucionária em meados do séc. XX quando Guida noite após noite procura o homem da sua vida e ela responde com um esperto "A gente não precisa de homem para nos divertimos!".


Já Eurídice evita veementemente engravidar, pois isso atrapalharia o caminho rumo ao estrelato no piano. Antenor, em contrapartida, não dá a mínima, e a mulher acaba engravidando. O roteiro finca suas garras em um lado feminino até hoje repudiado: quando a mulher deliberadamente não quer ser mãe em prol de sua carreira. Para Eurídice, isso era inapropriado, com a família sendo o que há de mais importante na vida feminina. Rejeitar a maternidade era um crime. Ou ainda é? A personagem sofre um enorme baque ao ver seu sonho escorrer pelos seus dedos com uma criança indesejada por vir e a censura de todos os machos ao seu redor em relação ao seu sonho.

"Você não se importa com seu marido? Com sua família?", questiona Antenor. "Ele está completamente certo", acrescenta Manuel. E assim segue a vida de Eurídice, esbofeteada constantemente pela mão fantasmagórica do machismo. Talvez o viés mais afiado dentro do filme é o lado sexual de sua protagonista: para ela, o sexo é uma ferramenta de adestramento do marido, nunca um ato de prazer. Em uma emblemática cena, Antenor deseja transar em cima do piano da esposa enquanto ela toca, e ela insistentemente sugere o sofá. Ela não faz isso porque anseia a interação, e sim para que o marido não destrua o piano. Ela quer salvar o que lhe é mais caro e usa o sexo para isso.

A obra executa um belíssimo (e preocupante) estudo acerca do matrimônio. As mulheres são, há séculos, ensinadas desde sempre a perseguirem o casamento, a tábula de salvação de suas vidas. Os homens, é claro, não são educados com os mesmos fins. De uma forma bem aberta, o casamento nas lentes do filme é um contrato capitalista, pois estamos falando de relação de posse. O amor romântico existe para aprisionar as pessoas em regras egoístas que as tornam objetos, principalmente em relação a mulher - contudo, o patriarcado não é benéfico nem mesmo para o homem. Como se não bastasse, todas essas obrigações sociais são pintadas como um mar de rosas. Eurídice, no presente, ouve um "Foram 67 anos de casamento, que bonito!" do filho, e ela (e nós) sabemos que houve nada belo vindo dali; a protagonista penou naquele relacionamento infeliz, incapaz de quebrar suas correntes. Quem nunca viu o casamento dos avós com décadas adentro virando o exemplo de relação perfeita, sem saber das agressões que aconteceram por trás dos sorrisos fotográficos?

Majoritariamente passado na década de 50 - apenas as duas últimas cenas ocorrem no presente -, por mais desconfortável que seja a realidade daquelas mulheres, é um alívio ver como a vida feminina conseguiu mais direitos e liberdades 60 anos depois. O roteiro passeia por várias situações que exemplificam como o corpo feminino é subserviente ao homem - Guida não pode tirar o passaporte sem a permissão do marido que não existe -, e dá para ficar esperançoso em relação aos ritmos das conquistas feministas, porém, por outro lado, o homem continua igual mais de meio século depois. Aquele Antenor é o retrato fiel de tantos e tantos homens que fazem o Brasil ser o quinto país no ranking de feminicídios. "A Vida Invisível" não leva os atos às últimas consequências, mas é um filme sutilmente violento.

Aïnouz, após a sessão e os aplausos, falou que a película não se tratava de um filme feminista, mas sim uma obra contra o machismo, e essa é uma boa definição. Aquele microuniverso de classe média, de renegação social, de pobreza e marginalização, emula tantas e tantas histórias de resistência que qualquer um pode se sentir envolvido. Forte quando foca nas intimidações do patriarcado e emocionante quando entra no amor incondicional de duas irmãs que se separam graças à maquiavélica união de homens, "A Vida Invisível" é, além de sensacional exemplo do nosso majestoso cinema nacional no Oscar, um garboso melodrama que se torna um documento da nossa sociedade que deve, e muito, à vida feminina. Ter como uma das últimas cenas o rosto de Fernanda Montenegro afogada em saudade é lindo demais.

Crítica: “The Nightingale” é irresponsável ao evocar uma vingança feminista branca

Atenção: a crítica contém spoilers.

Quando Jennifer Kent viu que seu filme de estreia, "O Babadook" (2014), estava sendo um sucesso, afirmou que estava surpresa com a recepção, e eu devo concordar com ela, mesmo que para outro sentido. "O Babadook", por muitos eleitos como um dos melhores filmes de terror da década, nada mais é que um "Esqueceram de Mim" (1990) visualmente caprichado e com toques sobrenaturais. O hype não me parecia congruente.

Assim como o anterior, "The Nightingale" (ou "O Rouxinol", em tradução livre), seu novo filme, está sendo recebido de braços abertos, vencendo, inclusive, o prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza 2018. E, para meu ainda maior descontentamento, não podia discordar mais da admiração ao redor da nova obra - ainda mais triste por saber da dificuldade de destaque para cineastas femininas dentro de uma indústria ainda tão “machocentrada”.

O longa conta a trágica história de Clare (Aisling Franciosi), uma irlandesa condenada pelo império britânico na Tasmânia. Ela vê toda a sua família ser assassinada e decide virar a mesa numa caçada a fim de se vingar de quem destruiu tudo. O plot é familiar, usando uma estrutura famosa por “A Vingança de Jennifer” (1978): o rape & revenge movie.

Clare é estuprada em duas cenas diferentes, e vai, da maneira mais clichê possível, seguir os mesmos passos do subgênero, popular nos anos 70: a protagonista é brutalmente estuprada e deixada para morrer > a protagonista recupera as forças e se organiza para sair em vingança > a protagonista se vinga matando os culpados. O que mais chama a atenção é que as sequências são estranhamente letárgicas.

Assistir à uma cena de estupro, mesmo ficcional, é nada agradável, e não deve ser mesmo. Nomes como “Irreversível” (2002) filmam os horrores do ato com o intuito de impactar o público e fazer com quem esteja do lado de cá da tela se revolte. “The Nightingale” faz nada disso. Clare é estuprada pela primeira vez e não existe um ar de emergência, o que é um erro gravíssimo.

Na segunda vez, ainda mais elementos do horror são inseridos quando ela é estuprada enquanto o marido e o bebê (!) são assassinados na sua frente. Só que não existe um desenvolvimento competente para a cena burlar o limite do gratuito. A violência extrema não é sensorialmente compatível com seu aspecto gráfico.


E essa impressão, logo no primeiro ato, é fixo por toda a longuíssima duração (não precisavam mesmo todos os 136 minutos). Alguns pontos são os responsáveis por isso. Em primeiro lugar, o mais básico: “The Nightingale” se passa séculos atrás e não é realizada uma composição fidedigna com o período. Com um design de produção que tenta (e fica na tentativa) repetir o sucesso de “A Bruxa” (2015), é um erro elementar que a maior parte das produções de época repete: achar que o imagético é o suficiente para recriar um período.

Desde o primeiro segundo, os personagens de “The Nightingale” parecem estarem fantasiados ao invés de indivíduos fincados em seu tempo. Isso se deve a uma direção de atores ruins, que não cuida em fazer com que as performances evoquem como as pessoas do tempo em questão falam e agem. Pode ser por preguiça, pode ser com incompetência, pode ser por atuações ruins, ou até todas as opções anteriores. Até a franquia "Piratas do Caribe" (2003-17) dá um show nesse departamento.

O segundo ponto é a superficialidade de seu roteiro enquanto desenvolvedor de personagens. Todos eles são unidimensionais, com motivações ralas e pateticamente destinados a desfechos óbvios desde os créditos iniciais. Mas ele se autojustifica pela importância do contexto em que a trama está inserida: a Guerra Negra entre a Inglaterra e os aborígenes negros da Tasmânia. Quem mata a família de Clare são soldados britânicos, e ela vai precisar da ajuda de um aborígene na sua jornada de vingança.

Esse é o segundo filme a ser uma-pessoa-branca-viajando-com-uma-pessoa-negra-e-revendo-seu-racismo-ao-descobrir-que-brancos-e-negros-são-iguais dentro do mesmo ano: “Green Book: O Guia” (2018), o malfadado vencedor do Oscar 2019 de “Melhor Filme”, tem o mesmo passo a passo. Ser comparado com o filme de Peter Farrelly é, por si só, um demérito, entretanto, “The Nightingale” tem a audácia de ir mais longe e ser muito pior que “Green Book” – que se contenta com a alcunha de “inofensivo”.

Enquanto vaga pelas densas florestas, Clare vê o rastro de destruição deixado pela guerra entre brancos e negros, só que, claro, o lado com as maiores perdas é o negro. Vemos os aborígenes sendo humilhados, massacrados, assassinados e estuprados. Isso mesmo, em menos de uma hora de filme temos uma TERCEIRA cena de estupro, dessa vez contra uma mulher negra que surge na tela única e exclusivamente para ser capturada e estuprada. Não vemos o ato (felizmente), porém, o roteiro tem a coragem de jogar corpos negros no ecrã para gratuitamente serem violentados. Se isso não for “porn torture”, não sei o que é.


O filme recebeu grande controversa pelas sequências, respondidas por Kent com o atestado de que o filme contém detalhes historicamente apurados da violência colonial, o que sim, é verdade. O que Kent não põe na mesa é a relevância de diversas sequências dentro da história em si. Outro exemplo é a cena em que o aborígene junto com Clare é desconsertadamente convidado a sentar na mesa de jantar com uma família branca. Ao se sentar, ele chora. É revoltante o circo criado pelo filme quando usa uma pessoa negra aos prantos pela bondade incessante do colonizador branco. Vejam aí, nem todo branco é racista!

Clare vai intimamente sendo testemunha do genocídio negro enquanto vai se amigando com o aborígene – que é posto como alívio cômico, porque né, melhor ideia impossível. A película literalmente se utiliza do sofrimento negro para dar força na jornada de uma mulher branca, tudo em nome de uma agenda feminista – se um feminismo empodera apenas um tipo de mulher, ele não serve para muita coisa. É óbvio que a dor de Clare não pode ser minorada em momento algum, só que o roteiro cria um paralelo entre sua tragédia particular com a tragédia de toda uma população. Beira o mau-caratismo.

Muitos dos detratores de “The Nightingale” afirmam que não era da competência de Kent, uma mulher branca, contar uma história sobre genocídio negro, o que discordo. Realizar um apartheid cultural, dizendo quem pode falar o quê, é um retrocesso na arte que é o Cinema (ou qualquer uma, na verdade). O problema é que, quando você não possui o “local de fala” de um tópico e as coisas dão erradas, tudo soa ainda pior – e o saldo de “The Nightingale” é trágico. Comento mais sobre a problemática na crítica de "Garota" (2018).

Até mesmo nos aspectos feministas que tentam justificar a existência desse filme são falhos: os sonhos (vergonhosos) que emulam um transtorno pós-traumático de Clare só focam na perda de sua família - é o marido com o bebê nos braços dizendo que estão bem do lado de lá. Ela é estuprada várias vezes e o roteiro joga fora o peso de algo que, por si só, era capaz de aniquilar o psicológico de qualquer mulher.

“The Nightingale” é um filme que tem como objetivo deixar a plateia revoltada com as opressões racistas e patriarcais que arrastam um rastro de sangue há séculos, todavia, nem a boa intenção aqui é capaz de inibir o gosto amargo de uma produção puramente ruim. Os bons aspectos - o uso de línguas nativas - são meras gotas d'água em meio a um oceano de escolhas desastrosas dessa pseudo odisseia feminista que tem como lenha para sua vingança um perigoso discurso de "esse é um filme importante".

Crítica: “El Camino” tem tudo o que há de bom em “Breaking Bad” (mas não o que há de melhor)

Atenção: a crítica contém spoilers.

Caso você esteja chegando agora a esse mundo, um aviso: "Breaking Bad" é a melhor série de todos os tempos. E não é apenas eu afirmando - o seriado de Vince Gilligan está no Guinness Book com o recorde de "mais bem avaliada série da história" - e os vários Emmys são só uma pontinha do sucesso absurdo das cinco temporadas da saga de Walter White no império da metanfetamina.

"Breaking Bad" terminou em 2013 no auge de sua criatividade, e desde então os fãs estão ansiosos para mais um capítulo da insana história (que terminou tão bem), por isso, foi uma grata surpresa o anúncio de "El Camino", filme que dá mais um passo da trama. O filme, lançado pela Netflix, segue o único protagonista ainda existente: Jesse Pinkman (Aaron Paul) - todos os outros ou estão mortos ou já tiveram seus arcos finalizados. No final de "Felina", o último episódio da série, vemos Jesse fugindo e finalmente encontrando a liberdade depois de meses preso, e o resto ficava a cargo da imaginação da plateia.

Agora não mais. "El Camino" vai mostrar o que rolou com o personagem, e começa segundos depois do fim de "Felina". Gilligan sabe o poder que tem em mãos, e já abre seu filme com um flashback com uma das melhores figuras do seriado, Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks). Isso demonstra o óbvio: "El Camino" é um filme para os fãs da série.

Então, caso você nunca tenha visto "Breaking Bad" ou tenha acompanhado de modo esporádico, o filme não fará sentido para você. Ele resgata - propositalmente - diversos personagens e acontecimentos das temporadas passadas a fim de costurar as motivações de Jesse e como ele chegou aonde está. Então a narrativa vai e vem entre períodos distintos da trama, intercalando flashbacks com o presente de Jesse.


Após a fuga, Jesse vai até a casa de seus fiéis escudeiros, Skinny Pete (Charles Baker) e Badger (Matt Jones), buscando abrigo. Só que o carro que Jesse levou - um El Camino - possui rastreador, o que já está na mira da polícia. Novamente em fuga, Jesse divide uma cena absolutamente calorosa com Pete, que abre mão de todo o dinheiro que possui para ajudar o amigo a fugir. Questionado o motivo de tamanha ajuda, ele responde: "Porque você é meu herói".

O plot principal de "El Camino" é a corrida de Jesse atrás de dinheiro para poder sumir do mapa. Sua ideia é ir até o apartamento de Todd (Jesse Plemons), o único da gangue de neonazistas (presumo que você saiba o contexto aqui) que demonstrava apreço (ou pena) por ele durante o cárcere forçado. Como revela um flashback, Todd guardava seu dinheiro no local, porém, como tudo em "Breaking Bad", a busca pelo dinheiro não será uma ida ao caixa eletrônico. De longe, a melhor cena do filme, toda a sequência, que se desdobra com plot-twists, lembra os auges passados da série, exemplos da genialidade de seu criador.

Todavia, é para assustar que está em "El Camino" o pior momento de todo o universo "Breaking Bad": a cena do duelo. Após muitas idas e vindas, Jesse ainda precisa de dinheiro e vai até a casa de um gangster pedir caridosamente a quantia necessária para sua fuga. O plano já começa não fazendo o menor sentido, no entanto, o roteiro vai ainda mais longe e se joga no limite da imbecilidade quando o líder da gangue desafia Jessie a um duelo - exatamente, um duelo de armas como nos filmes de faroeste. Quem atirasse primeiro, e matasse o oponente, ficava com o dinheiro. Pois é, isso saiu de "Breaking Bad".

Lógico que a sequência é ridícula - o fato de o líder não verificar que Jesse possui mais de uma arma, ou de CINCO pessoas não conseguirem matar Jesse, ou o protagonista sair sem um mísero arranhão, tudo é vergonhoso. É bem verdade que alguns deus ex machinas já passaram pelos 62 episódios, mas era sempre muito bem fundamentado e desenvolvido, servindo como desenrolar para outros acontecimentos importantes. Aqui, o duelo é só triste mesmo.


Se você, como qualquer fã do seriado, espera ver Walter White: sim, Bryan Cranston está de volta - claro, na forma de flashback (ele não ressurgiu dos mortos). Um dos mais icônicos personagens da história da televisão, é um júbilo ver a brilhante atuação de Cranston na tela depois de tantos anos, mas a cena é bem pequena e totalmente focada em Jesse. Difícil pedir mais de um personagem que já morreu além de cenas como a mostrada, contudo, fica lá no fundo a vontade de quero mais, de que não supriu a necessidade da volta de Walt.

Para ser bem sincero, essa impressão é generalizada: parece que "El Camino" não entrega tudo o que poderia - ou tudo o que a espera pedia. O filme é basicamente um episódio, o que é bom: toda a estrutura clássica de "Breaking Bad", desde a montagem até a fotografia, volta igualzinha; só que soa como um daqueles episódios de meados da temporada, que estão desenvolvendo situações que acarretarão no ápice. Não há nada de impressionante no filme, um clímax, um estouro que é clássico da série. Existem cenas de ação, de tensão, de emoção, mas nada à altura dos picos que entraram na história.

Em termos de produto derivado de "Breaking Bad", o seriado "Better Call Saul" dá conta de seguir o legado - até porque a inteligência é emulada na série que mostra como Saul Goodman (Bob Odenkirk) virou o advogado que conhecemos. Outro fato essencial é que vários personagens importantes de "Breaking Bad" ainda estão vivos em "Saul", que se passa anos antes do império de Walt ser construído. Não havia como ter toda essa fórmula em "El Camino".

"El Camino" é um epílogo, e se limita em exercer sua função de "capítulo final". Pouca coisa é acrescentada na linha temporal da história além do encerramento da jornada de Jesse Pinkman, que finalmente encontra um derradeiro final para a trama. Qualquer fã vai se sentir feliz com esse mimo pelos aspectos emocionais reascendidos pela nostalgia, porém, mesas não são viradas com os 122 minutos do filme. "El Camino" faz tudo o que há de bom em "Breaking Bad", mas não o que há de melhor.

Crítica: sem histeria coletiva, “Coringa” não é nem incrível e nem descartável

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a 11 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Ator (Joaquin Phoenix)
- Melhor Fotografia
- Melhor Trilha Sonora
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som
- Melhor Figurino
- Melhor Montagem
- Melhores Maquiagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Caso acompanhe o Cinematofagia, já deve ter percebido que eu não escrevo sobre filmes de super-herói. Pelo menos não os mais óbvios, aqueles blockbusters da Marvel e DC - tanto que fiz uma lista de filmes desse subgênero que não caem nos moldes abertamente comerciais que conhecemos. "Coringa" (Joker) nasceu com uma proposta diferente, um comic movie "sério".

A primeira amostra desse discurso veio quando a obra estreou na competição do Festival de Veneza 2019, o que foi uma surpresa. Só que ninguém esperava que o filme não só competiria em um dos maiores festivais do mundo como venceria o Leão de Ouro, o "Melhor Filme" de lá. Nunca antes um filme de super-herói conseguiu isso.

O hype estava instaurado. Desde a vitória, no começo de setembro, a película não saiu da boca do meio, e discussões acerca do prêmio pipocam até hoje - e a discussão ainda vai continuar, afinal, a corrida para o Oscar está só começando e "Coringa" já está na crista da onda. O Leão de Ouro de "Coringa" é controverso e, particularmente, um mal passo para Veneza enquanto vitrine cinematográfica.

Vou explicar: afirmo isso sem pôr na mesa os méritos (e deméritos) da fita, e sim sua produção. "Coringa" é da Warner Bros, uma das maiores produtoras do planeta e conglomerado poderosíssimo, além, é óbvio, de se tratar de um filme baseado em quadrinhos, o mais forte subgênero da cultura contemporânea. A prova? Qual a maior bilheteria de 2019 e uma das maiores de toda a história? "Vingadores: Ultimato". E ainda tem dois outros do mesmo mote no top 5, também com os cofres bilionários. Só nos EUA, "Coringa" teve lançamento simultâneo em mais de 4 mil salas, um número altíssimo, e dá para contar nos dedos quantos conseguem o mesmo luxo - e, não é de se estranhar, mal estreou e já tem $300 milhões em bilheteria.

Como esses fatos conversam com Veneza e o Leão de Ouro? O festival, assim como qualquer outro, é um prêmio da crítica - ao contrário dos Oscars e Globos de Ouro, que são prêmios da indústria. Sendo assim, é para torcer os olhos quando um prêmio da crítica dá a honraria máxima a um filme que não precisa de mais visibilidade e apreço. A produção de "Coringa", por si só, garantiria isso independentemente de qualquer fator, o que só ele, entre os concorrentes, poderia falar o mesmo.


Saber se "Coringa" era realmente o melhor da seleção, só assistindo a todos os indicados, contudo, já pontuei que não é esse o ponto. O ponto é: seria mais interessante festivais darem palco para filmes que nunca estrearão em mais de 4 mil salas, que jamais verão 10% do orçamento milionário de "Coringa" e que não nascerão já com o atestado de sucesso comercial - tendo em vista o número massivo de domínio nas salas de cinema mundo afora. "Coringa" não precisava do Leão de Ouro para ser visto, enquanto vários outros, que podem até ser melhores, serão vistos apenas nos cinemas "de arte" de metrópoles. É para se pensar.

Essa foi apenas a primeira das inúmeras polêmicas que gravitam ao redor de "Coringa" - e toda semana surge uma nova. Do problemático diretor Todd Phillips dando declarações estapafúrdias até o uso de uma música no filme cantada por um pedófilo condenado (e atualmente preso), toda essa publicidade negativa acabou sendo o velho "falem bem ou falem mal, mas falem de mim", e vários recordes de público já foram batidos logo na estreia. Deixei todo esse rolê de lado e sentei na expectativa de finalmente encontrar um longa de super-herói (ou, no caso, de um vilão) tão correto quanto "O Cavaleiro das Trevas" (2008).

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um palhaço de festas em Gothan City, na década de 80. Com inúmeros problemas mentais, incluindo uma risada involuntária nos momentos mais inoportunos possíveis, Arthur se divide entre as idas à terapia e o trabalho, perdido quando ele leva uma arma a um hospital infantil.

Só pela premissa já dá para ter uma ideia de como "Coringa" é um filme dúbio. Arthur é introspectivo, sem um pingo de noção de sociabilidade e cada dia mais soturno, porém, ainda assim, é um palhaço animador de crianças com câncer. A inserção das risadas involuntárias é ainda mais irônica, surgindo em momentos de tensão ou tristeza profunda do personagem; é a desgraça acontecendo e ele rindo descontroladamente.

A Gothan que virá a ser protegida pelo Batman - que aparece aqui com uns 10 anos de idade - é pintada com frieza e escuridão: há um forte tom decrépito, falido e corrupto nos becos e avenidas da cidade, um reflexo não apenas do estado psicológico de seus habitantes, mas também de um EUA em plena era Trump. Há uma guerra fria do povo que tenta sobreviver em meio à miséria e à poluição, como se tudo estivesse prestes a explodir, e essas pressões são fundamentais para o entendimento da cabeça de seu protagonista.


"Coringa" é uma viagem direto ao precipício que jogou Arthur na insanidade completa que é o Joker. Em termos binários, é bem mais complexo o nascimento de um vilão do que de um herói - aliás, a jornada do herói é tão batida que é um macete narrativo com regras detalhadas e copiadas há tempos. E essa dificuldade reside na questão: o que aconteceu que pode, cinematograficamente, justificar a maldade de um vilão? O que o levou até ali?

Indo contra a história clássica, o Joker de Phoenix não surgiu após cair num tanque de resíduo químico - hoje não, "Esquadrão Suicida" (2016). "Coringa" tira todo e qualquer aspecto fantasioso de seu texto e destrói a mente do protagonista das maneiras mais críveis possíveis: é o meio que o torna quem é. Da infância cheia de abusos à uma atualidade renegada, Arthur sofreu desde antes de se entender como gente - e aqui reside o prisma mais preocupante da fita, o vitimismo de Joker.

No clímax, quando a loucura já tá espalhada por todos os poros de Arthur, ele justifica seus atos pelo desprezo social que cai em cima dele, e isso é um traço fundamental da cultura "incel", a bandeira mais levantada pelos detratores do filme. Entretanto, a coisa não é tão sensacionalista como o circo montado pela crítica (sem trocadilhos).

É sempre bom lembrar que estamos falando sobre um vilão, ou seja, não existe justificativa realmente aceitável para entendermos (e acharmos correto) crimes como assassinato - então, a "solidão social" de Arthur é tão comparável quanto a de Travis de "Taxi Driver" (1976), influença gigantesca para "Coringa", ou a de Alex de "Laranja Mecânica" (1971). E também não existe um extremismo perigoso do lado "incel" que tanto pintaram: Arthur é incapaz de se relacionar com uma mulher - a ideia básica do "incel", que literalmente significa "celibatário involuntário" -, porém, isso, em momento nenhum, é o maior peso na personalidade de Arthur - ele até tem um romance imaginário, que logo é esquecido.


Toda a raiva do protagonista não está engatilhada com misoginia, racismo ou homofobia - os gatilhos comuns envolvendo crimes de "incels" -, e sim engatilhada contra o capitalismo e o abuso de poder. Arthur se rebela contra aqueles que possuem força para estagnar injustamente a sua vida, e se torna um símbolo contra Thomas Wayne, o magnata da cidade e pai do futuro Batman - é, inclusive e indiretamente, graças ao Joker que Bruce perde os pais no assassinato no beco, o que desencadeará no surgimento do herói.

Mas não posso fugir da sensação preocupante de glamorizarão ao redor do Joker. Em uma das últimas cenas, ele é ovacionado após dar um tiro na cabeça de um apresentador ao vivo na tevê aberta. Enquanto dialogava internamente sobre o quão controverso é o momento, lembrei de "Relatos Selvagens" (2014); em um dos segmentos, um homem comum explode uma repartição do governo em um surto contra a burocracia do Estado, e, assim como o Joker, vira ícone da resistência. Só que há dois fatores imprescindíveis: em "Relatos", não há vidas tiradas e o ar crítico jamais se distancia da tela, o que não podemos dizer o mesmo de "Coringa".

Joaquin Phoenix, um dos mais interessantes e versáteis atores do nosso tempo, está bem na pele do vilão, mas nem é preciso comparar com Heath Ledger, que fez a mais incrível versão do personagem em "O Cavaleiro das Trevas", para perceber que seu Joker é bom, mas não sensacional. Todd Phillips pesa a mão nas cenas que gritam "vejam como ele atua!" sem necessariamente ter uma atuação tão genial na tela; há cenas que não dosam corretamente a caricaturização natural do personagem, que beira a forçação - fiquei satisfeito, no entanto, em ver que deixaram um ar flamboyant e debochado ali. O próprio Phoenix tem atuações melhores na sua filmografia - em "Ela" (2013) e "Você Nunca Esteve Realmente Aqui" (2017), por exemplo.

O que há de melhor em "Coringa" é a veia niilista e misantropa de seus caminhos. Dentro de uma sociedade tão enferma, desigual e que retira a dignidade de suas pessoas, é árduo não ceder ao cinismo - e Arthur não apenas cede como graciosamente se afoga na falta absoluta de sentido quando afirma que sua vida não é mais uma tragédia, e sim uma comédia. O que mais choca no filme é como ele é tão próximo da realidade, como tantas cidades são réplicas de Gothan e seu sistema enferrujado, e quanto mais próximo, mais palpável e assustador. Não por acaso, é polêmico e complexo seu conteúdo, condizente com uma realidade à par.

Só que, a partir da segunda metade, o zoológico de exposição da atuação de Joaquin Phoenix rouba o palco em detrimento do aparato sócio-psicológico - o filme o entrega como o melhor na tela, e esse brilho não é proporcional ao espaço dado, com vários desenvolvimentos de contextos (esses sim, os protagonistas da trama) sendo deixados de lado. No momento que ele se torna o Joker, há uma queda na qualidade da fita, que se espetaculariza ao máximo para tentar atingir voos épicos e grandiosos, sem conseguir efetivamente. "Coringa" é como Arthur contando piadas: gargalha o mais alto possível no intuito de fazer a plateia rir junto, e, mesmo sendo divertido, não há tanta graça assim.

Crítica: “Predadores Assassinos” tem muitos crocodilos e pouca coerência

Atenção: a crítica contém spoilers.

Existem alguns subgêneros da Sétima Arte que possuem características tão específicas que o molde, com o tempo, fica cansado – comentei sobre na crítica de “Bohemian Rhapsody” (2018) e as cinebiografias. “Predadores Assassinos” (Crawl), uma das maiores apostas do calendário de estreias no terror em 2019, junta três subgêneros: o disaster, o survivor e o natural.

O último, o mote de terror com forças naturais (principalmente animais) se voltando contra os humanos, tem célebres nomes, como o cult “Os Pássaros” (1963), que tem um título autoexplicativo sobre o que declara guerra contra o homem. Mas a consolidação veio com “Tubarão”, clássico de 1975 de Steven Spielberg. O maior já produzido, o filme foi um marco e acabou disseminando vários animaizinhos fofos matando gente ao longo das próximas décadas: "Orca: A Baleia Assassina" (1977), "Piranha" (1978), "Cujo" (1983) e, o mais recente sucesso, "Águas Rasas" (2016), só para citar alguns.

O impacto de “Tubarão” foi tão grande que o número de turistas nas praias norte-americanas caiu depois do filme, que gerou pânico do oceano na plateia. Porém, estamos falando de mais de 40 anos atrás: o mote funcionava efetivamente. Hoje, a história é outra.

No caso de “Predadores Assassinos”, são crocodilos os psicopatas da vez. Com a chegada de um furacão devastador, Haley (Kaya Scodelario) vai até a casa do pai, Dave (Barry Pepper), quando ele desaparece. A menina, uma nadadora, encontra o pai no assoalho embaixo da casa com ferimentos gravíssimos - incluindo fratura exposta -; e o que ocasionou a quase morte do homem foi um enorme crocodilo, que entrou com o nível da água cada vez mais alto devido ao furacão.

Aqui temos o segundo molde do longa: o disaster, quando a obra explana um desastre natural como terremoto, tsunami, queda de meteoro e até o apocalipse. Há uma camada muito fina de discussão dentro de “Predadores Assassinos” que conversa com alguns disasters: o aquecimento global. É tão fina esta camada que mal dá para perceber, mas ela está lá, e é um desperdício não haver uma discussão relevante sobre, afinal, estamos em uma época de larga discussão sobre nosso impacto no meio ambiente e como este reage com alterações climáticas.


A maior parte de “Predadores Assassinos” se passa na parte debaixo da casa, onde os personagens devem rastejar para poder se locomover – um dos reflexos do título do filme, que, em tradução literal, significa “Rastejar”; é claro que o outro reflexo é o próprio andar dos crocodilos. Como o local é bastante limitado, a direção do filme teve um grande desafio na hora de filmar o que estava acontecendo ali – com uma dificuldade adicional com a água subindo gradualmente.

Em muitos momentos, “Predadores” possui eco de “Um Lugar Silencioso” (2018) – que possui sequências que unem esses dois elementos, lugar fechado e água –, o que ilustra a competência desse departamento. Não há nada realmente espetacular ou inédito, mas a fotografia dá conta de imprimir no ecrã o claustrofóbico ambiente, melhorado ainda mais pelo filtro pesado jogado na tela, acentuando o tom de aprisionamento.

Os protagonistas da fita, os crocodilos, são fermentados e enormes. Por serem o atrativo mor da película, esperava efeitos visuais mais verossímeis que não retirassem o impacto toda vez que eles apareciam – há momentos que ultrapassam o limite do aceitável e soam puramente artificiais. E quando os antagonistas não são tão eficientes, o clima vai por ralo abaixo – não dá para gerar apreensão no que é visualmente falso.

Aí retorno a um ponto que levantei no início: “Tubarão” causou frisson e pavor no espectador há décadas atrás, será que ainda estamos tão suscetíveis ao mesmo efeito? É bom lembrar que o medo é, também, subjetivo, e provavelmente muita gente saiu em pânico de “Predadores”, no entanto, não já passamos do tempo em que animais conseguiam ser efetivos propulsores do terror no Cinema?


Lembrava, então, de “Água Rasas”, que tem uma surfista lutando pela vida enquanto um tubarão a persegue. Os elementos são parecidíssimos com os de “Prepadores”: a protagonista está machucada, presa em uma ilhota minúscula e correndo contra o tempo pois a maré está subindo, o que dará acesso ao tubarão enfim a pegá-la. Mesmo não sendo um clássico ou um filme sensacional, “Águas Rasas” é uma sessão muito boa enquanto produto de entretenimento. 

“Predadores” também existe com o intuito puro e simples de entreter, divertir e, sim, ganhar o bastante para se pagar, o que nem de perto é um problema – é uma das funções elementares do Cinema a catarse –, porém, quando comparado com “Águas Rasas”, fica muito, mas muito para trás, porque este funciona como conjunto, ao contrário de “Predadores”.

Assim como Blake Lively está para lá de digna em “Águas”, Scodelario entrega uma atuação muito boa. A garota – descendente de brasileiros – faz todo o filme valer a pena e não deixa a atuação cair em nenhum segundo, mesmo com o roteiro se esforçando para soar patético.

Primeiramente, há diversas sequências em que os personagens poderiam se salvar dos crocodilos. No assoalho, as paredes possuem padrões de tijolos com vários buracos, que facilmente seriam derrubados com um ou dois chutes – e, mesmo possuindo grades do lado de fora, é burrice nem ao menos TENTAR sair por ali. Quando Haley encontra uma portinhola – convenientemente emperrada pelo lado de fora –, segundos depois um policial entra na casa; ela, ao invés de continuar na portinhola, que seria aberta pelo policial e salvando o dia, vai até o outro lado do assoalho. É claro que o policial morre em seguida.


E diversas baboseiras sem sentido são jogadas com o decorrer da duração, desde os crocodilos não gostando do barulho dos canos até a ridícula sequência, já fora da casa, quando Haley tenta pegar um barco. Todo ser vivo que caminhou pela rua alagada foi sumariamente assassinado pelos crocodilos, mas a menina e o pai caminham uma boa parte sem serem importunados pelos monstros – e Haley chega até o barco à nado, inspirada pelo pai e seu discurso motivacional e mais rápida do que três crocodilos. Claro que sim.

Não vamos esquecer que tudo isso acontece com o pai tendo uma perna fraturada e metade do ombro arrancado e Haley com duas enormes mordidas pelo corpo. Os personagens são quase decepados e continuam a fugir como se nada tivesse acontecido. Sei que pode soar um pedido exagerado pedir coerência em um filme com crocodilos gigantes, no entanto, o mínimo que deveria acontecer é nexo no roteiro. Quando tem personagem quase perdendo uma perna e logo depois ganhando a medalha olímpica de natação contra crocodilos, há algo de errado.

Há, para o requisito, um draminha familiar para tentar arrancar uma lágrima e fazer com que nos apeguemos aos personagens, há jump-scares super deslocados – porque óbvio que os crocodilos faziam suspense na hora de estraçalhar alguém –, até um cachorro é colocado no meio (e felizmente termina inteiro). Esse é um filme totalmente dentro de um molde já batido e que não faz nada além da média para ser ou tenso ou divertido. Só preenche uma cartilha e está satisfeito.

“Predadores Assassinos” pode agradar quem espera uma sessão inteiramente moldada para matar o tédio e nada mais – é um filme curto e direto ao ponto, o que é bom. Fora isso, é apenas outra e qualquer obra com bichos devoradores de gente que some com o rolar dos créditos – a atuação de Kaya Scodelario é o único ponto válido de apreço. É ironicamente raso esse filme que esconde seus monstros nas profundezas da água, tão cristalina que parece surgir de uma fonte termal e não pelas mãos de um furacão.

Crítica: “Midsommar” e o hipnótico horror cultural em plena luz do dia

Atenção: a crítica contém spoilers.

Caso você ainda não tenha sido apresentado a Ari Aster, ele é proprietário do melhor filme de terror da década: "Hereditário" (2018). Conseguir um marco em um gênero tão difícil (e logo em sua estreia) fez com que o sucessor, "O Mal Não Espera A Noite" (Midsommar), fosse recebido com imensas expectativas. E isso é tanto benéfico quanto maléfico.

"Midsommar" segue os passos de Dani (Florence Pugh, maravilhosa desde seu estouro em 2016 com "Lady Macbeth"), uma estudante que vê sua vida ruir quando a irmã bipolar se suicida e, ao mesmo tempo, mata os pais. Em absoluto choque, Christian (Jack Reynor), seu namorado, é o único em quem ela pode se apegar no meio dessa tragédia; a questão é que Christian está há muito tempo tentando terminar com Dani, sem saber como cair fora da relação por puro medo e covardia.

Existem diversas similaridades entre "Hereditário" e "Midsommar", assim como várias diferenças, porém, a mais gritante é a que está presente em todo o filme: "Midsommar", com exceção do prólogo, se passa inteiramente na luz do dia, ao contrário de "Hereditário", um filme majoritariamente noturno. Essa quebra não só difere as obras como separa "Midsommar" de quase todos os filmes de terror já feitos.

Dos primórdios do terror na Sétima Arte, ainda com os filmes mudos, até os adventos tecnológicos dos efeitos visuais da modernidade, um elemento é quase intrínseco no gênero: a escuridão. Este é o medo básico do ser humano, o medo do escuro, do desconhecido, daquilo que está nas trevas esperando para atacar, e os nomes, desde clássicos como contemporâneos, a se passarem no escuro – ou, pelo menos, possuírem seus clímaces longe da luz do sol – são abundantes, desde “O Bebê de Rosemary” (1968) e “O Exorcista” (1973) até “Rec” (2007) e “A Bruxa” (2015). "Midsommar" bebe na fonte de "O Homem de Palha" (1973) e "A Montanha Sagrada" (1973) em suas composições, simbolismos e construções imagéticas - e ambos são predominantemente diurnos.

Para tentar fugir do luto que, mesmo meses depois, ainda é uma ferida aberta, Dani aceita o convite (forçado) de Christian para ir até a Suécia com os amigos do rapaz. Lá, eles vão participar de uma celebração de nove dias que acontece a cada 90 anos, em uma comunidade isolada que anualmente celebra a festa da Rainha de Maio, um dos vários ritos daquela cultura.

Ao chegarem no vilarejo, bastante afastado de qualquer contato com o mundo, o clima de toda a fita é instaurado quando temos um sol fortíssimo iluminando todas as dimensões da propriedade. Não há detalhes escondidos, bem ilustrados quando a entrada do local é um gigante sol feito de madeira. Na chegada, somos apresentados aos costumes locais de celebração do solstício de verão, período em que há mais horas de dia do que de noite.


E aqui há o primeiro sinal de que tem algo de errado: com exceção de poucos momentos menos ensolarados, o sol jamais vai embora. Por ser um grupo de universitários, os jovens aproveitam a viagem para curtir e aceitam de bom grado os alucinógenos oferecidos pelos habitantes do vilarejo, o que agrava ainda mais a sensação de deslocamento temporal. Um deles pergunta as horas e, mesmo com o sol a pino, eram 9h da noite segundo os relógios.

Confesso que aqui encontrei o primeiro descontentamento com “Midsommar”: quando ele abraça um molde tão cansado sem, de fato, elevá-lo a algo fora da caixa. O filme é como os milhares já feitos que possuem adolescentes/jovens adultos indo para o meio do nada e, atraídos por sexo e drogas, caem nas presas dos vilões. “Cabana do Inferno” (2002)? “O Albergue” (2005)? Os exemplos estão aí. A coisa vai ainda mais longe com o personagem de Will Poulter, o alívio cômico que atira piadinhas e está mais preocupado em pegar alguma das várias garotas do vilarejo. É um humor deslocado.

Isso pode dar a falsa impressão de que “Midsommar” pende para o lado comercial ou pipoca do terror, o que não é verdade, nem de longe. A película é lentíssima e dedica seus 147 minutos na imersão do espectador na cultura local, o que é uma faca de dois gumes. Aster não queria que seu filme soasse culturalmente gratuito, e fica evidente que houve extensa pesquisa ao redor dos rituais inseridos naquele contexto, porém, ao mesmo tempo, a obra muitas vezes soa como um “Globo Repórter”.

Vemos muito de perto o passo a passo de cada momento das celebrações, e muitas vezes tudo soa chato. Não imediatamente, há muito hipnotismo diante das imagens, todavia, ao passarmos pela sequência, cai um pensamento de “isso não acrescentou muita coisa” ou “isso poderia ter sido sem tantos detalhes”. E olha que estou falando da versão cortada da A24, distribuidora do filme, para os cinemas; a versão original do diretor tem 3h.

Outro grande aspecto diferenciador entre "Hereditário” e “Midsommar” é que o primeiro é um terror, com o objetivo de causar medo. O novo, no entanto, não assusta - ele, um horror, quer te causar incômodo. Há cenas chocantes, claro, no entanto, as construções climáticas não seguem os mesmos caminhos que um filme de terror seguiria – até pelo fato de tudo ser tão expositivo pela questão da luz. Confesso que foi um pouco árduo superar a decepção que senti quando vi que "Midsommar" não tinha aspectos macabros ou assustadores como esperava pelo combro "sucessor de 'Hereditário' + cultos pagãos".


O primeiro momento que escancara o horror é no primeiro ápice dos rituais, quando dois idosos se suicidam ao se atirarem de um penhasco. A fotografia (espetacular) de Pawel Pogorzelski, sob os olhos sádicos de Aster, segue sem medo as quedas e foca nos corpos sendo destroçados com o impacto. Dani e seu grupo, claro, fica horrorizado, principalmente porque toda a comunidade não parece se abalar com a cena. A matriarca explica: aquilo é um costume corriqueiro, já que a comunidade enxerga a morte como uma parte natural do nosso ciclo. “Ao invés de morrermos com medo ou vergonha, nós entregamos nossas vidas. Não faz sentido lutarmos contra o inevitável, isso corrompe o espírito”. A última parte é dita estrategicamente para Dani, um prelúdio do que está por vir.

Aliás, “Midsommar” está soterrado em foreshadowings – há diversos fragmentos do roteiro dados logo no início - e é divertido ficar atento às paredes à procura de pistas. A imagem que abre o filme já mostra os idosos se atirando do penhasco; o galpão que possui as camas é um enorme mural com várias pinturas do que está prestes a acontecer; o quadro na casa de Dani, com uma garota coroada beijando um urso, que reflete o final; e a brincadeira das crianças da vila, chamada “esfola o tolo”, o destino de um dos personagens; além de outros exemplos.

Após o suicídio dos idosos, parece que o horror de “Midsommar” finalmente chegou para ficar, mas ainda temos um longo trajeto a percorrer. O roteiro introduz uma discussão muito boa sobre estudos culturais: Dani quer ir embora após presenciar tão horripilante cena, porém, como diz Christian, aquilo para o vilarejo é normal, e que nossa cultura, que coloca idosos em asilos, deve ser assustador para eles. Há muitos estudos que questionam a validade do ato de não se discutir culturas, mesmo quando estas são problemáticas ou abertamente ruins. Qual o limite de proteção de uma tradição?

Outro fator latente para Dani é que o namorado não parece muito interessado no que está acontecendo ou nos sentimentos da garota. Sempre é outra pessoa a acalmar os nervos da protagonista, enquanto Christian permanece inerte e até egoísta em relação a todos a sua volta. No final do segundo ato, no auge do desaparecimento premeditado dos personagens, Christian joga o corpo fora e diz não ter associação alguma com um dos seus (até então) melhores amigos, para o assombro de Dani, que o vê vomitando aquelas palavras naturalmente.


Outro problema da fita é a maneira como ela expõe o sumiço gradual dos personagens: ela não expõe. Tirando um deles, não vemos na tela o ataque contra os personagens, que desaparecem quase passivamente. O que poderia ser um forte elemento climático, não é construído para embarcar demasiadamente no misterioso, do que fica fora do quadro. É tanto que, quando os corpos começam a aparecer, o impacto não é tão forte como poderia exatamente por não haver a tal construção ao redor dos sequestros.

O último ato, ponto alto da celebração, começa com o concurso para decidir quem será a Rainha de Maio. Depois de muita droga e alucinações, Dani vence, e é coroada em uma enorme comemoração, enquanto Christian é induzido a entrar em um ritual próprio: ele é escolhido pelos anciões a engravidar uma das garotas do local, prática realizada com frequência – por ser uma comunidade pequena, apenas primos podem copular, sendo preferido forasteiros, levados até lá com o intuito de procriação.

A cena em questão é uma cópula bizarra: filmada com uma beleza incongruente, Christian transa com a garota enquanto várias mulheres nuas assistem. É tudo tão constrangedor que chega a ser engraçado, e esse é o tipo de humor retirado de maneira inteligente, ao contrário do pastelão que vinha pontualmente aparecendo. Mesmo entre risos, não dá para não perceber o horror da sequência.

E é claro que Dani vai saber do ocorrido, o que desencadeia no ataque máximo: ela percebe que perdeu absolutamente tudo. Sua família está morta, os colegas desapareceram e seu imprestável namorado finalmente deu um motivo definitivo para acabar a relação. Enquanto surta, várias mulheres da vila a acolhem e, em um ritmo assustador, choram e gritam na mesma frequência de Dani.

Esse momento é fundamental para entendermos os rumos do final do filme: Dani finalmente é emocionalmente compreendida. Ela, agora a Rainha de Maio, é acolhida com imenso prazer pela comunidade, sendo chamada de “irmã” pelas garotas do local, que, quase literalmente, compartilham dos sentimentos daquela que é a realeza. E isso explica as várias cenas com os moradores da vila imitando os sentimentos dos outros – quando o idoso se atira do penhasco e não morre, os habitantes gritam em sincronia com a dor do personagem; durante a cópula, as mulheres ao redor gemem junto com a garota perdendo a virgindade. Eles são um corpo só.


A última etapa da celebração, após a coroação da Rainha de Maio, é o sacrifício para a manutenção da paz do local: nove pessoas devem morrer para expulsar o mal da vila. Oito delas já estavam previamente escolhidas: os amigos de Dani; outros visitantes; dois membros do culto, voluntários para a dádiva do sacrifício; e o último deve ser decidido pela Rainha de Maio. As opções são: um dos moradores do local, escolhido através de um sorteio; e Christian. Não é lá grande surpresa quando Dani escolhe sacrificar Christian.

“Midsommar” é uma gigante alegoria sobre a posse do controle. Dani perde o controle absoluto de sua vida: ela vê sua família inteira morrer de uma só vez e o namorado, aquele que deveria lhe dar suporte emocional, está cada vez mais distante e prestes a cair fora. Ela busca desesperadamente algo que lhe dê a paz que é a sensação de controlar as rédeas da própria vida, e ela encontra na vila. Ela é capaz de decidir entre a vida e a morte de pessoas, o controle absoluto, e ela escolhe matar aquilo que a prendia na vida passada, na escuridão. Até mesmo a transição do filme é uma metáfora perfeita para isso: quando sua família morre, é noite; ela só encontra a luz do dia quando está na vila, e essa luz é infinita.

É claro, o filme não está glorificando tudo isso; há uma forte crítica ao fanatismo religioso. Dani está na ruína absoluta, extremamente suscetível a qualquer coisa que lhe garanta conforto, e aquela religião pagã é a receita exemplar para isso, ainda mais tão regada a alucinógenos que, como bem diz os moradores, ajudam quem toma a desapegar do passado e se abrir às novas sensações. É por isso que, vendo o namorado em chamas, ela sorri. O que antes era vulnerabilidade agora é ocupada pelo poder. Ela finalmente se vê parte de um todo – ilustradas pelas visões que Dani tem do seu próprio corpo fundido com a natureza. Sob o efeito de drogas e fundamentalismo, a redoma sacra que envolve docemente a protagonista em seus braços é tudo o que ela precisava. É bom demais para se revoltar contra os absurdos que estavam diante dos seus olhos.

"Midsommar" não é um fácil filme: sua robusta duração, desconcertantes sequências e inundação de simbolismos tornam a sessão uma trabalhosa digestão para a plateia. Tão diferente, mas ao mesmo tempo tão parecido com "Hereditário" ao usar o luto como pontapé de seu clima, é injusto comparar as duas obras quando seus objetivos (e luzes!) são tão discrepantes - e, convenhamos, superar "Hereditário" seria utópico. "Midsommar" é narcotizante e hipnótico ao reforçar o terror antropológico e cultural, além de mais uma comprovação (dessa vez colorida e vibrante) de que Ari Aster é um mestre no que faz e um dos mais bizarros términos de relacionamento que o Cinema já fez. Teria sido mais fácil terminar por mensagem.

Crítica: mesmo parecendo mais adulto, o balão de “It: Capítulo 2” está murcho

Atenção: a crítica contém spoilers.

Após 27 anos do primeiro encontro com Pennywise (Bill Skarsgård), ou A Coisa, o Clube dos Perdedores é obrigado a voltar para a cidade de Derry e confortar de uma vez por todas o palhaço demoníaco que está disposto a continuar com sua matança. "It: Capítulo 2" (It Chapter Two) continua a saga iniciada em "It: A Coisa" (2017) dois anos após o lançamento deste que é a maior bilheteria de um terror em toda a história (sem o ajuste inflacionário) - foram $700 milhões ao redor do globo.

Desde o início da produção da sequência, um fato me chamava muita atenção: como os atores escolhidos para interpretarem as versões adultas eram bizarramente parecidos com as crianças do primeiro filme. Não vou nem citar a lista dos nomes, porém eles parecem ter sido escolhidos a dedo - e até coadjuvantes são iguais aos atores mirins. Mais sorte ainda quando nomes tão grandes como Jessica Chastain, James McAvoy e Bill Harder aparecem no casting.

O filme é aberto, assim como o anterior, com um assassinato pelas mãos do Pennywise, para avisar que o palhaço já está na ativa. Contudo, o caso do "Capítulo 2" já chegou envolto de controversas: um casal gay é brutalmente espancado por um grupo homofóbico, e um deles é morto pelo Pennywise. Já adianto: não li ao livro de Stephen King. Lendo comentários acerca, soube que a passagem em específica contém no material original, porém, na tela, a cena é preocupantemente descontextualizada.

A ideia, imagino, era fomentar a áurea de violência da cidade, quase exalada a partir da presença de Pennywise - um dos criminosos inclusive fala "Bem-vindo à Derry" quando espanca um dos gays. Todavia, é muito diferente da morte de Charlie no primeiro filme, já que foi inteiramente feita a partir de um monstro sanguinário e não-humano. Ver corpos homossexuais sendo violentados por puro ódio e que não acrescentam na narrativa só tem um nome: gratuidade.


Quando os pedaços do cadáver deste personagem - interpretado pelo reizinho Xavier Dolan, já acostumado a sofrer quando atua em filmes - são encontrados, é o alerta de que os Losers devem voltar e impedir que as mortes continuem se espalhando. O primeiro ato começa com Mike (Isaiah Mustafa), o único do grupo original a nunca ter saído de Derry, ligando para todos os outros amigos de infância e informando para eles correrem até a cidade.

Pois bem, esse início é deveras confuso. Não fica muito claro qual a dinâmica que está acontecendo entre os personagens que foram embora: eles parecem não se lembrar dos eventos da infância. Após a sessão, fui ler sobre e descobri que sim, no livro é isso que acontece, no entanto, o filme presume esse conhecimento prévio (e indevido) e não se preocupa em desenvolver o que é a base para o pontapé inteiro da trama. Ora parece que os personagens lembram de nada, ora que lembram de alguma coisa, é uma desordem sem tamanho.

O único que lembra de tudo é Mike, exatamente por não ter saído da cidade. Essa dinâmica é tão contraditória que, fundamentalmente, quem saiu da cidade se recorda de nada, entretanto, Ben (Jay Ryan), o ex-gordinho e agora malhadíssimo que eventualmente vai mostrar sua nova barriga de tanque, ainda nutre um amor por Bervely (Chastain) vinte e sete anos depois. Supera.

Mesmo sendo os mesmos personagens do primeiro longa, os protagonistas são pessoas diferentes, afinal, quase três décadas se passaram. O roteiro é corrido demais ao abordar suas vidas presentes, o que apresentaria ao espectador quem eles são no agora - há pontuações interessantes, principalmente no caso de Bervely, presa em uma repetição da relação extremamente abusiva com seu pai; seu atual marido é um psicopata que a trata como objeto. Um deles até comete suicídio e nem aparece por dois minutos inteiros, um peso narrativo irrisório.

Aí começa o segundo passo do plot. Mike explica os acontecimentos e diz já ter um plano para matar A Coisa, um ritual indígena que também ilustra como o palhaço chegou em Derry: pegando carona em um meteorito. Sim, Pennywise é um alienígena. Enquanto essa mitologia é muito boa, o lado do ritual é apresentado de maneira incongruentemente pronta. É como uma receita que magicamente brotou do chão, sem preparação ou background algum para o público.


E falando em receita, "Capítulo 2" é uma cópia da estrutura do filme antecessor. Podemos pensar, "bem, é uma decisão lógica, afinal, é a continuação", mas não, não é. No "Capítulo 1", nós acompanhamos cada um dos personagens enfrentando Pennywise particularmente, e a mesma coisa acontece aqui. Uma enorme parte da duração - que é bem robusta, quase 3h - é dedicada à separação de seus peões e cada um deles esbarrando com os terrores d'A Coisa.

Mesmo havendo momentos inspirados - a sequência da Bervely com a idosa é ótima -, é uma repetição gigantesca e previsível. Sabemos cada passo, cada susto, cada desdobramento, o que não engrossa uma atmosfera, afinal, uma das premissas básicas do terror é o medo do inesperado. Andando passo a passo atrás do molde original, surpresas quase não estão à vista.

Algo que me chamou atenção é como a película não é.........adulta. Não esperava algo cerebral ou cult, mas "Capítulo 2" não amadurece sua narrativa em momento algum, além de empalidecer quando posto lado a lado com o elenco infantil. Soa estranho quando temos atores consagrados não dando conta de superarem um bando de crianças, e fica cristalino quando o filme embarca em flashbacks e coloca protagonistas originais na tela. Eles possuem muito mais química e um tom mais correto.

Se o primeiro é uma aventura macabra, o segundo não alcança uma coesão de estilo, afinal, aquele grupo de quarentões caindo em trapalhadas é desconcertante. O que deveria ser mais sério e atmosférico é apenas uma emulação do que deu certo antes - e que, obviamente, não funciona de modo igual. "Capítulo 2" é, sim, mais "assustador" - não chega a dar medo, todavia, possui uma gama bem legal de ideias de terror (a cabeça com pernas de aranha é uma delícia) - só que são tantos tiros para todos os lados que se torna uma bagunça com supérfluos - subtramas, como a do garotinho na sala de espelhos, podiam ser descartadas.

Depois de horas de sustos (alguns bem baratos), chegamos no "vamo-vê", o embate com Pennywise. O clímax já começa errado quando o tal ritual que caiu dos céus serve para coisa nenhuma e é esquecido rapidamente - o que também joga fora a relevância narrativa do momento em que os personagens se separam. Quando cara a cara com A Coisa, agora em forma de uma aranha enorme, a montagem ruim vai derrubando o que já estava fraco.


A solução do problema é a última pá de terra no enterro do filme: os Losers começam a xingar e menosprezar Pennywise, que vai (fisicamente) diminuindo até chegar a um ponto que seu coração fica exposto, a peça chave de sua existência. Em um primeiro estalo, achei curioso o conceito da derrocada do vilão: Pennywise é a personificação do bullying - ele ataca as inseguranças e medos de suas vítimas, como qualquer "valentão" -, e só é derrotado quando o bullying se volta contra ele. No campo das ideias, o gosto desta solução é doce, porém, na tela, é cinematograficamente preguiçosa.

E de preguiça o terror comercial e hollywoodiano entende. Forças sobrenaturais, demônios imbatíveis, entidades sanguinárias são, geralmente dentro desse nicho, derrotados por uma artimanha patética. Quer exemplos? A maior franquia de terror moderna é "Invocação do Mal", que já rendeu vários spin-offs e dinheiro aos baldes, e os dois filmes principais da saga possuem a mesma preguiça: em "Invocação do Mal" (2013), o satanás vai embora com pensamentos felizes; e Valak, o demônio em forma de freira em "Invocação do Mal 2" (2016), cai por terra ao ouvir seu nome. Simples assim.

Vendo por um lado positivo, além de ser uma sessão que não cansa tanto para a longa duração, "Capítulo 2" abraça uma metanarrativa criativa quando coloca o Stephen King em pessoa falando mal dos finais de suas próprias histórias - uma ideia pra lá de disseminada entre os leitores -, além de gerar referências bem divertidas do universo kinguiano, como para "O Iluminado" (1980) - tem um "Heeere's Johnny!" - e "Carrie: A Estranha" (1976) com a inundação de sangue.

A impressão que "It: Capítulo 2" desenha à plateia é que parece ser um filme andando com muletas: está preste a cair a qualquer momento, mesmo não indo ao chão de fato. A vivacidade que residia na obra anterior abre espaço para uma irregularidade colateral - o roteiro formulaico e efeitos visuais ruins explicam. Sempre será um prazer ver Bill Skarsgård encarnando um dos vilões mais icônicos da contemporaneidade cinematográfica, mas nosso retorno à Derry não é o prazer que foi a primeira vez que chegamos nessa cidadezinha infernal. Talvez, na próxima, o balão vermelho não estará tão murcho (Skarsgård já afirmou que voltaria para um terceiro).

Crítica: “Era Uma Vez em Hollywood” é uma tortura fantasiada de homenagem à Sétima Arte

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Leonardo DiCaprio)
- Melhor Ator Codjuvante (Brad Pitt)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Figurino
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quentin Tarantino lançando um filme significa que eu estarei no cinema. Não sou desses que acha o diretor o suprassumo da Sétima Arte, mas, de "Cães de Aluguel" (1992) até "Os 8 Odiados" (2015), nunca o vi lançar uma película ruim - "Pulp Fiction: Tempo de Violência" (1994), sua obra-prima, é um dos melhores filmes já feitos, inclusive. Não tinha como não dar meu dinheiro para "Era Uma Vez em Hollywood" (Once Upon a Time in Hollywood), seu novíssimo projeto.

No final da década de 60, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um ator que alcançou o ápice da fama em Hollywood na década anterior, andando atualmente por uma crise artística. Seu melhor amigo - e dublê e motorista e o que aparecer -, Cliff Booth (Brad Pitt), sempre está ali para dar suporte a Rick, no protagonismo ou como coadjuvante de uma série que ninguém assiste.

A mansão de Rick, nos altos montes da ensolarada Califórnia, é ao lado da residência de ninguém menos que Roman Polanski e sua esposa, Sharon Tate (Margot Robbie), um dos apogeus do Cinema na época - Polanski havia acabado de lançar "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos maiores clássicos de toda a história.


Essa dicotomia representa perfeitamente o status artístico do fim da Era de Ouro de Hollywood: de um lado, Rick, a encarnação do declínio; do outro, Polanski e seu magnetismo de sucesso e genialidade. Você pode tentar, mas será árduo não lembrar de "Crepúsculo dos Deuses" (1950), o melhor estudo da fama dentro de Hollywood já criado na telona: Rick chega perto da insanidade de Norma Desmond, o cânone da fama perdida, ao tentar alcançar o prestígio de outrora - semelhanças com Riggan Thomson de "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)" (2015) não são mera coincidência.

Já podemos apontar o óbvio: "Era Uma Vez..." é uma homenagem ao Cinema - mais especificamente à Hollywood, todavia, pincela outros nichos como o faroeste italiano, (conhecidos como Spaghettis). A metanarrativa, então, é uma das principais forças da produção, que mergulha na indústria até demais. O filme chega perto de 3h de duração, o que fundamentalmente não é um problema, a questão é a maneira como Tarantino decidiu preencher seu arrastado filme. Realmente me surpreendi quando lembrei que tanto "Django Livre" (2012) quanto "Os 8 Odiados" possuem durações maiores à de "Era Uma Vez...", e o tempo voa nos dois primeiros, ao contrário do último.

Para quem conhece a filmografia do diretor - que sempre escreve os próprios roteiros - sabe que suas narrativas evocam os dramas de seus personagens de maneira não tão linear. Os acontecimentos não são exatamente fechados, com cada passo sendo um tijolo na construção da trama - um estilo que, particularmente, não me agrada tanto. O que fazia com que isso jamais fosse um empecilho é a vivacidade de suas histórias, sempre cativantes - o que inexiste em "Era Uma Vez...".

A trama gira entorno dos três personagens principais - Rick, Cliff e Sharon. Mesmo se encontrando e se aproximando, eles possuem núcleos completamente distintos, três histórias deveras diferentes; e a montagem não se apressa em mostrar em detalhes cada uma delas. Rick gasta horas nos sets de filmagem, Sharon no cinema vendo o filme em que atua e Cliff flerta com uma garota que acaba se revelando uma das integrantes da família Manson. Nenhuma delas é exatamente empolgante.


Tarantino, cinéfilo inveterado, quer ovacionar o faroeste - gênero fundamentalmente hollywoodiano - e nos cola em Rick por intermináveis filmagens, que são sofríveis. Com cenas longuíssimas, a sensação de que 10% do exibido era o necessário está sentada do nosso lado, o que é reflexo do domínio criativo que o diretor tem sobre suas obras - que tem o poder em decidir como será o corte final do filme, algo raro dentro da indústria.

Com Cliff, soterrado na sombra do personagem de Rick, ganha camadas de composição que surgem e somem sem impacto algum - o filme literalmente para a história para mostrar que ele matou a própria mulher. O que em qualquer enredo seria ponto incontestável, serve para coisa nenhuma - se não existisse, o filme percorreria sem mudanças. E aqui é apenas um dos vários exemplos de entupimentos do roteiro.

É em Sharon que o plot parece alavancar. Não é a primeira vez que Tarantino se apropria de um fato real e a mistura com a ficção - "Bastardos Inglórios" (2009) ressignifica a História e mete a bala em Adolf Hitler, e o mesmo acontece em "Era Uma Vez...". No entanto, aqui temos um grande "porém": ao contrário de Hitler, Sharon Tate não é uma figura universalmente conhecida - durante a sessão que assisti, várias pessoas não a conheciam. E, por não a conhecerem, o viés híbrido do filme não fez sentido.

Sharon foi assassinada pela família Manson, e em "Era Uma Vez...", Tarantino faz o oposto de "Bastardos": poupa a vida da mulher com uma virada deliciosa que subverte expectativas. To-da-vi-a, essa expectativa, essencial no clímax, só existe se você conhecer o destino de Sharon. Sem um desenvolvimento digno em cima do culto bizarro criado por Charles Manson (que aparece em apenas UMA cena), o crime acontece na tela sem motivações e se apega demasiadamente em um fato aquém de sua existência e que não encontra explicações o suficiente dentro de seu corpo. Sem o conhecimento prévio, Sharon é só a vizinha que em uma noite descobriu que a casa ao lado foi invadida. E isso é um grande problema.


E Tarantino não está nem um pouco preocupado se você não catar as milhares de referências que explodem na tela a cada segundo, virando um festival impossível de ser assimilado tamanha afetação. Ele vai nos confins da cultura norte-americana das duas décadas exploradas e põe tudo na tela milimetricamente, uma porrada no interesse do público - ou você quer mesmo ver um episódio de uma série policial de 1965? Chega a ser uma tortura - e tenho certeza de que, caso estive assistindo ao filme em casa, teria abandonado.

Tudo é, como sempre, embalado com muito afinco, da fotografia coloridíssima da era dos hippies até a energética trilha sonora - mas a cansativa história, os inúmeros personagens de apoio que entram e saem da tela, as sequências infinitas de gravações, as subtramas deixadas pra trás, tudo colabora para assassinar a diversão que é elemento intrínseco dentro do cinema tarantiano - e que, em alguns momentos, faziam as falhas passadas serem perdoadas.

É uma surpresa ver o infortúnio de Tarantino ao abraçar um longa mais voltado para o drama - ele se saiu tão bem no subestimado "Jackie Brown" (1997). "Era Uma Vez em Hollywood" carrega os estilos que moldaram um cinema tão característico, porém, sua nova produção é uma inorgânica homenagem à fantasia hollywoodiana pela sua trama que vai matando a própria vida a cada minuto (e são muitos). Se as atuações são de primeira linha e os momentos de ação maravilhosos, "Era Uma Vez" parece não entregar uma recompensa à plateia, mesmo com seu protagonista sendo recebido de portões abertos na magia irrefreável da mitologia por trás da terra do Cinema - e que não está presente no filme que conta sua história, coisa diferente em outras homenagens à Sétima Arte na contemporaneidade, como "La La Land" (2016). Tarantino, pela primeira vez, não é cool, é só chato.

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