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Crítica: está tudo bem se você for ao banheiro no meio de “O Irlandês”

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Ator Codjuvante (Al Pacino)
- Melhor Ator Codjuvante (Joe Pesci)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Figurino
- Melhor Montagem
- Melhores Efeitos Visuais

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando pensamos no corpo de trabalho de um diretor, caso ele tenha um estilo bem característico, conseguimos definir do que seu cinema é feito. Alguns exemplos? Wes Anderson e seus filmes coloridíssimos e simétricos; Yorgos Lanthimos e seus filmes estranhos e sarcásticos; Spike Lee e seus filmes engajados e políticos, Sofia Coppola e seus filmes melancolicamente femininos; e por aí vai. Mas é curioso quando olhamos sobre Martin Scorsese.

A filmografia scorseseana é geralmente resumida por "filmes de máfia". Nos mais de 50 anos de atuação, o diretor passeou por uma enorme gama de temas, como "Touro Indomável" (1980), "Depois de Horas" (1985), "A Última Tentação de Cristo" (1988), "O Aviador" (2004), "Ilha do Medo" (2010), "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), "O Lobo de All Street" (2013) e "Silêncio" (2016), todos bem diferentes um dos outros. Contudo, é inevitável apontar a temática gangster como a mais predominante em sua carreira - suas obras mais famosas e premiadas foram as desse mote, inclusive rendendo o único Oscar de "Melhor Direção" para Scorsese.

Então, mesmo não sendo assertivo resumir Scorsese com filmes de máfia, não é lá uma definição tão errada. "O Irlandês" (The Irishman) não me deixa mentir. O filme, inclusive, traz um dos maiores nomes na construção da fama do diretor: Robert De Niro (protagonista de "Touro Indomável" e "Taxi Driver", 1976) na pele de Frank Sheeran, um motorista de caminhão envolvido no crime organizado na Filadélfia dos anos 50. Pesadamente inspirado em fatos e indivíduos reais, a estrutura do filme não é linear, começando com Frank no fim da vida em um asilo contando o que o levou até ali.

Por possuir uma estrutura que caminha entre o tempo, o filme encontraria uma grande empecilho: De Niro, que atualmente possui 76 anos, não teria como interpretar as versões mais novas de seu personagem - assim como outros atores em cena. A solução foi um rejuvenescimento à base de efeitos visuais. O CGI é utilizado com muita precisão, sendo quase imperceptível e mantendo as expressões faciais dos atores, um dos maiores riscos da utilização da técnica - e que explica os 160 milhões de dólares em orçamento, um número altíssimo, principalmente levado em conta que o filme foi distribuído na Netflix, ou seja, sem bilheteria (com exceção do lançamento limitado nos cinemas como parte do processo de submissão ao Oscar - para ser indicado, o filme tem que sair nas salas por pelo menos uma semana).

E falando em Netflix, a plataforma está sedenta por um careca dourado. No Oscar 2019, chegou bem perto com "Roma" (2018), que viu o prêmio de "Melhor Filme" escorrer de suas mãos com uma Academia que ainda olha torto para obras vindouras do streaming. Em 2020, a Netflix vem com força total, tendo os dois maiores nomes da temporada: "O Irlandês" e "História de um Casamento" (2019). A gigante não perdeu tempo em comprar os diretos de distribuição de ambos - ainda investindo milhões na produção de "O Irlandês", visando, não podemos mentir, ser a primeira plataforma de stream a ter um Oscar na estante. Por enquanto, parece que o caminho está trilhado.


Pois bem. "O Irlandês", que foi eleito o melhor do ano pela National Board of Review e recebeu incríveis 14 indicações ao Critics' Choice 2020, um recorde na história da premiação repetido apenas por "A Forma da Água" (2017) e "A Favorita" (2018), resgata o estilo que viu o apogeu nos anos 70 - tanto "O Poderoso Chefão" (1972) quanto "O Poderoso Chefão: Parte II" (1974) venceram "Melhor Filme" na década. Então, sim, é tudo o que esse cinema hollywoodiano de ação mafiosa já nos entregou ao longo da história. E mais: são 3:30h de filme.

Esses pontos aqui renderam inúmeras discussões pela internet, com um crítico fazendo um post no Twitter sobre como assistir a "O Irlandês" como se fosse uma minissérie, dividindo o filme em quatro partes (que, levanto a mão, foi o que fiz). Do outro lado, o Pablo Villaça (um beijo para ele) virou meme quando disse que deveríamos assistir às 3:30h sem parar, não podendo nem ir ao banheiro, para não quebrar o "ritmo da narrativa". Villaça, perdão, mas eu falhei. O que esses dois extremos têm a nos dizer?

Como apontei na crítica de "História de um Casamento", cinema é passível de gostos. Sabe aquele seu amigo que venera qualquer filme de super-herói enquanto você acha um saco? Pois é. Quanto mais afunilado for o estilo, gênero ou molde de uma obra, mais de "nicho" ela será. É o caso de "O Irlandês". Villaça, que tem como filme favorito "O Poderoso Chefão", não surpreende quando ama "O Irlandês", que entrega tudo o que "Chefão" entregou. Para ele, acompanhar os 209 minutos ininterruptamente faz parte das rotinas de apreciação que ele tem pelo mote, o que, de acordo com a enxurrada de comentários acerca, não é a realidade de todo mundo.

O que eu quero dizer é: se você gosta de filme de máfia, esse momento é seu. Caso contrário, "O Irlandês" será um desafio, e é aqui que eu me enquadro. É impossível saber os valores de um filme de máfia caso você não aguente nem ouvir falar sobre? Não, contudo, o gosto da sessão com toda certeza não será tão doce. Admito que me peguei me obrigando a assistir ao filme, que, querendo ou não, é um evento para a Sétima Arte, e, dividindo entre vários dias (calma, Villaça), consegui chegar até o fim. O que posso dizer sobre "O Irlandês"?

O roteiro, escrito por Steven Zaillian, vencedor do Oscar pelo roteiro da obra-prima "A Lista de Schindler" (1993) e especialista em adaptar livros complexos, se atém demasiadamente nos fatos históricos que circulam os eventos do filme. Por trazer personagens reais e fincados num contexto político, há um background da política norte-americana e como ela impacta a vida dos personagens, como a eleição (e morte) de JFK. Então é laborioso escapar da sensação de que estamos assistindo à uma aula de história na tela, mas já garante pelo menos a atenção dos EUA, absurdamente egoicos e prontos para jogarem confetes em qualquer fita que trate sobre, bem, eles mesmos.


Há três vertentes de narrativa dentro do filme. A primeira é quando temos Frank recontando sua vida e quebrando a quarta parede, afinal, ele está falando diretamente com o público. A segunda trata-se da remontagem das falas de Frank, com uma narração e cenas de acordo. Essa é a pior escolha do filme. Feita sempre com uma colagem de micro cenas que duram segundos e que não esperam a plateia assimilar o que está acontecendo, ainda tem a narração e inúmeros personagens entrando e saindo de cena. Em várias dessas sequências eu me via incapaz de entender o que estava acontecendo, soando ainda pior quando havia o contexto histórico jogado em cima de tudo. A terceira é a salvação do dia: quando a presença do Frank idoso sai de cena para uma narrativa convencional.

Aqui, as cenas são compridas e finalmente podemos adentrar no desenvolvimento da trama. E os diálogos, ah, os diálogos... Encontrando maior espaço na parte central da duração, os diálogos são deliciosos, como a briga de Jimmy Hoffa (o lendário Al Pacino) com um mafioso que chegou cinco minutos atrasado para uma reunião. Sem toda a baboseira e falatório, se atendo especificamente nos personagens centrais, o filme mostra a que veio.

E esses momentos informam sem sombra de dúvida o quanto as atuações do trio central são fenomenais. De Niro e o Russell Bufalino de Joe Pesci são os peões silenciosos que conduzem a orquestra, todavia, Al Pacino é o verdadeiro protagonista de "O Irlandês". Não por ter o maior tempo em tela, mas por preencher cada quadro em que aparece com sua fenomenal atuação. É uma satisfação ver o ator, que já viveu tantas glórias, voltar ao topo após sofrer com escolhas desastrosas nessa década - deixo aqui uma cena de "Cada um tem a Gêmea Que Merece" (2011) para ilustrar o que chamo de "desastre", que lhe rendeu o Framboesa de Ouro de "Pior Ator Coadjuvante" pelo papel e apontava o declínio de sua carreira.

Um dos elementos a ser tópico de discussão sobre o filme foi como as mulheres são retratadas: elas basicamente inexistem. Scorsese, um homem branco, realiza seus filmes lotados de homens brancos, o que faz sentido - ele dirige o que está próximo de sua realidade. No entanto, me assustei ao ver que Anna Paquin, vencedora do Oscar, aceitou um papel que, não estou exagerando, não fala 10 palavras. Ela, como a versão adulta da filha de Frank, tem cena após cena sem um mísero diálogo, ganhando voz por cinco segundos no ato final. A atriz saiu em defesa do papel e se disse lisonjeada por estar em um filme do diretor, que é inegavelmente um dos maiores das história, mas não faz sentido reduzir a personagem a nada - e ela ainda chegou a receber indicação de "Melhor Atriz Coadjuvante" em algum dos distritos de crítica no EUA; caso ganhe, será o menor esforço da história a render um prêmio.

"O Irlandês", se olhado de cima do nicho que se enquadra, é uma realização competente que nada difere dos padrões elevados já impostos por Martin Scorsese ao logo das décadas. Traz algo de novo para sua filmografia? Não exatamente. A partir disso, pela sua temática e sua duração, o apreço vai muito da maneira como cada um enxerga os elementos, apesar de itens intocáveis como o aparato técnico e as atuações de primeira linha. Esse é um filme que coloca a subjetividade à flor da pele quando uns o enxergam como um épico sobre moralidades rachadas e brigas de poder, enquanto o mesmíssimo material para outros (e aqui me sento) denota pouco além do letárgico. Mas o mais incompreensível é pensar que Anna Paquin saiu de casa para isso.

Conceito, coesão e aclamação: Gal Gadot laça raios no trailer de "Mulher-Maravilha 1984"

Após uma longa espera, o primeiríssimo trailer de "Mulher-Maravilha 1984", dirigido por Patty Jenkins, está entre nós! O vídeo foi liberado neste domingo (8) após ser exibido na CCXP 2019 e traz a heroína interpretada por Gal Gadot sendo fodona pra caralho, laçando raios e usando uma amadura dourada que deixou todo mundo de queixo caído. A própria Cavaleira do Zodíaco.


Conforme anunciado há meses, o trailer traz de volta também o Steve Trevor, interpretado por Chris Pine. A volta do personagem traz mistério para a trama, visto que ele morreu no primeiro longa-metragem da heroína, estreado em 2016. De qualquer modo, esta é somente uma das diversas subtramas que o filme irá trazer, né? Só pelo trailer parece que irá ser abordado muitas coisas em um play de prováveis duas horas.

Neste trailer, ainda pudemos ver um pouco sobre a relação de Diana e Cheetah, que será vivida por ninguém menos que Kristen Wiig. É interessante perceber que ambas irão desenvolver um relacionamento de amizade antes que o roteiro as transforme em inimigas. Infelizmente, o visual final de Cheetah ficou de fora por enquanto.

Antes do lançamento do trailer, em uma parceria inédita, a Warner e Twitter ainda exibiram ao vivo o painel do filme na CCXP, que contou com Patty Jenkins e Gal Gadot. No painel, ambas falaram um pouco sobre suas expectativas quanto a produção e Gadot revelou que este é o maior filme que ela já fez.

"Mulher-Maravilha 1984" chega aos cinemas em junho de 2020.

Crítica: a D.R. de “História de um Casamento” conquista por abraçar o universal

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Adam Driver)
- Melhor Atriz (Scarlett Johansson)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Laura Dern)
- Melhor Trilha Sonora

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Noah Baubach é um dos maiores expoentes do cinema indie norte-americano na atualidade. Seja pelos seu roteiros (ele co-escreveu "A Vida Marinha com Steve Zissou", 2004, e "O Fantástico Sr. Raposo", 2009, com Wes Anderson), seja pelos seus próprios filmes (como o clássico independente "Frances Ha", 2013, protagonizado pela sua esposa e cristal do cinema, Greta Gerwig), há muito tempo Baubach encontra o carinho do público e crítica, mas nunca antes como com "História de um Casamento" (Marriage Story).

Charlie (Adam Driver) comanda e dirige uma companhia de teatro em Nova Iorque, e tem como estrela de suas peças a sua esposa, Nicole (Scarlett Johansson) - teve um déjà vu? Só que a relação nos palcos não reflete mais a relação doméstica, e o casal decide se separar. Como prominente atriz, Nicole é escalada para uma série em Los Angeles, e vai até lá com o filho, o que transformará uma pacífica separação em uma guerra judicial.

O longa espertamente é aberto com um voice-over do casal, contando os meandros do outro e todos os detalhes que os fizeram se apaixonar. É muito divertido acompanhar a dicotomia dos dois, e impossível não projetar para nossas próprias vidas, afinal, estamos em constantes relações com pessoas que inevitavelmente terão diferenças drásticas com o que somos. E essa é a magia da coisa. O que parecia um apaixonado início é brutalmente cortado: os textos são cartas que cada um teve que escrever na terapia, só que Nicole se recusa a ler a dela em voz alta. O público é o seu cúmplice.

Com cada um vivendo em cidades diferentes, o trabalho é o motivo para, civilizadamente, justificar o afastamento (emocional e geográfico) dos dois - uma peça de Charlie está indo para a Broadway e as gravações de Nicole começaram. Havia um acordo entre eles: não seria preciso a intervenção de advogados no divórcio, com uma camaradagem expressiva entre eles, até mesmo na divisão dos bens, só que Nicole quebra o acordo e contrata Nora (Laura Dern), advogada especialista em separação que mudará toda a dinâmica do jogo.


Charlie fica consternado quando recebe a intimação judicial, sem entender o que levou a ex-esposa a tomar tal decisão. O roteiro diabolicamente não entrega a resposta de imediato, quase transformando Nicole na vilã da história, contudo, há um motivo, e dos bons: ela descobriu que Charlie a traiu. É claro que cada um tem uma "justificativa" que tenta anular a reação do outro, em uma das melhores cenas de toda obra, quando os dois aos berros vomitam suas mágoas e procuram atacar da forma mais baixa possível o outro. E note o trabalho belíssimo de fotografia e montagem, abrindo a cena com um enorme plano e gradualmente fechando até focar no rosto transtornado do casal.

Uma das nuances mais corretas de "História de um Casamento" é não se limitar em ser somente um olhar sobre uma relação em ruínas. Há um forte estudo sobre o que é essa instituição que chamamos de casamento e qual o papel de homem e mulher dentro dele. Tudo é jogado ao máximo quando inserido no contexto da advocacia, que tem como base o uso desses papéis no grande jogo de convencimento jurídico. Nicole jamais pode transparecer ser uma esposa ruim, pois isso a configuraria como uma mãe ruim, e a guarda do filho seria perdida. No caso do homem, tal peso inexiste. É aqui que habita, para mim, o melhor diálogo das mais de 2h de sessão, quando Nora dá uma aula sobre a construção social da mulher dentro do relacionamento, lincando com a imagem de Maria, mãe de Jesus, "uma virgem que dá à luz, apoia o filho incondicionalmente e o abraça enquanto ele morre; e o pai nem dá as caras, deus é o pai, deus está no céu e nem aparece!". O Oscar de "Melhor Roteiro Original" já tem dono.

Falando em Dern, uma das maiores cotadas ao Oscar de "Melhor Atriz Coadjuvante" e uma das melhores atrizes em atuação, não há muito o que se falar contra ela, porém, sua personagem é similar demais com Renata Klein, seu papel vencedor do Emmy na série "Big Little Lies" - mas não se engane, ela é ótima em cena, mesmo com uma personagem dentro do molde "advogado ixperto" tão batido no cinema. Adam Driver, que só pode ser escalado para personagens bem específicos, parece transbordar na pele de Charlie, caminhando com imensa segurança entre os momentos dramáticos e cômicos (a cena do canivete). Todavia, "História de um Casamento" é engolido por Scarlett Johansson.

A atriz, que na corrente década caiu de vez nas graças do cinema pipoca - "Os Vingadores" (2008) e todos seus intermináveis filhotes, "Lucy" (2014), "A Vigilante do Amanhã" (2017), etc - entrega a sua melhor atuação do período nessa personagem que exige tanto talento. Há monógolos enormes e coreografados, que são executados com maestria pela atriz, unindo uma exigência enorme para a fluidez de cada cena com o estilo mumblecore que Baumbach adota em seus filmes. De fato, o apogeu de Johansson e a volta para sua boa forma.


A maior cartada de "História de um Casamento" é o realismo a que se propõe. É um filme bem "gente como a gente", tratando de dramas reais com pessoas reais, o que explica o imenso apreço dos espectadores, catapultando o longa como um dos mais ovacionados do ano. Além disso, há esmero na composição de seus indivíduos, enriquecendo ainda mais o universo multidimensional que é a vida dos personagens, contudo, mais uma vez iremos nos debruçar em um elemento seminal de qualquer arte e que muita gente ainda se recusa a aceitar: a  subjetividade.

Entre achar "História de um Casamento" um "filme sobre brancos discutindo a relação" e "uma das mais tocantes histórias do ano" (são comentários reais que li a respeito da película), tudo parte do princípio que cada pessoa irá ser atingida de uma forma diferente pelo mesmo filme. O estilo proposto por Baumbach possui fácil apelo pela proximidade que ele coloca seus mundos dos mundos reais, só que esse é um filme que, daqui a um mês eu estarei na fila da padaria e pensando "nossa, que perfeito"? Não.

Aqui temos o Cinema como contador de histórias do cotidiano, uma das funções seminais da Sétima Arte, e "História de um Casamento" atinge esse objetivo facilmente. É simpático, caloroso e, ao mesmo tempo, emocionante, uma fórmula pronta para arrebatar multidões, no entanto, mesmo tendo abraçado e me apegado ao todo, não é um estilo que me arranque suspiros ou que me devaste; é o mesmo que alguém amar filmes de super-herói, ou de faroeste, ou os "estranhões", ou os de máfia, e por aí vai e está tudo bem. É um ótimo filme que, sendo bem detalhista, não foge à regra de tantos outros com a mesmíssima temática e estilo, como "Cenas de um Casamento" (1973) e a maior referência, "Kramer vs. Kramer" (1979) - até os posteres são parecidos. Soa desconfortável apontar, porém, o apreço circula ao redor da sua preferência estilística - como basicamente acontece com todo filme - mas, no fim do dia, é essa a verdade.

"História de um Casamento" é um filme que deve ser visto pela dissecação palpável do quão complexo somos e como tudo vai para um limite além quando buscamos a utópica máxima de "juntos somos um só" dentro de um relacionamento. A vida de Charlie e Nicole é tão congruente com a vida de vários outros Charlies e Nicoles sentados diante da tela, e as decisões feitas por Noah Baumbach universalizam sua obra a um estágio que pode ser explicado pela sua imensurável aclamação. Assim como não dá para fugir que "História de um Casamento" é feito para fisgar multidões - até mesmo o genérico título, que não denota singularidade, resume a ideia -, não dá para fugir da particularidade de que prefiro muito mais uma fita que extrapole a realidade nas imensas possibilidades que a Sétima Arte nos agracia do que uma que seja expectadora da realidade pura e simples. E isso não é um problema de "História de um Casamento".

Lista: os 20 melhores filmes de terror da década

Preciso começar esse post apontando uma obviedade provavelmente desagradável para você que chegou até aqui: essa não é uma lista com os melhores filmes de terror dos anos 2010. Pelo menos não da maneira que você imagina. Eu, como extremo entusiasta do horror desde sempre, já esbarrei com inúmeras listas de melhores de alguma faixa temporal específica, e basicamente todas tinham algo em comum: o que era considerado "terror".

A ideia comum do que é "terror" é aquele filme que assusta - os "Invocação do Mal" e "Annabelle" da vida (que, entrando rapidamente no âmbito da subjetividade, são péssimos). Sim, os exemplos citados e seus similares são filmes de terror, porém, o gênero abrange muito, mas muito mais. Na nossa atual indústria do cinema, que condiciona filmes de terror no molde de jump-scares, muita coisa é deixada de fora ao não ser considerado terror, o que é uma insanidade.

Em uma rápida busca na definição de "terror" como gênero cinematográfico, encontramos que é um gênero que visa explorar o macabro, criando medo ou repulsa no público por meio de uma força maligna - que vai de demônios, vampiros e bruxas até desastres naturais e serial killers. E isso é uma definição do todo, se entrarmos nos sub-gêneros, a coisa vai ainda mais além.

Nesse encerramento de década, podemos ver que os anos 10s foram marcados por duas vertentes bastante fortes: o remake e o found-footage. Vimos inúmeros revivals de clássicos, como "Deixa Ela Entrar" (2010), "A Hora do Pesadelo" (2010), "Doce Vingança" (2010), "Maníaco" (2012), "Carrie: A Estranha" (2013), "A Morte do Demônio" (2013), "Poltergeist" (2015), "A Bruxa de Blair" (2016), "Suspiria" (2018), e a lista continua. Do outro lado, com o sucesso absurdo de "Atividade Paranormal" e "Rec", o found-footage encontrou um boom, com "O Último Exorcismo" (2010), "V/H/S" (2012), "Amizade Desfeita" (2014), "A Possessão de Deborah Logan" (2014), "A Visita" (2015), etc etc etc. E, não é uma surpresa, a saturação dos moldes só ajuda na ideia de que terror não é um gênero "sério" - só ver quantos filmes de terror foram indicados ao Oscar de "Melhor Filme" nos últimos 10 anos: dois longas (e ambos estão na presente lista).

Sem mais delongas, os critérios de seleção e classificação da lista: 1: ser um longa metragem lançado na década de 2010; 2: ter o gênero "terror" como um dos principais em sua ficha técnica; 3: a maneira como o filme trabalha o terror. Então, a ordem da lista não está baseada no filme como um todo, e sim na qualidade, relevância e execução do terror, o que deixa a ordem mais justa ao ser avaliado um gênero que tem pesos diferentes entre as obras. Como sempre, todos os textos são livres de spoilers e, agora, acompanhados do sub-gênero mais marcante de cada escolhido. Pronto para a maratona?

20. Os Famintos (2017)

Dirigido por Robin Aubert, Canadá. Sub-gênero: terror zumbi.
Zumbis estão presentes na cultura pop há gerações, tendo seu ápice na modernidade com a série “The Walking Dead”. Seja com abordagens voltadas ao gore – como em “Madrugada dos Mortos” – ou à comédia – vide “Zumbilândia” –, nenhum vence “Os Famintos” na categoria que basicamente não é explorada em gêneros fantásticos: o realismo. Como seria o mundo se, de fato, zumbis tomassem conta? Esse é o pontapé da produção, que, apesar de inevitavelmente carregar traços de terror, é, acima de tudo, uma produção dramática. Narcotizante, tenso e climático, “Os Famintos” é conquista notável como trabalho de gênero – e aqui você pode, sem medo, falar “olha essa fotografia fa-bu-lo-sa!”.

19. Evolução (2015)

Dirigido por Lucile Hadžihalilović, França. Sub-gênero: terror fantástico.
"Evolução" parece se passar em outro universo e outro tempo. Fincando em uma ilha, um garoto vive com sua mãe. Todos os habitantes são crianças meninos, suas mães e as enfermeiras do hospital local, o lugar que todos os garotos vão parar. "Evolução" beira o limite do hermético, porém, vai arrebatando o público quando joga pedaços do quebra-cabeças que soluciona o todo, um mistério que caminha sobre a certeza e o fantástico e entrega tanto beleza quanto morbidez.

18. Kill List (2011)

Dirigido por Ben Wheatley, Reino Unido. Sub-gênero: terror psicológico.
Ex-soldado sofrendo para manter as contas em dia aceita o trabalho de matador de aluguel. Só que, para seu espanto, ao apontar a arma para a vítima comprada, ouve um agradecimento. "Kill List" e seu ritmo lento pode afastar a plateia mais acostumada com um terror incansável, mas a sessão vale total a pena pela direção seguríssima de Wheatley. Cultos obscuros, tragédias passadas e teorias da conspiração são os temperos dessa pérola ainda escondida para o mainstream, capaz de arrepiar a epiderme com seu último ato devastador.

17. Grave (2016)

Dirigido por Julia Ducournau, França. Sub-gênero: terror dramático.
Uma garota vegetariana recém chegada na faculdade é forçada a comer carne no trote do curso, o que desencadeia uma fome por carne humana que, pouco a pouco, vai dominando a menina. Seguindo a tradição do horror francês, "Grave" é uma metafórica viagem que força o espectador a vislumbrar o desabrochar violento de uma garota para os desejos mais primitivos do seu ser, dialogando com a repressão sexual feminina num final para ver de joelho. Há bastante metáforas na tela que visam debater como as mulheres ainda são tratadas como pedaços de carne pela sociedade. Só que, aqui, as mesas viram.

16. A Região Selvagem (2016)

Dirigido por Amat Escalante, México. Sub-gênero: terror sci-fi.
O sexo em si é um tabu enorme ainda hoje, mas, muito mais que o ato sexual, a sexualidade especificamente feminina é ainda mais censurada. Homens são quase treinados, desde pequeno, a explorarem sua sexualidade, uma área proibida para o sexo oposto. Com o mexicano "A Região Selvagem", é a vez das mulheres. Quando um meteorito cai na cidade de Alejandra, ela finalmente descobre o prazer nas mãos (ou nos tentáculos) de um alienígena, que rende cenas bizarras pelos gráficos e pela interpretação assustadoramente palpável. Filme com mulheres abraçando suas sexualidades, em que a protagonista se cansa dos machos da mesma espécie e fazem sexo com uma criatura não-humana que consegue satisfazê-la como homem nenhum? Obra-prima.

15. A Caverna (2014)

Dirigido por Alfredo Montero, Espanha. Sub-gênero: found footage.
Que o found footage já deu o que tinha que dar, todo consumidor do terror já sabe. Só que, de vez em quando, ainda é lançado algum exemplar que mostra que, com criatividade e competência, ainda há o que ser extraído da técnica. "A Caverna" é um dos maiores acertos do horror contemporâneo ao unir a veia comercial com o primor da arte - a plateia vai se manter grudada na cadeira enquanto se contorce de claustrofobia num produto de real qualidade. Simples em sua premissa e estrelar em concepção, o longa faz o que muitos terrores esquecem: o quanto nós mesmos somos estopins para o medo. É muito mais fácil aceitarmos o medo vindouro de algo que existe do que vampiros, lobisomens ou demônios - e em situações como a de "A Caverna", a pessoa do seu lado é seu inimigo mais do que qualquer alienígena invadindo o planeta.

14. O Segredo da Cabana (2012)

Dirigido por Drew Goddard, EUA. Sub-gênero: terrir.
Uma galera jovem vai aproveitar as férias em uma cabana na floresta, local que vai ser o túmulo de muitos. Soa familiar? Sim, essa é uma premissa pra lá de conhecida, e é proposital. "O Segredo da Cabana" vai no que há de mais óbvio e clichê no terror norte-americano e, de forma sagaz, reinventa uma roda já há muito tempo gasta. Um terrir legítimo (terror + comédia), o filme enterrou essa história específica de maneira criativa, lúdica e que jamais deixa a bola cair, criando camadas cada vez mais eletrizantes. O clímax, uma enorme homenagem ao gênero, é sensacional.

13. No Tecido (2018)

Dirigido por Peter Strickland, Reino Unido. Sub-gênero: terror sobrenatural.
Uma mulher recém-divorciada decide reaver sua vida amorosa. O que ela precisa para dar aquele ânimo na sua autoestima? Um vestido novo. Ela escolhe um longo vermelho e maravilhoso, sem saber que ele é um objeto amaldiçoado, decidido a matar quem o use. Sim, "No Tecido" é um filme sobre um vestido assassino. A película sabiamente não se leva tão a sério (nem teria como), jogando toda a sua seriedade na composição do ecrã de seu universo, um híbrido majestoso entre o novo e o velho. Hilário e desconcertante na medida correta, "No Tecido" é delicioso em sua atmosfera e visual.

12. A Casa Que Jack Construiu (2018)

Dirigido por Lars Von Trier, Dinamarca. Sub-gênero: terror dramático.
O nome de Lars Von Tier está sempre de mãos dadas com a polêmica, já que o diretor não tem papas na língua e coloca no ecrã temas tabus e controversos. "A Casa Que Jack Construiu" não foge da regra: ao seguir 12 anos na vida de um serial killer, Trier passa a faca sem piedade no império cultural e político de Donald Trump, expondo as brutalidades sociais afloradas pela vitória do presidente norte-americano - cada um dos segmentos são brutais em termos visuais e violentos como crítica. Mesmo sutilmente (foco nos bonés vermelhos), "Casa Que Jack" escancara a América que ensina crianças a amarem armas, que gera massacres em escolas e que vira as costas para não ajudar o próximo. Uma sátira não só ao "homus trumpus" como ao cinema de horror, Trier nos leva até ao Inferno a fim de mostrar que o conservadorismo virou uma praga.

11. Cisne Negro (2010)

Dirigido por Darren Aronofsky, EUA. Sub-gênero: terror psicológico.
Um dos seletos filmes de terror a serem indicados ao Oscar de "Melhor Filme" (e, no caso, o vencedor moral da categoria em 2011), "Cisne Negro" tem o desafio de sua protagonista (que deu "Melhor Atriz" à Natalie Portman) de interpretar o papel principal do balé "O Lago dos Cisnes": ela é ideal como o Cisne Branco, o lado puro, mas não consegue exalar o Cisne Negro, o viés fatal. Uma montanha-russa, "Cisne Negro" funciona como metáfora da perseguição artística pela perfeição, e o quanto essa corrida pode nos levar à loucura. Desglamourizando a beleza do balé, há uma verdadeira guerra na cabeça da protagonista, que vai rapidamente ruindo seu psicológico e misturando real e alucinação.

10. Demônio de Neon (2016)

Dirigido por Nicolas Winding Refn, Dinamarca. Sub-gênero: terror psicológico.
Uma jovem e virginal garota chega na cidade grande com o sonho de se tornar modelo, e "Demônio de Neon" está para a moda assim como "Cisne Negro" está para o balé. No entanto, o grande editorial de luxo que é o filme de Refn aborda de forma mais brutal e macabra os corredores sujos de inveja e sangue que alimentam (e matam de fome) sonhos e egos, sendo uma psicodélica viagem ao submundo fashion, com requintes técnicos violentamente perfeitos evocando sensações desconcertantes no espectador, forçado a embarcar em loucuras de página de revista. O final, onde o filme empurra todos os limites, culmina numa das mais memoráveis e arrepiantes conclusões dos últimos tempos, a última cereja do bolo grotesco – todavia sempre lindíssimo – trabalho que é “Demônio de Neon”.

9. O Farol (2019)

Dirigido por Robert Eggers, EUA. Sub-gênero: terror psicológico.
Dois marinheiros são atirados em uma ilhota no meio de lugar nenhum com o único objetivo de cuidar do farol lá presente. O mais velho, atuando no local há muito tempo, parece fissurado pela luz do farol, impedindo que o novato se aproxime. Dono de um par de cenas instantaneamente icônicas, "O Farol" é a solidificação do cinema de Eggers como mitológico quando condena seus personagens - e o algoz é a própria natureza. O filme não tem problema em fotografar nossa existência como algo decrépito, fadado ao insucesso quando estamos tão preocupados em saciar nossos egoístas desejos. Somos de uma fragilidade tão aparente que, às vezes, a natureza nem precisa se esforçar para nos destruir. Nós mesmos nos encarregamos disto.

8. Corra! (2017)

Dirigido por Jordan Peele, EUA. Sub-gênero: terrir.
O último terror a chegar no Oscar de "Melhor Filme", "Corra!" é um evento cultural e marco no gênero. Um jovem negro finalmente vai à casa dos pais da namorada branca. Há toda uma tensão velada, que parte do próprio protagonista, mas todos não param de falar o quanto estão de braços abertos para a diversidade do casal, o que, não surpreendentemente, é faxada para um plano maquiavélico. O longa não está preocupado em esconder seus clichês e óbvias referências; o que “Corra!” está preocupado é em compor momentos que elevam o seu gênero, carregado por cenas geniais e discussões sobre racismo postas de maneira lúdica, esperta e incisiva pelas lentes do diretor/roteirista Jordan Peele - que levou o Oscar de "Melhor Roteiro Original".

7. Midsommar (2019)

Dirigido por Ari Aster, EUA. Sub-gênero: terror folk.
"Midsommar", o "O Homem de Palha" da nossa geração, tem uma robusta duração, desconcertantes sequências e inundação de simbolismos, o que tornam a sessão uma trabalhosa digestão para a plateia. Usando o folclore sueco como combustível de seu roteiro, o longa é narcotizante e hipnótico ao reforçar o terror antropológico e cultural, além de mais uma comprovação (colorida e luminosa) de que Ari Aster é um mestre no que faz e um dos mais bizarros términos de relacionamento que o Cinema já fez. Teria sido mais fácil terminar por mensagem.

6. Boa Noite Mamãe (2014)

Dirigido por Veronika Franz & Severin Fiala, Áustria. Sub-gênero: terror dramático.
Dois irmãos gêmeos estão ansiosos pelo retorno da mãe, afastada de casa para se submeter à cirurgias plásticas. Todavia, quando ela retorna, os irmãos têm plena convicção de que aquela mulher é uma impostora. "Boa Noite Mamãe", um dos raríssimos exemplares a serem selecionados para o Oscar de "Melhor Filme Internacional", é uma lenta epopeia de duas crianças tendo que lidar com uma dúvida esmagadora, potencializada pela escolha imagética brilhante da mãe, que emana uma áurea vilanesca. Brincando com expectativas e reações, esse é um clássico do terror contemporâneo pela excelência em suas imagens, atmosfera e realizações.

5. Clímax (2018)

Dirigido por Gaspar Noé, França/Bélgica. Sub-gênero: terror psicológico.
"Clímax" não é uma produção recomendável, mas pelos motivos corretos: quando um grupo de dançarinos descobre que a bebida da festa foi batizada com LSD, o lado mais animalesco de cada um vem à superfície. Esse é um filme que não só demanda como suga o emocional do público, tão massacrado quanto os personagens, presos em uma bolha ácida que não escolheram e nem podem escapar. E talvez seja a impotência - tanto nossa como deles - que faz "Clímax" tão bizarro. Gaspar Noé nunca pôs os dois pés no terror, apesar de sempre flertar no gênero, e dessa vez ele não apenas entrou como filmou um show de horrores inacreditável, transformando cinema em uma experiência sensorial.

4. Mãe! (2017)

Dirigido por Darren Aronofsky, EUA. Sub-gênero: terror psicológico.
Um dos filmes mais controversos e divisores de opinião da década, "Mãe!" possui uma forte mitologia, mas não se trata de monstros ou elementos sobrenaturais. O horror é feito pelas nossas próprias mãos, e poucas obras são capazes de fomentar o pavor que é a sessão servida por "Mãe!".  Bebendo largamente da fonte bíblica, Aronofsky consolida seu nome na arte e realiza mais um imperdível - e sim, pretensioso - capítulo de sua cinematografia, que, apesar de não ser um filme para todos os públicos, é inesquecível pelas imagens e discussões, com a exclamação do título sendo um pequeno aviso para o que está por vir. Não senta na piaaaaa!

3. Suspiria (2018)

Dirigido por Luca Guadagnino, EUA/Itália. Sub-gênero: terror sobrenatural.
Remake do clássico de Dario Argento, lançado em 1977, Guadagnino abandona o compromisso com a trama do original e cria uma película prórpia, seguindo apenas a premissa: uma dançarina americana chega à uma escola de balé em Berlim que é controlada por bruxas. As atuações, os diálogos e todos os aspectos visuais de "Suspiria" são irretocáveis, todavia, o melhor é sua atmosfera. Há imagens de beleza estonteante ao lado de cenas perturbadoras, emolduradas por uma narrativa onírica que, a partir de sua técnica, tem a capacidade de transformar o mundo físico em algo etéreo. Dotado de pretensão para dar e vender, "Suspiria" é um pesadelo filmado que consegue ser traduzido por um diálogo proferido aos berros: "Isso não é vaidade, é arte!".

2. A Bruxa (2015)

Dirigido por Robert Eggers, EUA/Canadá. Sub-gênero: terror sobrenatural.
“A Bruxa” trata de muitos subtextos, mas é, acima de tudo, uma celebração do caos. É a regurgitação fidedigna de todos os maiores medos que nós temos: medo da solidão, perda, dor, morte, do mal em si. O filme não é de fato assustador no modo convencional da palavra, é macabro pelas suas metáforas, com algumas passagens perturbadoras que chocam pela crueza e vivacidade do mal. Ainda por cima, é pilar fundamental para a indústria do terror, colocando nos grandes postos um estilo marginalizado aos cinemas de arte e mudando os rumos do gênero.

1. Hereditário (2018)

Dirigido por Ari Aster, EUA. Sub-gênero: terror sobrenatural.
Em boa parte da duração, parece que "Hereditário" se contentará em ser um filme que, ao invés de produzir medo, vai explanar acerca do seu impacto sobre o ser humano, o que é concreto até chegarmos ao clímax, um pesadelo assustador na tela que não mede limites para catapultar o espectador no meio do pandemônio instaurado. Tudo é milimetricamente justificável, e, por isso, ainda mais aterrador e impactante, parindo diante dos nossos olhos um dos melhores finais da história do cinema de terror – soando ainda mais delicioso quando percebemos que “Hereditário” é o trabalho de estreia de Ari Aster, logo num gênero tão difícil. Daqueles filmes fundamentais não só para o terror como também para o Cinema. "O Exorcista" finalmente encontrou seu filhote no novo século.

Crítica: “As Golpistas” é gerado por mulheres, mas parece direcionado para homens

Nesse mundinho de divas pop indo parar nos cinemas, vimos inúmeros exemplos malfadados, com os sucessos sendo resumidos em dedos de uma mão só (um beijo "Nasce Uma Estrela", 2018). Jennifer Lopez mesmo, há tempos não é apenas uma cantora de charts, com vários filmes em seu currículo - e ganhando notoriedade em 1997 como Selena Quintanilla na cinebiografia "Selena". O hype de "As Golpistas (Hustlers) foi construído em cima de Lopez, que desde a estreia no Festival de Toronto 2019 começou uma trajetória que provavelmente a levará ao Oscar.

"As Golpistas" conta a história real de strippers que elaboraram um golpe suficientemente eficaz para pagarem suas casas e comprarem casacos de chinchila (não usem peles, meninas). Destiny (Constance Wu) luta para manter as contas em dia e vê em Ramona (Jennifer Lopez), a melhor stripper de sua boate, como a mentora perfeita para sua ascensão na profissão, que verá o declínio com a crise norte-americana de 2008. É daí que o golpe começa a ser bolado.

A estrutura do filme consiste em Destiny sendo entrevistada por uma jornalista em 2014. Ela reconta os fatos ocorridos e que viriam a ganhar notoriedade após a prisão do grupo anos antes, passeando entre cenas da entrevista e flashbacks. Por algum motivo além da minha compreensão, Wu atua muito mal quando a câmera foca no presente - não sei se ela foi instruída pela direção a se portar da maneira que foi vista, mas há algo de muito inatural ali.

Umas das impressões iniciais de "As Golpistas" é como o roteiro não tem a preocupação de desenvolver suas personagens de uma maneira fluida. O passo-a-passo é muito evidente, afinal, esse é um filme de "assalto" (ou "heist film", como o subgênero é conhecido), aqueles que mostram as etapas de um roubo ou golpe, então temos uma estrutura muito limitada. Já de cara temos Destiny, a "garota nova", encontrando dificuldade em se destacar na boate, e logo em seguida entra Ramona com seu espetáculo no cano - JLo está competentíssima na pele da stripper, a melhor coisa de toda a película. A fórmula é dada de maneira elementar demais.


Tão verdade que quase não temos um background para as personagens - elas nascem no ecrã daquela maneira e é isso aí. Quando o texto tenta incluir camadas de desenvolvimento, principalmente com Destiny (que é a protagonista), é de maneira jogada: do mais absoluto nada surge um namorado, e imediatamente ela descobre que está grávida. Corta a cena e ela expulsa o namorado de casa, com a filha aos gritos. Ainda existe a subtrama com a avó de Destiny, que é explicada de maneira convencional e, para ser sincero, não acrescenta o quanto poderia.

Com Cardi B e Lizzo interpretando, bem, elas mesmas, "As Golpistas" se contenta com os meios já previstos dentro de seu subgênero e não se dá ao trabalho de entregar mais do que isso. O auge e o declínio do golpe são vislumbrado antes mesmo de ele surgir na tela, tamanha obviedade. E nem é tão complexo assim sair do rasteiro: "Animais Americanos" (2018) é um exemplo bem recente de heist movie com a exata mesma estrutura de "As Golpistas" (entrevistas com os envolvidos e remontagens dos eventos em flashbacks) e que burla qualquer limite pré-imposto.

Entre hits da música pop dos anos que os letreiros informam - "Gimme More" da Britney Spears em 2007, obrigado -, um detalhe berrante me chamava a atenção: a maneira como a narrativa da obra foi concebida. Ramona, veterana na boate, explica todo o sistema do local, desde as maneiras como Destiny deve abordar os clientes e os tipos de clientes. Depois, temos explicações de como funciona o golpe que intitula o filme, fora outros pormenores (como o procedimento da mistura das drogas usadas). Tudo isso é montado da seguinte maneira: uma música animada para dar agilidade + narração em off + cortes energéticos com fast motion.

Se você não habitar a roda cinéfila provavelmente terá esse combo como algo insignificante, porém, ele foi popularizado por Adam McKay com o filme "A Grande Aposta" (2015) - e repetido em "Vice" (2018). É uma escolha estilística mckayana, podemos assim dizer - também remete a "O Lobo de Wall Street" (2013) do Martin Scorsese. Pois bem. Quanto mais "As Golpistas" passava, mais a cara do McKay ganhava, até um ponto que dei uma interrompida na sessão para olhar a ficha técnica. O que encontrei? Ele mesmo, Adam McKay, entre os produtores da fita.


Indo mais a fundo na pesquisa, li que Lorene Scafaria, roteirista do filme, queria (adivinhe só) Adam McKay ou Scorsese como diretor do filme. A produtora do projeto, inclusive, falou que enviou o roteiro para "as pessoas que estavam fazendo esse tipo de filme". Tudo se explica. Só depois a própria Scafaria foi posta, também, na direção do próprio roteiro. Temos aqui alguns problemas.

Quando "As Golpistas" caiu na minha frente, a premissa não era uma daquelas que me faria largar tudo para imediatamente ver. Porém, um filme sobre strippers dirigido, escrito e atuado por mulheres tinha motivos sólidos para garantir o interesse, afinal, pensando na temática, não consigo lembrar de diretoras e roteiristas possuindo créditos em Hollywood. O universo das boates de strip-tease é envolto de muito machismo e objetificação, com mulheres sendo mercadoria de troca que o dinheiro pode (momentaneamente) comprar. Seria muito bem-vinda uma óptica feminina sobre isso. Só que "As Golpistas" é, fundamentalmente, um filme masculino.

Rapidamente me apropriando de um juízo de valor, me coloquei no lugar de uma mulher convencional, que escolhe o filme ao chegar no cinema, e não consigo vislumbrar seu apreço pela sessão. Um homem? Provavelmente adorará. Então como um filme amparado em mãos femininas pode soar tão masculino? O que aconteceu que a narrativa escolhida foi uma que remete ao universo do macho? Claro que estou falando de nuances que são passíveis de subjetividade, mas o molde de "As Golpistas" é tão McKay que, se seu nome viesse nos créditos de direção, não haveria surpresa. Só faltou rolar personagem quebrando a quarta parede ou alguma marmota como os créditos finais subindo no meio do filme (ele adora essas coisas).

Temos que ter em mente que Scafaria, mesmo não sendo uma diretora estreante (esse é seu terceiro longa), dificilmente possuiria o controle criativo do projeto, afinal, um vencedor do Oscar é um dos produtores - e ela mesmo tinha ele em mente como cabeça do filme. Porém é uma tristeza ver uma obra que tem uma mulher por trás do texto e condução ser sem personalidade e uma cópia do trabalho de um homem (que só faz filme insuportavelmente masculino). Há nada de novo, de fervor, de destaque (além da performance de JLo e das músicas escolhidas).

Entre a ação injetada pela montagem e seios saltitantes fora de sutiãs, "As Golpistas" é um daqueles filmes que os parças vão recomendar para os amigos numa sexta-feira. Isso é ruim? Não exatamente, porém, o saldo final poderia remeter a elementos mais importantes. O meio do strip-tease, das casas com meninas em canos, é bastante dúbio dentro dos estudos feministas: há desde a condenação até o enaltecimento.

Luiza Missi, no texto "Strippers, o strip-tease e o prazer feminino", aponta que Hollywood cria uma narrativa que associa os clubes de strip com a liberdade sexual masculina, e que uma mulher naquela posição é bem diferente de um homem. É, portanto, um desperdício não recebermos uma produção que reflita quem está por trás das câmeras, reforçando ideias já instauradas e vendo temas como maternidade, inclusão da mulher no mercado de trabalho e tantas outras dificuldades simbioticamente femininas serem retratadas sem peso.

Não que "As Golpistas" mereça um troféu de machismo do mês, longe disso. Há forte sentimento de sororidade entre suas personagens, felizmente muito diversas - assim como "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015), que é um longa com roupagem de "macho" mas lotado de feminismo - e, protegidos pelo escudo da ficção, uma delícia ver strippers se vingando do patriarcado ao atingir o bolso de machos da Wall Street, todavia, é uma decepção um universo tão objetificador não possuir uma voz ativamente feminina na maneira que é transposto para a arte.

Lista: os 10 vencedores do Oscar de “Melhor Filme” da década, do pior para o melhor

Ah, o prêmio da Academia.... Todos anos criticamos e todos os anos assistimos. Muito mais um evento da Sétima Arte do que uma celebração à qualidade, o Oscar possui quase 100 anos e uma lista enorme de acertos e erros. De obras-primas a películas de gosto duvidoso, é só pegar a última década para vermos que Academia bambeia com suas decisões.

É bom lembrar que, desde 1999, quando "Shakespeare Apaixonado" venceu o prêmio máximo, a corrida dourada virou uma premiação de campanha: quem convencer melhor, leva. Não que antes fosse realmente premiado o melhor dos indicados - dentro da esfera da subjetividade -, porém, agora os estúdios investem milhões para fazerem seus filmes abocanharem a estatueta mais cobiçada da indústria, que vão de jantares para os votantes até os velhos DVDs com os filmes especialmente para os membros.

De "Guerra Ao Terror" a "Green Book", listei os 10 vencedores do Oscar de "Melhor Filme", do pior para o melhor, levando em consideração o filme em si, seus concorrentes e como o tempo cuidou de cada vitória - então, claro, quanto mais anos, mais o impacto do envelhecimento para o bem ou para o mal. Quais filmes a Academia premiou e nos fez dizer "conte comigo para tudo"?


10. O Discurso do Rei (2011)

Tom Hooper é um dos mais limitados diretores a se escorarem no molde "por-favor-meu-filme-merece-um-Oscar!" - "Os Miseráveis" (2012) e "A Garota Dinamarquesa" (2015) não me deixam mentir. Indicado a 12 prêmios, "O Discurso do Rei" venceu quatro: "Filme", "Direção", "Roteiro Adaptado" e "Ator" para Colin Firth, que viveu um rei gago e sua luta para o derradeiro discurso do título. Bem esquemático, só mesmo a Academia e a Rainha Elisabeth (que chorou com o filme) para amarem essa esquecível (e bem sucedida) empreitada para a temporada de premiação. Fica ainda pior quando lembramos que ele concorreu com "A Rede Social" e "Cisne Negro", dois dos melhores filmes da década. A cara do Darren Aronofsky perdendo o Oscar de "Melhor Direção" resume.

9. Green Book: O Guia (2019)

O último vencedor da década foi a coroação de uma das piores edições da premiação no período. "Green Book" trata de um tem ainda necessário: o racismo. Só que a produção não tira vantagem dessa necessidade para desenvolver um filme que discuta algo de uma forma além do que já foi posta no ecrã centenas de vezes. É tudo um manual sobre o racismo que encaixaria perfeitamente na "Sessão da Tarde" pela passividade diante da cartilha de filmes de evocação racial. Beira a insanidade pensar que, com "A Favorita", "Infiltrado na Klan" e "Nasce Uma Estrela", alguém prefira "Green Book".

8. Argo (2013)

"Argo" talvez seja o vencedor do Oscar mais sem sentido dessa década. Não que o filme seja ruim, mas ele é muito fora da curva do que a Academia costuma valorizar, principalmente quando comparado com seus concorrentes. Ao contrário dos outros dois já listados, que estão dentro do bê-a-bá da premiação, "Argo" é um filme à la "Supercine" que une história com suspense, quase um irmão de concepção de "Atração Perigosa" (2010), também dirigido por Ben Affleck (que nem indicado ao Oscar foi). Anos depois, mal dá para lembrar que um dia preferiram "Argo" a "Amor", que só não passou a limpa pelo preconceito da Academia com filme de língua não-inglesa - só lembrar que "Roma" levou tudo na temporada de 2019 e quem acabou com o maior prêmio foi "Green Book".

7. O Artista (2012)

"O Artista" foi o primeiro filme mudo a levar "Melhor Filme" desde "Asas", em 1927 (sim, na primeira edição do prêmio), o que é, por si só, um feito inacreditável. O argumento é basicamente o mesmo de "Cantando na Chuva" (1952): a mudança para o Cinema falado e como os atores da época muda sofreram o impacto. Uma clara homenagem ao avanço da Sétima Arte, foi um passo arriscado ser projetado (quase) sem falas e em preto e branco no auge do blockbuster 3D, contudo, havia outra homenagem ali do lado que poderia ter roubado o careca dourado: "A Invenção de Hugo Cabret".

6. Guerra Ao Terror (2010)

É bem preocupante notar que, em 91 anos, apenas um filme dirigido por uma mulher venceu "Melhor Filme": "Guerra Ao Terror". Kathryn Bigelow é, também, a única mulher a levar o careca de "Melhor Direção" - e a lista de indicadas continua escassa, apenas cinco até hoje. É bem verdade que "Guerra Ao Terror" não foi o melhor filme de 2009, mas foi um marco importante na indústria ao trazer uma figura feminina por trás de um tema tão binário: o gênero bélico. Cru, seco e inteligentemente tenso, a fita vai até um dos eventos mais controversos da história norte-americana atual, a Guerra do Iraque, um elemento fundamental para o apresso da maior premiação do país.

5. 12 Anos de Escravidão (2014)

2014 foi o ano mais forte do Oscar nessa década: não havia um mísero indicado verdadeiramente ruim - "Trapaça" chega perto, no entanto, há elementos de redenção. O melhor entre os nove selecionados à categoria principal, "Ela", não estava entre a corrida dupla que colocou "12 Anos de Escravidão" e "Gravidade" à frente dos outros - não por acaso, são os que levaram os principais prêmios. Enquanto "Gravidade" tinha o peso de uma ousadia técnica impressionante, o cuidado do texto e o peso histórico de "12 Anos" fez com que Steve McQueen fosse o primeiro negro a receber "Melhor Filme" por esse horror escravocrata que não tem medo de escancarar os absurdos do período.

4. Spotlight: Segredos Revelados (2016)

Assim como no Oscar 2014, a edição de 2016 também viu dois filmes se digladiando pelo maior prêmio, "O Regresso" e "Mad Max: Estrada da Fúria". Só que, ao contrário de 2014, 2016 viu um filme que estava fora da briga vencer ao ser o mais "inofensivo" na queda de braço da temporada: "Spotlight". Enquanto "O Regresso" e "Mad Max" focavam na campanha contra o outro, "Spotlight" seguiu sem sofrer retaliações e recebeu ainda mais apreço pela denúncia filmada contra o caso real de padres pedófilos. Possui familiaridades e, às vezes, é correto até demais, contudo, é um belo caso do Cinema como ferramenta de crítica ao real. Regina George, Hulk, Batman e Dente de Sabre contra padres pedófilos? "Vingadores" apenas sonha.

3. Birdman ou (a Inesperada Virtude da Ignorância) (2015)

2015 foi uma grata surpresa quando a Academia ignorou todos os filmes feitos milimetricamente para abocanhar "Melhor Filme" (cof, "A Teoria de Tudo", cof, "O Jogo da Imitação", cof) para premiar o longa menos "cara da Academia", o insano "Birdman", que rendeu os (três) primeiros Oscars a Alejandro G. Iñárritu (que já tem cinco). Com uma metanarrativa que paralela a figura de seu protagonista com a vida de seu ator, "Birdman" é o "Crepúsculo dos Deuses" (1950) da era do Twitter quando temos Riggan Thomson - personagem que deveria ter dado o Oscar a Michael Keaton - desesperado a alcançar uma fama que não lhe pertence mais. Cheio de gags, cortes invisíveis e ironia para dar e vender, "Birdman" é um clássico contemporâneo, mas, entre os indicados, quem deveria ter vencido "Melhor Filme" era "Whiplash".

2. A Forma da Água (2018)

Um dos mais deliciosos anos para o Oscar, 2018 trouxe grandes nomes e premiados coerentes. Vários do montante dariam dignos vencedores - "Três Anúncios Para Um Crime", "Lady Bird", "Corra!" -, todavia, o melhor foi felizmente agraciado: "A Forma da Água" já chegou botando banca com o Leão de Ouro no bolso (o "Melhor Filme" do Festival de Veneza) e sendo corretamente chamado de "a obra-prima de Guilhermo Del Toro" ao retratar um dos mais incomuns amores da história do Cinema: uma mulher muda e um humanoide anfíbio da Amazônia (em parte, esse Oscar é do Brasil). Da composição de época irretocável à cena final para explodir qualquer coração, "A Forma da Água" é uma dádiva da Sétima Arte.

1. Moonlight: Sob a Luz do Luar (2017)

O maior vencedor do Oscar de "Melhor Filme" não só da década como do século, "Moonlight" é uma revolução ao ser a primeira produção a receber o prêmio sendo 100% atuado por atores negros e, não satisfeito, é também o primeiro LGBT no pódio mais alto. A saga de Chiron, contada em três capítulos, é o ápice de tudo o que o Oscar premiou ao trazer humanidade, delicadeza e crueza com uma história de importância incalculável. Foi ainda mais emocionante pelo erro dos envelopes, dando a "La La Land" o prêmio por dois minutos antes de perceberem o erro.

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Lista: as 50 melhores atuações do cinema da década (Parte 2)

Continuando as listas de melhores da década (só clicar na tag para acompanhar todas), dessa vez trouxe as 50 melhores atuações da década no Cinema para o Cinematofagia. E os anos 2010s foram bastante importantes para a Sétima Arte, vendo as portas se abrirem para uma maior diversidade dentro dos maiores pólos da indústria. Mesmo ainda tendo um grande caminho a ser trilhado, das grandes premiações televisivas aos prêmios de festivais mundo afora, estamos cada vez mais valorizando artistas plurais.

Então decidi selecionar minhas 50 performances favoritas em filmes da década. Algumas regras básicas foram levadas em consideração; 1: a atuação deve ser em um longa lançado comercialmente ou disponibilizado no Brasil entre 2010 e 2019; 2: não haverá diferenciação entre atuações principais ou coadjuvantes; 3: só será escolhido uma atuação por ator/atriz (ou seja, a melhor entre profissionais com mais de uma atuação de destaque do período será a escolhida).

Como toda lista, as atuações estão em ordem de preferência, porém, é importante apontar o óbvio: todas são incríveis, não havendo uma menor que a outra. A ordem pega nuances, iconicidade e até mesmo a qualidade do filme como um todo - afinal, uma atuação fica ainda melhor quando dentro de um grande filme -, mas não devem ser levadas com tanta seriedade - até mesmo porque tantas outras igualmente sensacionais ficaram de fora. 50 pode parecer um grande número, no entanto, dentro da qualidade da arte, é só uma pontinha do que a década nos ofereceu.


25. Ethan Hawke – No Coração da Escuridão

Personagem: Ernst Toller
É curioso ver como padres conturbados geram tantas performances além da média - de Max von Sydow em "O Exorcista" até Philip Seymour Hoffman em "Dúvida" (2008). Ethan Hawke entra nesse hall com "No Coração da Escuridão" (2017). Entrando na vida cristã após a perda do filho, padre Toller não imagina o turbilhão em que está prestes adentrar quando conhece uma esposa grávida e seu marido suicida. Com um roteiro que vai à fundo na perda absoluta da fé, Hawke desenvolve sutilezas avassaladoras ao por na mesa discussões tão atuais e complexas, carregando uma cruz de emoções que rasgam o ecrã.

24. Zain Al Rafeea – Cafarnaum

Personagem: Zain El Hajj
Um dos maiores filmes de realismo documental do nosso tempo - e vencedor moral do Oscar de "Filme Estrangeiro", "Cafarnaum" (2018) tem Zain El Hajj como fio condutor da trama: ele, com 12 anos, vai à justiça contra os pais após ser preso por um crime que só será revelado mais tarde. Entrando nos becos das favelas do Líbano, Zain Al Rafeea majestosamente dá realismo ao seu personagem mesmo com tão pouca idade. Há uma crueza e brutalidade nada inerente da infância, prova de como o meio molda um indivíduo, e Rafeea é capaz de soar verdadeiro em todos os momentos.

23. Michelle Pfeiffer – Mãe!

Personagem: A Mulher
No meio do pandemônio que é "Mãe!" (2017), é notável como Michelle Pfeiffer obtém nossa atenção mesmo em um papel coadjuvante. A veterana ressurge como a mulher que um belo dia aparece na porta da casa dos protagonistas para deixar sua marca como uma ferida. Ela não tem a menor vergonha de invadir a privacidade do casal e nem de demonstrar desgosto pela anfitriã, exigindo uma atuação despudorada que caiu como uma luva para quem já fez a melhor Mulher-Gato do cinema.

22. Charlize Theron – Mad Max: Estrada da Fúria

Personagem: Imperator Furiosa
O quarto filme da franquia "Mad Max", "Estrada da Fúria" (2015), é um dos mais celebrados filmes de ação de todos os tempos. Particularmente, nunca fui grande fã desse videogame gigante que é impossível passar de fase, contudo, se há uma qualidade incontestável no longa é a Furiosa de Charlize Theron. Muito me espanta a atriz não ter sido indicada às principais premiações quando é a verdadeira protagonista do filme e, óbvio, ser mais uma sensacional performance. A líder de uma rebelião feminista naquele laranja universo pós-apocalíptico é uma heroína para ninguém botar defeito.

21. Casey Affleck – Manchester À Beira Mar

Personagem: Lee Chandler
A vitória de Casey Affleck no Oscar por "Manchester À Beira Mar" (2016) recebeu bastante críticas pelas acusações contra o ator, não pelo seu trabalho no filme. É o secular debate sobre "vida pessoal X vida artística", que jamais terá uma resposta definitiva. Um fato é: Lee Chandler é executado brilhantemente. Se no início demoramos a entender os porquês do personagem agir da forma como ele age, todas as peças vão se encaixando e Lee vai afundando cada vez mais pelas tragédias passadas. O que Affleck faz na cena da delegacia é fora desse mundo.

20. Robert Pattinson – O Farol

Personagem: Ephraim Winslow
Robert Pattinson ficou eternizado (ou amaldiçoado) pelo papel de Edward Cullen na saga "Crepúsculo". Não parecia que havia nada de substancial ali além de um rostinho bonito. Que delícia é ser provado o contrário. Quem ainda associa Pattinson com o vampiro que bilha no sol provavelmente não assistiu às inteligentes escolhas que ele fez nos últimos anos, mas nada que se aproxime de "O Farol" (2019). Pattinson incorpora uma persona tão complexa, desafiadora e que não tem pudores em cenas cruas e difíceis. Ele sua, sangra, vomita e goza de maneira animalesca. Não é exagero apontar sua performance de a melhor do seu currículo. Quem diria que, um dia, Cedrico Diggory seria digno de um Oscar.

19. Emma Suárez – As Filhas de Abril

Personagem: Abril
Uma garota de 17 anos descobre que está grávida e seu maior objetivo é manter a mãe o mais longe possível da notícia. Quando não há mais essa possibilidade, Abril, a mãe da garota, se mostra compreensiva e apta a ajudar no que puder, retrato de uma sororidade lindíssima entre aquelas mulheres. Pobre coitada da plateia que não tem ideia do abismo logo ali do lado, e poucas atuações conseguem impressionar tanto como a de Emma Suárez. é impossível explicar o motivo sem dar spoilers, mas essa é uma performance que resume a lógica "o amor de uma mãe não conhece limites".

18. Bradley Cooper – Nasce Uma Estrela

Personagem: Jackson Maine
Bradley Cooper já recebeu múltiplas indicações pela Academia, entretanto, nunca conseguiu ganhar meu apreço. É fato que sua competência é incontestável, mas nenhuma de suas atuações fazia com que eu caísse de amores, o que está devidamente mudado. Além de dirigir, Cooper traz o papel de sua carreira com o músico falido Jackson Maine na quarta versão de "Nasce Uma Estrela" (2018). Virando o real protagonista do filme, ao contrário dos longas anteriores, Cooper, mesmo contracenando com Lady Gaga, em momento nenhum deixa a cena ser assaltada, mergulhando de cabeça nos vários demônios de seu personagem, colocando em xeque temas como vícios e problemas psicológicos - e cantando muito. Sua derrocada no Oscar será uma daquelas decisões que a Academia se arrependerá no futuro.

17. Rooney Mara – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres

Personagem: Lisbeth Salander
Infelizmente, "Os Homens Que Não Amavam as Mulheres" (2011) é a única adaptação (decente) da fantástica saga "Millennium" (há versões suecas que, confesso, não estão à altura dos livros). Pelo menos tivemos Rooney Mara aniquilando como Lisbeth. Antissocial e sociopata, Lisbeth usa sua extrema inteligência para combater o crime e o impacto só é efetivo graças à entrega de Mara. Mesmo tão pequena e esquálida, Mara é uma gigante nesse filme de super-herói feminista.

16. Sally Hawkins – A Forma da Água

Personagem: Elisa Esposito
Talento é quando uma atriz exala suas emoções apenas com o olhar. E quando uma personagem não oraliza durante o longa inteiro? Esse foi o desafio de Sally Hawkins em "A Forma da Água" (2017). Com exceção de uma pequena cena, a atriz não emite uma palavra sequer ao interpretar uma mulher muda que se apaixona por um homem-anfíbio. Com uma língua de sinais sem defeitos, é sobrenatural como ela gera sentimentos para a plateia e desenvolve um dos romances mais estranhos já vistos no cinema. Sua doçura e ânsia de viver aquela aventura são narcotizantes, entregando todo o seu corpo à uma heroína que não precisa de palavras para salvar o dia.

15. Mads Mikkelsen – A Caça

Personagem: Lucas
Um professor do ensino infantil é acusado por uma garotinha de abusá-la. O público sabe de sua inocência, com o caso sendo um completo mal entendido, mas o bastante para sentenciá-lo diante dos olhos públicos. "A Caça" (2012) é a união magistral de todos os elementos que fazem o cinema ser uma arte tão devastadora quando Mikkelsen, numa atuação contida, mas poderosíssima, desenvolve um personagem impressionante, tridimensional e de fácil empatia, que lhe rendeu o prêmio de “Melhor Ator” no Festival de Cannes 2012. É uma dor a cena da imagem acima, quando ele encara com ódio aqueles que o injustamente acusaram.

14. Cate Blanchett – Carol

Personagem: Carol Aird
Importante como tema, como relevância social e como feito artístico, "Carol" (2015) um dos maiores romances lésbicos já desenvolvidos na Sétima Arte, e a performance de Cate Blanchett como a personagem título está aí para provar. Como uma mulher de meia idade que se vê entre o casamento em ruínas e o romance com uma jovem fotógrafa, Blanchett está lotada de requinte à la Hollywood de Ouro. Tendo que se conter diante de uma sociedade que a proíbe de amar uma pessoa do mesmo sexo, a já duas vezes vencedora do Oscar - e poderia tranquilamente ter saído com mais um - é perfeita quando vive uma mulher que tem tudo a perder, mas escolhe não perder quem ama.

13. J.K. Simmons – Whiplash

Personagem: Terence Fletcher
J.K. Simmons tem um largo repertório em sua carreira, porém, tirando o divertidíssimo J. Jonah Jameson da saga (original) “Homem-Aranha”, nunca havia reparado tanto no ator - até a destruição que é "Whiplash" (2014). Seu Terence Fletcher, um maestro dedicado a arrancar na porrada o talento de seus alunos, é assustador, conseguindo manipular o público facilmente: ora o amamos, segundos depois o odiamos e queremos pular em seu pescoço. Seja em momentos em que ganha a cena no grito ou em situações onde basta um olhar para aniquilar a sequência, Simmons recebeu aclamação absoluta pelo papel, ganhando todos os principais prêmios de atuação na temporada.

12. Tilda Swinton – Amantes Eternos

Personagem: Eve
Tilda Swinton. O que ainda falar de Tilda Swinton? Um verdadeiro camaleão, a atriz consegue interpretar absolutamente todos os tipos de papéis, vide a versatilidade de sua carreira, indo de filmes indies até blockbusters. Em "Amantes Eternos" (2013), ela é Eve, uma vampira secular e amante de Adam, seu parceiro pela eternidade. Sim, os dois são Adão e Eva, e o filme de forma sagaz se utiliza das figuras bíblicas como vampiros; Swinton só enriquece com essas características e está narcotizante e envolvente como a criatura imortal e cult que assiste com pesar os seres humanos destruírem o planeta que ela há tanto tempo conhece. E ela ama Jack White.

11. Emmanuelle Riva – Amor

Personagem: Anne Laurent
O maior assalto da história recente do Oscar foi quando Emmanuelle Riva perdeu o Oscar pela monstruosa atuação em "Amor" (2012). Após sofrer um infarto, Anne Laurent cai em um abismo físico e mental impressionantemente executado por Riva, mesmo com 85 anos de idade. Não existem barreiras para a atriz, apenas uma dor gritante em sua atuação, conduzida por caminhos aterradores que são sempre justificados pelo sentimento que dá nome ao filme.

10. Naomie Harris – Moonlight

Personagem: Paula
Um dos maiores filmes do século, primeiro vencedor do Oscar de "Melhor Filme" com temática LGBT e 100% atuado por negros, um marco histórico. As honrarias de "Moonlight" (2016) são várias. Em seu corpo de atores, só gigantes. Mas Naomie Harris, como a abusiva mãe do protagonista, é a cereja do bolo. O reflexo da marginalização absoluta, Harris carrega a história de tantas mulheres negligenciadas pelo sistema, e todas as suas cenas são deslumbrantes, mesmo revoltantes e cruelmente reais.

9. Adèle Exarchopoulos – Azul é a Cor Mais Quente

Personagem: Adèle
"Azul é a Cor Mais Quente" (2013) é um dos melhores (e mais controversos) filmes LGBTs, e muito se deve à Adèle Exarchopoulos. Com uma personagem compartilhando seu nome, Adèle (a personagem) é uma estudante que, confusa com sua sexualidade, vê a resposta definitiva quando conhece uma garota de cabelos azuis. A partir daí, Adèle (a atriz) escancara as portas e atua à flor da pele - às vezes até demais - nesse papel que demanda tanta carga física e emocional, embarcando nesse coming of age íntimo que põe o espectador do lado do florescimento do amor de sua protagonista.

8. Amy Adams – Animais Noturnos

Personagem: Susan Morrow
Amy Adams tirou a década para conquistar o mundo. Aclamada em alguns casos, injustiçada por outros, a atriz tem algumas das melhores atuações da década, encontrando em "Animais Noturnos" (2016) sua apoteose. Susan é rica e bem sucedida artista, mas vive infeliz. Seu marido descaradamente a trai e ela se culpa pelo fracasso de um antigo relacionamento, até que o ex a envia um livro, baseado na vida dos dois. A história joga Susan em uma espiral de sensações e Adams é sublime com sua depressiva personagem, que ganha um novo sentido com a chegada do livro. A corrida expressa em seu rosto nos minutos finais, quando percebe o que o livro representa, é uma masterclass.

7. Willem Dafoe – O Farol

Personagem: Thomas Wake
Escolhendo entre a vasta e incrível filmografia de Willem Dafoe, que anda se superando, "O Farol" (2019) é o encapsulamento ideal para demonstrar o seu talento. Na pele de Thomas Wake, um ex-marinheiro em pleno séc. XIX, Dafoe está irretocável. Seus monólogos shakespearianos, sejam com sussurros ou berros, ecoam diretamente nos ossos de quem o assiste, uma entidade com tamanho poder que é quase palpável. Dentro da atmosfera do filme, Dafoe vira sobrenatural.

6. Frances McDormand – Três Anúncios Para Um Crime

Personagem: Mildred Hayes
Frances McDormand é uma das poucas pessoas a terem a tríplice coroa da atuação: venceu os principais prêmios do cinema, televisão e teatro. O motivo? "Três Anúncios Para um Crime" (2017) consegue explicar facilmente. Ácida e dura como pedra, a personagem em busca de justiça deixa ninguém vê-la suando - principalmente se esse alguém for um homem. Seja em momentos onde ela manda todo mundo calar a boca ou até mesmo dando apenas uma encarada para gelar o sangue, é vibrante seguir seus passos através do filme. As dualidades da mãe de luto são orquestradas sem esforço por Frances, uma vencedora incontestável do Oscar.

5. Brooklynn Prince – Projeto Flórida

Personagem: Moonee
Quem diria que uma das mais surreais estreias no cinema seria de uma menininha de sete anos? Brooklynn Prince dá uma verdadeira aula de atuação em "Projeto Flórida" (2017), passando verdade em absolutamente todas as cenas - o elenco infantil consegue transmitir dúvida na plateia, que chega a se perguntar "será que eles estão interpretando eles mesmos?". A pequena facilmente poderia ter sido indicada ao Oscar de "Melhor Atriz" ao guiar e dar todo o encantamento gerado a partir da ótica das crianças diante de toda a precariedade em que vivem.

4. Rosamund Pike – Garota Exemplar

Personagem: Amy Elliott
No aniversário de cinco anos do casamento de Amy e Nick, a esposa desaparece. Claro, todas as suspeitas recaem em cima do marido, principalmente por haver sinais de violência na casa - ele, no entanto, jura veementemente que é inocente. "Garota Exemplar" (2014) tem uma estrutura não-linear, indo e vindo entre passado e futuro, e, quando estamos tendo visão dos fatos pelos olhos de Amy, Rosamund Pike finca seu nome na história quando tira do papel uma das personagens mais criativas da história. Seu desenvolvimento é uma viagem alucinante e fantástica, capaz de deixar o queixo da plateia no chão.

3. Natalie Portman – Cisne Negro

Personagem: Nina Sayers
Muita controversa foi gerada quando Natalie Portman venceu o Oscar por "Cisne Negro" (2010): ela foi bastante ovacionada pelas sequências de dança, mas algumas foram feitas com uma dublê. Contudo, o que faz sua Nina Sayers tão lendária é a carga dramática extraída por Portman, as danças (algumas, sim, realizadas pela atriz) são um bônus. O binarismo do cisne branco virginal com o sexy cisne negro é executado fabulosamente por Portman, hipnótica em todos os quadros. Em certo momento, Nina fala que sentiu a perfeição, e o diálogo pode ser proferido, também, pela boca da atriz.

2. Olivia Colman – A Favorita

Personagem: Rainha Anne
Colman é uma das melhores atrizes da atualidade, no entanto, ainda não possui o reconhecimento que merece - ela tem um papel bem pequeno em "O Lagosta", roubando todas as cenas em que põe o pé; e está uma delícia na série "Fleabag" -, mas a situação deu uma virada quando a britânica venceu o Oscar por "A Favorita" (2018), papel que, aliás, lhe rendeu todos os prêmios que estiveram pela frente, cada um deles infinitamente merecidos. Anne é hilariamente instável e pueril quando grita coisas irrisórias e se afogando em todo o seu poder, e, mesmo que o filme não fosse tão genial como é, valeria a pena só para ver Colman aniquilar em cena.

1. Toni Collette – Hereditário

Personagem: Annie Graham
E a melhor atuação da década ano é, com louvor, de Toni Collette. Indicada ao Oscar pelo clássico "O Sexto Sentido", a atriz, tão subestimada, está abrindo as portas do Inferno na tela de "Hereditário" (2018). Por ser o elo fundamental da malfadada família, Collette tem que - e consegue - entregar todas as nuances dificílimas que o roteiro demanda, desde os momentos de pura dor até o medo mais genuíno possível. O elenco inteiro, mesmo sensacional, desaparece quando Collette pisa o pé no ecrã, que entrega a atuação de sua carreira. I. AM. YOUR. MOTHER.

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