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Crítica: “Parasita” balanceia uma das melhores lutas de classe do cinema com humor e acidez

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Filme Internacional
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando o Festival de Cannes rolava em maio, um filme era sempre pontuado na lista de melhores da competição: "Parasita" (Parasite), do diretor Bong Joon-ho, mais famoso pelo sensacional "O Hospedeiro" (2006). Não foi grande surpresa quando ele se tornou o primeiro coreano a vencer a Palma de Ouro - o prêmio de "Melhor Filme" do festival -, e já abrindo os caminhos para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional".

"Parasita" se debruça em cima da família Kim: o pai, Ki-taek (Song Kang-ho, muso de Joon-ho e um dos maiores coreanos na história); a mãe, Choong-sook (Jang Hye-jin); o filho, Ki-woo (Choi Woo-shik); e a filha, Ki-jung (Park So-dam). Eles moram num minúsculo apartamento quase no subsolo e vivem em nível de pobreza. Dobrando caixas de pizza para sobreviver, uma oportunidade brilhante surge quando Ki-woo é convidado para ser professor de inglês em uma luxuosa mansão.

A riquíssima família possui a mesma configuração: o pai, Mr. Park (Lee Sun-kyun); a mãe, Yeon-kyo (Cho Yeo-jeong); a filha e aluna de Ki-woo, Da-hye (Jung Ji-so); e o caçula, Da-song (Jung Hyun-joon). Os incontáveis metros quadrados da propriedade rapidamente viram um terreno fértil para a ascensão social dos Kim: eles vão, um a um, se introduzindo dentro da casa.

Achei curioso perceber as similaridades básicas entre "Parasita" e "Assunto de Família" (2018): ambos asiáticos ("Assunto" é japonês), ambos vencedores da "Palma de Ouro" consecutivamente e ambos retratos da má distribuição de renda na Ásia. Tanto a família de "Assunto" como a de "Parasita" buscam meios à margem da lei para sobreviver e lutar contra a miséria.


A diferença elementar entre os longas é sua abordagem: enquanto "Assunto" é fundamentalmente dramático, seco e sem rodeios, "Parasita" traz a mesma veia narrativa de vários filmes de Joon-ho: uma mistura desconcertante de comédia com drama. Um estilo bastante característico, é fato que nem sempre funciona: quando Joon-ho abraça a comédia com viés comercial ou expositivo demais, vira um desastre - vide "Okja" (2017). Não por acaso, seu maior mal passo é exatamente o que vai até Hollywood.

Quando reside ali mesmo na Coreia do Sul, a tonalidade é bem pontuada - como "Mother - A Busca Pela Verdade" (2009) . "Parasita" não fugiu à regra. Não pense que esse fusão com comédia seja um stand-up na tela: o humor de "Parasita" está no absurdo de suas situações. Em inúmeros momentos a obra me remetia ao trabalho de Yorgos Lanthimos, que também usa da mesma fórmula para construir seus universos únicos. Assim como em "A Favorita" (2018), "Parasita" também entope a duração com sarcasmos inteligentes, e usa a música clássica em contraste com a porraloucagem que está acontecendo, por exemplo.

A narrativa da película é uma montanha-russa: o início é bastante lento, uma subida gradual dentro da trama que desde ali já prometia uma queda vertiginosa. A pegada comédia está pungente, com sequências que em nada acrescentam no plot além de pincelar a tonalidade cômica da coisa - como a cena do bêbado fazendo xixi ao lado da janela da família. Quando o espectador entra na mansão dos Park, o drama ganha mais espaço pelas pautas impostas de maneira muito sutil.

É claro que o mote principal de "Parasita" é uma família se aproveitando (e forçando) situações para sua ascensão econômica - e toda a potência da fita está bem aqui -, contudo, o filme expõe um viés que, pelo menos acho, não é um consenso ou uma ideia coletiva no imaginário de quem habita esse lado do mundo: as desigualdades absurdas do povo ao redor do Mar do Japão.


Essa abordagem é bem mais explícita em "Assunto de Família" - provavelmente pela escolha de tom -, mas "Parasita" só caminha porque é uma crítica direta ao capitalismo. Disse que talvez a ideia central do filme não esteja impressa em nossas cabeças porque, ao pensarmos no eixo Coreia-Japão, imediatamente vislumbramos tecnologias e avanços, o que, como em basicamente qualquer país capitalista, não é uma verdade concretamente partilhada entre seus cidadãos.

Pondo em outras palavras, não imaginava que estes países pudessem ser tão desiguais. Em incontáveis momentos consegui enxergar a mesmíssima história se passando aqui mesmo no Brasil - o filme possui universalidades para dar e vender, o que consegue exportar sua história para todos os cantos do planeta - quanto mais desigual for sua realidade, mais identificável será o filme.

É bastante difícil falar do enredo de "Parasita" e não estragar a experiência de quem ainda não viu. Não só por questões de spoilers, mas também porque esse é um filme de sensações - e elas são fartas e variadas. Você vai do êxtase absoluto ao choque completo - o último ato pega elementos do terror e leva a bizarrice social aos extremos.

No entanto, o filme renderia uma análise longuíssima no que tange a impressão da desigualdade social na Sétima Arte. Aliás, esse tema é central na filmografia de Joon-ho - todos os seus filmes, em algum nível, tocam no assunto -, porém nunca com tanto sucesso como em "Parasita". O cuidadoso texto ainda tem a audácia de carregar um existencialismo puro quando Ki-taek, no auge da bagunça do plano da família, fala que a única forma de não falhar é não ter um plano - o que ilustra a forma como todos estão jogando para cima seus desejos e esperando que caiam de volta.


O obscurantismo vai engolindo a tela enquanto mergulhamos mais profundamente nos meandros das duas famílias, duas configurações tão parecidas mas tão opostas ao mesmo tempo: o exemplo maior é na sequência da chuva, quando os Parks estão confortáveis em sua sala com paredes de vidro e os Kims encontram seu apartamento inundado - notem como a fotografia evidencia a descida dos protagonistas durante a corrida até a casa, uma metáfora visual das junções capitalistas, quando a periferia mora em um nível muito abaixo das camadas mais abastardas. A chuva escorre pelas mansões e se acumula nas favelas. Quem sofre com a chuva é o pobre.

Uma das expectativas iniciais que sofri com o filme partiu do seu título, e, felizmente, foi uma expectativa morta. Não pense o contrário, "Parasita" é um título que não poderia ser melhor aplicado do que no presente filme, contudo, poderíamos imediatamente pensar que a família Kim seria a tal parasita, sugando dos Parks.

Isso não deixa de ser verdade - eles realmente se aproveitam da quase burrice dos patrões -, no entanto, o roteiro é pra lá de competente ao não permitir que habite um binarismo rasteiro e preto no branco. Os Parks, em alguns aspectos, chegam a ser odiáveis - vide a cena do clímax que desencadeia o final -, o que até entrega a chancela para a plateia ficar totalmente do lado dos Kims, que sempre possuíram motivações muito verdadeiras. Querendo ou não, eles são os mestres de cerimônia desse insano picadeiro. O fato é: não existem vilões no filme - não que, por isso, os personagens sejam mocinhos e não haja atitudes absolutamente condenáveis (na verdade o filme é uma sucessão delas) -, mas todos são vítimas do sistema, é ele que os molda naqueles formatos reprováveis. O jogo é mais culpado que os jogadores.

"Parasita" é um dos cumes de 2019 quando cria uma sessão bizarramente divertida sem, jamais, em momento algum, deixar com que o estudo social saia do ecrã. Com um lindo malabarismo de gêneros, o filme enfia a faca em um sistema que fundamentalmente existe ao por um camada acima de outra, o que tira a dignidade do ser humano, predestinado a cometer ações terminais que comprovam o insucesso da separação entre burguesia e marginalizados. Talvez a melhor luta de classe que tivemos no Cinema nessa década - e aqui estamos falando tanto no sentido figurado como no literal.

Crítica: “Dor & Glória” é uma aborrecida jornada sem o reencontro criativo de Almodóvar

Pedro Almodóvar sempre está nas listas de melhores diretores nos cinéfilos mundo afora, e felizmente. O espanhol provavelmente deve carregar o título de maior diretor gay do Cinema moderno, sem jamais, nos quase 40 anos de carreira, deixar os tópicos LGBTs fora de sua filmografia.

Só com o recorte desse século, Almodóvar, vencedor de dois Oscars, carrega alguns dos melhores filmes do período, como as obras-primas "Fala Com Ela" (2002), "Má Educação" (2004), "Volver" (2006) e "A Pele Que Habito" (2011), o que justifica o evento que é o lançamento de qualquer um dos seus filmes. Não foi diferente com "Dor & Glória" (Dolor Y Gloria).


Estreando diretamente na competição principal do Festival de Cannes 2019, "Dor & Glória" segue Salvador Mallo (Antonio Banderas, um dos ícones do cinema almodovariano, estando presente em oito de seus filmes), um diretor de cinema em declínio. Numa depressão pessoal e artística, ele reencontra algumas figuras chaves de sua vida, o que o faz questionar como chegou até ali e, principalmente, como vai ser dali para frente.

A narrativa se divide basicamente em dois córregos, o presente e a infância de Salvador, nos anos 60, com sua mãe sendo interpretada pela musa mór de Almodóvar, Penélope Cruz (criminalmente subutilizada aqui). Nesse vai e vem - que inclui até a cantora Rosalía num papel coadjuvante -, Salvador decide reatar os laços com Alberto (Asier Etxeandia), o protagonista de um dos seus primeiros - e mais bem sucedidos - filmes. Separados há 30 anos graças a uma briga, o retorno é conturbado, principalmente pela parte de Salvador.


Cheios de problemas físicos e emocionais, o diretor encontra dificuldade em conseguir a simpatia do ex colega porque, durante décadas, massacrou o trabalho que Alberto fez em seu filme, uma impressão finalmente mudada. É ele, também, que abre alas para que Salvador entre no mundo das drogas, uma via de escape com prazo de validade curtíssimo.

Devo confessar a você, leitor, que relutei e me questionei bastante se escreveria ou não sobre "Dor & Glória". Almodóvar é um dos meus diretores favoritos e estava bastante ansioso para o sucessor de "Julieta" (2016), que mesmo sendo um filme competente, é nada memorável. As críticas internacionais teciam elogios aos baldes para o novo longa e tinha tudo para que o jejum de quase 10 anos sem uma fita magistral finalmente tenha chegado ao fim - "A Pele Que Habito" foi o último grande Almodóvar.

Só que não demorou muito para perceber que o jejum continuaria. E os motivos foram vários. Um dos melhores diálogos da película, que na maior parte do tempo é uma aula de metalinguagem, diz que o maior ator não é aquele que sabe chorar diante da câmera, mas o que consegue conter as lágrimas. Fiquei com a frase na cabeça e, enquanto matutava, percebi que a afirmação era uma definição fidedigna para o próprio filme.


Percorrendo pelas dores e glórias de Salvador, a produção parece que está prendendo a emoção em todas as cenas - como se o filme estivesse com medo de ser vulnerável. Há uma camada grossa de letargia sobre o ecrã, e a sensação primordial que me abatia era a de anestesiamento; conseguia produzir sentimento nenhum além do tédio. E a conclusão que cheguei é a mais óbvia possível.

O problema está na composição de Salvador. Bandeiras está bem no papel - nada extraordinário como o prêmio de "Melhor Ator" em Cannes poderia sugerir -, todavia, ele foi moldado para ser a versão cinematográfica do próprio Almodóvar. É só olhar para o pôster: o protagonista está na frente de sua enorme silhueta, que é parecidíssima com a do diretor (isso se não for realmente a sombra de Almodóvar).

"Dor & Glória" sofre do mesmo dano de "Roma" (2018): é particular demais. São construções que fazem muito mais sentido para quem está as realizando, sem um apelo que permita um apreço por parte da plateia - não acho que seja necessário afirmar o elementar, mas sim, estou cozinhando essas afirmações dentro da deliciosa esfera da subjetividade, você pode assistir ao mesmo filme e se sentir tocado como nunca na vida. O pequeno Salvador escrevia cartas para os analfabetos de sua vila, assim como a mãe real de Almodóvar, e essa escolha de roteiro só tem um peso concreto para ele - por possuir um laço afetivo ali. Salvador é um personagem que não denota simpatia pelos traços introspectivos, frios e distantes, um confusão emocional que está presa dentro da cabeça e nada mais.

E tome diálogos que evoquem o amor pela arte e monólogos intermináveis que significam coisa nenhuma para ninguém além de quem está o evocando, e, quando mal pisquei, estava mais interessado no design de produção super bonito e colorido. A superfície de "Dor & Glória" é bem mais atraente que seu conteúdo, um reflexo muito bom para exemplificar o quão raso é seu texto.


Outro ponto gritante é como Almodóvar faz um amontoado de reciclagens de diversos temas já explorados dentro de sua filmografia. Artista em declínio? O homem virando deus através de sua arte e tendo uma mulher como secretária e (quase) serva? "Abraços Partidos" (2009). A exposição da homossexualidade na infância? Um filme dentro do filme? Reencontros de ex amores fracassados? "Má Educação". O ato de ser mãe na terceira idade e como a aproximação com os filhos é dificultada? "Volver". Consumo de drogas que reflete a marginalização de LGBTs? "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). E por aí vai.

"Dor & Glória" atira em inúmeras fórmulas já gastas e acerta em nenhuma. É bem verdade que, com o passar dos anos, Almodóvar retornou em tópicos anteriores, no entanto, ele sempre se superava, indo ainda mais longe que anteriormente e entregando mais camadas de profundidade daqueles que são os temas que fizeram seu cinema ser tão celebrado. "Dor & Glória" passa longe da mesma fortuna. É só ver "A Pele Que Habito", por exemplo, uma revolução dentro da carreira do diretor quando seus tópicos são levados a caminhos tão diferentes e inéditos dentro de seu próprio mundo. O rei espanhol talvez precise de uma renovação que quebre as paredes da caixa que ele mesmo se colocou, senão continuará sendo uma repetição de si mesmo.

Almodóvar, no desejo de mostrar como o Cinema salvou a sua vida, realiza um filme estritamente íntimo, o que ceifa a produção através de seus personagens unidimensionais, tramas de perfumaria e uma narrativa que evoca o sono. O todo deixa um gosto ainda mais árido quando até mesmo dentro da filmografia almodovariana há homenagens à Sétima Arte mais vívidas e verdadeiras, sem a chatice que é mais um filme sobre crise artística e a jornada para o reencontro criativo que em nada enriquece os 40 anos de Almodóvar nas salas escuras mundo afora.

Crítica: banido na África, “Rafiki” é tão resistente quanto suas protagonistas lésbicas

Atenção: a crítica contém spoilers.

Quando "Aquarius" (2016) estreou no Festival de Cannes, com enormes elogios, tínhamos em mãos um escolhido definitivo para nos representar no Oscar, na categoria "Melhor Filme Internacional" (até então nomeada "Filme Estrangeiro"). No tapete vermelho da estreia, a equipe do filme protestou contra o golpe instaurado no governo de Dilma Rousseff. Como é o governo que escolhe o selecionado de cada país, através do Ministério da Cultura, "Aquarius" foi "punido" pelo protesto ao ser esnobado no processo de seleção. O escolhido, "Pequeno Segredo" (2016), é um filme que quase ninguém nem viu.

Tal artimanha política não é exclusividade do circo que é o Brasil - o Quênia fez exatamente o mesmo em 2018. O favorito para a seleção era o lésbico "Rafiki", da celebrada diretora Wanuri Kahiu. O primeiro longa queniano a chegar no Festival de Cannes, não demorou até ele ser banido no país pela "propaganda de incentivo ao lesbianismo", o que é crime nas leis vigentes. A comunidade internacional, óbvio, criticou pesadamente a decisão, o que levou a diretora a processar o país, a fim de conseguir lançá-lo.


O governo baixou uma condição: que a diretora mudasse o final do filme para algo triste, pois o original era "muito positivo e esperançoso". É claro que ela negou, o que piorou a situação: quem fosse pego em posse do filme, seria preso com pena de até 14 anos de prisão, a sentença básica para um homossexual no país. Felizmente, Kahiu venceu o processo, o que permitiu a estreia de "Rafiki", todavia, o governo fez exatamente o mesmo que nosso Ministério da Cultura: chutou o filme da seleção para o Oscar, mesmo sendo o principal do país no período.

Não estou querendo dizer que o prêmio da Academia é o que há de mais importante para a Sétima Arte, mas é inegável o fato de que ela é a maior vitrine cinematográfica que existe, o que torna essas "punições" ideológicas sofridas por "Aquarius" e "Rafiki" ainda mais preocupantes. O retrocesso soa pequeno, todavia, é muito mais que apenas um filme não sendo escolhido, é uma imposição de ideias retrógradas dizendo "quem vale aqui sou eu".


A protagonista de "Rafiki" é Kena, interpretada por Samantha Mugatsia, em seu primeiro papel. A diretora a conheceu em uma festa (!), convidando-a para estrear no Cinema logo como a estrela. Kena é filha de um candidato a política na periferia de Nairobi, e, enquanto se divide entre cuidar da mãe e do mercadinho do pai, conhece Ziki (Sheila Munyiva), filha do candidato rival, o que vai dificultar a aproximação das duas.

É a velha história que conhecemos desde que Romeu e Julieta existem: o melodrama de pombinhos que não podem ficar juntos pela rivalidade das famílias. O molde shakespeariano de "Rafiki" sai das terras italianas para o cerne da África e, mesmo sendo o clássico arquétipo do amor juvenil, explorado ao cansaço absoluto pela arte, possui ainda mais peso por se tratar de um romance lésbico.

A primeira grande impressão em "Rafiki" é seu visual. A obra de Kahiu deseja a celebração do Quênia, e pinta cada quadro com uma explosão de cores. Com um design de produção que mistura Wes Anderson com Spike Lee, há tenro cuidado na composição das cenas, com sacadas verdadeiramente engenhosas: o longa é quase inteiramente cor de rosa, porém, em cenas centradas nos personagens masculinos, a cor sai da tela. Só há vivacidade quando as mulheres dominam o ecrã.

"Rafiki" é contado a partir da visão de Kena, então os maiores desenvolvimentos acontecem ao redor da personagem. Entramos em sua vida, nos conflitos entre os separados pais e na maneira que a garota enxerga a própria sexualidade, completamente aprisionada pelo meio em que vive. Quando surge Ziki, ela não é muito mais que a interessante menina que é filha do outro candidato. A fita não busca um envolvimento por parte da plateia com o mesmo peso entre as duas partes, assim como em "Carol" (2015), quando intimamente conhecemos tanto Therese quanto Carol


E essa escolha narrativa é, na grande maioria das vezes, um problema. Para acreditarmos num romance, precisamos sentir a sintonia do casal, fomentada a partir do ponto que nos apegamos com ambos os envolvidos. Esse é um demérito de "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017), que coloca todo seu peso textual em cima de Elio, o que faz com que Oliver se mostre distante. Felizmente, "Rafiki" encontrou uma saída correta para amenizar os eventuais problemas.

Enquanto Kena é visualmente construída de maneira sóbria, nos moldes de tomboy, Ziki é o extremo oposto. As cores da fotografia são introduzidas na personagem, desde suas roupas até as enormes tranças coloridas. Ziki é imageticamente atraente, sedutora e impossível de passar despercebida. Toda essa composição proposital ajuda na hipnotização do público diante da garota, efeito fidedigno ao abatido em Kena, que nem consegue fingir sua fascinação por Ziki.

Uma escolha acertada da produção foi deixar de fora qualquer cena de sexo. Talvez pela idade das atrizes, talvez pela complexidade da abordagem, "Rafiki" prefere transformar aquele romance num conto de fadas: tudo é filmado com muita delicadeza, sem gratuidades, emoldurados por tons patéis. É um contraste muito bonito a pureza daquele microcosmo com toda a feiura do que habita do lado de fora, quando elas devem escolher entre a felicidade e a segurança.


O primeiro choque social entre a relação das protagonistas vem do fato de que elas são filhas de políticos rivais. Nenhuma das famílias se mostra favorável à união, e isso era quando ali rolava apenas amizade aos olhos de todos, o que reflete o título da obra: "rafiki" é "amigo" em swahili, a língua local, e designação dada aos casais homossexuais para fugir da proibição de serem quem são - os parceiros são sempre chamados de "amigos". A situação piora quando as fofoqueiras de plantão descobrem o romance, o que desencadeia na cena-chave do filme.

Kena e Ziki são espancadas e presas. O mais longe que "Rafiki" vai em termos de opressão, todo o momento é fomentador de um senso grotesco de injustiça. É (quase) o máximo que um sistema absurdo pode proporcionar, quando atos de violência são respaldados pelas leis. Na delegacia, as duas ainda são ridicularizadas pelos policiais, que não enxergam motivos para não humilhar aquilo que há de pior.  Os ritos após continuam a degradação: Ziki é mandada embora do país enquanto Kena é exorcizada - homossexualidade é considerada possessão demoníaca dentro do corpo cultural queniano. "Rakifi" se aproxima de "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017) como vozes modernas empenhadas em expor opressões femininas em solo africano.

Apesar de ser pungente nesse momento, é perceptível a impressão de que a película não vai até aonde deveria. Poderá ser além de satisfatória para o público alvo - adolescentes assim como suas personagens -, no entanto, plateias mais maduras sentirão falta de complexidades e aprofundamentos que não sejam tão facilmente desenrolados como os apresentados. São saídas que soam fáceis e sub-tramas que ficam pelo caminho - o garoto gay que sofre violência constante é super mal aproveitado, um exemplo que cerceia o alcance do todo.

"Rafiki" pode não exercer todo o potencial dramático que prometia, mas é uma exultação para o cinema LGBT pela doçura de sua abordagem, beleza de suas imagens e veracidade de seus temas. É uma das poucas obras que consegue tanto enaltecer quanto criticar um mesmo foco - no caso, a situação sócio-política do Quênia -, sem deixar de evocar todo o prisma feminista em meio de um local engolido pela miséria. Nem todas as tentativas de censura são capazes de impedir a explosão de liberdade da fita, que não abre mão de denunciar o que deve ser mudado, e, desta maneira, é um filme tão resistente quanto suas personagens. "Rafiki" nos recorda que os anseios femininos podem ir muito mais longe que a máxima "boas meninas se tornam boas esposas".

Crítica: “O Rei Leão” é um faraônico “Discovery Channel” sem alma e pertinência

Quando saiu o trailer de "O Rei Leão" (2019), o comentário mais repetido ao ponto de exaustão era como a galera estava pronta para chorar novamente no cinema. Entre esse extremo e o oposto, aqueles que nunca viram a primeira versão do filme - o clássico animado de 1994 -, lá estava eu, no meio desses polos.

A fita VHS verde fez, sim, parte da minha infância, porém eu nunca fui uma daquelas crianças arrebatadas pela magia Disney - sempre fui mais do terror e ficção-científica, muito cult desde pequeno. Então, assistir à releitura foi uma experiência mais objetiva, já que não havia um laço emocional pré-estabelecido - consegui acompanhar sem que a nostalgia embaçasse meus olhos. E a história é exatamente a mesma.

Scar (voz do maravilhoso Chiwetel Ejiofor) é irmão do rei das savanas africanas. Ele arma um plano para matar o próprio irmão, Mufasa (interpretado pelo lendário James Earl Jones, o Darth Vader de "Star Wars", 1977, reprisando seu papel na animação original), e dar o fim também em Simba (Donald Glover na versão adulta), príncipe e herdeiro do trono. Com o plano dando certo, ele reina com tirania, mas está no destino de Simba a coroa de seu povo.

Obviamente, se tratando de animais em cena, a questão da representatividade não funciona de modo convencional, contudo, é muito bom ver que o elenco principal é majoritariamente composto por atores negros - toda a família "real", por exemplo, o que se assemelha com "Pantera Negra" (2018), também evocando o trabalho negro de maneira diferenciada dentro do Cinema para as massas. A Disney, o maior conglomerado de cultura do mundo, está atento às demandas sociais e tem cada vez mais escalado atores negros em papéis de destaque - a nova Ariel de "A Pequena Sereia", por exemplo, está aí para provar.


E falando nela, a Disney já passou por diversas fases, encontrando seu apogeu na Era de Ouro, aberta por "Branca de Neve e os Sete Anões" em 1937. Depois de muitos altos e baixos, em 2009, com "A Princesa e o Sapo", começou a chamada Revival, colocando a marca de volta ao topo. O Neo-Renascimento se divide em duas vertentes: as animações computadorizadas, como o sucesso "Frozen: Uma Aventura Congelante" (2013), e os live-actions, readaptações de seus próprios clássicos, mas com carne e o osso.

Só nos últimos anos, os cinemas receberam uma enxurrada desses live-actions, encabeçados em 2010 pelo maior sucesso da produtora nessa vertente até o momento, "Alice no País das Maravilhas", seguindo por "Malévola" (2014), "Cinderela" (2015), "A Bela e a Fera" (2017), "Dumbo" (2019) e "Aladdin" (2019). "O Rei Leão" se apresenta como mais um desses exemplares, o que é uma mentira. A técnica utilizada pelo filme é a união de fotorrealismo com animação gráfica, ou seja, é uma animação de qualquer forma - os animais não foram filmados nas locações, é claro.

A escolha de produção visa expor o poder técnico da produtora: ela quer deixar claro a sua força dentro da Sétima Arte, e isso não pode ser contestado; as imagens de "O Rei Leão" são belíssimas. Com uma fotografia luminosa que abocanha a África, dá para duvidar da mentira criada por computador que são os animais, chocantemente reais. E o filme de Jon Favreau, que já dirigiu outro remake com o mesmo formato, "Mogli: O Menino Lobo" (2016), abre as portas do zoológico selvagem e não economiza na variedade de animais correndo pelos pastos ao céu aberto.


Todavia, essa escolha fundamental foi uma faca de dois gumes: a técnica escolhida pelo longa funciona em termos visuais, mas não de linguagem. Com a necessidade de serem verídicos, os bichos não possuem expressão; suas bocas se movem durante as falas, porém encerra por aí, o que oblitera a performance do personagem. Até lembrei dos filmes que realmente colocam animais diante da câmera - os descartáveis da "Sessão da Tarde" com cachorros entrando em confusões: os adestradores botam algo na boca do bicho que, mastigando, imita o movimento da fala.

Se eles estão felizes, tristes, animados ou com medo, apenas o tom de voz consegue transmitir, já que as feições dos animais são as mesmas. Isso inibe qualquer conexão com a plateia, vendo ventríloquos boa parte do tempo. O que salva é como os dubladores foram bem escolhidos; assisti à versão original, então não poderei explanar sobre a versão nacional. James Earl Jones emana poder em todas as cenas pela fortíssima voz, sem ofuscar a sóbria Sarabi de Alfre Woodard; o divertido Zazu de John Oliver, ótimo alívio cômico; e o antagonista unidimensional de Chiwetel Ejiofor.

Mas é Timão e Pumpa os donos do longa. A dupla, dublada por Billy Eichner e Seth Rogen, respectivamente, é hilária, super simpática e dá um sopro de frescor pelos diálogos divertidos e a revisitação do clássico "Hakuna Matata". Curiosamente, os dois são os personagens a possuírem o maior leque de expressões faciais - o longo rosto de Pumba está sempre com um sorriso e os minúsculos olhos de Timão brilham. Só que temos, claramente, um corpo estranho no meio das dublagens: Beyoncé.

Que Beyoncé é uma das maiores artistas que já abençoaram esse planeta, isso todos sabem, porém, seu trabalho como Nala é, dói dizer, medíocre. Sua performance não há um pingo de emoção, a única que fica perceptível as linhas do roteiro sendo declamadas em estúdio. Se enquanto canta não existe limitações, os diálogos convencionais emulam as expressões de sua leoa: vazia. E é óbvio que ela é capaz de muito mais - em "Dreamgirls" (2006) ela está bem confortável. O peso do seu nome, tanto no corpo de atores como produtora da trilha sonora, é chamariz efetivo para a obra, o que compensa apenas musicalmente - apesar de "Spirit" ter sido uma fraca escolha como carro-chefe do filme; "Better", como o próprio nome já diz, seria uma escolha melhor.


Por ser tão fiel ao filme de 94 (o adjetivo "fiel" não é um elogio no contexto em questão), as deficiências da história ficam ainda mais aparentes dentro desse "Globo Repórter" africano. O desenvolvimento de seus personagens nunca consegue criar ganchos que justifiquem suas ações. Scar, por exemplo, é absolutamente nada além do irmão invejoso; ele começa a fita com uma só faceta e nada é acrescentado. O mesmo acontece com o vilão de "Aladdin", porém, o corpo deste introduz profundidades dentro de Ja'Far que o retire do binarismo extremo que Scar não consegue fugir. As quase 2h de duração caminham muito pouco em termos de construção narrativa.

Com todos esses problemas, são as imagens de "O Rei Leão" que conduzem o trem. Por ser uma cópia quase exata do original - há vídeos comparando as cenas entre as duas versões e até vários enquadramentos são os mesmos -, o que vem como argumento de "preservação" da obra original vira detrimento da releitura, um elefante branco sem pertinência. É o mesmo efeito com o remake de "Psicose" de Gus Van Sant, lançado em 1988; literalmente feito quadro a quadro em comparação com o original de 1960, o filme deixa de ser um revival para se tornar uma cópia inferior. A única justificativa que ergue a existência de um remake, de gastar milhões para contar uma mesma história, é quando a nova versão a eleve, traga novidades, revise erros - "Suspiria" (2018) é um dos raros nomes a entrar na categoria de remakes bem sucedidos. "O Rei Leão" tem a vantagem da técnica, no entanto, fica por aí.

Sob o score gritantemente clichê de Hans Zimmer, que à essa altura já é um plágio de si próprio (todas as trilhas dele soam repetidas), a fita tenta extrair emoção nas cenas-chaves - a morte do Mufasa, por exemplo -, mas nada sai dessa fonte. Os fãs mais saudosos podem se dar por satisfeitos, contudo, olhando estritamente para o que é feito aqui, "O Rei Leão" é uma produção sem vida, mesmo com todo o esforço - detalhes microscópicos, sequências musicais cheias de adrenalina, lutas de leões e por aí vai.

"O Rei Leão" depende da nostalgia para fazer o motor funcionar, porque o que é entregue, motivado pelas próprias mãos, é rasteiro. Eco letárgico de qualquer episódio de "Discovery Channel", a película já começa errada quando se vende como live-action - aqui não há sinal nem vida nem de ação -, uma alegoria faraônica sem alma desesperada para repetir o sucesso de seu original. Beyoncé, cantando, nos pergunta: "você consegue sentir o amor hoje à noite?". A resposta é "não".

Crítica: “Morto Não Fala”, nosso “Invocação do Mal”, engrossa o mercado de terror nacional

Se o terror é um dos gêneros mais lucrativos em outros mercados, no Brasil é nicho. Ainda não temos uma cultura cinematográfica solidificada que foque na produção de nomes dentro do gênero, mas essa realidade está mudando. Estamos em meio a um boom de interesse da indústria pelo terror, e películas do gênero surgem cada dia mais, como "Um Ramo" (2007), "Trabalhar Cansa" (2011), "Quando Eu Era Vivo" (2014), "O Animal Cordial" (2018), "Virgens Acorrentadas" (2018) e "As Boas Maneiras" (2018) - e com certeza há mais, sem conseguir chegar na superfície das grandes distribuições.

Mesmo mesclando elementos do gênero ou indo com mais sede ao pote, ainda não tínhamos sido agraciados por um terror que esteja num patamar que o retire do puro Cinema B - o que há de mais comum, quando o horror cai na sátira ou trash, o que não é um demérito. Finalmente nossos problemas acabaram: "Morto Não Fala" está aqui para resolver essa questão.

Dirigido por Dennison Ramalho, com um currículo vasto dentro do gênero, o filme segue os passos de Stênio (Daniel de Oliveira, em mais uma boa performance para a carreira - vide "Aos Teus Olhos", (2018). Antes mesmo de o conhecermos enquanto pessoa, o conhecemos enquanto profissional: o homem é platonista noturno de um necrotério e possui o dom de falar com os mortos. Nas longas madrugadas de trabalho, ele conversa com os cadáveres, sabendo de suas histórias e quais os tortuosos caminhos os levaram até sua maca.


Obviamente, a fita não perde tempo tentando explicar como Stênio possui a habilidade, e isso não importa. Para minha surpresa, li diversos comentários cheios de reclamação sobre o filme não explanar isso, mas "O Sexto Sentido" (1999) por acaso dá a explicação de como o protagonista enxerga gente morta? Assim como na clara fonte de "Morto Não Fala", tal pontuação diminuiria o filme - não dá pra explicar de modo crível algo que é impossível. A suspensão da descrença é o mínimo que o filme pede.

No seio de uma grande metrópole, apesar de não ficar claro qual (me pareceu ser o Rio de Janeiro), o necrotério raramente está vazio. E, como terror nato, os mortos que chegam até Stênio não padeceram de causas naturais: ensanguentados e muitas vezes com partes faltando, o primeiro baque que abre as portas para o horror é a exposição dos corpos em ruínas, e a obra não poupa litros de sangue - o gore explícito pode revirar o estômago da plateia. As sequências com autópsias são fidedignas e conseguem arrepiar, aliando o body horror com o fantástico. É quase divertido acompanhar o protagonista dialogando com o cadáver enquanto costura sua caixa torácica.

Se é a violência que leva os defuntos até Stênio, o roteiro inteligentemente enfia suas garras no corpo social: a maioria dos mortos é negra, mais especificamente homens, marginalizados e periféricos. Vindouros de presídios, caídos por rivalidade de gangues ou por acidentes naturais sobre suas precárias moradias, "Morto Não Fala" vai à fundo da roda de extermínio que funciona no nosso país. Um deles, um homem que foi dedurado para a polícia, conta melancolicamente sobre sua árdua vida; o assassinato do pai realizado por ele mesmo e o irmão, visando proteger a mãe, vítima de abusos; e a forma como a miséria hereditária leva essas pessoas ao derradeiro fim. É como um vírus que delimita o prazo de validade dessa população.


Enquanto trabalha no corpo de um conhecido da região onde mora, Stênio descobre que sua esposa, Odete (Fabíula Nascimento, que aclamo sempre que aparece por aqui), está o traindo com o dono da venda da esquina, Jaime (Marco Ricca). Stênio então rapidamente levanta um plano: culpar Jaime pela morte do homem dedurado, indo até a favela e falando com o irmão do falecido, líder da gangue e sedento por vingança.

Inúmeras configurações do terror passeiam por toda a duração de "Morto Não Fala", contudo, o que une toda a produção de maneira sólida é o drama familiar. Bem verdade que "Morto Não Fala" possui um formato saturado - será se precisamos de ainda mais versões de espíritos bagunçando a vida dos vivos? Odete repudia o marido e sua medíocre vida, encontrando em Jaime a válvula de escape da conclusão doméstica que ela não esperava - o adultério alivia os filhos rebeldes, as contas acumuladas e o casamento falido. Situações que colocam o marido traído em posição de retaliação existem desde que o mundo é o mundo, porém, a fita encontra o sucesso da novidade ao mudar o passarinho que assovia na orelha do corno tal informação: agora é um cadáver.

Os rumos sofrem drásticos desvios quando, no momento que a morte encomendada de Jaime surge, Odete está com ele, o que também a leva ao assassinato. Mesmo Stênio não prevendo, o choque inicial dá lugar a uma lúgubre sensação de superioridade por parte do protagonista, que tortura psicologicamente a esposa, impotente diante do fato de que ele foi o culpado. A dinâmica entre Stênio e o corpo de Odete é fabulosa, o momento que a premissa básica do filme encontra maior força.


A partir de então, a vida do homem vira um inferno: usar informação dada por um morto para matar inocentes é maldição certeira. O espírito de Odete coloca o Satanás no chinelo ao passar a aterrorizar a própria família; é então que "Morto Não Fala" deixa de ser uma mistura de "Cadáver" (2018) com "Se7en: Os Sete Crimes Capitais" (1995) para virar "Invocação do Mal" (2013). São portas escancaradas, móveis saindo do lugar e personagens sendo arremessados por forças invisíveis, e não consigo lembrar de uma produção nacional que entre nesse formato, popularizado por Hollywood.

E não tome isso como um demérito: é interessantíssimo ver um filme brasileiro indo onde obras gigantes dominam e se saindo tão polido. Tanto em termos de linguagem como técnico, "Morto Não Fala" deve em nada aos inúmeros e malfadados filmes que se apropriam do sobrenatural enquanto filhotes das maiores produtoras do planeta, e vai mais longe, superando-os. E isso se deve ao cuidado do roteiro em sedimentar todos os caminhos antes de cair no eletrizante clímax, com demônios arrastando as pobres vítimas. "Morto Não Fala" é um terror que respeita o que há de mais elementar na arte, que é seu texto, o que o mantém fixo. Há, sim, fragilidades, principalmente quando cai no lado mais pipocão ou quando se torna demasiadamente expositivo, todavia, nada que abale irremediavelmente seu trabalho.

Um crítico internacional analisando "Morto Não Fala" com certeza não vai receber o mesmo impacto que um brasileiro; e não por motivos de regionalismos - o filme é deveras internacional, tanto que atualmente possui generosos 89% de aprovação no Rotten Tomatoes. Afirmo pois, para alguém aquém da nossa indústria, não existirá a mesma sensação de glória ao ver uma produção verde-e-amarelo no mesmo nível do que é lançado quase diariamente no quintal deles. Saindo vencedor no drama, no suspense e no terror, "Morto Não Fala" é uma revelação que engrossa as colunas de um gênero cada vez mais visado dentro de um país ainda tão monotemático.

Crítica: o Brasil do futuro de “Divino Amor” é um luminoso cabaré gospel

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Brasil, 2027. A sociedade tupiniquim caminhou para um sistema ultra-religioso, com a palavra de deus sendo a lei básica. Uma tabeliã, Joana (Dira Paes), vive com plenitude dentro do novo país, e usa de sua função para dificultar divórcios, afinal, o casamento é o que há de mais sagrado no mundo. Aliás, sua vida é quase plena: ela e o marido, Danilo (Julio Machado), há tempos tentam ter um filho, sem sucesso, a provação extrema do altíssimo.

"Divino Amor", novo filme de Gabriel Mascaro, diretor pernambucano do maravilhoso "Boi Neon" (2015), estreou em dois dos maiores festivais do planeta, Sundance e Berlim, saindo ovacionado de ambos: atualmente conta com incríveis 86 pontos no Metacritic, uma das maiores notas do ano. Junto com "Bacurau", vencedor do Festival de Cannes, temos dois fortíssimos nomes para representar o Brasil no Oscar 2019, caso o novo Ministério da Cultura não surte como nos últimos anos, indicando longas sem a menor chance em nome de um conservadorismo patético - "Aquarius" (2016) e "Benzinho" (2018) sendo boicotados, um crime para nossa cultura.


Por meio de uma infantil narração onipresente, o texto de "Divino Amor" coloca na mesa as regras desse Brasil gospel. A religião evangélica está agora presente em todos os cantos, incluindo em versão drive thru - o fiel chega com seu carro para uma rápida palavrinha com um pastor, que coloca um hino de louvor para fortalecer a fé. Os retangulares templos ficaram obsoletos, e as festividades agora são ao céu aberto, em shows entupidos de pirotecnia e música eletrônica a fim de saudar deus. Joana ama tudo isso.


É muito engenhosa a forma com que o roteiro finca as normas e dá as naturalidades para o que é normal dessa realidade tão distópica. E é impossível não lembrar da série "The Handmaid's Tale" (2017-presente), um também futuro estadunidense à base da religião; a grande diferença entre as duas obras é o foco óptico. Em "Handmaid's", June nos conduz por meio das ruas opressoras de sua vida, enquanto em "Divino Amor" é Joana a porta-voz, que, ao contrário de June, celebra o sistema.

Não existe uma noção de resistência ou revolução dentro de "Divino Amor": tudo funciona (quase) dento da perfeição almejada. A película não está interessada em gerar uma sensação de quebra, de luta, e sim questionar como algo tão radical é prejudicial até mesmo para aqueles que tanto gozam de seus prazeres. Notem: por ser um sistema baseado no evangelho, todas as configurações são heterossexuais. Não existe o menor resquício de homossexualidade, com a união do homem e mulher sendo irretocável.

Fica bem claro que a fita não está, em segundo algum, batendo palmas para o que surge no ecrã, pelo contrário. Há uma pungente ironia que dosa perfeitamente o ridículo e o desconfortável, entrando cada vez mais nas insanidades desse Brasil onde a burocracia é sagrada. E Joana faz tudo o que pode para dificultar os divórcios, manipulando, mentindo e omitindo detalhes para que os casais permaneçam unidos diante dos olhos do Senhor - e ela guarda com imenso amor uma estante cheia de fotos dos casais que ela conseguiu evitar a separação. Deus está lá em cima em festa.


E, dentro desse governo, existe a Divino Amor, uma seita (essa palavra não é dita, todavia, é a melhor definição para aquilo) que funciona como ritual de inicialização dos casais nas escrituras. Há dinâmicas de grupo, leitura da palavra e procedimentos menos ortodoxos. Joana e Danilo fazem trocas de casais com os novatos, e a erótica câmera do filme não tem pudores em capturar o inquietante swing divino sob luzes neon - curiosamente, vários casais saíram da sessão em que eu estava já na primeira cena de sexo. Puritanos, vejo bem.

Esse é o novo Brasil, um cabaré gospel. O ethos construído pelo roteiro une o conservadorismo hipócrita com os pecados da carne, convenientemente convertidos em dádivas quando o lema da Divino Amor é "Quem ama divide". O fundamentalismo não tem vergonha ao se arvorar do bacanal como veículo de encontro com deus, porém não se engane: o bordel instaurado é muito bem controlado, com cada corpo e status social sendo verificado por máquinas nas entradas de todas as instituições, no melhor estilo "Black Mirror" (2011-presente).

Outra grande dualidade do longa é a configuração do relacionamento da protagonista: matriarcal, é ela quem sai de casa para trazer o sustento, enquanto o marido trabalha na pequena loja de flores que fica onde os dois moram. É mais uma forma de conservadorismo que une o passado e o futuro, que acolhe traços opressores sem deixar de soar moderneco - quando lhe convém, é claro. A culpa também é do marido do insucesso da procriação, mesmo se submetendo a diversos (e constrangedores) procedimentos de fertilização - in vitro é fora de questão, coisa do diabo. A semente dada por deus deve ser plantada diretamente na mulher.

É aí que Joana finalmente engravida. Aos prantos, ela ora com fervor, enchendo o todo poderoso de agradecimentos pela graça alcançada. Só que, ao extrair o DNA do feto, ele não é compatível com Danilo. A melhor cena da obra, a protagonista vai se apavorando cada vez que digita o nome dos vários homens com quem transou na Divino Amor, e todos incompatíveis. Sua única solução é óbvia: o filho no seu ventre é a volta do Messias.


O grande sucesso de "Divino Amor", um estranho drama que mistura ficção-científica com humor negro, é provido pela linguagem escolhida por Gabriel Mascaro. Toda a bizarrice (que não é pouca) é conduzida de maneira fluida por meio dos planos sequências que não quebram as cenas, quase como se a trama estivesse numa câmera lenta que combina magistralmente com a áurea sacra do filme.

A união de luzes naturais, em momentos que mal conseguimos ver o que está acontecendo, com luzes artificiais coloridíssimas, geram imageticamente esse futuro desconcertante que cega o fiel - e em diversos momentos me remetia a "Demônio de Neon" (2016) quando o filme de Mascaro adotava uma atmosfera onírica pelas cores e músicas narcotizantes. Dira Paes realiza uma performance competente quando doa seu corpo por inteiro, sem jamais soar caricata - talvez por ser um peão que reforça seu meio. É belo ver como a fita a enquadra, muitas vezes em contra-luz, como se deus estivesse banhando-a em toda a sua glória.

Apesar da era de resseção cultural tupiniquim, estamos emergindo através do Cinema, com nomes cada vez mais criativos ao unirem ineditismos com críticas sociais. Um efeito colateral benigno das pressões de um país em crise, temos, por exemplo, o fabuloso "As Boas Maneiras" (2018), que também escorre bizarrices para estudar nosso país - o mesmo que aconteceu na Grécia com a chamada "Estranha Onda Grega": movimento cinematográfico que surgiu com sua depressão econômica - vide "Dente Canino" (2009), "Chevalier" (2015) e "Piedade" (2018). Talvez estejamos diante de um novo apogeu.

O mais assustador de "Divino Amor" é sua consonância com o agora do nosso país: cada vez mais reacionário e com a bancada evangélica em plena força. O exagero do ufanismo religioso é prato cheio dentro da arte, e a película a escancara acidamente, na mesma medida em que alerta o avanço do fanatismo. Não é difícil vislumbrar essa realidade que tem a certidão de casamento como o principal documento, afinal, já está sendo valorizada a procriação e a família normativa na nossa pequenina distopia, sob o lema "deus acima de tudo". Num país que parece não haver regras, justiça e equidade, o cabaré sagrado de "Divino Amor" soa preocupantemente plausível.

Crítica: “Toy Story 4” é reciclado como os materiais que deram vida ao Forky

Eu nunca fui desses que conta o quanto chorou assistindo a franquia "Toy Story" - principalmente com "Toy Story 3" (2010). Mesmo com seus momentos emocionantes, nunca consegue me conectar verdadeiramente com a saga de Woody e Buzz Lightyear; o que não quer dizer que a franquia seja ruim. Com exceção de "Toy Story 2" (1999), o único longa falho do universo, havia muito a ser apreciado nas aventuras dos brinquedos.

O terceiro exemplar foi um fechamento incrível para a história, o laço em um arco que não precisava mais ser desfeito. O capitalismo, é claro, discordava: "Toy Story 4" vinha sendo requisitado pelo público desde o lançamento do terceiro, até ser confirmado em 2014. Cinco anos após, cá estamos.

Com a ida de Andy à faculdade, os brinquedos ficam na mão de Bonnie, que faz (literalmente) um novo amigo: Forky, um boneco colado a partir de um garfo encontrado no lixo. A menina se afeiçoa rapidamente ao brinquedo, que não aguenta passar muito tempo longe da lata de lixo, para o desespero de Woody: ele não pode permitir que Bonnie fique sem seu novo melhor amigo.


E o enredo da película é basicamente esse: a corrida maluca de Woody atrás de Forky, que vai se meter em inúmeras encrencas e arrastar todos os outros. "Toy Story 4" existe graças ao garfinho: desde os materiais promocionais, que colocavam o brinquedo no palco principal, até o fio condutor do roteiro, Forky desencadeia literalmente tudo. Só que não como protagonista: o Frankenstein de plástico criado por Bonnie é mero coadjuvante, com Woody servindo como porta-voz da trama.

É claro que o boneco dublado por Tom Hanks dá vida à franquia - tudo começou com ele -, entretanto, "Toy Story 4" tem um erro elementar visto em "Toy Story 2": a história foca demais no cowboy, colocando os outros como peões aleatórios que surgem na tela apenas nos momentos em que são necessários para empurrar o filme. Buzz Lightyear, coitado, é quase esquecido pelos roteiristas, que se desdobram para inserir o astronauta na trama de maneiras nada criativas - como puro requisito, já que ele não poderia ficar de fora.

O melhor do longa aparece quando Forky é capturado por Gabby Gabby, uma maniqueísta boneca que mora num antiquário e sonha em ser adotada por uma criança. Ela mantém o garfo em cativeiro, sob a vigilância de suas marionetes/seguranças, a fim de trocá-lo pela caixa de voz de Woody - Gabby acredita que é sua caixa defeituosa a responsável por fazer com que ela não seja escolhida entre os outros brinquedos.


Concomitantemente, Woody também tenta reencontrar Bo Peep, a boneca pastora que serve como seu par romântico, que, como mostra o prólogo, foi levada embora depois da ida de Andy à faculdade. Uma justificativa nada sutil de explicar o motivo da boneca não ter aparecido em "Toy Story 3", a sub-trama funciona quando quebra fronteiras de gênero - ela, agora uma boneca livre, vive de modo selvagem, quase uma Furiosa de "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015). Bo não tem cerimônia em dizer que é ela a liderar a expedição de salvamento de Forky, e Woody deve apenas se calar e aceitar. Gurl power, sim senhor.

Essa evocação do feminismo é um acréscimo mais que bem-vindo dentro da fita, ainda mais quando vemos que seu público alvo é o infanto-juvenil, bombardeado por culturais nada igualitárias. Porém, o filme perde uma enoooorme chance de ser verdadeiramente transgressor ao manter a ordem boneca-é-brinquedo-de-menina. Gabby, que poderia facilmente terminar nos braços de um garotinho, é adotado por uma chorosa menina; e seu sonho sempre foi terminar com vestidinhos, babados e festas do chá. O padrão nunca é rompido, talvez pelo medo das camadas mais reacionárias que fiscalizam qualquer aresta fora do lugar em obras infantis - "Frozen 2" (2019) nem estreou e a sexualidade de Elza já causou uma turba.

É um pouco assustador lembrar que o primeiro nome da franquia foi lançado em 1995, quase 25 anos atrás, e não só evoluções de discursos foram aprimorados, acompanhando as reivindicações por igualdades dentro do Cinema: a técnica também. De gráficos computadorizados, "Toy Story 4" desfila imagens belíssimas e ultra-fidedignas; as composições de cenas e até os detalhes das superfícies de plástico dos brinquedos são de cair o queixo - e a fotografia capta tudo com planos abertos e closes quase microscópicos. Do primeiro ao quarto, fazemos uma viagem no ágil crescimento tecnológico da Sétima Arte.


Como não poderia ficar de fora, o humor do roteiro é delicioso. Forky, que repete inúmeras vezes aos risos "Eu sou um lixo!", é o melhor do que podemos retirar de uma cultura alimentada à base de memes da internet. No entanto, quem rouba a cena é a dupla Ducky & Bunny, o pato e coelho de pelúcia do parque de diversões. Ambos, com suas coberturas fofíssimas, são quase mafiosos de rua que sugerem atacar velhinhas e caem na porrada quando necessário. Spin-offs à vista, com certeza.

Mas aí o filme chega ao seu fim e.........o que foi subvertido? O que a franquia ganha? Qual a função de abrir um enredo que já havia sido encerrado? "Toy Story 4", além de pouco interessante, é um apêndice, sem grandes serventias dentro da linha narrativa da franquia. De fato é bem superior ao pior nome dos quatro - o segundo -, mas longe de glórias e belezas anteriores, não casando com sucesso a nostalgia e novidades.

É difícil um filme com a marca Pixar ser ruim, e, mesmo não pendurando no pescoço esse rótulo, "Toy Story 4" é quase tão descartável e reciclado quanto os materiais que deram vida ao Forky. Suas sub-tramas engenhosas, como o feminismo e até doação de órgãos, não são o suficiente para ficarem no nível do melhor da saga ou de outras obras que possuem o mesmo mote, como "Uma Aventura LEGO" (2014) e seus primos. Reabertura desnecessária de algo bem finalizado, a roda do capitalismo não se conteve e sua bilheteria já ultrapassou meio bilhão de dólares. O brinquedo do garfinho, inclusive, está sendo vendido pela bagatela de R$ 130 nas melhores lojas.

Crítica: “Annabelle 3” foi lançado para render spin-offs com todos os novos demônios

Eu já perdi as contas de quantas vezes fui chamado de "hater" quando a franquia "Invocação do Mal" (2013-presente) entrou no assunto. De fato, a grande maioria dos exemplares saídos desse universo é uma tristeza, do patético filme original - que derrota demônios com pensamentos felizes - até seus spin-offs, o último sendo o fraco "A Maldição da Chorona" (2019).

Mas, como amante inveterado do terror, sempre acompanho os passos desse mundinho criado por James Wan - até porque, como crítico, é importante assistir aos grandes nomes da indústria para poder criar um contexto de produção moderna. Dos sete longas lançados, apenas um consegue sair do poço de mediocridade: "Annabelle 2: A Criação do Mal" (2017), que mostra os primórdios da possessão da boneca mais endiabrada da Sétima Arte.

Antes de mais nada, dentro de todas as ramificações da franquia, nunca enxerguei motivos sólidos para a áurea de mistério ao redor de Annabelle - que já possui mais filmes que a saga original. Ao contrário da Freira, da Chorona e até do Homem-Torto (que vai ganhar um filme solo), a boneca é nada visualmente interessante. Sentada imóvel, não existe uma dinâmica imagética, uma composição visual, apenas um objeto de cena sem vida que se mexe ocasionalmente de maneira artificial. Propulsora de eventos sobrenaturais, este é um fio condutor sem um apelo cinematográfico - comercial, sim, vide o sucesso das bilheterias dos três filmes.

Pois bem, pouco tempo após "A Maldição da Chorona", o universo já engata "Annabelle 3: De Volta Para Casa", o primeiro capítulo da relação da boneca com Ed (Patrick Wilson) e Lorraine Warren (Vera Farmiga). A presença do casal na tela é combustível efetivo para manter o interesse, afinal, eles são o cerne do universo - tudo começou por meio de seus olhos. A fita já é aberta com eles levando a boneca para sua casa e a trancando em uma caixa sagrada, e a produção não perde tempo em usar as artimanhas que cunharam seu sucesso: os jump-scares.


Dirigido e roteirizado por Gary Dauberman - co-roteirista de "It: A Coisa" (2017) -, é perceptível que há certos cuidados nas cenas de sustos, desde a fotografia, montagem e trilha-sonora - como a bela sequência da noiva andando ao redor do quarto, mesmo sendo uma cópia de um momento de "Invocação do Mal 2" (2016) - , todavia, se o objetivo era assustar, "Annabelle 3" fracassa: não existe medo à vista. Talvez pelo calejamento após tantos filmes ou por construções pobres do longa, a atmosfera da película jamais consegue arrepiar.

E isso, se colocado na ponta do lápis, não é lá um grande demérito: não há necessidade de apavorar completamente a plateia para um filme de terror ser competente. O problema de "Annabelle 3" reside em seu plot: a obra inteira se passa em apenas um dia. A abertura com os Warren dá esperança pela familiaridade bem-vinda, mas eles saem de cena rapidamente, já que devem investigar um caso. Assim, deixam a filha, Judy (Mckenna Grace, que atua muito para a idade), com a babá, Mary Ellen (Madison Iseman), as fatídicas protagonistas. Quando a melhor amiga de Mary, Daniela (Katie Sarife), aparece e liberta Annabelle, a noite será a pior da vida das três.

Uma das belezas do roteiro de Dauberman é a maneira como os personagens são desenvolvidos: por possuir uma faixa de tempo pequena, vemos looongas sequências que costuram suas vítimas - o mesmo que acontece em "It" e uma das maiores raridades dentro do terror, irresponsável em moldar o que há de mais importante, que são seus personagens.


Só que, lá pela metade do segundo ato, ao olhar no relógio, nada havia acontecido. Batendo 1h de filme, o plot deu passos curtíssimos e poucas coisas estavam à frente do início da duração. "Annabelle 3" peca no prisma oposto de seus concorrentes: ao invés de correr e atropelar seus acontecimentos, arrasta violentamente a trama a ponto de o tédio se instalar.

James Wan, o produtor de toda a saga, revelou que o filme seria um "Uma Noite no Museu" do terror, e a promessa não poderia ser mais acertiva: Annabelle sai possuindo todos os artefatos do grande porão dos infernos do Warren. São macacos de brinquedo e armaduras de samurai que ganham "vida" para assustar as pobres meninas - e sim, na tela é tão involuntariamente cômico como escrito aqui. Existem boas ideias ali, como a televisão que prevê o futuro, entretanto, o desespero de atirar para todos os lados ali é mais fraco ainda quando não existe retorno - e tem até um demônio em forma de lobisomem, que não sai do pé do crush da babá..............

E, assim como quase todos os filmes do universo, há brincadeiras (no sentido literal da palavra) que, antes divertidos, se tornam diabólicos - como o jogo das palmas no filme original. A marca jameswanística é viciada nisso, e não fica de fora em "Annabelle 3" com o holofote colorido (que rende a melhor cena de toda a empreitada) e o jogo de cartas. Só que esse formato, reciclado filme após filme, também pode ser um bloco que ajuda a diminuição do saldo geral, afinal, o filme segue a mesma cartilha de vários outros. É tudo muito previsível.


Uma das vantagens aqui é glória quase desconhecida na franquia: seu roteiro não é imbecil. Claro, há saídas ou escolhas questionáveis - a libertação da Annabelle por Daniela não é tão consistente -, contudo, mesmo com fragilidades, as burrices completas inexistem no texto. Nenhum demônio é vencido por ter seu nome gritado nem o sangue de Cristo apareceu para salvar o dia (?). Tudo é, dentro de suas limitações, correto.

Então o filme chega ao fim e óbvio está na nossa cara: os 106 minutos não servem para coisa alguma. Literalmente há nada a ser acrescentado dentro da linha temporal, pois o roteiro começa e termina exatamente no mesmo lugar e, caso não existisse, alteração nenhuma seria sofrida pela franquia. É fato que, só por não subestimar a inteligência do espectador, o longa garante a sessão, mas "Annabelle 3" é vazio.

De uma forma bem estranha, "Annabelle 3" ainda é um dos melhores (ou menos piores) nomes do universo "Invocação do Mal", o que ilustra o nível baixo dessa saga fast-food: de qualidade ruim e cheia de gordura, mas feita rapidamente e apetitosa para os olhos. "Annabelle 3" nada mais é que um catálogo com vários novos demônios sendo expostos aleatoriamente, prontíssimos para render ainda mais spin-offs e, claro, aumentar os bolsos de seus produtores, que já arrecadaram mais de U$ 1 bilhão em bilheteria.

Para os viciados em listas (como eu), ordem de preferência da franquia "Invocação do Mal": Annabelle 2 > Annabelle 3 > Invocação do Mal 2 > A Maldição da Chorona > Invocação do Mal > Annabelle > A Freira.

Crítica: “Fora de Série” fortalece o coming-of-age voltado às vozes femininas

Qualquer pessoa que viva no mundo globalizado e consuma material dos EUA, já deve ter percebido como a escola - ou, no caso deles, o high school - é terreno infinitamente fértil na cultura. São filmes e séries aos montes que focam nesse período específico da passagem de (quase) todas as pessoas. Apesar da maioria, querendo ou não, soar demasiadamente parecida, há pérolas icônicas saídas do sub-gênero ao longo das décadas, como "Clube dos Cinco" (1985), "As Patricinhas de Beverly Hills" (1995) e, o maior de todos, "Meninas Malvadas" (2004).

Até mesmo aqui no Brasil temos exemplos, afinal, "Malhação", que estreou em 1995, está no ar até hoje desbravando os dramas da adolescência. O que devemos levar em conta é que esse sub-gênero é majoritariamente voltado na chamada "revolução dos nerds": a vingança dos excluídos ao estarem no palco principal. Com o maior exemplo na cultura pop atual sendo a série "The Big Bang Theory" (2007-19), há uma incrível leva de produções que buscam focar dos dilemas femininos, os "Superbad: É Hoje" (2007) ao contrário.

Mais curioso ainda, é que, desde 2016, virou anual o lançamento desse tipo de filme: coming-of-ages que focam na emotiva e realística vida de protagonistas femininas (e que possuem as mesmas paletas de cores e cenas-chaves em piscinas!); coincidência ou não, podem continuar saindo: "Quase 18" (2016), "Lady Bird" (2017), "Oitava Série" (2018) e o novíssimo "Fora de Série" (2019), a estreia de Olivia Wilde na cadeira de direção.


Com exceção de "Oitava Série", todos os outros são dirigidos por mulheres (o que não é um demérito para "Oitava", o melhor entre os quatro); "Fora de Série" vai ainda mais longe, com todas as roteiristas sendo mulheres, além da maioria das produtoras. O filme segue os últimos passos de Molly (Beanie Feldstein, que também estrela "Lady Bird") e Amy (Kaitlyn Dever) na escola. Pretes a entrar na universidade, Molly tem orgulho de ser uma aluna exemplar, daquelas que abdicou de todas as loucuras da fase para ficar em casa estudando. Com a matrícula pronta em uma das maiores universidades do país, a garota não é sutil em esfregar este fato na cara dos bagunceiros que, segundo ela, não terão futuro; só que, para seu desespero, eles também vão para universidades tão grandes quanto a dela.

Molly então arrasta Amy para a última noite de escola, planejando irem à maior festa da classe, algo inédito na vida de ambas, a fim de compensar o tempo perdido presas em lições de casa. Essa trama em específica, a de nerds pirando o cabeção com bebida e música eletrônica para estarem no mesmo patamar da galera descolada, é nada nova: o delicioso "Projeto X" (2012) é inteiramente sobre isso. A magia de "Fora de Série" está numa discussão que qualquer um que cresceu dentro desse mundinho "CDF" vai se identificar.


Como lidar quando nos esforçamos violentamente em busca de um objetivo e vemos pessoas que não fazem metade do que fazemos conseguirem o mesmo? Você passa a semana estudando para um prova e aquele colega de classe que mal aparece na aula tira uma nota maior que a sua; ou você arrasando no trabalho e é o colega da firma que sempre chega atrasado a ganhar a promoção que você queria. Tal discussão é riquíssima dentro do gênero - e basicamente inédita, não lembro de filmes que abram o tema de maneira tão firme.

O primeiro terço da película é a construção e intimidade do público com as protagonistas, e é aqui que habitam os melhores diálogos. Seja pela simpatia contagiante de Molly, interpretada brilhantemente por Feldstein; à serenidade de Amy, uma lésbica em início de vida da atividade sexual, a dupla rende momentos hilários - a cena do panda, meu deus. É importantíssimo também, enquanto percorremos pelo corpo de personagens, ver o cuidado em dar uma larga gama de diversidade em atores e composições: temos todas as cores, tamanhos e sexualidades dentro de um contexto absolutamente crível, evocando a pluralidade que nos é natural.

O meado do longa é resumido pela corrida das meninas em busca do endereço da tal festa, e é aí que o bonde desanda. O ritmo da obra dá uma estancada brusca, com muitos vai-e-vens sem nunca chegar na tal festa; e há blocos de cenas em situações diferentes - como o encontro no barco, a pizzaria e a murder mystery party -, com a maioria delas sendo insossa. Não há o frescor do início e nem a química incontestável da dupla dinâmica consegue alavancar a morosidade - há uma sequência em que Molly e Amy, sob efeito de drogas, se enxergam como bonecas e, apesar de pontuações importantes sobre a padronização dos corpos, é chata demais.


Então elas finalmente chegam na tão almejada festa. O texto da fita é um longo (até demais) caminho em busca de tal objetivo, e ele não faz jus à expectativa. Lembrando de "Projeto X", que também vai passo a passo em busca da festa perfeita, "Fora de Série" empalidece quando não entrega momentos incríveis ou memoráveis ou emocionantes ali no fatídico evento. Existem resoluções comoventes e próximas do público, todavia, com um início tão promissor, não dá para abandonar a sensação de que o filme decresce.

O maior problema de "Fora de Série" é esquecer completamente o que havia de melhor em seu pontapé: o tal estudo sobre esforços diferentes renderem os mesmos objetivos. Isso serve apenas para motivar Molly a cair na noitada, sendo deixado de lado pelo resto do longa, o que é uma pena, já que garantiria um diferencial de todos os outros coming-of-ages que não saltam a superfície do ordinário.

No entanto, tais problemas não são o suficiente para derrubar a produção. Não dá para negar que o filme não mergulha em construções que não sejam tão comuns, porém, sua principal meta é alcançada: abraçar cinematograficamente cada garota que se enxergar na tela. A obra não é tímida em gerar um sentimento de sororidade, exalado pela dupla protagonista ao passar a duração inteira vomitando elogios uma à outra. Nessa fase tão complexa, é um louvor o roteiro evocar a auto-estima de meninas nada dentro do padrão de formas tão criativas. Sujeitas à tantas pressões, Molly e Amy são uma unidade de parceria absoluta que, apesar dos desentendimentos, estarão ali sempre, prontas para dar apoio.

"Fora de Série" é mais uma produção que fortalece o cinema que dá voz às garotas, mesmo não se levando tão a sério - e este é um dos charmes do filme, a forma como tantos dramas são lidados com humor e coração. As competências em diversos setores (a trilha sonora é fenomenal) fazem com que a película esteja acima de um "Sessão da Tarde", mesmo fazendo o mesmo processo de transformar excluídos em maneiros. Pode não ser um "Lady Bird" ou um "Oitava Série", que empurram suas discussões mais profundamente, contudo, "Fora de Série" é sessão divertida que acrescenta a um molde pra lá de cansado.

P.S.: o diálogo sobre a Cardi B deve ser protegido a todo o custo.

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