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Crítica: “Morto Não Fala”, nosso “Invocação do Mal”, engrossa o mercado de terror nacional

Divertido como terror, competente como drama, "Morto Não Fala" é um sofro de ar fresco no mercado brasileiro
Se o terror é um dos gêneros mais lucrativos em outros mercados, no Brasil é nicho. Ainda não temos uma cultura cinematográfica solidificada que foque na produção de nomes dentro do gênero, mas essa realidade está mudando. Estamos em meio a um boom de interesse da indústria pelo terror, e películas do gênero surgem cada dia mais, como "Um Ramo" (2007), "Trabalhar Cansa" (2011), "Quando Eu Era Vivo" (2014), "O Animal Cordial" (2018), "Virgens Acorrentadas" (2018) e "As Boas Maneiras" (2018) - e com certeza há mais, sem conseguir chegar na superfície das grandes distribuições.

Mesmo mesclando elementos do gênero ou indo com mais sede ao pote, ainda não tínhamos sido agraciados por um terror que esteja num patamar que o retire do puro Cinema B - o que há de mais comum, quando o horror cai na sátira ou trash, o que não é um demérito. Finalmente nossos problemas acabaram: "Morto Não Fala" está aqui para resolver essa questão.

Dirigido por Dennison Ramalho, com um currículo vasto dentro do gênero, o filme segue os passos de Stênio (Daniel de Oliveira, em mais uma boa performance para a carreira - vide "Aos Teus Olhos", (2018). Antes mesmo de o conhecermos enquanto pessoa, o conhecemos enquanto profissional: o homem é platonista noturno de um necrotério e possui o dom de falar com os mortos. Nas longas madrugadas de trabalho, ele conversa com os cadáveres, sabendo de suas histórias e quais os tortuosos caminhos os levaram até sua maca.


Obviamente, a fita não perde tempo tentando explicar como Stênio possui a habilidade, e isso não importa. Para minha surpresa, li diversos comentários cheios de reclamação sobre o filme não explanar isso, mas "O Sexto Sentido" (1999) por acaso dá a explicação de como o protagonista enxerga gente morta? Assim como na clara fonte de "Morto Não Fala", tal pontuação diminuiria o filme - não dá pra explicar de modo crível algo que é impossível. A suspensão da descrença é o mínimo que o filme pede.

No seio de uma grande metrópole, apesar de não ficar claro qual (me pareceu ser o Rio de Janeiro), o necrotério raramente está vazio. E, como terror nato, os mortos que chegam até Stênio não padeceram de causas naturais: ensanguentados e muitas vezes com partes faltando, o primeiro baque que abre as portas para o horror é a exposição dos corpos em ruínas, e a obra não poupa litros de sangue - o gore explícito pode revirar o estômago da plateia. As sequências com autópsias são fidedignas e conseguem arrepiar, aliando o body horror com o fantástico. É quase divertido acompanhar o protagonista dialogando com o cadáver enquanto costura sua caixa torácica.

Se é a violência que leva os defuntos até Stênio, o roteiro inteligentemente enfia suas garras no corpo social: a maioria dos mortos é negra, mais especificamente homens, marginalizados e periféricos. Vindouros de presídios, caídos por rivalidade de gangues ou por acidentes naturais sobre suas precárias moradias, "Morto Não Fala" vai à fundo da roda de extermínio que funciona no nosso país. Um deles, um homem que foi dedurado para a polícia, conta melancolicamente sobre sua árdua vida; o assassinato do pai realizado por ele mesmo e o irmão, visando proteger a mãe, vítima de abusos; e a forma como a miséria hereditária leva essas pessoas ao derradeiro fim. É como um vírus que delimita o prazo de validade dessa população.


Enquanto trabalha no corpo de um conhecido da região onde mora, Stênio descobre que sua esposa, Odete (Fabíula Nascimento, que aclamo sempre que aparece por aqui), está o traindo com o dono da venda da esquina, Jaime (Marco Ricca). Stênio então rapidamente levanta um plano: culpar Jaime pela morte do homem dedurado, indo até a favela e falando com o irmão do falecido, líder da gangue e sedento por vingança.

Inúmeras configurações do terror passeiam por toda a duração de "Morto Não Fala", contudo, o que une toda a produção de maneira sólida é o drama familiar. Bem verdade que "Morto Não Fala" possui um formato saturado - será se precisamos de ainda mais versões de espíritos bagunçando a vida dos vivos? Odete repudia o marido e sua medíocre vida, encontrando em Jaime a válvula de escape da conclusão doméstica que ela não esperava - o adultério alivia os filhos rebeldes, as contas acumuladas e o casamento falido. Situações que colocam o marido traído em posição de retaliação existem desde que o mundo é o mundo, porém, a fita encontra o sucesso da novidade ao mudar o passarinho que assovia na orelha do corno tal informação: agora é um cadáver.

Os rumos sofrem drásticos desvios quando, no momento que a morte encomendada de Jaime surge, Odete está com ele, o que também a leva ao assassinato. Mesmo Stênio não prevendo, o choque inicial dá lugar a uma lúgubre sensação de superioridade por parte do protagonista, que tortura psicologicamente a esposa, impotente diante do fato de que ele foi o culpado. A dinâmica entre Stênio e o corpo de Odete é fabulosa, o momento que a premissa básica do filme encontra maior força.


A partir de então, a vida do homem vira um inferno: usar informação dada por um morto para matar inocentes é maldição certeira. O espírito de Odete coloca o Satanás no chinelo ao passar a aterrorizar a própria família; é então que "Morto Não Fala" deixa de ser uma mistura de "Cadáver" (2018) com "Se7en: Os Sete Crimes Capitais" (1995) para virar "Invocação do Mal" (2013). São portas escancaradas, móveis saindo do lugar e personagens sendo arremessados por forças invisíveis, e não consigo lembrar de uma produção nacional que entre nesse formato, popularizado por Hollywood.

E não tome isso como um demérito: é interessantíssimo ver um filme brasileiro indo onde obras gigantes dominam e se saindo tão polido. Tanto em termos de linguagem como técnico, "Morto Não Fala" deve em nada aos inúmeros e malfadados filmes que se apropriam do sobrenatural enquanto filhotes das maiores produtoras do planeta, e vai mais longe, superando-os. E isso se deve ao cuidado do roteiro em sedimentar todos os caminhos antes de cair no eletrizante clímax, com demônios arrastando as pobres vítimas. "Morto Não Fala" é um terror que respeita o que há de mais elementar na arte, que é seu texto, o que o mantém fixo. Há, sim, fragilidades, principalmente quando cai no lado mais pipocão ou quando se torna demasiadamente expositivo, todavia, nada que abale irremediavelmente seu trabalho.

Um crítico internacional analisando "Morto Não Fala" com certeza não vai receber o mesmo impacto que um brasileiro; e não por motivos de regionalismos - o filme é deveras internacional, tanto que atualmente possui generosos 89% de aprovação no Rotten Tomatoes. Afirmo pois, para alguém aquém da nossa indústria, não existirá a mesma sensação de glória ao ver uma produção verde-e-amarelo no mesmo nível do que é lançado quase diariamente no quintal deles. Saindo vencedor no drama, no suspense e no terror, "Morto Não Fala" é uma revelação que engrossa as colunas de um gênero cada vez mais visado dentro de um país ainda tão monotemático.

disqus, portalitpop-1

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