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Os 100 melhores filmes da década (Parte 1)


A atual década foi emblemática na minha vida: comecei em 2010 a me dedicar à Sétima Arte, então acompanhei de perto os rumos que a arte tomou no período. Foram centenas de filmes vistos e aqui listo (ou tento listar) meus 100 filmes favoritos da década. É claro, fazer uma lista definitiva beira a impossibilidade: segundo o Letterboxd, maior banco de dados de Cinema do mundo, foram quase 159 mil filmes lançados nos últimos 10 anos (quase o dobro da década anterior), ou seja, humanamente impossível assistir a todos.

Todos os anos, sempre busquei assistir aos principais filmes e, claro, buscar pérolas que passassem longe da grande rede de distribuição, afinal, aquele filme da Zâmbia que mal vê a luz do sol é capaz de ser muito melhor que um blockbuster hollywoodiano - e sempre afirmei que é papel da crítica dar luz a filmes que não possuem o dinheiro para chegar tão longe.

Os critérios de seleção da lista foram os seguintes: filmes com estreias em solo brasileiro de 2010 a 2019 - seja cinema, Netflix e afins -, ou seja, haverá nomes com a data de 2009 que só chegaram aqui no ano seguinte, assim como terá filmes de 2019 indo para a próxima década; ou que chegaram na internet sem data de lançamento prevista, caso contrário, seria impossível montar uma lista coerente, tendo em vista a dinâmica do mercado no nosso país. Importante pontuar que aqui há filmes que estreiam no comecinho de 2020, porém já entram aqui por ter distribuição limitada ainda em 2019. E não se preocupe, todos os textos são livres de spoilers para não estragar sua experiência. Aqui está a lista com os 100 no Letterboxd para você ver quantos já assistiu e já escolher o próximo - se já tiver visto todos, conte comigo para tudo.



100. Amores Imaginários (Les Amours Imaginaires), 2010

Direção de Xavier Dolan, Canadá.
Francis e Marie são amigos inseparáveis que veem suas vidas mudarem ao conhecerem Nicolas, um charmoso rapaz que acaba conquistando o coração de ambos, e o que era uma amizade passa a ser uma grande disputa. Jogando de maneira até hilária com o rumo de seus personagens, perdidos numa teia para conquistar o coração do crush, o longa trata a sexualidade de todos da forma mais natural possível, com pontadas de ironia ao ter um homem e uma mulher jogando fora a amizade graças ao mesmo amor. A sagacidade de "Amores Imaginários" é amplificado pelo apuro estético da fita, bem camp e exagerado, e não podemos esperar menos de Xavier Dolan.

99. Além das Montanhas (După Dealuri), 2012

Direção de Cristian Mungiu, Romênia.
"Além das Montanhas" leva a religião a um patamar além ao chocá-la com a vivência lésbica. Alina e Voichita se separam quando a última vai parar num monastério. Tencionando levar a mais-que-amiga de volta, Alina encontra uma mulher completamente diferente, submersa na opressiva realidade ortodoxa, que se volta rapidamente contra Alina: ela, por ser lésbica, é acusada de estar possuída pelo demônio. Mungiu mostra em meio a uma técnica primorosa até que ponto o fanatismo religioso pode deturpar a visão crítica do real e eleva a situação ao máximo, sem maquiagem, para revelar quais as suas consequências.

98. Manchester À Beira Mar (Manchester by the Sea), 2016

Direção de Kenneth Lonergan, EUA.
Vencedor do Oscar de "Melhor Roteiro Original" (e do controverso "Melhor Ator" para Casey Affleck) na edição de 2017, "Manchester À Beira Mar" retrata dores e lutos que poderiam render lágrimas e desesperos na tela, porém, contrariando o esperado, aqui não temos personagens tentando se reerguer, e sim aprendendo a viver com suas próprias mortes. Navegando num mar de ironia, humor negro e muito cinismo, a obra cria personagens e momentos inesquecíveis sob o tom certeiro para retratar assuntos tão complicados (a cena da delegacia é um tapa). "Manchester À Beira Mar", abrindo mão do melodrama, é um filme triste, melancólico, sensível e, por que não?, estranho.

97. Os Homens que Não Amavam as Mulheres (The Girl with the Dragon Tattoo), 2011

Direção de David Fincher, EUA.
A primeira adaptação hollywoodiana da brilhante série literária "Millennium" - o segundo filme, "A Garota na Teia de Aranha", a gente finge que não existiu -, "Os Homens que Não Amavam as Mulheres" tem uma das melhores protagonistas do cinema moderno: Lisbeth Salander, o ápice de Rooney Mara, que teve seu Oscar roubado. O filme tem a estrutura clichê dos filmes do gênero (o suspense gato-e-rato, o vilão revelando os segredos, etc.), mas Fincher nos entrega um suspense tão belo e bem feito que isso é superado pelo poder de sua direção. Com cenas bem fortes e personagens altamente inspirados e cativantes, essa é uma adaptação que faz jus ao livro.

96. Nasce Uma Estrela (A Star is Born), 2018

Direção de Bradley Cooper, EUA.
Todas as dúvidas ao redor de "Nasce Uma Estrela" são bombardeadas com argumentos audiovisuais do seu esplendor. Um dos raros exemplos de remakes que não são só realizados da maneira correta como superam seus originais, a obra deixa de ser mera viagem aos bastidores da indústria do entretenimento ou mais uma platônica história de amor para realizar um estudo necessário sobre a fragilidade da mente humana e nossa sucessão diária à ruína e ao sucesso. Se sua maior curiosidade é ver Lady Gaga sem maquiagem ou vestido de carne, prepare-se para ser arrebatado pela avalanche de talento que é "Nasce Uma Estela", um espetáculo na tela (e nos alto-falantes).


95. A Fita Branca (Das Weiße Band), 2009

Direção de Michael Haneke, Áustria.
Em uma vila, pouco tempo antes da Primeira Guerra Mundial, uma série de acidentes começam a assustar seus moradores. Ninguém sabe exatamente o porquê e muito menos quem é o responsável. De acordo com Haneke, um dos maiores diretores em atuação, seu filme explora as "raízes do mal, onde a religião e o terrorismo político se torna a mesma coisa", e esse é um resumo apurado. Belíssimo ao extremo, em todas as formas possíveis, inclusive nas suas várias nuances violentas e humilhantes que aparecem ao longo da sessão, "A Fita Branca" encrava a unha na carne na exposição de hierarquias e como abuso de poder é hereditário.

94. Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake), 2016

Direção de Ken Loach, Reino Unido.
A força do cinema perante o sistema é ferramenta de instauração de reflexão em "Eu, Daniel Blake" (I, Daniel Blake), vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Quando Blake, um idoso solitário, sofre um ataque cardíaco, vai enfrentar um oceano de burocracia para receber a aposentadoria. Como é de se esperar para um idoso, ele entende nada do mundo digital e só piora a sua situação, beirando o desespero quando não possui um euro no bolso. O protagonista se torna porta-voz dos desmandos de Estados com sua pichação contra os bancos. A pobreza é sequela do capitalismo, e o assunto, que costumamos jogar para debaixo do tapete, não é aliviado: a pobreza força as pessoas a perdem o respeito próprio.

93. Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman), 2018

Direção de Spike Lee, EUA.
Spike Lee é porta-voz do cinema afro-americano há décadas, e provavelmente ele encontrou seu nirvana em 2018. "Infiltrado na Klan" é fincado sobre uma louca história real de um policial negro que arma um plano para se infiltrar na Ku Klux Klan, a seita de supremacia branca que assola os EUA até hoje. A pertinência temporal do longa consegue assustar quando a KKK começa a mostrar suas garras em pleno séc. XXI, consequentemente, o tapa na cara de "Infiltrado na Klan" é forte. Sem o intuito de educar brancos (e sim de empoderar negros), o filme é um terror da realidade - a última cena é para aniquilar qualquer segurança da época em que vivemos.

92. O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel), 2014

Direção de Wes Anderson, EUA/Alemanha.
Wes Anderson é um dos diretores com o maior senso estético da atualidade, e em seu oitavo filme, essa identidade é explorada ao máximo. "O Grande Hotel Budapeste" tem uma penca de atores estrelares, mas estes são apenas ornamentos cenográficos do todo, porque é o hotel o personagem principal. Fotografado da forma mais perfeita possível, o filme é violentamente lindo, com todos os quadros na mais perfeita harmonia de direção de arte, fotografia, figurino e tudo mais. "O Grande Hotel Budapeste" não é só uma história leve, divertida e fabulosa, é um gigante deleite para os olhos. Você vai terminar o filme querendo passar um dia naquele hotel.

91. Ilegítimos (Ilegitim), 2016

Direção de Adrian Sitaru, Romênia.
Um dos maiores tabus da nossa sociedade é o incesto, quando membros familiares desenvolvem um relacionamento amoroso/sexual. "Ilegítimos" força o espectador a questionar: por quê? Quando a família de Romeo e Sasha, irmãos legítimos, descobrem o romance dos dois, o mundo vai abaixo. Eles são tratados como animais, seres sujos que envergonham a família. O que eles se questionam: "Por que nosso amor agride?". Esse seco filme romeno não se interessa em deixar sua mensagem de fácil digestão, porém levanta pontos interessantes, mesmo quando não queríamos ouvir.


90. Lady Bird: A Hora de Voar (Lady Bird), 2017

Direção de Greta Gerwig, EUA.
Sendo a quinta mulher na história a ser indicada ao Oscar de “Melhor Direção”, Greta faz seu manifesto de amor à sua cidade e as dores e delícias de crescer. É inevitável a sensação de familiaridade com toda a trama, todavia, além de esperarmos histórias novas, o cinema é fonte de renovação constante das histórias já contadas. O que Gerwig faz é tão difícil quanto bolar algo inédito: transformar em interessante, genuíno e sincero um produto repetido, sem cair no artificialismo. "Lady Bird" pode não ser original, mas consegue ter força pela linda união das partes, numa obra aconchegante sobre seres humanos reais que estão constantemente à procura de si mesmos - árdua tarefa que todos nós enfrentamos.

89. Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit), 2014

Direção de Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne, Bélgica.
Um filme protagonizado por Marion Cotillard é um filme que deve ser assistido. Em "Dois Dias, Uma Noite", o maior filme dessa década dos irmãos Dardenne, Cotillard é uma mãe de classe média que se vê engolida pelo desespero quando um dinheiro planejado não aparece - e ela deve convencer 14 outros trabalhadores a cederem um bônus, ou ela ficará sem nada. Nesse filme denúncia, a pressão do capitalismo é pulsante, humana e, infelizmente, real. Um jogo de interesses numa situação comum e bastante próxima de nossa realidade, onde a todo o momento nos colocamos nos lugares dos personagens e questionamos: até onde podemos ir para o bem-estar do outro?

88. Um Cadáver Para Sobreviver (Swiss Army Man), 2016

Se Emma Watson já está muito bem encaminhada após "Harry Potter", Daniel Radcliffe demorou para se encontrar e deixar um pouco de lado a imagem do bruxo mais famoso do mundo. Seu apogeu foi com "Um Cadáver Para Sobreviver". Não se enganem pelo título nacional e nem pela loucura da premissa: um homem prestes a cometer suicídio em uma ilha deserta encontra um cadáver que vira seu melhor amigo - e esperança de uma vida melhor. Sim. Radcliffe, que vive (risos) o cadáver, é válvula de discussões impagáveis e assustadoramente relevantes sobre como nos relacionamos com outras pessoas, sem, óbvio, deixar de anarquizar todas as regras do bom senso. Um prato não apetitoso para qualquer paladar (mas visualmente estonteante), "Um Cadáver Para Sobreviver" é inegavelmente o melhor filme de zumbi já feito. Sério.

87. Sob a Pele (Under The Skin), 2013

Direção de Jonathan Glazer, Reino Unido/EUA.
Uma alienígena sedutora está na Escócia caçando homens. É essa a premissa de "Sob a Pele". Só isso. Interpretada por Scarlett Johansson, o tal e.t. sai dirigindo pelas estradas do frio país e observa o comportamento dos homens, como eles vivem, amam, relacionam-se, morrem. Ela escolhe algum, o seduz rapidamente e ele está perdido. "Sob a Pele" não é um filme para todo mundo: apesar da simples e direta premissa, o filme é hermético, lento, estranho. Jonathan Glazer constrói um conto simbólico de difícil digestão e fácil reflexão, que evoca sentimentos desconcertantes em quem assiste.

86. Alpes (Alpeis), 2011

Direção de Yorgos Lanthimos, Grécia.
Um grupo se une para formar o Alpes, uma empresa de contratação para pessoas falecidas. Quando alguém morre, só ligar para a Alpes, que enviará alguém para "ser" a pessoa morta. Pois é. O cinema de Lanthimos atrai pela forma bizarra que explora a humanidade de seus personagens, e em "Alpes" temos mais uma coreografia fria baseada numa premissa que já prende pela estranheza, sendo conduzida de forma hermética, mas de beleza singular - não surpreendentemente, venceu o prêmio de "Melhor Roteiro" no Festival de Veneza, afinal, só Lanthimos para pensar em histórias como essa.


85. Aos Teus Olhos (idem), 2017

Direção de Carolina Jabor, Brasil.
"Aos Teus Olhos" é um acerto atual que se utiliza de tratamento quase documental em sua ficção e supera os rótulos de "bem feito", "boas atuações" ou "ótima trilha sonora" pra entrar na esfera do debate, função seminal da Sétima Arte quando estuda um boato levado à uma proporção inimaginável. No momento em que as opiniões das pessoas se tornam notícias e, consequentemente, verdades, estamos com legítimas armas em formato de smartphones, e só conseguiremos manter uma internet responsável quando aprendermos que o linchamento virtual e a externalização de ódios via mensagens instantâneas são a apoteose do mau uso das novas tecnologias. Tão próximo da gente, tão nosso dia a dia que assombra.

84. 45 Anos (45 Years), 2015

Direção de Andrew Haigh, Reino Unido.
"45 Anos" (2015) possui uma premissa instantaneamente cativante: perto de comemorar 45 anos de casamento, o marido de Kate recebe uma carta informando que o corpo de sua paixão da juventude foi encontrado. Ela então nota que, quanto mais próximo o aniversário está chegando, menos interessado o marido está. Rios de delicadeza conduzem essa obra sobre o relacionamento abalado por um vetor extraordinário, explorando com crueza poética a intimidade de um casal de idosos de maneira corajosa, arrancando performances belíssimas sob o peso e a dor do tempo: Charlotte Rampling é a verdadeira ganhadora do Oscar naquele ano.

83. Birdman: ou A Inesperada Virtude da Ignorância (Birdman: or The Unexpected Virtue of Ignorance), 2015

Direção de Alejandro González Iñárritu, EUA.
"Birdman" é uma comédia de humor negro que utiliza da metalinguagem da carreira de Michael Keaton (que interpretou o Batman na década de 90) para criar o mundo da película, mundo esse contado pelas lentes do megalomaníaco Alejandro González Iñárritu. Filmado num falso plano-sequência, como se não houvesse cortes, a câmera faz um verdadeiro balé entre o elenco que se conecta de forma assustadora, com Riggan sendo a Norma Desmond da era do Twitter. Riggan, assim como Norma e assim como Keaton, está à espera do seu close-up - e o filme chegou a ganhar quatro Oscars: "Melhor Roteiro Original", "Melhor Fotografia", "Melhor Direção" e "Melhor Filme".

82. Fé Corrompida (First Reformed), 2017

Direção de Paul Schrader, EUA.
O que começa parecendo uma obra que atira para todos os lados é justificada por uma sutileza avassaladora ao pôr na mesa temas complexos, extraídos por atuações potentes de Ethan Hawke e Amanda Seyfried. Engana-se quem acha que "Fé Corrompida" se trata de um filme religioso. A fé teísta é mero pontapé para catapultar a profundidade niilista e misantropa do roteiro de Schrader, em seu ápice criativo como cineasta. O filme mostra como somos criaturas que nos alimentamos, antes de mais nada, de razões, de motivos, de sentidos para levantarmos pela manhã e enfrentarmos o difícil ato que é viver, e estamos na eterna caça por algo ou alguém que nos garanta essas certezas.

81. Boi Neon (idem), 2015

Direção de Gabriel Mascaro, Brasil.
Enterrando-nos no complexo interior nordestino, transitamos de forma bastante sensível pela vida dos personagens que, por si só, são quebras absolutas de arquétipos. O protagonista é vaqueiro, mas seu sonho é ser estilista. O diretor/roteirista já remonta sentidos e foge do senso comum - o personagem é hétero. Quem dirige o caminhão da turma não é um dos peões, e sim Galega. E ainda temos uma garotinha fora da forma de bolo "princesa" e uma grávida com dois empregos. São sutilezas e pequenos detalhes que desconstroem um meio ainda tão precário em algo mais compatível com as demandas sociais da nossa atualidade, retratando de forma neon uma região sempre mostrada em preto & branco.


80. O Julgamento de Viviane Amsalem (Ha'mishpat shel Vivian Amsalem), 2014

Direção de Ronit Elkabetz & Shlomi Elkabetz, Israel.
Em plena Israel contemporânea, Viviane só deseja uma coisa: se separar do marido. Mas lá não existe divórcio civil, cabendo ao homem a voz final para a dissolução do casamento - e o de Viviane jamais aceitará. Assim começa a batalha de uma mulher que só deseja ser dona de si mesma. Confinando-nos dentro de um tribunal por 2h, "O Julgamento de Viviane Amsalem" é a metáfora perfeita para a situação claustrofóbica da protagonista, que deseja nada além da sua liberdade - e tudo sem cair em chavões fáceis como abusos e violências. É a luta pelo simples direito de ser. Uma perda para o Cinema internacional a morte precoce de Ronit Elkabetz (co-diretora e protagonista) em 2016.

79. Gênios do Mal (Chalard Games Goeng), 2017

Direção de Nattawut Poonpiriya, Tailândia.
Uma garota pobre, mas super inteligente, cria um sistema de pescas em testes que a deixa rica – e cada vez mais ambiciosa. Não se engane pelo título de “Gênios do Mal”: pode soar um "Sessão da Tarde", mas temos em mãos uma legítima produção que alia suspense e cinema de roubo como poucas vezes feitas ao elevar a atividade mais chata que existe – a realização de provas – em sequências para não sobrar uma unha nas mãos. O roteiro, que começa com uma simples prova mensal sendo fraudada, leva o trambique de seus protagonistas para níveis faraônicos que impressionam a plateia. Montagem brilhante, atuações certeiras de atores sem experiência e um roteiro com motivações no ponto. Não se empolgar e grudar na cadeira é impossível.

78. Corra! (Get Out), 2017

Direção de Jordan Peele, EUA.
O último terror a chegar no Oscar de "Melhor Filme", "Corra!" é um evento cultural e marco no gênero. Um jovem negro finalmente vai à casa dos pais da namorada branca. Há toda uma tensão velada, que parte do próprio protagonista, mas todos não param de falar o quanto estão de braços abertos para a diversidade do casal, o que, não surpreendentemente, é faxada para um plano maquiavélico. O longa não está preocupado em esconder seus clichês e óbvias referências; o que “Corra!” está preocupado é em compor momentos que elevam o seu gênero, carregado por cenas geniais e discussões sobre racismo postas de maneira lúdica, esperta e incisiva pelas lentes do diretor/roteirista Jordan Peele - que levou o Oscar de "Melhor Roteiro Original".

77. Pária (Pariah), 2011

Direção de Dee Rees, EUA.
De uma das maiores expoentes do cinema negro norte-americano - Dee Rees -, "Pária" coloca no palco Alike, uma garota de 17 anos que passa por uma batalha interna para se aceitar como lésbica. Chamado de "semi-autobiografia" por Rees (que também é lésbica), a obra é o "Moonlight" (2017) feminino: explora as dores específicas que uma pessoa negra sofre por ser gay. Alike ainda tem o peso de ser mulher e estar fincada numa família religiosa, mais um prego na cruz que deve carregar. Visual e socialmente estonteante, "Pária" é uma pérola do Cinema em todos os quesitos, mesmo percorrendo caminhos familiares. É a sinceridade da película que arrebata.

76. Dogman (idem), 2018

Direção de Matteo Garrone, Itália.
O escolhido para representar a Itália no Oscar 2019 de "Melhor Filme Estrangeiro" - e infelizmente fora da lista de indicados -, "Dogman" segue um acanhado dono de pet shop que, para não permitir que a filha viva na mesma precariedade, vende drogas - dar banho em cachorros não é o suficiente. Com a melhor atuação masculina do ano - Marcello Fonte, vencedor de "Melhor Ator" no Festival de Cannes -, "Dogman" é uma aula de como a mise-en-scène é fundamental para composição narrativa, e a fotografia soberba destaca o físico decrépito daquela Itália aos cacos, reflexo absoluto dos indivíduos com suas morais em ruínas.


75. O Lobo Atrás da Porta (idem), 2013

Direção de Fernando Coimbra, Brasil.
Devo contar a minha experiência ao assistir "O Lobo Atrás da Porta": não sabia que se tratava de um filme baseado em fatos, mais especialmente na "Fera da Penha", crime que também não conhecia. Tudo isso teve um impacto ainda maior na sessão pela maneira que a película amarra as pontas soltas do mistério, numa construção social fidedigna nessa obra-prima poderosíssima. Com algumas das cenas mais revoltantes que dos últimos tempos no cenário tupiniquim, essa ode ao cinema nacional trata de assuntos sérios como o aborto e o machismo e ainda traz Leandra Leal no melhor momento da carreira.

74. Capitão Fantástico (Captain Fantastic), 2016

Direção de Matt Ross, EUA.
O filmão indie-hipster-hyppe da década, "Capitão Fantástico" é mais um desmonte da família convencional. Ben Cash é pai de seis crianças; todos vivem no meio de uma floresta para que as crianças se mantenham distantes do capitalismo e do estilo americano de vida, aprendendo técnicas de sobrevivência e filosofias sem pudores. Todos têm que deixar seu santuário anti-consumismo quando a mãe morre. Filmado em tons coloridíssimos, "Capitão Fantástico" é uma excelente discussão do conceito de família e como nosso modo globalizado de vida pode atrapalhar o desenvolvimento não só de nós mesmos, mas do nosso planeta. A pegada hippie é exagerada em alguns momentos, porém os personagens carismáticos e as situação comicamente absurdas fazem deste uma pérola.

73. 24 Semanas (24 Wochen), 2016

Direção de Anne Zohra Berrached, Alemanha.
O cinema europeu, mostrando seus lados mais crus, aborda temas tabus de forma bastante consciente, e é isso que o alemão "24 Semanas" realiza. É certo que filmes sobre aborto, ou que tratam do assunto de forma secundária, já existem, todavia, "24 Semanas" consegue trazer o tema de forma mais pungente ao nos colocar dentro da relação de um casal que vê uma gravidez se tornar um problema. Extremamente desconfortável, necessário enquanto discussão, sem maquiagem e puramente feminino (ele é escrito e dirigido por uma mulher), a película traz os prós e contras do aborto e colocam o espectador na beira da cadeira. Se isso não for a maior função do Cinema, não sei o que é.

72. Tiranossauro (Tyrannosaur), 2011

Direção de Paddy Considine, Reino Unido.
Se você é um daqueles que ama um filme que te deixe fervendo de ódio, "Tiranossauro" é para você.  Uma acolhedora mulher (interpretada por Olivia Colman, sua melhor atuação até "A Favorita" nascer) tem a vida atormentada pelo violento marido. Ela se esforça para esconder a situação doméstica, um verdadeiro filme de terror que o filme vai empurrando o espectador. Um estudo fortíssimo da condição feminina perante o patriarcado, que coloca uma esposa em posição de posse. Enquanto, num quadro, o pingente da mulher brilha como o último apego de esperança naquela situação terrível, a aliança do marido grita com certa ironia revoltante no outro. Uma das melhores cenas do cinema dessa década.

71. A Garota de Fogo (Magical Girl), 2014

Direção de Carlos Vermut, Espanha.
Um professor desempregado tem uma filha de 12 anos com câncer terminal. A menina tem um único desejo: uma fantasia da personagem de "Magical Girl". O pai, para conseguir realizar o sonho da filha, entra em uma rede de mentiras e chantagens que vai mudar a vida de todo mundo. Sempre quando buscamos criatividade, pensamos em histórias fantásticas como se fossem o ápice da criação, porém é como em filmes como "A Garota de Fogo" que vemos como podemos ser criativos em potências descomunais ao costurar histórias realísticas e impactantes. Tome cuidado com o que você deseja.


70. Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la Jeune Fille en Feu), 2019

Direção de Céline Sciamma, França.
Por volta de 1770, em uma ilha na costa francesa, uma pintora é contratada para fazer o retrato de uma aristocrata com casamento marcado. A pintora deve realizar o serviço em segredo, já que a prometida se recusa a posar por não aceitar o casamento. A dinâmica entre as duas rapidamente muda para uma relação mais profunda quando elas se apaixonam. "Retrato de um Garota em Chamas" é mais um capítulo fabuloso na filmografia de Céline Sciamma e seu estudo de gênero: todos seus filmes possuem discussões bem diferentes e sempre certeiras sobre o papel da mulher dentro dos mais diferentes contextos, vide "Tomboy" e "Gatoras". Vencedor da "Queer Palm" (o "Oscar" dos filmes LGBTs), "Retrato" direciona sua arte para tela, tornando um filme uma verdadeira pintura poética no ecrã que condiciona aquele amor proibido de maneira ímpar. Todas as cenas podem ser penduradas em um museu.

69. O Regresso (The Revenant), 2015

Direção de Alejandro González Iñárritu, EUA.
O filme que encerrou o jejum de Leonardo DiCaprio e quebrou sua maldição com o Oscar, "O Regresso" é muito, muito mais que isso. Fotografado de maneira estupenda por Emmanuel Lubezki (que ganhou seu terceiro Oscar de "Melhor Fotografia" SEGUIDO), "O Regresso" é, antes de tudo, um filme contemplativo. É a pura batalha do homem X natureza, com um gatilho narrativo poderoso: a vingança. Se seu miolo - a difícil viagem de Hugh Glass enfrentando frio, fome e índios furiosos pela invasão de suas terras - é lento, mas extremidades são recheadas com cenas impiedosas e eletrizantes; o clímax e o ataque do urso, esta a cena mais famosa, são brilhantes. Nenhum texto é capaz de descrever com precisão a sessão de "O Regresso", pois este é uma obra que demanda sentimentos, extraídos tanto pelas belíssimas imagens quanto pela poderosa história. E a quebra da quarta-parede no final é gloriosa.

68. Chevalier (idem), 2015

Direção de Athina Rachel Tsangari, Grécia.
O novo cinema grego tem, nos últimos anos, caminhando contra a maré da crise econômica do país e entregado filmes excepcionais – e estranhos. Essa nova onda cinematográfica do país critica a sociedade através de argumentos bizarros, e “Chavelier” entra na dança. Confinando seis homens (ricos e brancos) num luxuoso iate, a diretora Athina mostra até onde os caras vão para mostrar que são o “melhor em tudo”. Num jogo absurdo de pontos em diversas categorias, que vão desde o toque dos celulares até a forma como fazem o café e quem tem o maior pênis, “Chavelier” é uma espirituosa (e divertidamente incômoda) odisseia sobre a fragilidade do falocentrismo. Coitado do macho branco.

67. Tangerinas (Mandariinid), 2013

Direção de Zaza Urushadze, Estônia/Geórgia.
O representante da Estônia no Oscar e Globo de Ouro conta a história de um senhorzinho simpático que um dia se vê num impasse: durante um confronto perto da sua casa, duas pessoas saem vivas, um do seu país e outro inimigo. Ele então passa a cuidar de ambos, que, ao acordarem, entrarão numa verdadeira guerra fria que abalará a tranquilidade da antes pacata vida do protagonista. Muito além da situação fora do comum, "Tangerinas" é um filme que nos coloca pra pensar sobre o conceito de patriotismo. Por que somos construídos para amarmos nosso país? Tudo não se trata de um pedaço de terra? As pessoas se matam em prol de uma linha imaginária que divide localidades, esquecendo que, antes de tudo, somos todos um povo só, mesmo com culturas diferentes. "Tangerinas" disseca esse conflito imaginário de forma extraordinária. Lindo, lindo, lindo.

<< Parte 2 (do #66 ao #34)

Os 20 melhores filmes de 2019

E mais um ano chega ao fim, e com ele nossa lista de melhores filmes do ano. 2019, para muitos, foi um ano sensacional para o Cinema, e, mesmo não concordando tanto com essa afirmativa (2018 foi bem melhor), é claro que tivemos filmes que estão destinados a virarem clássicos. Então aqui estão os 20 melhores segundo o Cinematofagia - na verdade são 21, já que uma das posições é um empate.

De indicados e vencedores do Oscar a pérolas de todos os cantos do mundo, os critérios de inclusão da lista são os mesmos de todo ano: filmes com estreias em solo brasileiro em 2019 - seja cinema, Netflix e afins - ou que chegaram na internet sem data de lançamento prevista, caso contrário, seria impossível montar uma lista coerente. Importante pontuar que aqui há dois filmes que estreiam no comecinho de 2020, porém já entram aqui por ter distribuição limitada ainda em 2019. E, também de praxe, todos os textos são livres de spoilers para não estragar sua experiência - mas caso você já tenha visto todos, meu amor por você é real. Preparado para uma maratona do que há de melhor no cinema mundial no ano?


20. Atlantique (idem)

Direção de Mati Diop, Senegal.
Mati Diop fez história ao ser a primeira mulher negra a competir no Festival de Cannes, e "Atlantique" saiu com o segundo maior prêmio de sua edição. Alguns anos no futuro, na capital Dakar, um grupo de trabalhadores embarca para, clandestinamente, chegar na França a fim de uma vida melhor. Ada fica desolada quando descobre que seu namorado faz parte do grupo, e ainda mais devastada quando a notícia da morte de todos chega na cidade. Um drama político, discutindo a crise de imigração na Europa e o atual contexto econômico da África, "Atlantique" criativamente adota temas sobrenaturais para contar essa história de amor além do plano físico. Pode soar muitas vertentes, mas o filme está nas mãos de uma diretora totalmente ciente do poder de seu texto e imagens.

20. A Vida Invisível (idem)

Direção de Karim Aïnouz, Brasil.
Nosso representante ao Oscar, "A Vida Invisível" entra nas casas das famílias da década de 60 e como a vida das mulheres era silenciada. Aqueles microuniversos de classe média, de renegação social, de pobreza e marginalização, emula tantas e tantas histórias de resistência que qualquer um pode se sentir envolvido. Forte quando foca nas intimidações do patriarcado e emocionante quando entra no amor incondicional de duas irmãs que se separam graças à maquiavélica união de homens, "A Vida Invisível" é, além de sensacional exemplo do nosso majestoso cinema nacional, um garboso melodrama que se torna um atestado da nossa sociedade que deve, e muito, à vida feminina.

19. Animais (Tiere)

Direção de Greg Zglinski, Suíça/Áustria.
Um casal resolve passar um tempo em um afastado chalé. O marido, em busca de inspiração para seu livro, tenta acabar com as desconfianças da esposa. O plano começa a dar errado quando eles atropelam uma ovelha na estrada, desencadeando uma série de experiências estranhas. "Animais" é um filme que se utiliza do molde clássico: será se os personagens estão ficando loucos? Com uma atmosfera onírica à la David Lynch, que esconde segredos e camadas mais profundas por trás de cada porta, embarcamos no quebra-cabeças narcótico da narrativa, que mistura múltiplos universos, bizarrices, relacionamentos em ruínas e gatos falantes. Sem falar que é visualmente espetacular.

18. Uma Mulher em Guerra (Kona fer í Stríð)

Direção de Benedikt Erlingsson, Islândia/Ucrânia.
O eco-ativismo é pauta cada vez mais recorrente na Sétima Arte, ainda mais voltado ao documentário. Então foi uma deliciosa surpresa o islandês "Uma Mulher em Guerra": uma mulher, vendo o impacto de uma distribuidora de energia na região, decide destruir os cabos de energia na flechada. A fita é capaz de balancear sabiamente o drama da conscientização do impacto humano sobre o planeta com a comédia daquela simples mulher que declara guerra ao capitalismo sozinha. Você pode até se perder nas locações de tirar o fôlego (o filme foi filmado da Islândia, não tinha como ser diferente), mas a crítica está a todo o momento na flor da pele, com sacadas e reviravoltas imperdíveis.

17. Assunto de Família (Manbiki Kazoku)

Direção de Hirokazu Kore-eda, Japão.
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2018, "Assunto de Família" é mais um belíssimo lembrete de como Kore-eda é um dos melhores autores do cinema moderno. Em meio à pobreza, uma família sobrevive à base de furtos nos mercados da vizinhança. Quando encontram uma garotinha vítima de abusos domésticos, a família adota a menina, iniciando-a no ritual dos roubos. Pode soar uma problema, como se a criança estivesse sendo corrompida, mas, de maneira muito rica, é o contrário: a menina finalmente tem o que sempre quis, uma família que a ame incondicionalmente. Sem julgar os métodos escolhidos para manter a vida de seus personagens, o longa é de uma delicadeza rara, estudando o quão poderosa é essa instituição que não se liga apenas por laços sanguíneos.

16. Selvagem (Sauvage)

Direção de Camille Vidal-Naquet, França.
"Selvagem" já nasceu como marco dentro do cinema LGBT pelo seu olhar documental de uma condição que preferimos não encarar: a prostituição. Sua sinceridade brutal não é apenas motor de uma sessão de entretenimento (por mais drenadora que ela seja), é ferramenta de comoção social fenomenal da difícil vida de um garoto de programa. Longe de qualquer glamourização, fetichismo e julgamento moral, o filme vira um documento do quão desumanizadora é a marginalização da prostituição - aproximando o homem da selvageria - e manifesto da intragável solidão de seu protagonista, uma mercadoria à baixo preço que está sedenta por qualquer demonstração de afeto. E não estamos todos nós?

15. Uma Mulher Alta (Dylda)

Direção de Kantemir Balagov, Rússia.
A premissa de "Uma Mulher Alta", selecionado da Rússia para o Oscar, pode até parecer ser maçante - duas mulheres, após a Segunda Guerra Mundial, deve encontrar uma saída para a devastação de seu país e de suas vidas. Contudo, a trama vai para caminhos bastante inesperados quando estuda a relação dessas duas mulheres. Um drama denso e cheio de cenas desconcertantes - há uma particularmente tenebrosa no meio da sessão, um dos vários destaques -, "Uma Mulher Alta" usa as cores não apenas como método artístico, mas também narrativo no jogo dos papéis de suas protagonistas, que, quanto mais passa a sessão, mais abusivo, bizarro e doentio fica. 

14. Clímax (Climax)

Direção de Gaspar Noé, França.
"Clímax" não é uma produção recomendável, mas pelos motivos corretos: quando um grupo de dançarinos descobre que a bebida da festa foi batizada com LSD, o lado mais animalesco de cada um vem à superfície. Esse é um filme que não só demanda como suga o emocional do público, tão massacrado quanto os personagens, presos em uma bolha ácida que não escolheram e nem podem escapar. E talvez seja a impotência - tanto nossa como deles - que faz "Clímax" tão bizarro. Gaspar Noé nunca pôs os dois pés no terror, apesar de sempre flertar no gênero, e dessa vez ele não apenas entrou como filmou um show de horrores inacreditável, transformando cinema em uma experiência sensorial. Se já houve uma festa que você pode ficar feliz em não ter sido convidado, é essa aqui. Porém, há quem prefira dançar em meio ao caos.

13. No Tecido (In Fabric)

Direção de Peter Strickland, Reino Unido.
Você pode não levar "No Tecido" a sério ao ler a premissa: uma mulher, visando dar um gás em sua autoestima após o divórcio, compra um vestido vermelho para sair com um pretendente. O que ela não sabe é que o vestido é amaldiçoado, e matará quem estiver pela frente. Sim, o protagonista do filme é um vestido assassino. Lógico que a produção sabe da banalidade de seu pontapé, por isso costura tudo minunciosamente para, mesmo com algo tão absurdo, soar competente. "No Tecido" tem seus momentos nonsenses (é um vestido serial-killer, pelo amor de deus!), contudo, é um filme como nenhum outro pelo trabalho visual, um híbrido anacrônico belíssimo entre o novo e o antigo. Até mesmo nas sequências que poderiam arrancar risadas há um pesado esforço (muito bem recompensado) para não deixar a atmosfera cair, terminando como um conto de bruxas maligno e esteticamente irretocável.

12. Rainha de Copas (Dronningen)

Direção de May el-Toukhy, Dinamarca.
Uma advogada de sucesso no ramo da proteção infantil acolhe o enteado em sua casa para não contrariar o marido. O problema é que ela vê seu castelo perfeito começar a ruir quando inicia um relacionamento com o garoto. O que começa como uma brincadeira sedutora é levada por "Rainha de Copas" a jogos de poder que terão consequências devastadoras. Liderado por uma atuação perfeita de Trine Dyrholm, o longa é um estudo poderoso sobre o outro lado da pedofilia, quando a mulher é o "predador". Cheio de cenas desconcertantes, a metáfora do título já mostra como o filme anda no campo do ambíguo: rainha de copas é a carta que representa o altruísmo, o que é no mínimo irônico dentro da obra.

11. Retrato de Uma Jovem em Chamas (Portrait de la Jeune Fille en Feu)

Direção de Céline Sciamma, França.
Por volta de 1770, em uma ilha na costa francesa, uma pintora é contratada para fazer o retrato de uma aristocrata com casamento marcado. A pintora deve realizar o serviço em segredo, já que a prometida se recusa a posar por não aceitar o casamento. A dinâmica entre as duas rapidamente muda para uma relação mais profunda quando elas se apaixonam. "Retrato de um Garota em Chamas" é mais um capítulo fabuloso na filmografia de Céline Sciamma e seu estudo de gênero: todos seus filmes possuem discussões bem diferentes e sempre certeiras sobre o papel da mulher dentro dos mais diferentes contextos, vide "Tomboy" e "Gatoras". Vencedor da "Queer Palm" (o "Oscar" dos filmes LGBTs), "Retrato" direciona sua arte para tela, tornando um filme uma verdadeira pintura poética no ecrã que condiciona aquele amor proibido de maneira ímpar. Todas as cenas podem ser penduradas em um museu.

10. Cafarnaum (Capharnaüm)

Direção de Nadine Labaki, Líbano.
O vencedor moral do Oscar 2019 de "Melhor Filme Estrangeiro" e "Melhor Direção" ("Roma" não chega nem aos pés), "Cafarnaum" surgiu quando Labaki se perguntou: no nosso sistema tão falho, quem mais sofre com nossos conflitos, guerras e governos? As crianças. E a película é inteiramente transposta a partir da visão dos pequenos, em especial Zain, que está processando os pais por lhe darem a vida. "Cafarnaum" vai até o seio de um Líbano degradado e à beira do colapso, dando voz àqueles que são ignorados por completo. Carregado nas costas pelo brilhante elenco infantil, eis um daqueles filmes que são uma forma de documentação histórica e denúncia de realidades esquecidas. A cena final é uma das maiores destruições já filmadas nesse século.

9. Garota (Girl)

Direção de Lukas Dhont, Bélgica.
Baseado na vida de uma real bailarina trans, "Garota" foi recebido com amores e ódios pela ótica íntima da vida transsexual. A sessão é impactante não só pelo o que a fita mostra, mas pelo o que ela gera como sensações, navegando pelas ansiedades, medos e momentos mais obscuros que um LGBT passa ao se ver em uma sociedade que não está capacitada para entendê-lo. Porém, a maior lição que retiramos de "Garota" é óbvia: o local de fala é importante, mas não garante coisa alguma, principalmente se tratando de expertises artísticas. Sua bagagem não vai, necessariamente, fazer um bom filme. Felizmente, não foi o caso de "Garota", um delicado filme baseado na vivência de uma real mulher trans, não uma fantasia erotizada de uma pessoa cis.

8. Divino Amor (idem)

Direção de Gabriel Mascaro, Brasil.
"Divino Amor" leva o espectador para um Brasil aqui do lado, alguns anos no futuro. Com o avanço do fundamentalismo, o nosso país vira um cabaré gospel. O ethos construído pelo roteiro une o conservadorismo hipócrita com os pecados da carne, convenientemente convertidos em dádivas quando o lema do novo sistema é "Quem ama divide". O fanatismo não tem vergonha ao se arvorar do bacanal como veículo de encontro com deus, porém não se engane: o bordel instaurado de "Divino Amor" é muito bem controlado. O mais assustador do filme é sua consonância com o agora do nosso país - o exagero do ufanismo religioso é prato cheio dentro da arte, e a película a escancara acidamente, na mesma medida em que alerta o avanço do fanatismo.  Num país que parece não haver regras, justiça e equidade, o cabaré sagrado de "Divino Amor" soa preocupantemente plausível.

7. A Favorita (The Favourite)

Direção de Yorgos Lanthimos, Reino Unido/EUA.
O filme de época mais espirituoso dos últimos tempos, "A Favorita" é, em primeiro lugar, um filme sobre mulheres difíceis em uma época difícil e em posições difíceis. A obra encanta na riqueza de detalhes narrativos e visuais, e quando suas protagonistas - três monstros na tela - não dão a mínima para a guerra do lado de fora de seu palácio, mais preocupadas com a batalha que acontece ali dentro - o destino da nação pouco importa quando é seu status que está em jogo. Mesmo não tendo o roteiro assinado por Lanthimos, o maior diretor em atividade, o longa é mais uma prova da genialidade do cineasta enquanto contador de histórias. "A Favorita" é uma luta real pelo favoritismo de uma insana rainha que escancara o nada discreto charme da burguesia.

6. Midsommar: o Mal Não Espera a Noite (Midsommar)

Direção de Ari Aster, EUA.
"Midsommar" não é um fácil filme: sua robusta duração (2:45h na versão do diretor), desconcertantes sequências e inundação de simbolismos tornam a sessão uma trabalhosa digestão para a plateia quando uma garota em luto parte com o namorado para as festividades folclóricas da Suécia. Tão diferente, mas ao mesmo tempo tão parecido com "Hereditário" ao usar o luto como pontapé de seu clima, é injusto comparar as duas obras quando seus objetivos (e luzes!) são tão discrepantes - e, convenhamos, superar "Hereditário" seria utópico. "Midsommar" é narcotizante e hipnótico ao reforçar o terror antropológico e cultural, além de mais uma comprovação (dessa vez colorida e vibrante) de que Ari Aster é um mestre no que faz e um dos mais bizarros términos de relacionamento que o Cinema já fez. Teria sido mais fácil terminar por mensagem.

5. O Farol (The Lighthouse)

Dirigido por Robert Eggers, EUA.
Dois marinheiros são atirados em uma ilhota no meio de lugar nenhum com o único objetivo de cuidar do farol lá presente. O mais velho, atuando no local há muito tempo, parece fissurado pela luz do farol, impedindo que o novato se aproxime. Dono de um par de cenas instantaneamente icônicas, "O Farol" é um sucessor à altura de "A Bruxa" e a solidificação do cinema de Eggers como mitológico quando condena seus personagens - e o algoz é a própria natureza. O filme não tem problema em fotografar nossa existência como algo decrépito, fadado ao insucesso quando estamos tão preocupados em saciar nossos egoístas desejos. Somos de uma fragilidade tão aparente que, às vezes, a natureza nem precisa se esforçar para nos destruir. Nós mesmos nos encarregamos disto.

4. Parasita (Gisaengchung)

Dirigido por Bong Joon-ho, Coreia do Sul.
"Parasita" é um dos cumes de 2019 quando cria uma sessão bizarramente divertida sem, jamais, em momento algum, deixar com que o estudo social saia do ecrã: uma família pobre monta um engenhoso plano para entrar na casa (e na vida) de uma família rica, o que vai permanentemente mudar os rumos de todos. Com um lindo malabarismo de gêneros, o filme enfia a faca em um sistema que fundamentalmente existe ao por um camada acima de outra, o que tira a dignidade do ser humano, predestinado a cometer ações terminais que comprovam o insucesso da separação entre burguesia e marginalizados. Talvez a melhor (e mais insana) luta de classe que tivemos no Cinema nessa década - e aqui estamos falando tanto no sentido figurado como no literal.

3. Bacurau (idem)

Direção de Kleber Mendonça Filho & Juliano Dornelles, Brasil.
Uma cidadezinha no interior do Nordeste é assolada com estranhos acontecimentos após a morte da matriarca da região. Se o povo de Bacurau, o vilarejo, dá o sangue para manter sua identidade viva contra quaisquer ameaças, "Bacurau", o filme, é uma dádiva que levanta a mão e grita "o cinema nacional resiste". E mais ainda: o cinema nordestino - que parece ser o polo principal da indústria contemporânea brasileira. Pondo seu local geográfico no protagonismo, é a terra que faz brotar o mandacaru que sabe onde estão os valores mais importantes de uma sociedade, e que não tem medo de descer a peixeira em quem tenta oprimi-la ou apagá-la. No faroeste psicodélico e distópico de "Bacurau", o Nordeste não vai pensar duas vezes antes de cair na capoeira, então não se meta.

2. Suspíria: A Dança do Medo (Suspiria)

Direção de Luca Guadagnino, EUA/Itália.
Remake do clássico de Dario Argento, lançado em 1977, a empreitada pós "Me Chame Pelo Seu Nome" de Guadagnino abandona o compromisso com a trama do original e cria uma película própria, seguindo apenas a premissa: uma dançarina americana chega à uma escola de balé em Berlim que é controlada por bruxas. As atuações, os diálogos e todos os aspectos visuais de "Suspíria" são irretocáveis, todavia, o melhor é sua atmosfera. Há imagens de beleza irretocável ao lado de cenas perturbadoras, emolduradas por uma narrativa onírica que, a partir de sua técnica, tem a capacidade de transformar o mundo físico em algo etéreo e narcotizante. Dotado de pretensão para dar e vender, "Suspíria" consegue ser traduzido por um diálogo proferido aos berros: "Isso não é vaidade, é arte!".

1. Fronteira (Gräns)

Direção de Ali Abbasi, Suécia.
Uma estranha policial possui o dom de farejar quando pessoas estão cometendo um crime, o que vai desencadear uma corrida policial, a fim de desmantelar uma rede de tráfico sexual e infantil. Indicado ao Oscar de "Melhor Maquiagem", o sueco "Fronteira" funde realismo social com bizarra fantasia, e choca como mundos tão distintos funcionam com perfeição na tela. Fábula que discute o entendimento da natureza - seja a fauna e flora que nos rodeia, seja a nossa própria natureza -, há latente misantropia em seu texto, com um discurso fatalista sobre como pendemos para o pior lado da nossa existência. Aquela mulher que sente o cheiro de culpa é porta-voz dessa obra-prima que surpreende em imagens, sons e mensagens - este é um trabalho original, autêntico e ousado do começo ao fim.

Crítica: “Dois Papas” aparenta ter sido pensado na hora que ligaram as câmeras

É bastante gratificante ver como Fernando Meirelles está aumentando seu portfólio na indústria após ser o primeiro diretor brasileiro a ser indicado ao Oscar de "Melhor Direção" pela obra-prima "Cidade de Deus" (2002) - que é co-dirigido pela Kátia Lund, injustiçada ao ser sempre esquecida na ficha do filme (ela nem ao mesmo foi indicada ao Oscar). Ele dirigiu os hits "O Jardineiro Fiel" (2005) e "Ensaio Sobre a Cegueira" (2008), todos no seio de Hollywood, vendo seu mais novo longa, "Dois Papas" (Two Popes), sendo produzido e distribuído pela Netflix.

É válido entrarmos na discussão sobre a plataforma e seu posicionamento diante da temporada de premiações. A Netflix em 2019 está no apogeu dentro do circuito da Sétima Arte, vendo quatro dos 10 indicados a "Melhor Filme" no Globo de Ouro 2020 sendo originais seus - "História de um Casamento", "O Irlandês" e "Dois Papas" em "Drama"; "Meu Nome é Dolemite" em "Comédia", um feito histórico. Mesmo "Dois Papas" não encabeçando a campanha - a plataforma tem focado bem mais em "História" e "O Irlandês" -, "Dois Papas" tem encontrado seus adeptos.

A obra começa com a morte do Papa João Paulo II em 2005. Os líderes da Igreja Católica partem para o Vaticano a fim de elegerem o novo papa, e a disputa está entre dois nomes: o alemão Bento XVI (Anthony Hopkins) e o argentino Francisco (Jonathan Pryce). Quem vive em um contexto católico já sabe o resultado: Bento XVI vence a eleição.

Por ter um núcleo no Vaticano com pessoas de absolutamente todos os cantos do planeta, é importante avaliar como é o uso da língua, afinal, todo mundo falando um inglês sem sotaque à la uma novela da Glória Perez não denotaria cuidado. Como era de se esperar, há uma pá de cenas em italiano, porém, Pryce sofre quando entra na língua materna de seu personagem. Francisco é argentino, no entanto, Pryce não fala espanhol. A solução foi dublar todas as suas falas na língua, o que é gritantemente artificial. A mixagem de som nas cenas em específico é tão desregulada que é quase impossível manter a atenção no que está acontecendo, principalmente quando há outros atores falando um espanhol verdadeiro. 


Para piorar ainda mais, a produção tenta esconder a falta de sincronia entre a boca de Pryce e a dublagem entupindo as cenas com milhares de cortes e colocando o ator atrás de pessoas, portas, janelas e o que tiver pela frente. Há um momento que Francisco caminha por um mercado e, o que seria uma sequência simples (ele apenas conversa e sai do local), é exagerada ao extremo com cortes, ângulos e movimentos para driblar a dublagem, tudo em vão.

Então o """estilo""" é arrastado em diversas outras cenas. Há duas sensações quentíssimas a partir disso: a primeira é que o filme se esforça herculanescamente na dificultação de cenas que são simplórias, no intuito de parecerem mais intricadas; a segunda é que não havia uma ideia fixa e bem definida da estética imagética da obra na pré-produção, sendo feita na hora que as câmeras eram ligadas. Na primeira conversa entre Bento e Francisco na residência papal, anos depois da eleição de Bento, os dois fazem um passeio pelo jardim do lugar, e a câmera vai para ângulos e enquadramentos totalmente aleatórios, sem uma fluidez para o que mais importa, que é o texto. Parece bem mais que as escolhas são feitas pela beleza das locações - que são incríveis - do que unir o visual com o narrativo. É gratuito um corte estar no rosto dos personagens e partir do nada para um ângulo aéreo e depois para atrás de um arbusto (?).

O cerne de "Dois Papas" habita na relação entre os dois personagens títulos. A película não demora em definir o posicionamento da dinâmica entre os dois homens, quando Francisco está no banheiro assoviando a melodia de "Dancing Queen" do ABBA, música que Bento jamais havia ouvido - e a fita não perde a oportunidade e coloca a cena da votação embaixo da música, um anacronismo bem charmoso. Inclusive, essa cena da votação, logo no início da sessão, é a melhor de todo o filme pela montagem ágil e energética, e a fotografia belíssima, que foca no contraste entre o branco sacro da Capela Sistina com o vermelho das vestes dos votantes. É aqui que as escolhas são corretas, porém, a sequência diverge de basicamente todas as outras em termos de composição e ritmo, então o que funciona aqui não funciona no resto.

A beleza real do longa é a dicotomia entre os personagens, uma dupla que é feita com arquétipos nada novos, mas que são eficazes. De um lado temos Bento XVI, o papa velho, doente e reacionário, contra Francisco, o novo e (dentro dos enormes limites da religião) revolucionário papa que diz que o perdão ajuda o pecador, não a vítima, enquanto assiste futebol e acha que cada gol é um presente do altíssimo. Suas composições são reflexos do status vigente da igreja: Bento enfrenta o escândalo dentro do Vaticano sobre corrupção e pedofilia. Sua instituição está tão falida quanto sua pessoa, e todos precisam do frescor de um novo papa e uma nova igreja, com ideias mais coerentes com a sociedade atual, e esse é Francisco.

Francisco almeja sua aposentadoria do sacerdócio, todavia, o único que tem o poder de conceder tal desejo é o próprio Papa, e Bento se nega veementemente. Seus motivos são revelados quando ele começa a se familiarizar com o "rival": ele quer que Francisco o substitua quando anunciar sua renúncia, um escândalo por si só - um papa não renunciava o cargo há mais de 700 anos. O roteiro é uma repetição dessa teimosia, cada um querendo algo que anula o desejo do outro, e o impasse cansa já na metade do filme.


Falando na duração, "Dois Papas" tem 125 minutos, o que é bastante sólido. Entretanto, pelo menos meia hora poderia ter sido deixada de lado. No segundo ato, o filme literalmente interrompe seu plot central para acrescentar um paralelo: Francisco não se acha digno do posto de papa pelo o que ocorreu durante a ditadura militar argentina. São 25 minutos de flashbacks remontando o que gerou essa mácula no homem, e este outro filme destoa completamente do que "Dois Papas" realmente é. Os rumos vão ladeira abaixo com o típico mote aula-de-história-na-tela, e só comprova o erro que é essa bagunça de decisões sem firmeza dentro da produção.

O roteiro adentra demais em um período histórico da Argentina que não tem o peso compatível com o espaço dado a este período. É interessante vermos o passado de Francisco para ilustrar o que o fez ser tão diferente de Bento XVI, principalmente quando aborda o passado na ciência do homem, só que nada é capaz de render misericórdia para uma mudança tão brusca de narrativa. Além disto, chega a ser cômico como o texto de Anthony McCarten (escritor do livro que o filme se baseia e do roteiro de, eeeeerrrrr, "Bohemian Rhapsody", 2018) é recheado de sacadas para ser inteligente. É verdade que alguns diálogos são bem inspirados - o da construção de muros ao redor da igreja, por exemplo -, mas é muito forçado o uso de pontuações gratuitas para serem usadas em outros momentos só para parecer que o roteiro foi pensado de maneira abstrua - como a fala de Bento sobre a fumaça de uma vela que previsivelmente será usada em outro momento.

O que faz "Dois Papas" ser minimamente assistível é a atuação fantástica da dupla protagonista. Tanto Hopkins quanto Pryce são majestosos na pele dos papas que não se bicam, e assusta como ambos são parecidos com os papas reais - Pryce é a cópia do Papa Francisco, até nas cenas com imagens reais dá para gerar uma dúvida. Mesmo em cenas que não possuem tanto brilho, suas performances fazem tudo valer a pena, e não havia possibilidade de esperarmos algo diferente. Meirelles, que dirige com tropeços o longa, não precisa nem suar para retirar o melhores dessa dupla monstruosa.

Entre diversos erros de produção, um grande acerto de "Dois Papas" é não tomar partido a partir da exposição da fé de seus personagens. Aliás, há um esvaziamento de um sentido real da instituição ao mostrar que o sentido é inventado - são homens discutindo o que deus havia lhes incumbido e, assim, moldado o rumo de uma legião. No entanto, se o argumento é a exposição de brigas de poder versus a santidade do cargo, "Dois Papas" na verdade é uma cinebiografia caótica e mal feita que visa santificar o nosso atual e humilde papa, que recusa a pompa da posição, liga ele mesmo para a companhia de aviação para reservar uma passagem e toma Fanta laranja com pizza recém ungida.

Crítica: “Entre Facas e Segredos” e o malabarismo funcional entre tensão e diversão

Crítica: a crítica contém detalhes da trama.

Histórias de mistério, plots e assassinatos percorrem a cultura há gerações. Dos livros da Agatha Christie até os filmes de Alfred Hitchcock, o público sempre demonstrou imenso interesse pela clássica pergunta "Quem matou insira aqui o nome da vítima?". "Entre Facas e Segredos" (Knives Out) é uma releitura desse mote, o "filme de detetive" (ou "whodunit", o subgênero em inglês).

A noite do aniversário de 85 anos do patriarca da família Drysdale, Harlan (Christopher Plummer) termina com o homem morto. O que inicialmente sugeria um suicídio esconde segredos muito mais complexos, algo que o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) está ávido em desvendar. "Entre Facas em Segredos" tem como solo o questionamento sobre quem matou Harlan, e os suspeitos são inúmeros.

O casting do filme é repleto de estrelas - como Chris Evans, Janie Lee Curtis, Michael Shannon, Toni Collette, Katherine Langford e Jaeden Martell -, e basicamente todos têm culpa no cartório. A estrutura do filme é feita (por meio de uma montagem fabulosa) com cada personagem contando sua versão do enorme quebra-cabeça da noite do crime e flashbacks para que o espectador saiba o que era verdade ou mentira. O que poderia sugerir uma família feliz é rapidamente demolida com os depoimentos, cheios de ressentimentos por parte dos familiares - e a reconstituição das falas criativamente começa com muita simpatia e camaradagem (a maneira como o personagem conta para o detetive) e logo expõe a inconveniente verdade.


Basicamente, todos os principais suspeitos brigaram com Harlan por um único motivo: dinheiro. O patriarca era um famosíssimo autor e proprietário de grande fortuna, e todos ligados à família estão como urubus dentro da casa. A única que parece genuinamente preocupada é Marta (Ana de Armas em uma atuação excelente), a enfermeira particular de Harlan que tinha uma íntima relação com o falecido. Ela, que é fisicamente incapaz de mentir (ela vomita sempre que tenta), é a peça-chave do mistério, sabendo exatamente o que ocorreu naquela noite.

Uma das escolhas corretas do roteiro é não tentar sustentar o filme inteiro com a dúvida sobre quem matou Harlan - na metade da projeção já sabemos. A sacada é dar uma virada e mudar o foco da trama, que sai de "quem matou o patriarca?" para "como Marta vai se livrar da culpa?". É deveras evidente várias surpresas do filme - ele é aberto na casa de Marta, o que já dá a entender que ela é o gancho que prende toda a história -, além do exagero tremendo em jogar peças que gritam culpabilidade, mas que sabemos serem apenas desvios de foco para o real vilão do todo.

E falando em exagero, "Entre Facas e Segredos" tem de sobra. O estilo pode incomodar, porém, assim como um "As Panteras" (2000), você precisa ter em mente que o trem se move em uma constante de absurdos propositais. O longa é tanto uma homenagem quanto uma sátira do subgênero, remetendo a "Disque M Para Matar" (1954) e "Assassinato no Expresso Oriente" (1974) - é válido pontuar que ambos, dois dos maiores nomes do gênero "detetive", são baseados em livros, o que faz de "Entre Facas" uma agradável revelação por se tratar de uma obra original.

O aspecto homenagem/sátira cai principalmente em cima do personagem de Daniel Craig. Uma caricatura ambulante, ele é o ápice da figura clássica do detetive: sotaque esquisito, habilidade for farejar culpa e sacadas de cena feitas ao máximo. Não estranhamente, conversa (de maneira histriônica) com o Inspetor Hubbard de "Disque M", Hercule Poirot de "Expresso Oriente" e, claro, Sherlock Holmes - o personagem até passa o filme chamando Marta de "Watson". Essa é uma fita que não tem vergonha de escancarar suas referências literárias, cinematográficas e pop (um dos policiais fala que a casa é como o tabuleiro do jogo "Detetive", o que foi uma flechada no meu coração).


Rian Johnson, que assumiu a responsabilidade de dirigir "Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi" (2017), comprova ser um habilidoso diretor quando sustenta um filme que aparenta ser simplório, mas é uma realização longe disso. "Entre Facas" é assumidamente uma comédia, contudo, sua fundamentação é o mistério. Portanto, como fazer a plateia rir sem que a tensão da trama seja perdida (uma reação mais que comum em inúmeros filmes que tentam - e falham - unir essas duas sensações contrastantes, não é mesmo, "A Freira", 2018)? Ainda por cima, temos os elementos hiperbólicos, que poderia ainda dar mais errado; e o filme funciona muito bem.

Pelo menos até o terceiro ato. A partir da cena que Marta cede à uma chantagem, a película começa a andar em círculos, jogando reviravolta em cima de reviravolta. Imediatamente lembrei do badalado "Um Contratempo", que deve ser o filme com mais reviravoltas por segundo na história do Cinema (sempre brinco que, caso você pisque durante o filme, perderá 15 reviravoltas e vai ter que recomeçar do início). O que faz "Um Contratempo" funcionar em termos de "temos que surpreender o público" é que seus plot twists são limpos e certeiros, apesar de excessivos. No caso de "Entre Facas", soa como se o roteiro estivesse fazendo malabares com os fatos dados no decorrer do filme, na esperança de que a solução caia nas mãos da produção ao invés de atingirem o chão - e tem pontos que caem de cara, como por exemplo a cena do pingo de sangue, que não é explicada mesmo sendo usada como motivação de um dos personagens.

Dentro todos os erros e acertos (felizmente aqui há mais acertos), o que mais me afeiçoou na fita é a maneira como o texto vai para o campo político. Tentei ao máximo deixar essa crítica livre de spoilers, todavia, abrirei mão da empreitada apenas no presente parágrafo. Marta é uma imigrante latina; sua mãe está nos EUA ilegalmente, um dos temores da protagonista ao se ver enrolada na morte de Harlan. Durante a projeção, inúmeros pontos envolvendo a problemática são inseridos, como o neto simpatizante do Nazismo e o marido xenofóbico e a favor da prisão de imigrantes latinos. Além de fomentar a persona dos peões envolvidos, o roteiro tem uma claríssima mensagem a passar - é hilário ver como cada um deles diz que Marta veio de um país latino diferente, pois, bem, para eles são todos iguais. Aquela burguesia que se esconde atrás de sorrisos perfeitos é cheia de ódio e interesses mesquinhos, e Marta, tomando seu café na sacada da sua nova mansão, assiste com prazer os abutres preconceituosos perdendo tudo. É uma vingança textual deliciosa e um dedo do meio para a Era Trump.

"Entre Facas e Segredos" se sobressai por ser um "filme família" capaz de agradar a todas as faixas etárias sem ser genérico ou redutivo - pelo contrário, é sólido e divertidíssimo. Há caminhos frescos percorridos que demonstram o quanto ainda é possível resgatar estilos com personalidade e eficiência. Grandioso pelo seu batalhão de estrelas e pelo roteiro que estrutura a trama sabiamente, os excessos podem até diminuir a sessão - o filme se esforça para parecer mais complexo do que realmente é -, mas, mesmo sendo familiar e até previsível, é capaz de gerar interesse por todos os 130 minutos e terminar socialmente afiado, sem perdão pelo trocadilho. E Chris Evans como um personagem que odeia cachorros é aula de atuação.

Lista: as 10 piores vitórias do Oscar na década (e o porquê)

Ah, o prêmio da Academia... A maior honraria do mundo do entretenimento é algo de investimentos absurdos por parte de pessoas e empresas em busca do tão sonhado careca dourado. Como já disse Madonna quando perguntada se queria um Oscar, "E quem não quer???". O auge do entretenimento televisivo, há quase um século a premiação faz o mundo parar para ver quem sairá da noite um pouco mais dourado, e nós, também, estamos aqui para julgar tudo isso.

A década de 2010 foi importante para a premiação e, consequentemente, a indústria. Tivemos a primeira mulher a vencer o Oscar de "Melhor Direção", tivemos calorosas discussões sobre a representatividade de minorias entre os indicados, tivemos o primeiro filme 100% negro e LGBT a vencer o maior prêmio da noite, enfim, vimos avanços, mas também vimos algumas decisões que nos fizeram falar "Academia, conte comigo para nada". E aqui trago as 10 piores entre elas.

Cada um dos 10 prêmios listados estão aqui tanto pelo valor absoluto - o que o agraciado fez em seu respectivo filme - quanto pelo valor comparativo - qual era a concorrência naquela categoria. Caso você discorde de algum a ponto de se inflamar, não esqueça: cada um deles está em casa com um Oscar em casa, então unbothered. Faça o mesmo.


10. Brie Larson vencendo "Melhor Atriz" por "O Quarto de Jack", Oscar 2016

Já existe há algum tempo um padrão que envolve o prêmio de "Melhor Atriz": premiar uma atriz nova e promissora em detrimento de uma mais velha e consolidada, afinal, essa lógica rende muito mais para a indústria. Brie Larson foi uma delas. A atriz é deveras competente e faz um bom trabalho em "O Quarto de Jack", todavia, sua vitória é um exagero tremendo, principalmente vendo que ela não era, nem perto, a melhor entre as indicadas: Cate Blanchett por "Carol" e Charlotte Rampling por "45 Anos" eram muito mais merecedoras.

9. "A Grande Aposta" vencendo "Melhor Roteiro Adaptado", Oscar 2016

A Academia se derrete por roteiros complicadíssimos, intricados e com falatório interminável, por isso não surpreendeu quando "A Grande Aposta" venceu "Roteiro Adaptado". Um daqueles filmes que só é valorizado pelo grupinho norte-americano, o roteiro brilhante de "Carol" estava indicado ali do lado, esnobado criminalmente, assim como a falta de indicação à categoria de "Melhor Filme" naquele ano.

8. Tom Hooper vencendo "Melhor Direção" por "O Discurso do Rei", Oscar 2011

O Oscar 2011 foi um daqueles que a gente, quase uma década depois, olha para trás e pensa "o que diabos aconteceu?". Indicados errados e vencedores piores ainda, um dos auges foi a limpa que "O Discurso do Rei" fez, vencendo quatro prêmios. Se for para escolher o pior, com certeza foi Tom Hooper levando "Melhor Direção". Não apenas pela robótica e nada inspirada direção: ele era, literalmente, o mais fraco dos cinco indicados. A cara do Darren Aronofsky (vencedor moral) no anúncio da categoria resume. 

7. "O Jogo da Imitação" vencendo "Melhor Roteiro Adaptado", Oscar 2015

"O Jogo da Imitação" é um daqueles filmes históricos desesperado para ganhar um Oscar. E conseguiu. É verdade que das oito indicações, felizmente venceu apenas uma, e logo naquilo que o filme faz de pior: o roteiro. Esquemático, rasteiro e pronto para uma matinê qualquer, a história de Alan Turing tinha tudo para ser uma sólida biografia LGBT, mas termina como um daqueles textos que sai direto em DVD. Bom pontuar que a categoria em 2015 estava um horror, contudo, "Whiplash" era concorrente. Não dá para entender.

6. "Esquadrão Suicida" vencendo "Melhor Maquiagem", Oscar 2017

Até hoje me pergunto se esse acontecimento é real: "Esquadrão Suicida" tem um Oscar para chamar de seu. Uma indicação já seria o auge de uma honraria para essa bagunça em formato de HQ audiovisual, contudo, a Academia foi ainda mais longe e escolheu a maquiagem do filme - que é, na melhor das hipóteses, "competente" - como a melhor do ano. "Star Trek: Sem Fronteiras" e "Um Homem Chamado Ove" seriam nomes mais dignos.

5. "Bohemian Rhapsody" vencendo "Melhor Montagem", Oscar 2019

Eu realmente podia escrever todo um texto sobre o quão desastrosa é a montagem de "Bohemian Rhapsody" (comento sobre na crítica do filme), porém, vou deixar esse tweet falar por si só.

4. Eddie Redmayne vencendo "Melhor Ator" por "A Teoria de Tudo", Oscar 2015

Você é um ator em acensão e quer um Oscar para chamar de seu? É fácil, só seguir essa fórmula: escolha um personagem real em sua cinebiografia + assista ao máximo de fitas sobre a personalidade, e copie seus trejeitos + exagere na carga emocional, se fizer chorar é ainda melhor + submeta-se a uma mudança física drástica. Seu nome já tá na estatueta, como foi o caso de Eddie Redmayne como Stephen Hawking. Se você assistir apenas à sua performance, pode até ver os motivos que a Academia tenha colocado o nome do ator no envelope, porém, visto que Steve Carell e Michael Keaton entregaram duas das melhores atuações daquele ano, a coisa empalidece. Piora ainda quando percebemos que aquela atuação antes tão coerente é o mote do ator, que desde então repete a mesma coisa em toda atuação.

3. "Green Book" vencendo "Melhor Roteiro Original", Oscar 2019

Já deu para perceber que a 91ª edição do Oscar estava empenhada em acumular fracassos, certo? Em um ano fantástico para o cinema, a Academia apontou o dedo para "Green Book" como o melhor roteiro daquela temporada. Um verdadeiro manual clichê sobre o racismo na nossa sociedade, há absurdamente NADA de inovador nesse texto da mente por trás de "Debi & Lóide" (sim). Chega a assustar quando pensamos que os votantes viram o texto de "A Favorita" e acharam que não era tão bom quanto o de "Green Book".

2. Jennifer Lawrence vencendo "Melhor Atriz" por "O Lado Bom da Vida", Oscar 2013

Aquele esquema que fez Brie Larson vencer o Oscar de "Melhor Atriz" foi o mesmo que rendeu o careca dourado para Jennifer Lawrence. A situação no caso de JLaw é muito pior por um motivo simples: enquanto a atuação de Larson era, vista unicamente, algo até entendível de receber o prêmio, a de JLaw em "O Lado Bom da Vida" é uma tragédia e a pior das cinco indicadas. O filme com toda certeza não ajuda: uma "Sessão da Tarde" sem tirar nem por, passamos por um draminha superficial e um romance água com açúcar para gerar vergonha, e JLaw jamais chega perto de transparecer ser a ninfomaníaca que seu papel tenta por na tela. Para consolar o coração, só pensar que ela venceu o prêmio por "Mãe!". É revoltante, também, lembrar que Emmanuelle Riva morreu sem um Oscar, mesmo depois da genial performance em "Amor".

1. Rami Malek vencendo "Melhor Ator" por "Bohemian Rhapsody", Oscar 2019

"Bohemian Rhapsody" foi, de longe, o maior delírio coletivo da década. Massacrado pela crítica, mas amado pelas premiações, a bomba foi capaz de sair o Oscar 2019 com QUATRO prêmios, o maior do ano - e todos os quatro poderiam estar aqui listados. Mas nada é tão assombroso quanto Rami Malek vencendo "Melhor Ator". Não que ele esteja horrível na pele de Freddie Mercury, mas está bastante longe da excelência que um Oscar pode representar, que seria muito bem exemplificada por Bradley Cooper em sua melhor atuação da carreira por "Nasce Um Estrela". A produção está mais preocupada em tornar Malek o mais similar possível com Mercury (e realmente consegue em vários momentos) do que em compor uma atuação de verdade, afinal, a performance é mais importante que o visual.  Um daqueles prêmios que daqui a alguns anos as pessoas vão olhar para trás e pensar "como foram capazes?". Cachorro coloca dentadura na boca e ganha Oscar de "Melhor Ator".

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