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Crítica: "Aos Teus Olhos" denuncia o perigo em transformar opinião de WhatsApp em verdade

Forte candidato a representar o Brasil no Oscar, o filme revela como nossos smarthpones são verdadeiras armas
Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Ao ler pela primeira vez a premissa de "Aos Teus Olhos", novo filme de Carolina Jabor, instantaneamente lembrei de "A Caça" (2012), obra-prima dinamarquesa de Thomas Vinterberg que, além de ser um dos melhores filmes do século, foi indicado ao Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro". Ambas as obras possuem o mesmíssimo pontapé: um professor é acusado por um de seus alunos de abuso sexual.

Contextualizando melhor, em "Aos Teus Olhos" o professor Rubens (Daniel de Oliveira), querido no clube em que trabalha, vê sua vida virar de ponta-cabeça quando Davi (Marco Ricca), pai de um aluno, chega para a diretora - Ana (Malu Galli) - com a acusação de que o professor deu um beijo na boca do filho. O roteiro de Lucas Paraizo é baseado na peça catalã "O Princípio de Arquimedes", de Josep Maria Miró, e, assim como "A Caça", tem como intuito debater o sentimento de condenação.


Apesar das grandes similaridades entre os dois filmes, há correntes de narrativas bem distintas entre eles. "A Caça" se insere perfeitamente no contexto da Dinamarca e na comunidade em que os fatos ocorrem, vendo a bola de neve da acusação esmagar o professor por meio do boca a boca. Já "Aos Teus Olhos" se apropria da realidade brasileira para discorrer sobre os fatos. Enquanto o dinamarquês vai aos poucos fomentando sua turba raivosa, o longa de Jabor crava a unha na internet, a força motriz da crítica do texto. 


Quando Davi leva a acusação até à diretoria, Ana procura as filmagens do clube para comprovar a veracidade, porém, o momento em que supostamente ocorre o assédio se passa no único local onde não há câmeras, derrubando qualquer chance de prova irrefutável - para o bem ou para o mal. E aqui está o maior acerto da película. Enquanto "A Caça" deixa a todo o momento que Lucas é completamente inocente da acusação, "Aos Teus Olhos" faz absoluta questão de não revelar. Somos atirados numa montanha-russa cheia de reviravoltas que caminha brilhantemente entre o limiar de culpa e inocência de Rubens, sem jamais bater o martelo. O final abrupto, momento que mais gerou reclamações sobre a fita, é o que o enredo pedia para, literalmente, nos fazer ver a justiça por meio dos nossos olhos.

E as peças para esse campo minado dúbio são encaixadas com louvor. Logo na primeira cena, vemos o professor chorando, todavia não há explicações para aquilo. Seu comportamento diante dos alunos é bem diferente daquele Rubens no vestiário, um homem que exala todos os traços do patriarcado e da sexualidade predatória masculina: ele mostra as fotos das alunas para um colega e comenta o quanto elas são "gostosas", afirmando que com 12 anos elas já sabem tudo sobre sexo. Sua namorada, recém-chegada na maioridade, foi, inclusive, uma de suas alunas.

O fato de o acusado ser professor de natação é ferramenta essencial para o funcionamento da produção. Faz total diferença ele trabalhar com educação física, uma área que explora diretamente o corpo, e o corpo é o templo soberano da nossa existência. A câmera sempre segue Rubens descamisado, molhado, e aquele homem tão atraente, que arranca risinhos das garotas, necessita dessas características para a armadilha impecável que fisgará a plateia, reforçada pela atuação profunda de Daniel de Oliveira, sensível o suficiente para cambalear sem cair entre os polos extremos de culpa e inocência.


O efeito de colocar a plateia como cúmplice é tão forte que, após a conversa com a diretora sobre a acusação, Davi sai da sala e passa pela piscina. O pai observa Rubens com os alunos, e a fotografia genialmente transpõe, sem usar uma palavra, todos os pensamentos do homem diante da interação do professor com as crianças. Os enquadramentos mais fechados mostrando Rubens tocando nas crianças passam de um simples contato para algo errado, sujo, condenável. É a magia do cinema em introduzir no espectador aquilo que a narrativa precisa por meio de imagens e cortes.

Pela ausência de provas e a negação do professor, a mãe da criança (Stella Rabelo) decide realizar o ato mais banalmente verídico da nossa realidade: jogar a história num grupo de WhatsApp. Impossível não perceber o quão correta é a escolha de roteiro; não somos capazes de vislumbrar exatamente isso acontecendo? E o que vem pela frente é tão elementar quanto: o caso vai parar no Facebook, sendo altamente compartilhado e viralizando. Pronto, a cabeça de Rubens estava na bandeja virtual.

Eis o foco de "Aos Teus Olhos". Muitos falam que a obra é um filme sobre pedofilia, o que não é verdade. O tema está sim impregnado por toda sua duração, mas, acima de qualquer coisa, o roteiro é sobre a condenação internetês que estamos tão (infelizmente) acostumados. O suposto caso de pedofilia é o pontapé no ecrã para alcançar seu real cerne. Em tempos de correntes, fake news e debates gerados pelos grupos de WhatsApp com as maiores barbaridades possíveis, a contemporaneidade do longa é esmagadora. Quem nunca viu histórias como a de Rubens rolando pelos grupos? Dá até para imaginar aquele tio falando no grupo da família que ouviu o mesmo drama no trabalho, incitando um debate - e julgamento - em tempo real.


Aqui habita a denúncia mais urgente da película: o quanto acreditamos piamente no que vemos na internet. "Se tá na internet é verdade", já dizia o meme, que assustadoramente possui cabimento. Mesmo com todos os indícios da culpa do professor, há um elemento chave para colocar a dúvida em nossas cabeças: não vemos, em momento algum, a criança proferindo a acusação. Toda a história gira ao redor do ato do pai ir até o clube, mas ele tampouco ouviu o filho falando sobre o beijo. A faísca é acesa a partir da mãe, afirmando veementemente que o filho contou a história.

Então estamos num verdadeiro disse-me-disse. A escolha de ausentar o menino na tela é importante para que o roteiro permaneça caminhando sobre a areia movediça da acusação, cada vez mais instável quando a mãe desconversa ao ser pressionada pelo pai, que demanda ouvir todos os detalhes da história original; ou quando os indícios comportamentais da criança, gerados pela pressão do arrogante pai, são - para quem quer - elementos suficientes de comprovação da culpa de Rubens.

A complexidade do caso incide dois movimentos contraditórios: a acusação de pedofilia, um crime gravíssimo, deve ser estudada com calma para que o problema não se torne algo muito pior. No entanto, toda a calma demandada pela situação é estraçalhada pela rapidez absurda que o caso toma o mundo pela rede mundial de computadores. O que já era difícil de lidar se torna impossível quando a história aterrissa nos portais de jornalismo, e a caixinha de comentários, antro supremo de ódio, está prontíssima para enforcar o próximo Judas.


Outra faceta primordial que piora a trama é mais um exemplo que difere "Aos Teus Olhos" de "A Caça". O suposto crime no dinamarquês é proferido contra uma garota, enquanto no brasileiro é contra um menino. O que seria apenas detalhe arremessa peso aflitivo no drama, pois Rubens não seria apenas pedófilo, ele seria, também, homossexual, o que há de pior. O roteiro escancara sem dó a homofobia da nossa sociedade, e o quanto estamos violentamente despreparados para lidar com uma situação como essa, ainda associando a homossexualidade com perversão.

"Você já beijou algum dos alunos?", questiona Rubens para Ana. "Claro que sim, mas é diferente". "Diferente porque você é mulher?". Esse é só um dos vários diálogos que nos retiram da zona de conforto e massacram nossa cabeça em busca de reflexões. O título internacional, inclusive, reflete magistralmente toda a solidez de seus debates: "Liquid Truth", ou "Verdade Líquida", na tradução literal.

"Aos Teus Olhos" é um acerto atual que se utiliza de tratamento quase documental em sua ficção e supera os rótulos de "bem feito", "boas atuações" ou "ótima trilha sonora" pra entrar na esfera do debate, função seminal da Sétima Arte. E, assim como nomes como "Central do Brasil" (1998), "Cidade de Deus" (2002) e "Que Horas Ela Volta?" (2015), extrapola a cerca do regional para universalizar seus dramas. Entrando no campo secular que é a discussão sobre o conceito de justiça, a produção retrata da maneira mais próxima possível o quanto as redes sociais podem estar deturpando esse conceito.

No momento em que as opiniões das pessoas se tornam notícias e, consequentemente, verdades, estamos com legítimas armas em formato de smartphones, e só conseguiremos manter uma internet responsável quando aprendermos que o linchamento virtual e a externalização de ódios via mensagens instantâneas são a apoteose do mau uso das novas tecnologias. Tão próximo da gente, tão nosso dia a dia que assombra.

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