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Crítica: para “Temporada”, o que há de melhor no Brasil é sua gente

É um tanto irônico que "Temporada" tenha chegado na Netflix na mesma semana que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) suspendeu o repasse de verbas para o audiovisual do país. A ironia aumenta - e já vira tragédia - quando também aparece no catálogo juntamente com o anúncio das mudanças na Lei Rouanet: o teto de inventivo caiu de 60 milhões de reais para 1 milhão. Cultura no nosso novo governo é supérfluo.

E qual é o porquê dessa ironia: "Temporada", dirigido e roteirizado por André Novais Oliveira (em sua estreia com longas), é um filme que se senta no meio do Brasil atual. Juliana (Grace Passô), que mora no interior de Minas Gerais, é chamada por um concurso que já tinha esquecido que existia. Ela tem que se mudar para Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, sem tempo para grandes preparativos: ela não pode recusar o emprego e parte deixando o marido para trás, que irá até ela quando conseguisse se organizar. A mulher vira então fiscalizadora do combate à dengue pela prefeitura, e se vê engolida por uma mudança drástica demais para enfrentar sozinha.

Juliana conhece a equipe que trabalhará com ela, andando pelas ruas da cidade e entrando de casa em casa a fim de se certificar que acabará com os focos de dengue. O filme cuidadosamente exibe as construções de relações entre ela e os mais diversos colegas de trabalho, assim como o passo a passo durante o serviço. "Temporada" não perde tempo em mostrar que seu sangue é verde e amarelo na exposição da fiscalização contra a dengue.

Tem algo mais Brasil do que isso?


Claro que não é um dos objetivos principais da obra, mas todo o estudo do dia a dia operário de Juliana é um retrato da importância que nosso país vem adquirindo contra a doença. Enquanto olha os quintais, coloca areia nos vasos de planta e se certifica que as garrafas estão de cabeça para baixo, o ritual contra o Aedes aegypti já é um movimento cultural. Além disso, é precioso dar voz a um profissional quase invisível: os agentes entram e saem de nossas casas e sabemos absolutamente nada sobre eles.

Regionalizações são aspectos cinematográficos que garantem apreço por parte da plateia que compartilha daquela realidade. Em contrapartida, a mesma regionalização é um limitador ferrenho do alcance de uma película. É só lembrar de "O Auto da Compadecida" (2000), uma obra-prima do cinema nacional; todo o regionalismo tão característico é difícil de traduzir para outras culturas, e o filme não foi recebido internacionalmente com o mesmo entusiasmo. Por isso, "Temporada" emerge quando, mesmo colocando regionalismo na mesa, não aponta seu foco narrativo apenas nos aspectos particulares do seu redor.

A riqueza de diversos dos meus filmes favoritos ao redor do mundo mora no casamento do regionalismo com a universalidade de seu enredo. Nomes como "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017) transmitem bem essa sensação: mesmo enterrado no interior da África e colocando na tela ritos característicos de sua área, o longa pula essa barreira e dá palco aos dramas de seus personagens, o que garante interesse em quem mora ali do lado e em quem reside no outro lado do globo. "Temporada" realiza o mesmo, já que é as dores e amores de Juliana que guiam o espectador durante as quase 2h de duração. A descoberta das diferentes e plurais culturas nesse mundo é uma das mais incríveis funções do Cinema.


Juliana, tímida e perdida na nova cidade, é rodeada e grandes personalidades que felizmente a acolhem com prazer, principalmente Russão (Russo Apr), o boa-praça que descobre que é pai. É bonito ver como as pessoas ali se ajudam mesmo elas próprias precisando de ajuda, fortalecendo a ideia de comunidade. E as histórias vão se emaranhando, como a chefe que terminou o casamento e mostra, radiante, a foto do novo namorado pelo WhatsApp; a colega que começa a namorar em segredo, com medo da chefe descobrir e demiti-la; e a da própria Juliana. O tempo passa e seu marido some no mundo - o que me lembrou a trama do delicioso "O Céu de Suely" (2006), quando a protagonista é largada pelo esposo no interior do Ceará.

Quando volta à cidade natal, Juliana descobre que o marido sumiu não apenas para ela: nem as pessoas do trabalho dele sabiam do seu paradeiro. As mensagens são ignorados, os áudios do "Zap" não são ouvidos, e as contas caminham para o limite. Em uma cena-chave, Juliana conta que o casamento degringolou quando sofreu um aborto acidental, uma ruptura definitiva na relação, que não conseguiu superar o ocorrido. As peças do quebra-cabeça do ordinário se encaixam e as motivações da personagem se mostram corretas. Ela deve, obrigatoriamente, se recompor e seguir em frente, sem marido e com um salário ruim.

Tem algo mais Brasil do que isso?

Muito se fala das atuações quando o assunto é filme brasileiro - um dos maiores motivos dos detratores que cunham a lógica de que nosso cinema é ruim. Poucos exemplares possuem atuações inteiramente exemplares - "Que Horas Ela Volta?" (2015), conte comigo para tudo -, contudo, enquanto discutia sobre "Temporada" com outras pessoas, cheguei à uma conclusão elementar: não é uma justificativa para relevarmos atuações ruins (que tem aos baldes), porém nossa percepção diante das atuações sofre alterações diretas de acordo com a língua falada. Interpretações no mesmo nível, mas em outra língua, soam superiores, afinal, nós nunca vamos achar falso da mesma maneira uma atuação em húngaro quando não temos familiaridade com a língua. Com sua língua materna é mais suscetível detectarmos falhas, por isso as atuações de filmes nacionais são mais elogiadas por críticos de fora.


No entanto meu ponto é: a Juliana de Grace Passô é fabulosa. A atriz entrega nuances e muita paixão para sua personagem, conseguindo se aproximar das grandes atuações do novíssimo cinema brasileiro, como Sônia Braga em "Aquarius" (2016), Regina Casé em "Que Horas Ela Volta?" e Leandra Leal em "O Lobo Atrás da Porta" (2013). A escolha da atriz é fundamental para o cerne de "Temporada", não apenas no sentido da capacidade de realizar o papel, mas também pelos atributos físicos.

Juliana é uma mulher negra e gorda, o espectro oposto do padrão que o Cinema (quase) não consegue fugir. Em outras palavras, Juliana é uma mulher como qualquer outra, assim como todos os que estão no ecrã, e é um júbilo ver o ordinário sendo posto de maneira tão sincera na tela. Por isso é tão importante a cena de sexo da protagonista, um corpo desnudo fora da glamorização que estamos acostumados.

"Temporada" é a epopeia do comum. Vemos pessoas normais vivendo dramas normais com suas lutas normais, e o filme soa ainda mais impressionante quando consegue extrair o extraordinário de algo que já está tão impresso na nossa realidade. Ao abrirmos nossas portas, vemos várias Julianas passarem pelas ruas, as heroínas do cotidiano que representam a batalha por uma vida melhor em meio a um Brasil em crise econômica, social e cultural. Vemos os orelhões pichados, prédios abandonados e o emaranhado e fios de energia cortando as ruas sem asfalto, e tudo sem juízo de valor: o filme não tenciona dizer se isso é bonito ou não, apenas que é real. O lançamento de uma obra como essa, na recessão intelectual que o país se afoga, é a lembrança do quão necessária é a cultura para valorizar e questionar um meio. Contudo, o que "Temporada" mais almeja gritar aos quatro ventos é: o que há de melhor no nosso povo é sua garra.

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Crítica: “Tinta Bruta” e o cinema de resistência brasileiro quando a cultura vira descartável

Sempre quando tenho a oportunidade, abro espaço nessa singela coluna para enaltecer o cinema nacional, que ainda sofre preconceito dentro do nosso próprio país. Estamos em meio a uma era histórica do audiovisual tupiniquim, com longas fenomenais que infelizmente são mais apreciados lá fora. Acho ainda mais notório quando tais bons filmes são feitos fora do eixo principal da nossa indústria - São Paulo/Rio de Janeiro -, como é o caso de "Tinta Bruta".

Dirigido pela dupla Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, o longa estreou no Festival de Berlim 2018, onde ganhou o Teddy Award, dado ao melhor filme LGBT da seleção - prêmio esse vencido também pelo oscariado "Uma Mulher Fantástica" (2017) e nosso conterrâneo "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" (2014). O Teddy é um dos três grandes prêmios voltados ao cinema LGBT no mundo, junto com a Queer Palm no Festival de Cannes e o Queer Lion no Festival de Veneza, o que garante o prestígio da honraria.

Passado em Porto Alegre/RS, Pedro (Shico Menegat) é um garoto tímido e retraído que, a fim de fugir de uma crise pessoal, ganha fama como "GarotoNeon", se exibindo na webcam em um site gay - seu diferencial é dançar sob a luz negra com tintas fluorecentes. Existem três pontos-chaves dentro da trama que vai conduzir a narrativa da obra. O primeiro deles é o fato de que Pedro está sendo julgado por um crime que inicialmente não sabemos qual é. A primeira cena já é o protagonista no tribunal, com apenas uma pessoa o apoiando, sua irmã, Luiza (Guega Peixoto).


Entrando na intimidade dos irmãos, fica claro que Luiza é a única pessoa que consegue compartilhar o mundo fechado de Pedro. Sem as figuras paternas, eles têm somente um ao outro para cuidar, só que aqui reside a segunda ruptura do roteiro: a irmã está indo embora da cidade, o que deixará Pedro completamente sozinho. Ela demonstra real preocupação com a saúde do irmão, fazendo-o jurar que irá sair de casa todos os dias ao invés de se enclausurar ainda mais.

O terceiro fincamento de narrativa surge quando Pedro descobre que outro cara do mesmo site em que trabalha roubou a ideia de suas tintas neons - e também seus clientes. Pedro vai até o tal concorrente, Leo (Bruno Fernandes) - ou "Guri25", seu nick do site - e descobre que, muito mais que uma cópia, ele é um rapaz simpático até demais, o que gerará um casal no trabalho e na cama.

A trama-central de "Tinta Bruta" é deveras simplória: o florescer de uma relação que surgiu com uma rivalidade. Leo demonstra desde o primeiro momento uma atração por Pedro, todavia, há pesadas e grossas barreiras construídas ao redor do protagonista, um ser estranho que não permite (nem se permite) estranhos em seu universo. O grande valor da película reside nas sutilezas que surgem com o decorrer de sua duração.


"Tinta Bruta" é fundamentalmente um filme urbano: o relacionamento das pessoas com a cidade é fundamental para o entendimento do que a história quer nos contar. A fotografia privilegia vários takes de Porto Alegre, esmagando seus personagens na imensidão de concreto - e é exatamente assim que eles se sentem; é o velho "sozinho no meio da multidão". Por se passar através dos olhos de Pedro, a metrópole é ditadora de solidão, e mesmo com tanto a ser visto, há a latente sensação de que não há lugar para ele.

Quando conhece (quase obrigatoriamente) os amigos de Leo, Pedro nota que tal sentimento é compartilhado. "Todo mundo vai embora da merda dessa cidade", fala um em determinado momento, e o espectador vê personagens chegando e indo embora, num fluxo que, mesmo morando em cidades entupidas de arranhas-céus, muitas vezes não absorvemos. "Tinta Bruta" não foge da agonia da juventude, tema universal e atemporal que o Cinema já explora desde os primórdios - vide "Os Incompreendidos" (1959) e "Juventude Transviada" (1955), grandes nomes a abordarem o tema.

Talvez a sacada mais engenhosa dos diretores é a maneira como a obra observa Pedro, de maneira literal. Seu trabalho é ser visto por estranhos através da internet, e enquanto caminha pela cidade, a fita insere pessoas em suas janelas, como se observassem cada passo do protagonista. O quadro é ainda mais impessoal quando tais pessoas estão em contra-luz, apenas com suas silhuetas à vista. Seja na vida real ou no virtual, Pedro é seguido por seres que não mostram seus rostos.


Essas composições visuais se transformam quando o roteiro expõe o passado de Pedro, e como o bullying sempre se fez presente em sua vida - o que tem relação com o crime que cometeu. Até presente data, ele é ameaçado, humilhado e agredido por ser quem é, o que explica em demasia sua personalidade extremamente fechada, e até porque ele evita sair de casa. No entanto, não conseguia ignorar o fato de que tal personalidade também afeta a plateia, que encontra dificuldade em se conectar com Pedro - sua história é mais imersível, principalmente para quem também é LGBT. Curioso é perceber como a vida de Pedro é composta em cores mortas, encontrando cores apenas na frente da webcam - único momento em que ele se solta.

Como comento no início, acho louvável quando um filme é produzido e filmado fora do eixo industrial do Cinema brasileiro pois acaba, diretamente ou não, sendo um documento. Nós temos cenários no imaginário popular de inúmeras cidades, porém, há tantas outras, centros urbanos em destaque, que não possuem uma "cara". Porto Alegre é capturada com melancolia em "Tinta Bruta", mas sua identidade é guardada e, quem lá reside, vai imediatamente se sentir em casa. Entretanto, a universalidade é mantida sem problemas, revelando como estamos em uma enorme confusão entre os conceitos de "ação" e "movimento": vemos os mesmos lugares e as mesmas pessoas e continuamos com a impressão de que a vida não avança. Quando vamos fazer algo a respeito?

A jornada do protagonista reflete com esmero a jornada do espectador diante do ecrã: o pesar está presente em quase todos os quadros, mas por fim aprendemos que temos que perder para nos libertar. Nessa grande exposição do isolamento urbano, é difícil não se pegar repensando na maneira que estamos inseridos nas cidades e como a constante ocupação do dia a dia nos enclausura ainda mais. Filmes como "Tinta Bruta" largam distantes do puro entretenimento quando levantam a bandeira da resistência e reflexão. E não apenas na abordagem da vivência LGBT, mas também por nascer no auge de um governo que mutila a cultura como vertente descartável de um país. 

Crítica: é uma ofensa que “O Grande Circo Místico” tenha nos representado no Oscar

De todas as qualidades do Brasil - que sim, são várias -, escolher filmes para o Oscar não faz parte do grupo. Ao longo da nossa história, focando no novo século, o país demonstrou não possuir a menor noção na hora de selecionar um longa para concorrer à categoria de "Melhor Filme Estrangeiro". Não por acaso, a última indicação que vimos foi em 1999 com a obra-prima "Central do Brasil", há 20 anos.

No século XXI, ao passo que fizemos escolhas corretas - "Cidade de Deus" em 2003, "Tropa de Elite 2" em 2012, "O Som Ao Redor" em 2014" e "Que Horas Ela Volta?" em 2016 -, acumulamos trapalhadas para envergonhar qualquer cinema: "Dois Filhos de Francisco" em 2006, "Lula: O Filho do Brasil" em 2011, "O Pequeno Segredo" em 2017 e agora "O Grande Circo Místico" em 2019. Os motivos para que afirmo serem escolhas erradas são diversos.

Se "Dois Filhos de Francisco" e "Lula" foram nomes enormes dentro do país, tratam-se de obras obviamente regionais, com um apelo universal nulo - qual o impacto que Zezé e Luciano vão causar em alguém, não sei, na Ucrânia? Por outro lado, "O Pequeno Segredo" e "O Grande Circo Místico" não sofrem apenas da sua qualidade individual, mas também por serem selecionados enquanto outros nomes muito maiores foram ignorados.


Já é um crime à cultura contemporânea o fato de "Aquarius" ter sido negligenciado em prol de "O Pequeno Segredo", uma escolha puramente política: a equipe de "Aquarius" protestou na estreia no Festival de Cannes contra o golpe do governo Temer. O caso de "Circo Místico" é ainda pior: tivemos uma pá de filmes muito melhores na disputa. "As Boas Maneiras", "Aos Teus Olhos", "Ferrugem", "O Nome da Morte" e o mais cotado (e esnobado) "Benzinho", sucesso de crítica ao redor do mundo - dono do status "aclamação universal" no Metacritic

A escolha de "Circo Místico" para levar nosso nome para a maior premiação do planeta provavelmente se deu à produção em si. Realizado pelo Brasil, Portugal e França, o filme foi dirigido por Cacá Diegues, um dos fundadores do Cinema Novo e recordista de selecionados a "Filme Estrangeiro": seis de seus filmes foram os escolhidos pela Academia Brasileira de Cinema e Ministério da Cultura (apesar de nenhum deles ter se convertido em indicação). Pelo mesmo motivo, "Bingo: O Rei das Manhãs" foi escolhido ano passado - o diretor, Daniel Rezende, já foi indicado ao Oscar e tem um BAFTA em casa, o que já garante um peso para chamar atenção da Academia. Só que, ao contrário de "Circo Místico", "Bingo" é uma delícia.


Além disso, há dois nomes internacionais no elenco: Catherine Mouchet (que já venceu o César - o Oscar francês) e Vincent Cassel (de "Cisne Negro"). São reforços para o pedigree da produção e chamarizes para votantes de fora. Todavia, muito mais do que a embalagem com rótulos bonitos e chamativos, o que gera o prestígio da Academia é o filme em si.


"O Grande Circo Místico", baseado no poema de 47 versos contido no livro "A Túnica Inconsútil" de Jorge de Lima, segue cinco gerações de uma mesma família vivendo do circo, de 1910 até os dias presentes. O século familiar é ligado por Celavi (Jesuíta Barbosa), o mestre de cerimônias que jamais envelhece - ele vê geração por geração morrer enquanto continua ali. Eis o primeiro grande problema do filme.

Os 105 minutos são divididos entre cinco blocos, focando na atual geração da família. Isso faz com que a plateia não consiga se conectar com os personagens, que permanecem muito pouco na tela. Mas nem isso é desculpa: exemplos de curtas-metragens que arrebatam nossos corações são grandes. O defeito é o roteiro rasteiro que não consegue aprofundar nenhum de seus personagens. Da Beatriz de Bruna Linzmeyer (que tenta, sem sucesso, emular a Satine de Nicole Kidman em "Moulin Rouge") ao unidimensional Fred de Rafael Lozano, eles entram e saem da tela sem gerar a percepção de diferença. Os cortes temporais injetam esperança de uma trama fresca que salve a narrativa, no entanto, são retalhos pseudo-poetizados que não funcionam.

As atuações são ou limadas pelos personagens fracos ou fracas por si só. Nem mesmo Vincent Cassel, que atua em filmes indicados ao Oscar; Mariana Ximenes, a melhor em cena; e Jesuíta Barbosa, um dos maiores atores em atuação do país, são capazes de gerar a menor empatia ou atração. Enquanto o personagem de Cassel é odioso por natureza, o de Barbosa, intitulado de forma sagaz como um trocadilho de "c'est la vie" ("é a vida", em francês), está ali como representação da arte circense, que mesmo após indas e vindas continua ali vivo e intocável. Mas essa metáfora em cima do porta-voz do longa se perde quando as indas e vindas são ruins.


Uma coisa é inegável: o trabalho visual do filme é caprichado. Do design de produção coloridíssimo aos figurinos cheios de detalhes, pelo menos há um departamento que mereça elogio dentro de "Circo Místico". Porém, o que poderia ser usado em prol da narrativa mais parece um jogo com a missão de esconder o quão raso é seu enredo a partir da ilusão da grandiosidade. Há longas sequências de espetáculos que, no fim das contas, servem para nada além de encher os olhos.

E ainda reside uma grande questão: o uso de animais pelo longa. Filmado em Portugal em 2015, desde a fotografia principal o filme enfrenta protestos contra o uso de animais reais como entretenimento. "O uso de animais em circo é um espetáculo degradante, humilhante, que atenta à vida dos animais, que veem as suas vidas e dignidades destruídas. Estamos completamente contra [ao uso de animais no filme] e sabemos que este espetáculo vai perecer. Infelizmente isto está a acontecer e é com o nosso dinheiro", falou Andreia Mota, fundadora do Ação Direta pela Libertação Animal em Portugal, durante as filmagens da fita, que teve mais de 300.000 euros de apoio financeiro público.

Mas, espanta, nada nisso é o principal afundador da película. Somando a todos os defeitos, ainda há espaço para uma misoginia absurda dentro das lonas de "Circo Místico": todas as mulheres existem na tela para serem objetos de prazer sexual dos homens. Elas estão constantemente nuas durante a projeção e são estupradas e mortas durante o sexo (!). Sim, é de largo conhecimento a situação social precária da mulher ao longo da história, mas a gratuidade que todos esses aspectos são colocados na tela é gritante.

"O Grande Circo Místico" é uma produção deprimente que nem de longe merecia o título de melhor filme brasileiro do ano quando nos representou no Oscar 2019. Artificial, gratuito e machista, o resumo mais apropriado ao longa já foi dado: parece ser um filme feito por homens que nunca falaram com uma mulher na vida, só ouviram falar que elas existem. O despreparo diante de um elenco tão diverso, capital para orquestrações visuais fabulosas e trilha sonora do Chico Buarque só afundam ainda mais esse espetáculo que não é grande nem místico.

Tem filme de tudo quanto é gênero entre as estreias dessa semana



A gente rala a semana inteira no trabalho e/ou nos estudos para, no final de semana, dar aquela afugentada da rotina. Uma das mais comuns (e melhores, diga-se de passagem) formas de fazer isso é ir ao cinema e, por isso, esperamos sempre que tenha algo bacana de novo passando nas telonas. Essa semana veio recheada de filmes nacionais e, dentre os internacionais, tem comédia, ação/terror, suspense, religioso e, para a criançada, animação. Por isso, sem desculpas para dar aquele rolê no cinema, já que há filmes para todos os gostos.


“Crimes em Happytime”

Como uma espécie de Muppets para adultos, “Crimes em Happytime” é uma comédia ácida que traz Melissa McCarthy como Connie Edwards, uma policial em busca de desvendar crimes cometidos por um serial killer. Coincidentemente (ou não), o filme é dirigido por Brian Henson, responsável por dirigir, produzir e, até mesmo, manipular fantoches de diversas produções dos Muppets. Além de McCarthy, o longa traz outros nomes de peso da comédia, como Maya Rudolph (Bubbles), Joel McHale (Agent Campbell), Elizabeth Banks (Jenny).



“Coração de Cowboy”

“Hannah Montana: o Filme” ganha a sua versão brazuca com “Coração de Cowboy”, estrelado por Gabriel Sater, Thaila Ayala e Jackson Antunes. O longa traz a história de um cantor de sertanejo universitário que decide dar um tempo na agitada carreira para se reconectar com suas origens em sua cidade natal (bem Hannah Montana mesmo) e voltar a compor músicas que reflitam seus sentimentos. Nesse meio tempo ele reencontra sua antiga parceira de composição – que é, também, uma paixão de infância –, com quem tenta se reaproximar e fortalecer laços. Com direção do jovem Gui Pereira, o longa homenageia o sertanejo de raiz de Chitãozinho e Xororó sem nem negar as aparências ou disfarçar as evidências.

“A Primeira Noite de Crime”

A série “Uma Noite de Crime”, por um lado, pode até ser um terror meio canastrão, mas não podemos negar que o mote dos filmes impressiona. Neste quarto filme, o partido político que está no poder decide fazer um experimento social, no qual os cidadãos têm 12 horas para fazer o que quiserem sem se preocupar com as leis. Para botar mais fogo no parquinho ainda, o governo estimula as pessoas a ficarem nas cidades pagando uma quantia de US$ 5 mil para cada, além de outros prêmios para quem, literalmente, estiver para o crime. Quem assume a direção é Gerard McMurray e o longa ainda conta com Marisa Tomei no elenco.

“PéPequeno”

A animação da Warner sobre o Yeti, o “Abominável Homem das Neves”, descobrindo sobre a existência dos seres humanos chega às telonas com 69% de aprovação no Rotten Tomatoes, o que mostra que o filme é... bem, muito provavelmente, super divertido para as crianças. Karey Kirkpatrick assume a direção do longa, que conta com a dublagem de Channing Tatum (Migo), James Corden (Percy Patterson), Zendaya (Meechee), LeBron James (Gwangi) e Gina Rodriguez (Kolka).

“O Homem Perfeito”

Luana Piovani é Diana, uma mulher bem-sucedida já na casa dos quarenta anos e se vê numa crise quando descobre que seu marido, que é bem molecão (Marco Luque), está a traindo com uma aspirante a bailarina de 23 anos. Para bagunçar com o namoro do ex-marido, Diana faz um perfil fake de um “homem perfeito” para enganar a menina. O longa está sob a direção de Marcus Baldini, que tem no currículo outras comédias como “Os Homens São de Marte... e É para Lá que Eu Vou” e “Uma Quase Dupla”.

“Um Pequeno Favor”

Com Anna Kendrick e Blake Lively estrelando, este suspense não parece empolgar tanto quanto outros com enredos semelhantes, como “Garota Exemplar” e “A Garota no Trem”. Stephanie (Kendrick) torna-se amiga de Emily (Lively), uma mulher um tanto quanto intrigante, que desaparece de forma misteriosa. Com o sumiço, Stephanie se empenha em descobrir o que aconteceu com sua amiga e acaba descobrindo segredos obscuros sobre ela. Paul Feig, que também esteve à frente de ótimas comédias como “A Espiã que Sabia de Menos”, “Missão Madrinha de Casamento” e “Caça-Fantasmas” (2016), é quem dirige o longa.

“10 Segundos Para Vencer”

Nesta película nacional, Daniel de Oliveira é Eder Jofre, bicampeão mundial no boxe. Conhecido como “Galinho de Ouro”, o atleta foi considerado o maior peso galo da história do boxe e um dos maiores boxeadores de todos os tempos – e sua trajetória é, agora, retratada nesse filme, dirigido por José Alvarenga Jr.

“Sansão”

Não, não é o Sansão, coelhinho da Mônica, mas sim aquele personagem bíblico famoso pelo cabelo. O longa retrata a Força de Sansão (Taylor James) para defender seu povo e vingar seu grande amor, morta por um príncipe filisteu.  Gabriel Sabloff e Bruce Macdonald dirigem o filme.

Crítica: "Ferrugem" e as consequências irreversíveis do vazamento de vídeos íntimos

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

A ferrugem é o resultado da oxidação do ferro. Este metal, em contato com o oxigênio presente na água e no ar, se oxida, e desta reação surge a ferrugem que deteriora e corrói pouco a pouco o material original. O processo de ferrugem, por ser uma transformação química, é irreversível.

O ano ainda nem acabou e já consigo afirmar que tivemos a melhor safra para o cinema nacional nessa década. Geralmente possuímos um ou dois filmes brasileiros a despontarem como ícones no ano vigente, mas 2018 já ultrapassou essa média; há quatro longas tupiniquins na futura lista com meus favoritos do ano pelo globo: "Aos Teus Olhos", "As Boas Maneiras", "O Nome da Morte" e agora "Ferrugem" - isso sem contar os que ainda tenho que assistir.

O filme de Aly Muritiba - diretor de "Para Minha Amada Morta" (2015) - se aproxima de "Aos Teus Olhos" quando ambos discorrem sobre o impacto da tecnologia em nossas vidas no presente momento. Em "Ferrugem", acompanhamos a vida de Tati (Tiffanny Dopke), uma adolescente como qualquer outra que adora postar selfies no Instagram e trocar likes com seu atual cursh, Renet (Giovanni de Lorenzi).


A obra se divide em duas partes, e a primeira se passa pela óptica de Tati. A introdução da fita é uma "Malhação" da vida: adolescentes com suas câmeras e celulares a postos, bebendo e ouvindo músicas do momento enquanto jogam "Eu Nunca". De um lado, Tati tenta superar o término com seu ex-namorado, enquanto Renet passa por uma fase complicada com a mãe, ignorando suas ligações. Esses tormentos vão acabar unindo os dois, porém, o que parecia ser o início de uma relação se revela como o fim - em vários sentidos.

A vida da menina é abalada quando, após perder o celular, um vídeo íntimo é compartilhado em um grupo de WhatsApp. Sempre acho cinematograficamente relevante quando uma produção se apropria da realidade para fomentar discussões, seja através de casos em específico - como "O Lobo Atrás da Porta" (2013) - ou vivências compartilhadas, o caso de "Ferrugem". Já vimos diversas histórias em jornais de vídeos íntimos parando na internet, todavia, há uma diferença fundamental nos rumos que a história irar tomar: qual o gênero do indivíduo no vídeo.

Tati chega na escola e percebe todos a encarando, soltando risinhos e piadas veladas, sem saber que o vídeo já estava em todos os celulares. Durante as aulas, então, a coisa é ainda pior, quando ela nem ao menos consegue apresentar um trabalho sem ser motivo de chacota dos garotos da sala. É assustadora a necessidade das pessoas em diminuírem a menina, uma cultura enraizada profundamente - é só vermos a cena no banheiro, com as paredes inteiramente riscadas com xingamentos e obscenidades, muitas vezes direcionadas às garotas, em posições de "vadias" e "putas". E o que o vazamento do vídeo influiu sobre o ex-namorado de Tati? Ele se chateou porque os amigos estão chamando-o de "pau pequeno". Essa é a grande preocupação e impacto na vida masculina.
 

Enquanto, no início, as amigas de Tati se mostram unidas para ajudar a colega, rapidamente vão se distanciando até a total ruptura de relação, quando a melhor amiga da protagonista vai embora pois o namorado não a quer ali, já que o vídeo chegou aos sites de pornografia. Não fica escancarado o motivo pelo qual levou a amiga a abandonar Tati na mais absoluta depressão, entretanto, isso é reflexo de como não fomentamos a sororidade, com mulheres ajudando a piorar a situação ao não quererem se misturar com outras taxadas como "sujas" - pelos motivos que forem.


Essa primeira metade sobrevoa inteiramente o ensolarado céu da objetividade: tudo está posto na tela de forma óbvia e elementar, sem muitas aberturas para gerar dúvida no espectador. Os caminhos percorridos são bastante previsíveis, e, aqui, isso não é um demérito. Precisamos caminhar pelo esperado a fim de chegarmos na segunda parte, as consequências. E qual o ponto final da "Parte 1"? O suicídio de Tati, diante das câmeras da escola, num último grito de rebelião contra o sistema que a fez tomar aquela atitude. Olhando diretamente para o mesmo tipo de ferramenta que causou a sua ruína, ela deixa claro quem são os culpados.


Até mesmo o trajeto que faz Tati chegar cara a cara com a câmera, um símbolo que deixa de ser mero objeto cara carregar peso esmagador de ideologias, é banhado com machismo. Ela leva a arma do pai até o colégio e, chegando lá, vê que a diretoria está recolhendo todos os celulares dos alunos, revistando suas bolsas e mochilas para nenhum aparelho entrar no prédio. Tati sabia que o fiscal acharia a arma e tudo daria errado, porém, com um risinho asqueroso, o fiscal a deixa passar sem ser revistada. A cena, que dura segundos, arremessa no rosto da plateia todas as linhas de raciocínio que se passaram na cabeça do homem: ele assistiu ao vídeo e gostou do que viu.

A segunda parte segue Renet e os desenlaces após a morte de Tati. Enquanto adentramos com profundidade na vida do garoto, o filme escolhe nos distanciar completamente dos corredores da vida de Tati. Os pais da menina estão presentes em pouquíssimas cenas, e sempre captados apenas em pedaços, sem foco ou em off. O efeito, parecido com o que ocorre em "Deixa Ela Entrar" (2008), isola completamente a protagonista, projetando uma sensação de que ela não tem a quem recorrer, não há figuras que cuidem dela e que possam resolver a questão - até porque ela não fala sobre o vazamento para os pais. A falta de diálogo ajudou a matar a menina.


Renet carrega consigo uma peso que a fita vai aos poucos revelando. O rapaz é deveras melancólico, recluso e, depois do suicídio da colega de sala, há uma morbidez depositada sobre seus ombros. O contraponto é Normal (Pedro Inoue), o estereótipo absoluto do hétero moderno: aquele que se gaba de todas as garotas que ele "pega", piadista e que acha que Tati teve o que mereceu. Quando Renet se irrita com a declaração, Normal responde: "Agora vai ter pena da vadia?".

A tensão entre os dois é solucionada quando descobrimos que eles acharam o celular de Tati e vazaram o vídeo. A diferença é que Renet se culpa, enquanto a vida de Normal segue, olha o trocadilho, normalmente. O roteiro humaniza Renet de diversas formas, tanto mostrando seu arrependimento quanto pela já complicada relação com a família, o oposto de Normal, um adolescente inconsequente que não tem a menor noção do crime que cometeu. Mas não se engane: em momento nenhum o longa retira a culpa de Renet. A humanização desenvolve camadas de construção de personagem, enriquecendo-o e tirando-o do binarismo "mocinhos e vilões".


Tive o prazer de assistir a "Ferrugem" nos cinemas, então pude perceber a reação das pessoas durante a fita. Na primeira parte, já ouvia comentários das pessoas ao lado sobre o eminente suicídio de Tati, mas, de forma impressionante, quase todos pularam da cadeira quando a ela se mata. O choque era generalizado, e isso só me lembrou das delícias que são os poderes da Sétima Arte. Vemos frequentemente as mesmas histórias nos telejornais ou nas redes sociais, no entanto, provavelmente passaríamos batido. Só que o Cinema tem garras que nos fazem pertencer ao que estamos assistindo, transformando a mesma história em algo maior. Fazer alguém pular da cadeira sabendo o que vai acontecer é comprovação da força que um filme possui.

"Ferrugem" convida a plateia a ponderar sobre temas atuais e necessários, como o cyberbullying e porn revenge, ações que conseguem tirar a vida de pessoas. Sem maquiagem e de maneira crua, a fita exclui a catarse para por nossos pés no chão, caminhando ao lado dos personagens com uma veia naturalista imprescindível a fim de assimilarmos o tamanho do problema: precisamos abolir a cultura do machismo, que coloca mulheres em posições de demérito por serem tão sexuais quanto qualquer homem. Outro exemplar do poder que o cinema nacional produz ao fazer com que o espectador coloque a mão na consciência, observando com uma lupa essa trama de difícil digestão. Nós somos igual ao metal: uma vez enferrujados, não dá para voltar atrás - e precisamos assumir as responsabilidades dessa degradação.

Crítica: "O Nome da Morte" mergulha fundo nos comos e porquês de um matador de aluguel

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Em 2018, não sei bem o motivo, entrei numa fase que anseia por filmes nacionais. Talvez seja pela incrível leva de nomes a surgirem nos últimos anos, resumida de maneira singela na minha lista com 10 produções do cinema moderno tupiniquim para provar que somos maravilhosos; ou por uma auto-demanda de valorização do que é nosso, atividade rara dentro da nossa gente.

E, felizmente, 2018 não tem me decepcionado no parâmetro "filmes brasileiros para entrarem na história". Dois grandes expoentes já despontaram, "Aos Teus Olhos" e "As Boas Maneiras" - e, consequentemente, figuram como protagonistas na corrida para descobrirmos quem será o escolhido para representar o país no Oscar 2019. Não esperava, confesso, que "O Nome da Morte" teria força para figurar ao lado dos dois citados, porém graciosamente me enganei.

De Henrique Goldman, diretor de "Jean Charles" (2009), cinebiografia do brasileiro baleado no metrô de Londres em 2005, "O Nome da Morte" segue a tendência do diretor ao trazer outra cinebiografia, dessa vez de Júlio Santana (interpretado por Marco Pigossi), matador de aluguel que possui no currículo quase 500 mortes. Como formato já padrão, o longa segue a vida do protagonista e mostra sua trajetória até se transformar no mito que é.

A primeira expectativa que tive ao saber da premissa foi: o filme mostraria a complexidade de um psicopata, quase um "Onde os Fracos Não têm Vez" (2007), ou, por ser baseado num livrorreportagem de Klester Cavalcanti, um "Zodíaco" (2007). Rapidamente essa expectativa foi desfeita, dando lugar a outro tipo de indagação: se Júlio não é um psicopata sanguinário, como ele se tornou?


Júlio morava com a família num pobre interior desse país e é levado pelo tio, Cícero (André Mattos), para a cidade grande com a promessa de transformar o garoto em um policial militar. Só que, para o espanto do protagonista, ele é inserido sem escolha na rede de mortes por aluguel, com Cícero sendo um dos "cabeças" das operações. Júlio, o pobre e ingênuo interiorano, sedento pelo trabalho na capital, era peça perfeitamente maleável para seguir os negócios do tio, querendo ou não.

Acho importante deixar claro: ainda não li o livrorreportagem sobre a vida de Júlio, então não sei até onde a ficção engole os fatos. Por se tratar de uma história real, tendemos a levar o que está na tela como "verdade" - ou como uma dramatização do que realmente aconteceu -; por isso é primordial pontuar que: a obra não tem obrigação de se prender aos ocorridos verdadeiros e, devido a isso, o Júlio da tela não é o Júlio real, e sim uma versão cinematográfica baseada. Continuemos.

Talvez por ter construído a expectativa já citada, a primeira parte do filme serviu para mim como a humanização absoluta de seu protagonista: ele não mata por prazer, ele mata por ter sido coagido. Claro, é inegável que Júlio não se trata de um inocente, ou alguém que é obrigado a fazer o que faz; a culpa está sobre seus ombros, todavia, há um elemento diferencial aqui: enquanto o tio leva o trabalho de forma até banal, rindo sobre o que faz, há um peso esmagador diante de Júlio.


Ele se desespera ao lidar com a crua verdade de que assassinou uma pessoa, algo piorado ao saber dos motivos, geralmente irrisórios, como brigas ou desentendimentos. A incisiva pontuação do roteiro que escancara a dor sentida pelo protagonista é elemento fundamental da sua humanização, aproximando o público da situação. Entre as dúvidas de Júlio perante seus atos, o texto também indaga: afinal, há algum motivo sólido para justificar minimamente o que ele faz? Esse dilema moral é atirado na cara do público quando, após matar um homem, Cícero "consola" o sobrinho, informando que o morto era um estuprador. Isso então é razão irretocável para o assassinato?

Esse cuidado narrativo impacta diretamente todo o andar da carruagem. Gostando ou não, o número de trabalhos executados (trocadilho proposital) vai aumentando drasticamente, mostrados de maneira criativa por cartões não-diegéticos, informando quantas pessoas Júlio matou até o momento. Por não ser um sociopata que mata sem uma gota de remorso, o destino do protagonista é assimilado de maneira natural por quem está do lado de cá da tela, efeito potencializado pelo contrapeso de personalidade: Cícero, o que mata por esporte.

Outra inserção de humanização é Maria (Fabiula Nascimento, uma das minhas atrizes nacionais favoritas, inclusive), que se tornará esposa de Júlio. Toda a situação da mulher imediatamente me remeteu à Skyler White (Anna Gunn), da melhor-série-já-feita-na-história, "Breaking Bad". Assim como Skyler, Maria não tinha ciência da real fonte de renda do marido - Júlio finge ser policial militar, tática que tanto esconde seus atos como é fachada incrível para despistar o que faz. Tanto Júlio quanto Walter (Bryan Cranston) burlavam a lei em nome de um "bem maior": suas famílias.


Mesmo Maria não sendo o estopim para Júlio cair no crime - como é o caso de Walter -, a esposa vira prioridade para o protagonista, que usará sua profissão para dar uma vida melhor a ela. Há sincera paixão entre os dois, com o protagonista demonstrando ainda mais humanidade ao se revelar devoto da mulher e do futuro filho. Entretanto, o castelo de cartas está a um sopro da ruína, e ela é inevitável.

Maria descobre como Júlio põe comida na mesa, pondo em cheque todo o seu casamento. Após a separação, ela se vê encurralada numa vida de grande miséria, tendo que sustentar o filho vendendo pastéis. Todo o mínimo conforto que possuía, assim como a segurança e estabilidade, vai por água abaixo, o que a faz tomar a decisão mais complexa de todo o filme a meu ver: ela aceita Júlio de volta.

O filme, até o momento, andava sem grandes dificuldades, contudo, a partir da cena em que Maria decide reatar com o marido, os níveis de complexidade psicológicas vão às alturas. A mulher não abraça apenas o homem, o esposo, o provedor, mas também todos os seus crimes. E, sabendo disso, ela se torna cúmplice do que Júlio faz. O roteiro deixa no campo da especulação as motivações de Maria: seria em nome da qualidade de vida do filho? Seria por vantagem própria?

A persona da esposa é costurada de maneira que a faça ser uma "mocinha" - ela é vítima da situação ao não saber o que o marido faz quando sai de casa. Ao saber, e ainda assim continuar ali, há uma carga negativa depositada sobre ela. No entanto, podemos realmente condená-la? Maria chegou próxima do fundo do poço do sistema, então é um crime ela abrir mão de certos valores pessoais para possuir uma vida melhor dentro do nosso severo mundo capitalista?


A montagem não perde tempo e dá um longo corte temporal até o momento em que a feliz família vive no luxo. O apartamento ultra-decorado e as comprinhas de fim de tarde são todas bancadas com dinheiro à base de sangue. Maria se torna uma dondoca, adquirindo até mesmo uma postura física diferente, a corrupção pessoal máxima de sua personagem, que sucumbe em prol do dinheiro. E melhor ainda: a esposa se torna evangélica fervorosa, cantando bênçãos em plenos pulmões no culto.

A religião em si não é o alvo da crítica - poderia ser qualquer uma -, e sim os placebos que escolhemos para contrabalancearmos nossas escolhas. A devoção à fé "paga" o que Maria aceitou em sua vida, e quanto mais forte ela louvar, mais paga está a dívida mortal. Júlio está ali do lado, desconcertado com a situação, sabendo que nada do que fizer vai poder diminuir sua culpa.

"O Nome da Morte" dribla expectativas, indo além das barreiras da cinebiografia e do estudo psicológico de um matador de aluguel ao saber onde se encontram suas forças cinematográficas, sejam elas de narrativa ou condução. Um retrato surpreendente de uma faceta brasileira, dando tarefa de casa para a plateia ao chamá-la para discutir sobre os complexos dilemas, sem os binarismos da luta do bem contra o mal. Somos criaturas dúbias e complicadas demais para sermos resumidas assim, encapsuladas pela moral final do filme: as mentiras e hipocrisias que contamos a nós mesmos para justificarmos nossos atos e deitarmos nossas cabeças tranquilamente no travesseiro.

Agradecimentos à Imagem Filmes e à Ana Carolina Laurindo 💗

Crítica: contrastes brasileiros como ferramentas para o terror no bizarro "As Boas Maneiras"

Atenção: o texto contém detalhes da trama.

Como você bem sabe - ou deveria saber -, nesse Mês do Orgulho LGBT eu decidi focar em filmes com a temática aqui no Cinematofagia - só clicar na tag da coluna para ler todas as críticas caso tenha perdido alguma. A melhor parte de jogar o texto no mundo é o debate que ele gera. Depois de ler meus comentários para "Com Amor, Simon" (2017), uma amiga veio ponderando sobre como precisamos de filmes LGBTs que não discorram diretamente sobre as lutas e glórias de ser uma pessoa fora da hétero-cisnormalidade, e isso é bem verdade.

É evidente que o Cinema, essa arte tão absoluta no que tange o discurso, é ferramenta inevitável para os comentários sociais, então mostrar as dores e amores dos LGBTs é necessário. No entanto, também precisamos de filmes que encaixem essa população em situações corriqueiras, sem que suas batalhas específicas sejam o foco principal. Essa narrativa desassocia diretamente essa fatia com as reivindicações de direitos, afinal, ser LGBT não é apenas ser LGBT. Temos várias outras histórias dentro de nós, e, em muitas delas, nossa sexualidade e/ou gênero não é o prato principal na mesa.


Pois bem, quis o destino que o próximo filme a cair no meu colo fosse exatamente um que trouxesse personagens LGBTs sem que suas sexualidades fossem o mote da película. Estou falando do brasileiro "As Boas Maneiras", recém estreado em solo tupiniquim e vencedor do prêmio de "Melhor Filme" no Festival do Rio 2017. Dirigido pela melhor dupla de diretores em atividade no país - Juliana Roja e Marco Dutra -, a fita conta a história de Ana (Marjorie Estiano, em ótima atuação), uma rica e solitária mulher que contrata Clara (a hipnótica Isabél Zuaa) para ser babá de seu filho ainda não nascido. Conforme a gravidez vai avançando, Ana começa a apresentar comportamentos cada vez mais estranhos e sinistros hábitos noturnos que afetam diretamente Clara.


Se você já assistiu ao curta da dupla, "Um Ramo" (2007), e a obra-prima "Trabalhar Cansa" (2011), sabe que os dois gostam de passear pelo terror e suspense psicológico - seus trabalhos solos também refletem essa predileção: "Quando Eu Era Vivo" (2014) do Dutra e "O Duplo" da Rojas são exemplos do que chamamos "exercício de gênero". Em "As Boas Maneiras" não é diferente. O longa claramente se divide em duas partes bem distintas, que chamarei de Parte 1 e Parte 2, quase como se dois filmes diferentes se unissem parar contar uma mesma história.

A sessão já começa com o primeiro contato entre Ana e Clara. Essa, mulher negra, pobre e que está devendo o aluguel do mês, chega no luxuoso flat de Ana para sua entrevista de emprego. Ela dá logo de cara com uma candidata, eloquente e bem aparentada, enquanto ela é simples e sem referências. O curso de enfermagem, seu maior trunfo do currículo, nem chegou a ser finalizado pelas dificuldades da vida. Mas há algo que faz Ana escolher aquela mulher tão diferente ao invés de todas as outras que, sem dúvidas, devem ter currículos bem mais polpudos.

A montagem, sem perder tempo, nos tira do apartamento da patroa até a casa de Clara. A esperta fotografia começa o trajeto com um enquadramento bem aberto para focar tanto as casinhas da periferia quanto os riquíssimos arranha-céus de uma metrópole construída à base de CGI, a fim de potencializar a discrepância daquele lugar pé-no-chão para os prédios futurísticos com cobertura de vidro. Seja pela porta gigantesca da entrada de Ana até a geladeira dupla, o choque de realidades é gritante e, principalmente, brasileiro.


Entre todas as discussões sociais que a tela escancara, há a todo o momento um pesada áurea de que há algo de errado ali. Não sabemos se é aquela misteriosa empregada ou a estranha patroa, que, juntas, se tornam ainda mais desconcertantes - e a mise-en-scène impulsiona a impressão, como por exemplo: há um plano que enquadra toda a sala de Ana com seus móveis e objetos opulentes, mas, também, a carcaça de um boi embaixo de uma mesa, peça incompatível com todo o resto. Porém, ignorando todas as variáveis, os dois polos acabam demonstrando magnetismo, como se elas desde sempre precisassem uma da outra. A gravidez de Ana só reforça todos esses efeitos, tendo em vista que não há sinal do pai da criança.

Vamos desvendando os passos de Ana até aquele momento com muita calma. Ela precisa de um tempo para se sentir confortável ao lado de Clara e, assim, contar quais caminhos a vida escolheu para ambas terminarem juntas no sofá da sala. O pai foi um caso de uma noite só, que sumiu no mundo, fazendo com que a família de Ana a mandassem para a capital com o intuito de realizar um aborto. Todavia, a mulher mantém o bebê, o que a faz cortar relações com a família.

A soma dessa variável com a gravidez cada vez mais estranha de Ana gera a equação perfeita para ela ficar dependente de Clara, a única efetivamente ao seu lado. Apesar do pré-natal mostrar um bebê forte e saudável, a pressão da mãe está alta, e o médico corta a carne da sua dieta, o que gera a primeira grande ruptura entre a relação daquelas duas mulheres. Durante uma noite sonâmbula, Ana beija e morde Clara, num ato animalesco de prazer e fome. E essas ânsias não serão saciadas tão facilmente.


A primeira parte de "As Boas Maneiras" caminha sem medo sobre um o solo do suspense psicológico, bebendo largamente na fonte de "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos maiores clássicos do terror da história - que, coincidência ou não, estreou há 50 anos na mesma semana de "As Boas Maneiras". Ana e Rosemary compartilham inúmeras similaridades, e a fita faz questão de deixar isso bem claro com o andar do primeiro bloco. O jogo que a plateia entra para desvendar quem é o peão dissonante entre as duas é desvendado com a aproximação do fim da gravidez de Ana, que culmina na sequência máxima de terror da obra.

Se você é daqueles que deseja sentar na frente de um filme sabendo o menos possível dele, talvez nem esteja lendo isso agora caso ainda não tenha visto "As Boas Maneiras". Mas é fácil saber - ou pelo menos supor - que estamos diante de uma fita que traz a figura do lobisomem: é só olhar para o pôster ou alguma das imagens promocionais - ou pegando a referência ao Lobo Mal da Chapeuzinho Vermelho quando o médico diz que o bebê tem "grandes olhos, grande boca e grandes mãos". Curiosamente, a palavra "lobisomem" só é mencionada na duração uma vez, entretanto, o relato de Ana sobre a noite com o pai do seu filho - ilustrado lindamente em animação - é o último prego para cimentar nossas certezas: ele era um lobisomem e, assim, seu filho também será.

E, quebrando a expectativa gerada pela comparação com "O Bebê de Rosemary", que não revela a imagem do bebê, a criatura de "As Boas Maneiras", fofamente batizada de Joel, é mostrada em todo seu esplendor. O ápice do terror do longa é alcançado aqui, e só é conseguido a partir de competentes efeitos especiais, que constroem um bichinho fidedigno, raro elemento de um gênero tão pouco explorado dentro do cinema nacional: o terror e a fantasia.


E aqui se encerra a Parte 1 do filme. A Parte 2 segue os passos de Joel e como ele deve lidar com sua condição e o meio que o cerca. Todo o tom narcotizante é inteiramente deixado de lado para dar lugar ao folclórico, quase um conto de fadas macabro. A mudança de narrativa é um choque bem grande, já que temos a impressão, no clímax da primeira metade, que a película está chegando ao fim. Demoramos um pouco para submergimos no novo filme que se inicia, principalmente por ele ser bem maior do que imaginamos - a fita completa tem 2h15min de duração.

Essa troca de conduções pode fazer com que a plateia se desligue do filme, que agora é uma fábula com traços de musicais (!). É bem verdade que a parte final é menos impactante que a primeira, e possui os momentos mais fracos de toda a obra - as cenas cantadas poderiam ter sido cortadas da edição para acelerar o ritmo -, porém é um complemento interessante ao primeiro segmento, consumindo agora outras fontes, como a do filme "Grave" (2016), que narra a vida de uma garota canibal, criada pela família como vegetariana para não despertar sua fome de carne - o mesmo estilo de vida que Joel é condicionado para sua própria proteção.

O cinema nacional infelizmente tende a cair na repetição, então "As Boas Maneiras" joga todos os arquétipos dos nossos clichês pela janela para dar lugar a uma trama incomum, fantástica e com muito frescor. Essa fábula urbana é um trabalho de gênero notório que demonstra sem titubear o quanto possuímos criatividade para sairmos da mesmice, entregando mercadorias cinematográficas aquém de nenhum lugar. Mesmo indo longe demais para uma plateia mais comercial, "As Boas Maneiras" é um louvor em concepção e realização, com um gore pontual que mostra que o sangue é verde e amarelo nesse bizarro filme sobre uma mulher lésbica que tem a vida mudada por um bebê lobisomem.

Crítica: "Aos Teus Olhos" denuncia o perigo em transformar opinião de WhatsApp em verdade

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Ao ler pela primeira vez a premissa de "Aos Teus Olhos", novo filme de Carolina Jabor, instantaneamente lembrei de "A Caça" (2012), obra-prima dinamarquesa de Thomas Vinterberg que, além de ser um dos melhores filmes do século, foi indicado ao Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro". Ambas as obras possuem o mesmíssimo pontapé: um professor é acusado por um de seus alunos de abuso sexual.

Contextualizando melhor, em "Aos Teus Olhos" o professor Rubens (Daniel de Oliveira), querido no clube em que trabalha, vê sua vida virar de ponta-cabeça quando Davi (Marco Ricca), pai de um aluno, chega para a diretora - Ana (Malu Galli) - com a acusação de que o professor deu um beijo na boca do filho. O roteiro de Lucas Paraizo é baseado na peça catalã "O Princípio de Arquimedes", de Josep Maria Miró, e, assim como "A Caça", tem como intuito debater o sentimento de condenação.


Apesar das grandes similaridades entre os dois filmes, há correntes de narrativas bem distintas entre eles. "A Caça" se insere perfeitamente no contexto da Dinamarca e na comunidade em que os fatos ocorrem, vendo a bola de neve da acusação esmagar o professor por meio do boca a boca. Já "Aos Teus Olhos" se apropria da realidade brasileira para discorrer sobre os fatos. Enquanto o dinamarquês vai aos poucos fomentando sua turba raivosa, o longa de Jabor crava a unha na internet, a força motriz da crítica do texto. 


Quando Davi leva a acusação até à diretoria, Ana procura as filmagens do clube para comprovar a veracidade, porém, o momento em que supostamente ocorre o assédio se passa no único local onde não há câmeras, derrubando qualquer chance de prova irrefutável - para o bem ou para o mal. E aqui está o maior acerto da película. Enquanto "A Caça" deixa a todo o momento que Lucas é completamente inocente da acusação, "Aos Teus Olhos" faz absoluta questão de não revelar. Somos atirados numa montanha-russa cheia de reviravoltas que caminha brilhantemente entre o limiar de culpa e inocência de Rubens, sem jamais bater o martelo. O final abrupto, momento que mais gerou reclamações sobre a fita, é o que o enredo pedia para, literalmente, nos fazer ver a justiça por meio dos nossos olhos.

E as peças para esse campo minado dúbio são encaixadas com louvor. Logo na primeira cena, vemos o professor chorando, todavia não há explicações para aquilo. Seu comportamento diante dos alunos é bem diferente daquele Rubens no vestiário, um homem que exala todos os traços do patriarcado e da sexualidade predatória masculina: ele mostra as fotos das alunas para um colega e comenta o quanto elas são "gostosas", afirmando que com 12 anos elas já sabem tudo sobre sexo. Sua namorada, recém-chegada na maioridade, foi, inclusive, uma de suas alunas.

O fato de o acusado ser professor de natação é ferramenta essencial para o funcionamento da produção. Faz total diferença ele trabalhar com educação física, uma área que explora diretamente o corpo, e o corpo é o templo soberano da nossa existência. A câmera sempre segue Rubens descamisado, molhado, e aquele homem tão atraente, que arranca risinhos das garotas, necessita dessas características para a armadilha impecável que fisgará a plateia, reforçada pela atuação profunda de Daniel de Oliveira, sensível o suficiente para cambalear sem cair entre os polos extremos de culpa e inocência.


O efeito de colocar a plateia como cúmplice é tão forte que, após a conversa com a diretora sobre a acusação, Davi sai da sala e passa pela piscina. O pai observa Rubens com os alunos, e a fotografia genialmente transpõe, sem usar uma palavra, todos os pensamentos do homem diante da interação do professor com as crianças. Os enquadramentos mais fechados mostrando Rubens tocando nas crianças passam de um simples contato para algo errado, sujo, condenável. É a magia do cinema em introduzir no espectador aquilo que a narrativa precisa por meio de imagens e cortes.

Pela ausência de provas e a negação do professor, a mãe da criança (Stella Rabelo) decide realizar o ato mais banalmente verídico da nossa realidade: jogar a história num grupo de WhatsApp. Impossível não perceber o quão correta é a escolha de roteiro; não somos capazes de vislumbrar exatamente isso acontecendo? E o que vem pela frente é tão elementar quanto: o caso vai parar no Facebook, sendo altamente compartilhado e viralizando. Pronto, a cabeça de Rubens estava na bandeja virtual.

Eis o foco de "Aos Teus Olhos". Muitos falam que a obra é um filme sobre pedofilia, o que não é verdade. O tema está sim impregnado por toda sua duração, mas, acima de qualquer coisa, o roteiro é sobre a condenação internetês que estamos tão (infelizmente) acostumados. O suposto caso de pedofilia é o pontapé no ecrã para alcançar seu real cerne. Em tempos de correntes, fake news e debates gerados pelos grupos de WhatsApp com as maiores barbaridades possíveis, a contemporaneidade do longa é esmagadora. Quem nunca viu histórias como a de Rubens rolando pelos grupos? Dá até para imaginar aquele tio falando no grupo da família que ouviu o mesmo drama no trabalho, incitando um debate - e julgamento - em tempo real.


Aqui habita a denúncia mais urgente da película: o quanto acreditamos piamente no que vemos na internet. "Se tá na internet é verdade", já dizia o meme, que assustadoramente possui cabimento. Mesmo com todos os indícios da culpa do professor, há um elemento chave para colocar a dúvida em nossas cabeças: não vemos, em momento algum, a criança proferindo a acusação. Toda a história gira ao redor do ato do pai ir até o clube, mas ele tampouco ouviu o filho falando sobre o beijo. A faísca é acesa a partir da mãe, afirmando veementemente que o filho contou a história.

Então estamos num verdadeiro disse-me-disse. A escolha de ausentar o menino na tela é importante para que o roteiro permaneça caminhando sobre a areia movediça da acusação, cada vez mais instável quando a mãe desconversa ao ser pressionada pelo pai, que demanda ouvir todos os detalhes da história original; ou quando os indícios comportamentais da criança, gerados pela pressão do arrogante pai, são - para quem quer - elementos suficientes de comprovação da culpa de Rubens.

A complexidade do caso incide dois movimentos contraditórios: a acusação de pedofilia, um crime gravíssimo, deve ser estudada com calma para que o problema não se torne algo muito pior. No entanto, toda a calma demandada pela situação é estraçalhada pela rapidez absurda que o caso toma o mundo pela rede mundial de computadores. O que já era difícil de lidar se torna impossível quando a história aterrissa nos portais de jornalismo, e a caixinha de comentários, antro supremo de ódio, está prontíssima para enforcar o próximo Judas.


Outra faceta primordial que piora a trama é mais um exemplo que difere "Aos Teus Olhos" de "A Caça". O suposto crime no dinamarquês é proferido contra uma garota, enquanto no brasileiro é contra um menino. O que seria apenas detalhe arremessa peso aflitivo no drama, pois Rubens não seria apenas pedófilo, ele seria, também, homossexual, o que há de pior. O roteiro escancara sem dó a homofobia da nossa sociedade, e o quanto estamos violentamente despreparados para lidar com uma situação como essa, ainda associando a homossexualidade com perversão.

"Você já beijou algum dos alunos?", questiona Rubens para Ana. "Claro que sim, mas é diferente". "Diferente porque você é mulher?". Esse é só um dos vários diálogos que nos retiram da zona de conforto e massacram nossa cabeça em busca de reflexões. O título internacional, inclusive, reflete magistralmente toda a solidez de seus debates: "Liquid Truth", ou "Verdade Líquida", na tradução literal.

"Aos Teus Olhos" é um acerto atual que se utiliza de tratamento quase documental em sua ficção e supera os rótulos de "bem feito", "boas atuações" ou "ótima trilha sonora" pra entrar na esfera do debate, função seminal da Sétima Arte. E, assim como nomes como "Central do Brasil" (1998), "Cidade de Deus" (2002) e "Que Horas Ela Volta?" (2015), extrapola a cerca do regional para universalizar seus dramas. Entrando no campo secular que é a discussão sobre o conceito de justiça, a produção retrata da maneira mais próxima possível o quanto as redes sociais podem estar deturpando esse conceito.

No momento em que as opiniões das pessoas se tornam notícias e, consequentemente, verdades, estamos com legítimas armas em formato de smartphones, e só conseguiremos manter uma internet responsável quando aprendermos que o linchamento virtual e a externalização de ódios via mensagens instantâneas são a apoteose do mau uso das novas tecnologias. Tão próximo da gente, tão nosso dia a dia que assombra.

Lista: 10 filmes do "novíssimo cinema brasileiro" para você não falar mal do nosso cinema

Um comentário bem frequente que ouço entre o público em geral é o quanto nosso cinema é ruim. Há uma áurea de preconceito latente ao redor do mercado audiovisual nacional, por vários motivos, desde a ruptura da produção na ditadura; o fim da Embrafilme na década de 90, maior fomentadora cinematográfica do país; e a dominação de distribuição da Globo Filmes na atual conjuntura.

Comédia com atores globais, comediantes e youtubers são os filões máximos a entupirem as salas de cinema em solo tupiniquim, o que mancha a imagem do cinema como um todo. Achamos que nossa produção se resume nisso, o que é um enorme equívoco gerado pelo velho capitalismo: vemos aquilo que chega até nós, e os filmes mais independentes entram em poucas sessões, sem força para brigar contra os "É Fada!" (2016) da vida.

Por isso cá estou, com o objetivo de dar dez nomes no novíssimo cinema brasileiro para você nunca mais torcer o nariz ao esbarrar com um filme nacional. Para fins historiográficos, o chamado "novíssimo cinema brasileiro" é a atual fase da nossa produção, apontando "para a emergência de um novo modelo de produção, que não se resume às duas principais metrópoles brasileiras (o eixo Rio-São Paulo) e com a ênfase em processos colaborativos e com baixíssimos orçamentos, muitos deles realizados sem leis de incentivo", nas palavras de Marcelo Ikeda.

Importante apontar que a lista não conta com os dez melhores e nem está em ordem de preferência. São nomes importantes seja pela representatividade nacional até nomes mais desconhecidos que merecem sair do anonimato, com muito mais espalhado pelo nosso solo. E esse é só o começo.


Aquarius (2016)

Do que se trata? Uma jornalista aposentada defende seu apartamento, onde viveu a vida toda, do assédio de uma construtora. O plano é demolir o edifício Aquarius e dar lugar a um grande empreendimento.

Por que é bom? O selecionado moral do Brasil ao Oscar 2017, "Aquarius" é uma dos maiores (e melhores) representantes do nosso cinema para o mundo. Liderado por uma atuação antológica de Sonia Braga, o embate principal de Clara e a construtora é por si só fascinante, mas "Aquarius" possui subtramas belíssimas como 1 sexualidade 2 feminina 3 pós-câncer na 4 velhice, debatendo sobre o resgate de memória e a luta do velho vs. novo. Com uma das melhores cenas finais da nossa história, "Aquarius" é igual Maria Bethânia. Intenso.

Nota: ★★★★

Do que se trata? Cinebiografia de Arlindo Barreto, um dos intérpretes do palhaço Bozo no programa matinal homônimo da televisão brasileira durante a década de 1980. Barreto alcançou a fama graças ao personagem, apesar de jamais ser reconhecido pelas pessoas por sempre estar fantasiado. Esta frustração o levou a se envolver com drogas, chegando a utilizar cocaína e crack nos bastidores do programa.

Por que é bom? Nosso último representante ao Oscar, "Bingo" é uma viagem (por vezes macabra) à cultura da celebridade e como ela afeta o ser humano e as relações com as pessoas ao seu redor, carregado com bastante louvor por Vladmir Brichta. Insano, sem pudores e com um plano sequência em particular para demonstrar sua força, "Bingo", ao mesmo tempo em que humaniza, mostra os machismos, assédios e vícios de um homem que ajudou a moldar a televisão brasileira à base de 70% de inspiração e 30% de uísque. O Brasil não é mesmo para quem está começando.

Nota: ★★★★

Boi Neon (2015)

Do que se trata? Iremar é um vaqueiro de curral que viaja pelo Nordeste trabalhando em vaquejadas enquanto sonha em largar tudo e começar uma nova carreira na moda, como estilista no Pólo de Confecções do Agreste.

Por que é bom? Enterrando-nos no complexo interior nordestino, transitamos de forma bastante sensível pela vida dos personagens que, por si só, são quebras absolutas de arquétipos. O protagonista, Iremar (um incrível e cru Juliano Cazarré), é vaqueiro, mas seu sonho é ser estilista. O diretor/roteirista já remonta sentidos e foge do senso comum - Iremar é hétero. Quem dirige o caminhão da turma não é um dos peões, e sim Galega. E ainda temos uma garotinha fora da forma de bolo "princesa" e uma grávida com dois empregos. São sutilezas e pequenos detalhes que desconstroem um meio ainda tão precário em algo mais compatível com as demandas sociais da nossa atualidade, retratando de forma neon uma região sempre mostrada em preto & branco.

Nota: ★★★★½

O Céu de Suely (2006)

Do que se trata? Dois anos atrás, Hermila partiu. A experiência em São Paulo foi boa, mas a cidade era cara demais. Agora ela está de volta a Iguatu, no sertão cearense. A casa da avó, Zezita, e da tia, Maria, é acolhedora e confortável. Mas não demora muito e Hermila se dá conta de que precisa ir embora dali outra vez. Inspirada nas conversas com a amiga Georgina, ela adota o nome de Suely e inventa um plano audacioso para levantar dinheiro e conseguir viajar.

Por que é bom? Talvez a mais criativa representação e redescoberta do Nordeste no cinema moderno, "O Céu de Suely" é um estudo de personagem afiadíssimo. Quando o marido some no mundo, Hermila escolhe sua própria liberdade ao decidir rifar seu próprio corpo. Transitamos pelas ruelas cearenses, conhecemos seus personagens e, inteligentemente, o roteiro vai unindo as peças para transformar Hermila em Suely, seu "eu lírico" libertino que deve enfrentar todos os preconceitos e machismos para fugir dali. Eu vou fazer um leilão, quem dá mais pelo meu coração?

Nota: ★★★★

Hoje eu Quero Voltar Sozinho (2014)

Do que se trata? A vida de Leonardo, adolescente cego, muda completamente quando um novo aluno entra no colégio, Gabriel. O adolescente precisa lidar com o ciúme da amiga e também com os inesperados sentimentos que o recém-chegado desperta nele.

Por que é bom? Nome definitivo do cinema LGBT brasileiro exportado para o mundo, "Hoje eu Quero Voltar Sozinho" é a evolução do curta "Eu Não Quero Voltar Sozinho", que já expressava a ânsia de virar um longa metragem. E a troca dos títulos não é por acaso: com a maior metragem, todo o desenvolvimento do garoto cego que se apaixona pelo amigo de classe demonstra a quebra das amarras que suas condições teoricamente exercem. Se um filme roubar um sorriso seu, como você faria pra devolver? No quesito roubo, "Hoje Eu Quero" faz um verdadeiro arrastão, arrancando sorrisos com sua simplicidade, naturalidade e delicadeza.

Nota: ★★★★

O Lobo Atrás da Porta (2013)

Do que se trata? Uma criança é raptada. Na delegacia, Sylvia e Bernardo, pais da vítima, e Rosa, a principal suspeita e amante de Bernardo, prestam depoimentos contraditórios que nos levarão aos recantos mais obscuros dos desejos, mentiras, carências e perversidades do relacionamento desses três personagens.

Por que é bom? Devo contar a minha experiência ao assistir "O Lobo Atrás da Porta": não sabia que se tratava de um filme baseado em fatos, mais especialmente na "Fera da Penha", crime que também não conhecia. Tudo isso teve um impacto ainda maior na sessão pela maneira que a película amarra as pontas soltas do mistério, numa construção social fidedigna nessa obra-prima poderosíssima. Com algumas das cenas mais revoltantes que vi nos últimos tempos, essa ode ao cinema nacional trata de assuntos sérios como o aborto e o machismo e ainda traz Leandra Leal no melhor momento da carreira.

Nota: ★★★★½

Do que se trata? A pernambucana Val se mudou para São Paulo com o intuito de proporcionar melhores condições de vida para a filha, Jéssica. Anos depois, a garota lhe telefona, dizendo que quer ir para a cidade prestar vestibular. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, porém o seu comportamento complica as relações na casa.

Por que é bom? A maior obra-prima do nosso cinema nessa década, e olhe que o páreo é duro pelo título, "Que Horas Ela Volta?" transcende a barreira regional para entrar no panteão internacional ao unir uma história que tanto reflete as rachaduras da nossa sociedade quanto universaliza seus dramas. Carregado por uma louvável atuação de Regina Casé, que não me assustaria caso fosse indicada ao Oscar, a obra escancara nossa cultura da servidão ao jogar com papéis hierárquicos e como devemos urgentemente rever a existência do quartinho da empregada, reclusa nos corredores da casa grande.

Nota: ★★★★★

O Silêncio do Céu (2016)

Do que se trata? Vítima de um estupro dentro de sua própria casa, Diana escolhe manter o trauma em segredo. Mario, seu marido, também tem algo a esconder. O silêncio que toma conta do casal ao longo dos dias se transforma, aos poucos, em uma espécie de violência peculiar.

Por que é bom? Filmes que abordam o estupro são imprescindíveis dentro das discussões na Sétima Arte, e "O Silêncio do Céu" entrega uma abordagem diferente diante do tema: sua ótica segue os passos do marido após o estupro da esposa, não os da mulher. A abordagem pode soar polêmica por se passar quase inteiramente na visão do homem, porém é relevante e orquestra discussões fortes sobre vingança e personagens sociais em nome da harmonia. E não estranhe ao ver Carolina Dickman falando em espanhol: a obra se passa no Uruguai, mas é uma produção brasileira.

Nota: ★★★★

Trabalhar Cansa (2011)

Do que se trata? Helena é uma dona de casa que resolve abrir um minimercado. Tudo vai bem até Otávio, seu marido, perder o emprego. A partir de então estranhos acontecimentos tomam conta do local, afetando o relacionamento do casal com a empregada doméstica.

Por que é bom? Dirigido por dois dos melhores diretores brasileiros contemporâneos, Marco Dutra (de "O Silêncio do Céu") e Juliana Rojas (de "Sinfonia da Necrópole", que quase entra nessa lista), "Trabalhar Cansa" é um retrato cinematograficamente potente da classe média com apropriações inteligentes do terror, elementos primordiais para o sucesso desse clássico absoluto. Com cenas bizarras e construções homeopáticas da sensação de que há algo muito errado ali, o verdadeiro protagonista de "Trabalhar Cansa" é o bendito mercado erguido sobre um prédio infectado. E sua doença se espalha rapidamente.

Nota: ★★★★½

Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro (2010)

Do que se trata? 2010; Nascimento enfrenta um novo inimigo: as milícias. Ao bater de frente com o sistema que domina o Rio de Janeiro, ele descobre que o problema é muito maior do que imaginava. E não é só. Ele precisa equilibrar o desafio de pacificar uma cidade ocupada pelo crime com as constantes preocupações com o filho adolescente.

Por que é bom? "Tropa de Elite" é, sem muito quebrar cabeça, o filme mais famoso do nosso país. Alguém já esqueceu da loucura que foi quando as cópias piradas se alastraram pelos quatro cantos do Brasil antes mesmo do filme chegar - com sucesso - aos cinemas? Se o primeiro se manteve pelo boca a boca, "Tropa de Elite 2" se mantém pela altíssima qualidade. Muito mais que a polêmica com a violência policial, "O Inimigo Agora é Outro" eleva sua história num patamar bem acima ao trazer um retrato quase documental da complexa e preocupante realidade do Rio de Janeiro, uma ponta do iceberg em solo nacional. Aquele traveling do tribunal é a prova irrefutável de sua expertise.

Nota: ★★★★½

***

Já está convencido que nosso cinema é maravilhoso? De representantes ao Oscar até as pérolas anônimas, quatro dos listados estão entre 100 melhores filmes da década no Letterboxd, que reúne notas do planeta inteiro: Que Horas Ela Volta? (#29), Aquarius (#44), Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (#72) e Bingo: o Rei das Manhãs (#97). O mundo já está aclamando o cinema made in BR, só falta você.

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