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Crítica: “Bohemian Rhapsody” é ótimo enquanto greatest hits (como filme, beira o desastre)

Vencedor do pior Globo de Ouro de "Melhor Filme" da década, o longa é arrastado pela força das canções
Indicado a 05 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Ator (Rami Malek)
- Melhor Montagem
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

Cinebiografias são uma vertente da Sétima Arte predestinadas ao fracasso. É um trabalho hercúleo fugir do molde formulaico, que se resume em ascensão, queda e redenção, principalmente quando o personagem central é de largo conhecimento do público; quanto mais famoso, mais óbvia a cinebiografia. A batalha de "Bohemian Rhapsody" foi árdua.

Freddie Mercury é uma das figuras mais icônicas da cultura pop, e, juntamente com o Queen, mudaram a música para sempre. Envolto de muita mídia enquanto vivo, a vida de Freddie é, em grande parte, tão conhecida quanto os clássicos da banda. O que falar em um filme que não seja uma repetição?

O "Bohemian" que conhecemos é uma das inúmeras versões produzidas do longa, que desde 2010 passa de mão em mão. Se houve um filme que comeu o pão que o diabo passou, foi ele: vários atores e diretores foram entrando e saindo, na maior parte das vezes por "diferenças criativas". Nem mesmo o trato final ficou livre de caos por trás das câmeras, quando o diretor Bryan Singer foi demitido no meio das filmagens por simplesmente não aparecer (?) no set, além de constantes brigas com Rami Malek, o protagonista. Pelo menos o sucesso comercial de "Bohemian" foi estrondoso, com uma bilheteria passando os 800 milhões de dólares e recordes quebrados para todos os lados - o longa é a maior cinebiografia em termos de arrecadação na história, o que reflete o legado do Queen.

"Bohemian Rhapsody" é aberto pelos preparativos do Live Aid, a mais famosa apresentação da banda. A narrativa usa enquadramentos fechados para criar uma áurea de mistério, sem revelar a caracterização de Malek, enquanto joga "Somebody To Love" nas alturas, para colocar a plateia no mood. É rápido esse prelúdio, mas entrega tudo o que podemos esperar pela frente, para o bem e o mal.


A duração total da fita é de 135 minutos, um filme robusto. Por isso me assustou como o primeiro ato é uma correria desenfreada. Em meia hora, Farrokh Bulsara já é Freddie Mercury e o Queen já está em turnê nos Estados Unidos. Todo o desenvolvimento necessário para dar continuidade aos atos seguintes são deixados de lado, como se o principal da obra fosse jogar a persona de Mercury o mais rápido possível na tela.

As três primeiras cenas são pontuações narrativas fundamentais, que não recebem zelo. Farrokh é um descendente persa que não quer seguir os passos do pai, um homem rígido e nada compatível com a personalidade efervescente do protagonista. Ele rasga as expectativas, as regras e o próprio nome, na ânsia de possuir uma identidade que sirva para ele mesmo. Soa familiar? É a mesma história do filho rebelde que sofre com as amarras familiares e deve se libertar a fim de seguir seus sonhos.

Próxima sequência é Freddie no show da banda Smile em um pub britânico. O vocalista pede demissão e, adivinhem, lá está Freddie pronto para assumir o microfone. Claro, ele é rejeitado pela aparência, convencendo rapidamente Brian May (chega a chocar como Gwilym Lee está igual ao real Brian) e Roger Taylor (Ben Hardy) quando solta a voz. A introdução de Freddie abusa da casualidade para se transformar em algo que foi feito só para colocá-lo ali dentro. Não há cuidado, não há construção. Mal piscamos e já temos Mercury mudando o nome da banda para Queen, já com a logo desenhada. 


Há um oco gigante nas sequências que fincam personagens e acontecimentos. O filme começa com Mercury já sendo o Mercury que todos conhecemos: o roteiro de Anthony McCarten não possui a sensibilidade de crescer o protagonista; não sabemos quais as influências do cantor, seus gostos, sua história. Freddie Mercury em "Bohemian" nasceu exatamente no primeiro minuto do filme. Não consegui me surpreender com esse fato, já que McCarten é especialista em escrever cinebiografias básicas: é dele o roteiro de "O Destino de uma Nação" (2017) e "A Teoria de Tudo" (2014).

Em uma das entrevistas pós desistência, Baron Cohen afirmou que queria um filme proibido para menores de 18, com exibição da realidade de Freddie sem censura, enquanto a banda, consultora criativa da obra, queria um produto para a família. Essa escolha tem impacto fundamental para o desenrolar da película. "Bohemian" é concretamente um filme comercial e, pior, redutivo. A existência de Mercury é diminuída a fim de não chocar, e até mesmo seu lado homossexual é posto na tela com todo o cuidado para não "ofender" a plateia - premissa desrespeitosa por si só. 

O nível vai mais abaixo e diversos alívios cômicos são metralhados, geralmente ao redor do personagem de Ben Hardy, o "palhaço" da turma. Sem nunca receberem o foco com dignidade, os membros restantes do Queen são coadjuvantes de apoio para Rami Malek, em uma performance que entrega competência. Mas, particularmente, o ator não conseguiu me convencer por completo, sempre atrás de uma camada de artificialidade, assim como sua prótese dentária. É inegável que existem momentos em que ele está fisicamente a reencarnação de Mercury, todavia, não há uma demonstração de real estudo além do "vamos copiar cada movimento de Freddie".


A necessidade de facilitação da película também passa pela parte técnica. É involuntariamente cômico como os personagens são introduzidos na tela: com uma construção climática e enquadramentos misteriosos, os atores são exibidos como numa novela mexicana, desesperados em causar impacto. E "Bohemian" teve o azar de competir na temporada com outro longa musical: as sequências no palco de "Nasce Uma Estrela" são realizadas por um diretor, um fotógrafo e um editor que sabem extrair potência do que foi feito, coisa que "Bohemian" não chega perto.

Se diversos aspectos da fita beiram o desastre, não dá para fugir do prazer que são duas sequências, capazes de valer toda a sessão: o Live Aid e a gravação da música-título. O Live Aid foi, sem dúvidas, a cena-chave das filmagens, e o esforço valeu a pena; é o encerramento perfeito e arrepiante para a obra e basicamente coloca o público no meio do show. Contudo, tenho grande apreço pela gravação de "Bohemian Rhapsody", feita no ecrã de maneira inteligente: vamos recebendo pequenos fragmentos da canção antes do tiro final com a versão completa. A batalha da banda com a gravadora, que se recusa a lançar a faixa como single, é deliciosa.

Essa é a moral: a grandeza de "Bohemian Rhapsody" mora exatamente naquilo que ele não fez, as músicas, enquanto suas qualidades cinematográficas são escassas. O filme foi arquitetado pelas pessoas erradas: há mais incompetências do que expertises. Se tirarmos o nome de Freddie Mercury, a produção poderia ser sobre qualquer cantor na montanha-russa da fama, o que demonstra a abissal falta de personalidade da fita. Como celebração da obra do Queen, "Bohemian Rhapsody" atinge a plateia com precisão - correr no fim da sessão para ouvir um greatest hits é caminho sem volta. Como Cinema, no entanto, a história é outra.

E não dá para fugir da esmagadora impressão de que, caso estivesse vivo, Freddie odiaria esse higienizado filme, que passa longe do espírito transgressor que ele era dentro e, especialmente, fora dos palcos.

disqus, portalitpop-1

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