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Crítica: "No Coração da Escuridão" não mede esforços para falar sobre a perda absoluta da fé

O filme alia religião com niilismo e traz discussões complexas sobre como vivemos à base de razões para viver
Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Paul Schrader nunca foi um nome muito popular na boca do grande público, apesar de possuir mais de 20 obras em sua filmografia. Mesmo nenhuma delas conseguindo perfurar a barreira do mainstream, o diretor encontrou demasiado sucesso como roteirista, escrevendo o texto de obras-primas e clássicos como "Taxi Driver" (1976), "Touro Indomável" (1980) e "A Última Tentação de Cristo" (1988), todos dirigidos por Martin Scorsese.

Com sua carreira na cadeira de diretor possuindo maior abrangência nos anos 80; no sec. XXI, Schrader nunca encontrou um sucesso derradeiro, passeando pelo esquecível "Domínio" (2005) - prequel de "O Exorcista" (1973) -, até "Vale do Pecado" (2013), o massacrado último filme de Lindsay Lohan (que eu mesmo não acho ruim). Nessa cambaleante escolha de projetos, finalmente o cineasta conseguiu mostrar todo o seu potencial com "No Coração da Escuridão" (First Reformed), seu mais novo filme.

Aclamado desde o Festival de Veneza 2017, o longa, estreado nos cinemas há pouco tempo, já é o maior sucesso de crítica da carreira de Schrader, com 94% de aprovação no Rotten Tomatos e nota 85 no Metacritic, configurando-se como "aclamação universal" e estando entre os 15 melhores filmes de 2018 no site atualmente.


A fita segue os passos de Ernst Toller (Ethan Hawke), padre de uma tradicional igreja que recebe Mary (Amanda Seyfried), preocupada com a saúde mental do marido, Michael (Philip Ettinger). Esse, ferrenho estudioso sobre os impactos do aquecimento global, deseja que a esposa grávida faça um aborto para que seu futuro filho não venha a viver num mundo em decadência. O encontro de Ernst e Michael, com uma profunda discussão sobre os rumos humanos e o nosso impacto sobre o planeta, vai mudar o destino dos três envolvidos.

Eu assisti ao filme sem ler sinopses ou conferir os trailers, sabendo basicamente nada da trama. Escrevendo sobre o argumento no parágrafo anterior, tive a mesma impressão gerada pelo início da projeção: não sabia muito bem qual era a do filme. Um padre debatendo com um ambientalista radical sobre aquecimento global não parecia caminhar para algo muito concreto. O que me apeguei foi ao fato do extremismo do marido desencadear o desejo pelo aborto, algo que a esposa era contra - foco de narrativa bastante poderoso, principalmente quando temos religião no meio.

Outro aspecto que me fez continuar nessa caminhada para ver até aonde a película chegaria foi o aparato técnico. Qualquer comentário básico em relação a "No Coração da Escuridão" falará acerca da fotografia, que é inegavelmente espetacular. Quase todos os enquadramentos são estáticos e despudoradamente colocam os personagens e objetos dentro do ecrã mais quadrado que o usual retângulo. Não há uma naturalidade de filmagem (e isso não é um defeito, pelo contrário), sendo toda a composição milimetricamente pensada, o que só é potencializada pelos figurinos e design de produção.


Mesmo se passando em tempos atuais, o estilo rústico da arquitetura, com muita madeira, nos transporta para trás, criando um interessante conjunto visual. E a paleta de cores dispensa todo e qualquer tom quente, sendo feita com preto, cinza, azul, marrom e branco, que, junto com a neve, as pesadas roupas e as árvores mortas e retorcidas, dão o aspecto perfeito para o estado de espírito de seus personagens.

Toller assume o caso de Mary e o marido como prioridade em meio ao tédio do local, quebrado apenas pelos preparativos para a celebração do 250º aniversário da igreja em que o protagonista atua, evento realizado pela maior paróquia da região, a Vida Abundante. Só que Toller está ocupado demais em saber quem vai apresentar quem no evento ao tomar conhecimento que Michael possui um colete-suicida, descoberto pela esposa. As paranoias do homem, ainda no campo da teoria, alcançam um patamar preocupante com o achado.

O foco narrativo aterrissa inteiramente no conflito imposto, com Mary não querendo denunciar o marido à polícia por não achar que ele fará mal a ela ou ao bebê, pedindo para Toller levar o colete. Mas rapidamente a atitude se mostra em vão quando Michael se suicida com um tiro, orquestrando para que Toller seja quem encontre seu corpo e seu testamento, que pedia estritamente que suas cinzas fossem jogadas num despejo de lixo tóxico, pertencente à empresa (fictícia) Balq, uma das maiores poluentes do mundo.

O padre segue à risca os últimos desejos do falecido, que desencadeia numa situação fora do seu controle: a Balq é a empresa que financia os custos da Vida Abundante. Consequentemente, como a paróquia é a "chefe" da região, ela exerce poderes sobre a igreja de Toller, que é duramente criticado pelo chefe da companhia, Edward Balq (Michael Gaston), e o pastor chefe da Vida Abundante, Jeffers (Cedric Kyles). A cerimônia de despedida de Michael é taxada como "manifestação política", já que o falecido era abertamente contra a Balq.


Se você está pensando que tudo isso é uma bagunça, acredite, era o mesmo sentimento que eu possuía à essa altura do longa. Todas as tramas não pareciam se encaixar, não havia uma grande conversa entre as partes além da presença de Toller, a espinha dorsal do filme, então minhas esperanças para concordar com os altos elogios da crítica internacional estavam cada vez menores. Todavia, pobre de mim, não antecipei a rasteira que o roteiro de Schrader me daria na próxima curva.

A saúde de Toller degringola rapidamente, enquanto ele, num ato de autodestruição, vai se afogando no álcool. Seu médico suspeita que todos os sintomas sejam sinal de câncer, e antes mesmo de qualquer confirmação, o homem se vê - e se coloca - num beco sem saída. Essa é principal peça no grande quadro que vai naturalmente se formar diante dos seus olhos.

Toller virou padre após perder sua família, encontrando na religião o conforto para continuar com a vida. Enquanto vivia com esse placebo, tudo parecia seguro e confortável, porém ele é bruscamente obrigado a enfrentar dilemas por todos os lados. Há vários comentários sobre como "No Coração da Escuridão" trata-se de um filme acerca do embate da religião com a ciência e a busca do homem pela existência de Deus, todos vieses explorados pelo texto. No entanto, a meu ver, a mensagem do filme não é essa, e sim sobre o momento em que perdemos a razão de viver em sua completude.

Toda a frágil redoma de vidro sob a qual Toller se colocou após a perda da família rui quando ele percebe que Michael tinha bastante razão. O protagonista detinha suas convicções, e faz todo um discurso sobre não ceder ao desespero diante de situações extremas, entretanto, é involuntariamente engalfinhado pelo niilismo assombro plantado por Michael. Estamos, de fato, arruinando com o nosso planeta, e não deve demorar a chegarmos a um ponto insustentável, afinal, já estamos sentindo hoje mesmo os impactos da nossa ação.


A coisa se complica quando ele descobre o envolvimento da Balq com a igreja, caindo no princípio fundamental do capitalismo: é o dinheiro que faz a roda girar. Como sua própria instituição pode estar a mercê de homens que poluem em prol dos bolsos cheios? Até onde o pastor Jeffers, e todos os outros da paróquia, sabem da verdade da Balq, que se vende como empresa amiga do meio ambiente? Como pode o cinismo e o egoísmo estar acima do que é correto?

Com dúvidas sobre a própria instituição, sobre o destino do planeta e, o mais urgente, sobre sua saúde, o último prego no caixão é a atração que Toller sente por Mary, algo proibido. A receita está formada. O homem se vê sem fé, seja ela em que for: nas pessoas, em deus, em si mesmo. Ele está, literalmente, no coração da escuridão, no ponto máximo do desprendimento pela ânsia de viver. É aqui que todas as peças do filme se encaixam e o texto faz sentido.

O que começa parecendo uma obra que atira para todos os lados é justificada por uma sutileza avassaladora ao por na mesa discussões tão atuais e complexas, extraídas por atuações potentes de Ethan Hawke e Amanda Seyfried, essa em seu papel de maior peso da carreira. Engana-se quem acha que "No Coração da Escuridão" se trata de um filme religioso. A fé teísta é mero pontapé para catapultar a profundidade niilista e misantropa do roteiro de Schrader, em seu ápice criativo como cineasta. O filme mostra como somos criaturas que nos alimentamos, antes de mais nada, de razões, de motivos, de sentidos para levantarmos pela manhã e enfrentarmos o difícil ato que é viver, e estamos numa eterna caça por algo ou alguém que nos garanta essas certezas.

disqus, portalitpop-1

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