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Crítica: está tudo bem se você for ao banheiro no meio de “O Irlandês”

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Ator Codjuvante (Al Pacino)
- Melhor Ator Codjuvante (Joe Pesci)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Figurino
- Melhor Montagem
- Melhores Efeitos Visuais

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando pensamos no corpo de trabalho de um diretor, caso ele tenha um estilo bem característico, conseguimos definir do que seu cinema é feito. Alguns exemplos? Wes Anderson e seus filmes coloridíssimos e simétricos; Yorgos Lanthimos e seus filmes estranhos e sarcásticos; Spike Lee e seus filmes engajados e políticos, Sofia Coppola e seus filmes melancolicamente femininos; e por aí vai. Mas é curioso quando olhamos sobre Martin Scorsese.

A filmografia scorseseana é geralmente resumida por "filmes de máfia". Nos mais de 50 anos de atuação, o diretor passeou por uma enorme gama de temas, como "Touro Indomável" (1980), "Depois de Horas" (1985), "A Última Tentação de Cristo" (1988), "O Aviador" (2004), "Ilha do Medo" (2010), "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), "O Lobo de All Street" (2013) e "Silêncio" (2016), todos bem diferentes um dos outros. Contudo, é inevitável apontar a temática gangster como a mais predominante em sua carreira - suas obras mais famosas e premiadas foram as desse mote, inclusive rendendo o único Oscar de "Melhor Direção" para Scorsese.

Então, mesmo não sendo assertivo resumir Scorsese com filmes de máfia, não é lá uma definição tão errada. "O Irlandês" (The Irishman) não me deixa mentir. O filme, inclusive, traz um dos maiores nomes na construção da fama do diretor: Robert De Niro (protagonista de "Touro Indomável" e "Taxi Driver", 1976) na pele de Frank Sheeran, um motorista de caminhão envolvido no crime organizado na Filadélfia dos anos 50. Pesadamente inspirado em fatos e indivíduos reais, a estrutura do filme não é linear, começando com Frank no fim da vida em um asilo contando o que o levou até ali.

Por possuir uma estrutura que caminha entre o tempo, o filme encontraria uma grande empecilho: De Niro, que atualmente possui 76 anos, não teria como interpretar as versões mais novas de seu personagem - assim como outros atores em cena. A solução foi um rejuvenescimento à base de efeitos visuais. O CGI é utilizado com muita precisão, sendo quase imperceptível e mantendo as expressões faciais dos atores, um dos maiores riscos da utilização da técnica - e que explica os 160 milhões de dólares em orçamento, um número altíssimo, principalmente levado em conta que o filme foi distribuído na Netflix, ou seja, sem bilheteria (com exceção do lançamento limitado nos cinemas como parte do processo de submissão ao Oscar - para ser indicado, o filme tem que sair nas salas por pelo menos uma semana).

E falando em Netflix, a plataforma está sedenta por um careca dourado. No Oscar 2019, chegou bem perto com "Roma" (2018), que viu o prêmio de "Melhor Filme" escorrer de suas mãos com uma Academia que ainda olha torto para obras vindouras do streaming. Em 2020, a Netflix vem com força total, tendo os dois maiores nomes da temporada: "O Irlandês" e "História de um Casamento" (2019). A gigante não perdeu tempo em comprar os diretos de distribuição de ambos - ainda investindo milhões na produção de "O Irlandês", visando, não podemos mentir, ser a primeira plataforma de stream a ter um Oscar na estante. Por enquanto, parece que o caminho está trilhado.


Pois bem. "O Irlandês", que foi eleito o melhor do ano pela National Board of Review e recebeu incríveis 14 indicações ao Critics' Choice 2020, um recorde na história da premiação repetido apenas por "A Forma da Água" (2017) e "A Favorita" (2018), resgata o estilo que viu o apogeu nos anos 70 - tanto "O Poderoso Chefão" (1972) quanto "O Poderoso Chefão: Parte II" (1974) venceram "Melhor Filme" na década. Então, sim, é tudo o que esse cinema hollywoodiano de ação mafiosa já nos entregou ao longo da história. E mais: são 3:30h de filme.

Esses pontos aqui renderam inúmeras discussões pela internet, com um crítico fazendo um post no Twitter sobre como assistir a "O Irlandês" como se fosse uma minissérie, dividindo o filme em quatro partes (que, levanto a mão, foi o que fiz). Do outro lado, o Pablo Villaça (um beijo para ele) virou meme quando disse que deveríamos assistir às 3:30h sem parar, não podendo nem ir ao banheiro, para não quebrar o "ritmo da narrativa". Villaça, perdão, mas eu falhei. O que esses dois extremos têm a nos dizer?

Como apontei na crítica de "História de um Casamento", cinema é passível de gostos. Sabe aquele seu amigo que venera qualquer filme de super-herói enquanto você acha um saco? Pois é. Quanto mais afunilado for o estilo, gênero ou molde de uma obra, mais de "nicho" ela será. É o caso de "O Irlandês". Villaça, que tem como filme favorito "O Poderoso Chefão", não surpreende quando ama "O Irlandês", que entrega tudo o que "Chefão" entregou. Para ele, acompanhar os 209 minutos ininterruptamente faz parte das rotinas de apreciação que ele tem pelo mote, o que, de acordo com a enxurrada de comentários acerca, não é a realidade de todo mundo.

O que eu quero dizer é: se você gosta de filme de máfia, esse momento é seu. Caso contrário, "O Irlandês" será um desafio, e é aqui que eu me enquadro. É impossível saber os valores de um filme de máfia caso você não aguente nem ouvir falar sobre? Não, contudo, o gosto da sessão com toda certeza não será tão doce. Admito que me peguei me obrigando a assistir ao filme, que, querendo ou não, é um evento para a Sétima Arte, e, dividindo entre vários dias (calma, Villaça), consegui chegar até o fim. O que posso dizer sobre "O Irlandês"?

O roteiro, escrito por Steven Zaillian, vencedor do Oscar pelo roteiro da obra-prima "A Lista de Schindler" (1993) e especialista em adaptar livros complexos, se atém demasiadamente nos fatos históricos que circulam os eventos do filme. Por trazer personagens reais e fincados num contexto político, há um background da política norte-americana e como ela impacta a vida dos personagens, como a eleição (e morte) de JFK. Então é laborioso escapar da sensação de que estamos assistindo à uma aula de história na tela, mas já garante pelo menos a atenção dos EUA, absurdamente egoicos e prontos para jogarem confetes em qualquer fita que trate sobre, bem, eles mesmos.


Há três vertentes de narrativa dentro do filme. A primeira é quando temos Frank recontando sua vida e quebrando a quarta parede, afinal, ele está falando diretamente com o público. A segunda trata-se da remontagem das falas de Frank, com uma narração e cenas de acordo. Essa é a pior escolha do filme. Feita sempre com uma colagem de micro cenas que duram segundos e que não esperam a plateia assimilar o que está acontecendo, ainda tem a narração e inúmeros personagens entrando e saindo de cena. Em várias dessas sequências eu me via incapaz de entender o que estava acontecendo, soando ainda pior quando havia o contexto histórico jogado em cima de tudo. A terceira é a salvação do dia: quando a presença do Frank idoso sai de cena para uma narrativa convencional.

Aqui, as cenas são compridas e finalmente podemos adentrar no desenvolvimento da trama. E os diálogos, ah, os diálogos... Encontrando maior espaço na parte central da duração, os diálogos são deliciosos, como a briga de Jimmy Hoffa (o lendário Al Pacino) com um mafioso que chegou cinco minutos atrasado para uma reunião. Sem toda a baboseira e falatório, se atendo especificamente nos personagens centrais, o filme mostra a que veio.

E esses momentos informam sem sombra de dúvida o quanto as atuações do trio central são fenomenais. De Niro e o Russell Bufalino de Joe Pesci são os peões silenciosos que conduzem a orquestra, todavia, Al Pacino é o verdadeiro protagonista de "O Irlandês". Não por ter o maior tempo em tela, mas por preencher cada quadro em que aparece com sua fenomenal atuação. É uma satisfação ver o ator, que já viveu tantas glórias, voltar ao topo após sofrer com escolhas desastrosas nessa década - deixo aqui uma cena de "Cada um tem a Gêmea Que Merece" (2011) para ilustrar o que chamo de "desastre", que lhe rendeu o Framboesa de Ouro de "Pior Ator Coadjuvante" pelo papel e apontava o declínio de sua carreira.

Um dos elementos a ser tópico de discussão sobre o filme foi como as mulheres são retratadas: elas basicamente inexistem. Scorsese, um homem branco, realiza seus filmes lotados de homens brancos, o que faz sentido - ele dirige o que está próximo de sua realidade. No entanto, me assustei ao ver que Anna Paquin, vencedora do Oscar, aceitou um papel que, não estou exagerando, não fala 10 palavras. Ela, como a versão adulta da filha de Frank, tem cena após cena sem um mísero diálogo, ganhando voz por cinco segundos no ato final. A atriz saiu em defesa do papel e se disse lisonjeada por estar em um filme do diretor, que é inegavelmente um dos maiores das história, mas não faz sentido reduzir a personagem a nada - e ela ainda chegou a receber indicação de "Melhor Atriz Coadjuvante" em algum dos distritos de crítica no EUA; caso ganhe, será o menor esforço da história a render um prêmio.

"O Irlandês", se olhado de cima do nicho que se enquadra, é uma realização competente que nada difere dos padrões elevados já impostos por Martin Scorsese ao logo das décadas. Traz algo de novo para sua filmografia? Não exatamente. A partir disso, pela sua temática e sua duração, o apreço vai muito da maneira como cada um enxerga os elementos, apesar de itens intocáveis como o aparato técnico e as atuações de primeira linha. Esse é um filme que coloca a subjetividade à flor da pele quando uns o enxergam como um épico sobre moralidades rachadas e brigas de poder, enquanto o mesmíssimo material para outros (e aqui me sento) denota pouco além do letárgico. Mas o mais incompreensível é pensar que Anna Paquin saiu de casa para isso.

Crítica: a D.R. de “História de um Casamento” conquista por abraçar o universal

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Adam Driver)
- Melhor Atriz (Scarlett Johansson)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Laura Dern)
- Melhor Trilha Sonora

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Noah Baubach é um dos maiores expoentes do cinema indie norte-americano na atualidade. Seja pelos seu roteiros (ele co-escreveu "A Vida Marinha com Steve Zissou", 2004, e "O Fantástico Sr. Raposo", 2009, com Wes Anderson), seja pelos seus próprios filmes (como o clássico independente "Frances Ha", 2013, protagonizado pela sua esposa e cristal do cinema, Greta Gerwig), há muito tempo Baubach encontra o carinho do público e crítica, mas nunca antes como com "História de um Casamento" (Marriage Story).

Charlie (Adam Driver) comanda e dirige uma companhia de teatro em Nova Iorque, e tem como estrela de suas peças a sua esposa, Nicole (Scarlett Johansson) - teve um déjà vu? Só que a relação nos palcos não reflete mais a relação doméstica, e o casal decide se separar. Como prominente atriz, Nicole é escalada para uma série em Los Angeles, e vai até lá com o filho, o que transformará uma pacífica separação em uma guerra judicial.

O longa espertamente é aberto com um voice-over do casal, contando os meandros do outro e todos os detalhes que os fizeram se apaixonar. É muito divertido acompanhar a dicotomia dos dois, e impossível não projetar para nossas próprias vidas, afinal, estamos em constantes relações com pessoas que inevitavelmente terão diferenças drásticas com o que somos. E essa é a magia da coisa. O que parecia um apaixonado início é brutalmente cortado: os textos são cartas que cada um teve que escrever na terapia, só que Nicole se recusa a ler a dela em voz alta. O público é o seu cúmplice.

Com cada um vivendo em cidades diferentes, o trabalho é o motivo para, civilizadamente, justificar o afastamento (emocional e geográfico) dos dois - uma peça de Charlie está indo para a Broadway e as gravações de Nicole começaram. Havia um acordo entre eles: não seria preciso a intervenção de advogados no divórcio, com uma camaradagem expressiva entre eles, até mesmo na divisão dos bens, só que Nicole quebra o acordo e contrata Nora (Laura Dern), advogada especialista em separação que mudará toda a dinâmica do jogo.


Charlie fica consternado quando recebe a intimação judicial, sem entender o que levou a ex-esposa a tomar tal decisão. O roteiro diabolicamente não entrega a resposta de imediato, quase transformando Nicole na vilã da história, contudo, há um motivo, e dos bons: ela descobriu que Charlie a traiu. É claro que cada um tem uma "justificativa" que tenta anular a reação do outro, em uma das melhores cenas de toda obra, quando os dois aos berros vomitam suas mágoas e procuram atacar da forma mais baixa possível o outro. E note o trabalho belíssimo de fotografia e montagem, abrindo a cena com um enorme plano e gradualmente fechando até focar no rosto transtornado do casal.

Uma das nuances mais corretas de "História de um Casamento" é não se limitar em ser somente um olhar sobre uma relação em ruínas. Há um forte estudo sobre o que é essa instituição que chamamos de casamento e qual o papel de homem e mulher dentro dele. Tudo é jogado ao máximo quando inserido no contexto da advocacia, que tem como base o uso desses papéis no grande jogo de convencimento jurídico. Nicole jamais pode transparecer ser uma esposa ruim, pois isso a configuraria como uma mãe ruim, e a guarda do filho seria perdida. No caso do homem, tal peso inexiste. É aqui que habita, para mim, o melhor diálogo das mais de 2h de sessão, quando Nora dá uma aula sobre a construção social da mulher dentro do relacionamento, lincando com a imagem de Maria, mãe de Jesus, "uma virgem que dá à luz, apoia o filho incondicionalmente e o abraça enquanto ele morre; e o pai nem dá as caras, deus é o pai, deus está no céu e nem aparece!". O Oscar de "Melhor Roteiro Original" já tem dono.

Falando em Dern, uma das maiores cotadas ao Oscar de "Melhor Atriz Coadjuvante" e uma das melhores atrizes em atuação, não há muito o que se falar contra ela, porém, sua personagem é similar demais com Renata Klein, seu papel vencedor do Emmy na série "Big Little Lies" - mas não se engane, ela é ótima em cena, mesmo com uma personagem dentro do molde "advogado ixperto" tão batido no cinema. Adam Driver, que só pode ser escalado para personagens bem específicos, parece transbordar na pele de Charlie, caminhando com imensa segurança entre os momentos dramáticos e cômicos (a cena do canivete). Todavia, "História de um Casamento" é engolido por Scarlett Johansson.

A atriz, que na corrente década caiu de vez nas graças do cinema pipoca - "Os Vingadores" (2008) e todos seus intermináveis filhotes, "Lucy" (2014), "A Vigilante do Amanhã" (2017), etc - entrega a sua melhor atuação do período nessa personagem que exige tanto talento. Há monógolos enormes e coreografados, que são executados com maestria pela atriz, unindo uma exigência enorme para a fluidez de cada cena com o estilo mumblecore que Baumbach adota em seus filmes. De fato, o apogeu de Johansson e a volta para sua boa forma.


A maior cartada de "História de um Casamento" é o realismo a que se propõe. É um filme bem "gente como a gente", tratando de dramas reais com pessoas reais, o que explica o imenso apreço dos espectadores, catapultando o longa como um dos mais ovacionados do ano. Além disso, há esmero na composição de seus indivíduos, enriquecendo ainda mais o universo multidimensional que é a vida dos personagens, contudo, mais uma vez iremos nos debruçar em um elemento seminal de qualquer arte e que muita gente ainda se recusa a aceitar: a  subjetividade.

Entre achar "História de um Casamento" um "filme sobre brancos discutindo a relação" e "uma das mais tocantes histórias do ano" (são comentários reais que li a respeito da película), tudo parte do princípio que cada pessoa irá ser atingida de uma forma diferente pelo mesmo filme. O estilo proposto por Baumbach possui fácil apelo pela proximidade que ele coloca seus mundos dos mundos reais, só que esse é um filme que, daqui a um mês eu estarei na fila da padaria e pensando "nossa, que perfeito"? Não.

Aqui temos o Cinema como contador de histórias do cotidiano, uma das funções seminais da Sétima Arte, e "História de um Casamento" atinge esse objetivo facilmente. É simpático, caloroso e, ao mesmo tempo, emocionante, uma fórmula pronta para arrebatar multidões, no entanto, mesmo tendo abraçado e me apegado ao todo, não é um estilo que me arranque suspiros ou que me devaste; é o mesmo que alguém amar filmes de super-herói, ou de faroeste, ou os "estranhões", ou os de máfia, e por aí vai e está tudo bem. É um ótimo filme que, sendo bem detalhista, não foge à regra de tantos outros com a mesmíssima temática e estilo, como "Cenas de um Casamento" (1973) e a maior referência, "Kramer vs. Kramer" (1979) - até os posteres são parecidos. Soa desconfortável apontar, porém, o apreço circula ao redor da sua preferência estilística - como basicamente acontece com todo filme - mas, no fim do dia, é essa a verdade.

"História de um Casamento" é um filme que deve ser visto pela dissecação palpável do quão complexo somos e como tudo vai para um limite além quando buscamos a utópica máxima de "juntos somos um só" dentro de um relacionamento. A vida de Charlie e Nicole é tão congruente com a vida de vários outros Charlies e Nicoles sentados diante da tela, e as decisões feitas por Noah Baumbach universalizam sua obra a um estágio que pode ser explicado pela sua imensurável aclamação. Assim como não dá para fugir que "História de um Casamento" é feito para fisgar multidões - até mesmo o genérico título, que não denota singularidade, resume a ideia -, não dá para fugir da particularidade de que prefiro muito mais uma fita que extrapole a realidade nas imensas possibilidades que a Sétima Arte nos agracia do que uma que seja expectadora da realidade pura e simples. E isso não é um problema de "História de um Casamento".

Crítica: “O Farol” captura a miserável relação do homem com o natural (e o inatural)

Atenção: a crítica contém spoilers.

Robert Eggers presenteou a humanidade, em 2015, com um dos melhores filmes de terror do século: “A Bruxa”, um conto macabro que atira o espectador diretamente nas lendas sobre bruxaria, satanismo e ritos pagãos do séc. XVII, ou seja, uma delícia. Um sucesso estrondoso de público e crítica, Eggers parecia um talento nato para o gênero e o Cinema como um todo com uma das melhores estreias dos últimos tempos - ele levou o prêmio de "Melhor Direção" no Festival de Sundance 2015.

Sua segunda odisseia é “O Farol” (The Lighthouse), que compartilha algumas semelhanças com o filme anterior. “O Farol” é baseado nas lendas de marinheiros do séc. XIX e seus monstros vindouros das profundezas dos oceanos. Quando dois homens vão para uma ilhota no meio do nada a fim de cuidar de um farol, as coisas começam a caminhar sobre a linha da realidade e loucura.

Assim como o pilar seminal do Cinema, o que primeiro captura o interesse da plateia em “O Farol” é o viés imagético: o longa foi inteiramente filmado em preto e branco e com o ratio 1.19:1, conhecido como “tela quadrada” – outro filme recente famoso por usar a mesma estética é “Mommy” (2014), que literalmente encolhe a tela quando os personagens se encontram encurralados. Essa é exatamente a função da escolha estilística do filme de Eggers: além de, obviamente, evocar os primórdios da Sétima Arte, com fotografias fidedignamente emuladas em “O Farol”, o ecrã quadrado gera uma constante sensação de aprisionamento.

Com apenas dois personagens em cena, a configuração é posta assim: Ephraim Winslow (Robert Pattinson) é contratado por Thomas Wake (Willem Dafoe) quando seu último ajudante vai embora “após enlouquecer”. A função de Winslow é cuidar dos afazeres gerais na ilhota, enquanto Wake é incumbido de vistoriar a lâmpada do farol – a mais importante atividade dali. As regras são bem simples: Winslow deve fazer tudo no seu turno sem reclamar e jamais entrar na sala da lâmpada, trancada no topo da estrutura.

Já nos primeiros dias, Winslow percebe que há algo de estranho na proibição; Wake é visto nu e completamente em êxtase diante da potente luz. Durante os estranhos jantares, o mais velho fala como o último ajudante afirmava que o farol era casa de forças sobrenaturais, despertando uma fagulha dentro de Winslow. Descobrir o que se passa lá em cima viraria uma missão.


Na solidão e tédio massacrantes, os dois homens se aliviam sexualmente de formas distintas, mas igualmente desconcertantes: enquanto Wake se masturba banhado na luz, Winslow usa como estimulante uma pequena estátua de uma sereia, deixada para trás pelo último ajudante. É bastante necessário perceber as dinâmicas sexuais dos dois, afinal, o sexo é elemento determinante na condição psicológica de ambos – com ênfase em Winslow.

Além da área sexual, outro complexo textual que colide para gerar o combustível da trama é o quão supersticioso é Wake. Para ele, a existência humana está simbioticamente alinhada com a natureza, sem deixar de esquecer que os deuses e forças divinas são quem controlam todo esse jogo. Uma gaivota de um olho só insiste em perseguir Winslow, que eventualmente a mata – a cena é sensacional quando o personagem expurga um lado reprimido em cima da ave. Imediatamente, a fabulosa fotografia nos eleva até o topo do farol, nos mostrando que os ventos mudaram e, assim, uma tempestade é iminente. Wake culpa Winslow: para ele, gaivotas são marinheiros reencarnados, e sua morte é má sorte garantida.

Em diversas entrevistas de promoção da obra, Eggers sempre repetia uma mesma frase: “Nada de bom pode dar certo quando dois homens ficam presos em um prédio fálico”. Além da tirada cômica, o diretor entrega uma enorme fatia do simbolismo costurado pelo roteiro quando aqueles machos vivem para preservar um falo gigante de pedra enquanto não conseguem satisfazer verdadeiramente seus apetites sexuais – até mesmo em um rápido momento os personagens estão à beira de se beijarem.

Enfim chega o dia que Winslow poderá ir embora, só que o barco que viria buscá-lo não aparece. Convencido por Wake, os dois embarcam no álcool e o entorpecimento prega peças que muitas vezes não se revelam como verdadeiras ou meras ilusões - com exceção das manipulações mentais feitas por Wake, que faz Winslow nem saber mais quantos dias já se passaram. Winslow encontra uma sereia nas rochas perto do oceano, e a voluptuosa criatura se entrega deliciosamente ao homem – houve até mesmo um estudo para criar o órgão genital da sereia, o que remete ao polonês “A Atração” (2015), dono das melhores sereias do Cinema moderno. Aqui, a película abre uma ruptura definitiva sobre a veracidade de seus acontecimentos, embarcando na polpa do navio em uma narrativa onírica que se recusa a ser desvendada. Não dá para afirmar o que é real ou não (a sereia realmente esteve ali ou foi uma criação de Winslow após sua fixação com a estátua?) - e o charme não é tentar apontar o dedo para as ilusões, e sim se deixar levar por elas.


Se em algum momento pairar a dúvida sobre o bom andamento da sessão – afinal, é um filme em P&B e com apenas dois personagens falando sem parar –, qualquer receio é dissipado quando as duas atuações são tão lendárias. Willem Dafoe é um dos melhores atores do nosso tempo e realiza uma performance irretocável como o caricato ex-marinheiro violentamente apegado em suas crenças. Para ele, deus é o mar. Seus monólogos shakespearianos, sejam com sussurros ou berros, são dignos de qualquer premiação e uma das mais refinadas atuações de 2019. Robert Pattinson, que há um bom tempo já comprovou seu talento (se você ainda está em 2008 na era “Crepúsculo”, favor assistir a “The Rover: A Caçada”, 2014, “Bom Comportamento”, 2017, e "High Life", 2018), não deixa o palco ser roubado por Dafoe quando incorpora uma persona tão complexa, desafiadora e que não tem pudores em cenas cruas e difíceis. Ele sua, sangra, vomita e goza de maneira animalesca. Não é exagero apontar sua performance de a melhor do seu currículo, digna de Oscar.

Um dos mais belos aspectos repetidos de “A Bruxa” em “O Farol” é o contato humano com o meio. No universo de Eggers, a natureza é cruel e impiedosa, uma força poderosíssima que é capaz de nos matar com uma facilidade ridícula. Presos numa pedra com o mar incessantemente socando o que estiver pela frente, com os ventos rasgando a pele, a composição da película – locações, fotografia, figurinos, trilha sonora, design de produção – é genial no intuito de gerar uma atmosfera miserável, bem refletora da época em que se passa, quando a vida era sinônimo constante de sofrimento, de mazelas, de enfermidades. Parece que Eggers condena seus personagens, e o algoz é a própria natureza, o que faz seu cinema ser mitológico: somos servos do meio, e, quando tentamos domá-lo, sua ira é como os castigos vindos do Olimpo. Tão verdade que esses castigos não são somente físicos, mas também fantásticos.

Então chegamos no clímax, o derradeiro momento que Winslow consegue ver o que reside no farol. Assim como “O Bebê de Rosemary” (1968), “Pulp Fiction: Tempo de Violência” (1994), “A Bruxa de Blair” (1999) e tantos outros, “O Farol” não permite que o público veja o que o personagem (aos gritos) vê, deixando no campo imaginário. É um fato que isso vai irritar muita gente, tão acostumada a ver em detalhes os demônios e espíritos que aterrorizam o terror, todavia, é um acerto não revelar o que causou tamanha reação em Winslow (um dos melhores finais do ano, de longe) assim como era muito mais interessante imaginar como seria o filhote do Satanás do que graficamente vê-lo.

O final é deveras enigmático e nada narrativamente explicado: quando se depara com a luz, Winslow despenca escada abaixo. O último frame é o personagem ensanguentado ao lado do farol enquanto gaivotas comem seus órgãos. Muito mais que o gore, o simbolismo do momento requer conhecimento de um lado histórico pincelado no roteiro: a mitologia romana e grega, mais especificamente as histórias de Ícaro e Prometeu.


Ícaro sonhava em sair de Creta pelos céus e, voando perto demais do Sol, acabou caindo para sua morte. Prometeu – que não possui um conto tão conhecido como o de Ícaro – era um titã que roubou o fogo sagrado a fim de dividir com os humanos. Zeus, revoltado e temeroso com as consequências de tamanho poder na mão do homem (nem dá para julgá-lo), decide punir Prometeu: ele ficaria eternamente preso a uma rocha enquanto aves comiam seus órgãos.

Os dois mitos são abraçados pelo roteiro: Wake representa um guardião divino – até mesmo seu visual evoca tal sensação –, e proíbe Winslow de se aproximar da luz que rege suas vidas. Este, ganancioso, chega próximo demais do farol, que o derruba e, graças ao acidente, é devorado vivo pelas aves. A ilha é quase um purgatório, um espaço de condenação de Winslow (que possui um passado manchado) enquanto o farol é a maçã proibida do Jardim do Éden: chegar perto demais é uma sentença trágica. Claro, tais interpretações são especulativas e com o intuito de tentar encaixar as peças dadas pela obra, talvez a maior diferença entre “O Farol” e “A Bruxa”.

“O Farol” se debruça muito mais no simbolismo, nas construções no campo abstrato, enquanto “A Bruxa” é mais expositivo e empírico – e, admito, isso dá uma leve pontada de descontentamento, com uma sensação de que poderia haver mais orquestrações do horror (algo que também acontece com “Midsommar”, 2019). É bem mais difícil, por isso, vislumbrar a plateia chamando “O Farol” de um filme de terror; se em “A Bruxa” o capeta em pessoa dá o ar da graça, “O Farol” tem gêneros bem mais predominantes que os elementos de horror: é um filme dramático com ares de mistério e fantasia. “O Farol” é tão terror quanto “Cisne Negro” (2010), "Demônio de Neon" (2016)“A Região Selvagem” (2016): todos são filmes-pesadelos e importantes solidificadores de um gênero bastante fluido e que ainda é posto em caixinhas (até presente data eu vejo pessoas declamando o impropério de que "A Bruxa" não é terror por "não dar susto"). Mesmo não tendo o terror como prato principal, os exemplos executam seus elementos brilhantemente, não diferente de "O Farol".

Robert Eggers mais uma vez coloca o pé na Sétima Arte com imenso talento, domínio e pretensão – exatamente por isso que suas histórias são tão fortes. “O Farol” é um sucessor à altura de “A Bruxa” ao mais uma vez quebrar o paradigma de que o ser humano é o que há mais poderoso sobre a face da terra: é a própria terra quem domina nossa existência. O filme não tem problemas em fotografar essa existência como algo decrépito, fadado ao insucesso quando estamos tão preocupados em saciar nossos egoístas desejos. Somos de uma fragilidade tão aparente que, às vezes, a natureza nem precisa se esforçar para nos destruir. Nós mesmos nos encarregamos disto.

Crítica: “A Vida Invisível”, nosso representante ao Oscar, e o patriarcado tropical do dia a dia

Foi uma agradabilíssima surpresa quando "A Vida Invisível" venceu o prêmio de "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar" do Festival de Cannes 2019, acompanhando a vitória de "Bacurau" (2019) na competição principal, que levou o Prêmio do Júri. A vitória de dois filmes brasileiros numa mesma edição é reflexo da fase atual que nosso cinema vive – não por acaso, os dois foram os principais na disputa para a seleção do Oscar 2020 de “Melhor Filme Internacional” (o antigo “Filme Estrangeiro”).

"A Vida Invisível" é o primeiro longa brasileiro a vencer a "Um Certo Olhar", que só nos últimos tempos viu como ganhadores diversas obras-primas, como "Dente Canino" (2009), "Depois de Lúcia" (2012), "A Ovelha Negra" (2015), "Um Homem Íntegro" (2017) e "Fronteira" (2018). Mais uma honraria em seu currículo foi a escolha do filme para nos representar no Oscar, em uma acirrada disputa: “A Vida Invisível” foi o escolhido por um voto de diferença de “Bacurau”.

É necessário compreender que, se tratando do Oscar, as escolhas são feitas como uma campanha política. Vence quem melhor vender seu trabalho, não o melhor trabalho em si. Por isso, “A Vida Invisível” foi uma escolha muito acertada, mesmo não sendo o melhor filme nacional do ano. Os motivos são vários, porém destaco três pontos importantes.

O primeiro é que “Bacurau” possui um plot que coloca norte-americanos em posições bastante controversas para a Academia – imagine os votantes vendo gringos da forma que foram expostos no filme (não darei spoilers acerca). O segundo é que a história de “A Vida Invisível” é de mais fácil digestão por focar no melodrama, à la Pedro Almodóvar – e melodrama faz a Academia tremer na base. O terceiro é que a obra tem Fernanda Montenegro no elenco, a única atriz brasileira a ser indicada ao Oscar em toda a história, ou seja, é figura familiar. Depois da desastrosa escolha de “O Grande Circo Místico” (2018) na última edição, é para respirar aliviado ter um selecionado à altura da qualidade do cinema tupiniquim.

“A Vida Invisível” entra na intimidade de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), no Rio de Janeiro da década de 50 - curiosidade: assisti ao filme em companhia do diretor Karim Aïnouz e ele disse que o título foi alterado de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", o nome do livro de Martha Batalha que inspirou o filme, para o atual por focar na vida de inúmeras mulheres invisibilizadas, não apenas na de Eurídice (e que seu título internacional favorito é o da Alemanha, "A Saudade das Irmãs Eurídice e Guida"). Filhas de imigrantes portugueses, as garotas são pesadamente reprimidas pelos pais, e desde o início demonstram as dinâmicas diante da repressão: enquanto Guida faz de tudo para burlar as rígidas regras do pai, Manuel (interpretado por Antônio Fonseca), Eurídice se molda de acordo com as leis paternas.


Guida se esgueira para cair na noite com seu namorado grego, e foge com ele sem aviso, para o desespero de Eurídice e a vergonha do pai. O evento é decisivo na vida de todos da família. Sem o apoio da rebelde irmã, Eurídice dança ainda mais conforme a música, aceitando o casamento arranjado com Antenor (Gregorio Duvivier), sem nunca ter visto o homem despido. Ela recebe, de uma amiga, dicas do que seria a noite de núpcias, mas nada a prepararia para um sexo tão brutal de um homem que via a esposa apenas como máquina de prazer particular - a sequência é proposital e corretamente horrível. Ela nem resiste, tão condicionada a obedecer o que viria de qualquer homem.

Enquanto isso, Guida volta da Grécia grávida e sem marido – a relação com o namorado acabara tão rápido como começara. Uma mulher fugida que retorna prenha e descasada era o que havia de mais humilhante para a imagem de uma família, e Manuel expulsa a filha de casa aos berros. Guida só queria saber de uma coisa, onde estava a irmã. O pai mente: Eurídice, exímia pianista, teria ido estudar em Viena. Ir até a Áustria se tornara, então, o objetivo de Guida.

A dinâmica do filme se torna essa: o pai mentindo para as duas irmãs. Eurídice imagina uma vida ensolarada nas praias da Grécia para Guida e Guida escreve sobre como Eurídice deve estar ocupada sendo uma famosa pianista e dando autógrafos aos europeus. A realidade é que ambas estão na mesma cidade. É deprimente ver como as irmãs projetam uma realidade para a outra que, a cada dia, mais impossível fica graças ao patriarcado. A película, maliciosamente, introduz uma cena em que as duas por pouquíssimo não se esbarram, gerando genuína tensão na plateia, ansiosa para o enfim reencontro das duas, que vão embora sem imaginar que a irmã estivera ali momentos antes. É astuto, então, lembrar da primeiríssima cena, onde as irmãs se perdem em uma floresta e, mesmo gritando o nome uma da outra, jamais conseguem se reunir, uma metáfora visual da trama.

Guida inicialmente decide abandonar o bebê recém-nascido, mas muda de ideia e resgata a criança quando conhece Filomena (Bárbara Santos, que também estava conosco na sessão), uma poderosa mulher negra que a acolhe como filha. Há uma forte ligação entre as duas através da sororidade, e Filomena é uma revolucionária em meados do séc. XX quando Guida noite após noite procura o homem da sua vida e ela responde com um esperto "A gente não precisa de homem para nos divertimos!".


Já Eurídice evita veementemente engravidar, pois isso atrapalharia o caminho rumo ao estrelato no piano. Antenor, em contrapartida, não dá a mínima, e a mulher acaba engravidando. O roteiro finca suas garras em um lado feminino até hoje repudiado: quando a mulher deliberadamente não quer ser mãe em prol de sua carreira. Para Eurídice, isso era inapropriado, com a família sendo o que há de mais importante na vida feminina. Rejeitar a maternidade era um crime. Ou ainda é? A personagem sofre um enorme baque ao ver seu sonho escorrer pelos seus dedos com uma criança indesejada por vir e a censura de todos os machos ao seu redor em relação ao seu sonho.

"Você não se importa com seu marido? Com sua família?", questiona Antenor. "Ele está completamente certo", acrescenta Manuel. E assim segue a vida de Eurídice, esbofeteada constantemente pela mão fantasmagórica do machismo. Talvez o viés mais afiado dentro do filme é o lado sexual de sua protagonista: para ela, o sexo é uma ferramenta de adestramento do marido, nunca um ato de prazer. Em uma emblemática cena, Antenor deseja transar em cima do piano da esposa enquanto ela toca, e ela insistentemente sugere o sofá. Ela não faz isso porque anseia a interação, e sim para que o marido não destrua o piano. Ela quer salvar o que lhe é mais caro e usa o sexo para isso.

A obra executa um belíssimo (e preocupante) estudo acerca do matrimônio. As mulheres são, há séculos, ensinadas desde sempre a perseguirem o casamento, a tábula de salvação de suas vidas. Os homens, é claro, não são educados com os mesmos fins. De uma forma bem aberta, o casamento nas lentes do filme é um contrato capitalista, pois estamos falando de relação de posse. O amor romântico existe para aprisionar as pessoas em regras egoístas que as tornam objetos, principalmente em relação a mulher - contudo, o patriarcado não é benéfico nem mesmo para o homem. Como se não bastasse, todas essas obrigações sociais são pintadas como um mar de rosas. Eurídice, no presente, ouve um "Foram 67 anos de casamento, que bonito!" do filho, e ela (e nós) sabemos que houve nada belo vindo dali; a protagonista penou naquele relacionamento infeliz, incapaz de quebrar suas correntes. Quem nunca viu o casamento dos avós com décadas adentro virando o exemplo de relação perfeita, sem saber das agressões que aconteceram por trás dos sorrisos fotográficos?

Majoritariamente passado na década de 50 - apenas as duas últimas cenas ocorrem no presente -, por mais desconfortável que seja a realidade daquelas mulheres, é um alívio ver como a vida feminina conseguiu mais direitos e liberdades 60 anos depois. O roteiro passeia por várias situações que exemplificam como o corpo feminino é subserviente ao homem - Guida não pode tirar o passaporte sem a permissão do marido que não existe -, e dá para ficar esperançoso em relação aos ritmos das conquistas feministas, porém, por outro lado, o homem continua igual mais de meio século depois. Aquele Antenor é o retrato fiel de tantos e tantos homens que fazem o Brasil ser o quinto país no ranking de feminicídios. "A Vida Invisível" não leva os atos às últimas consequências, mas é um filme sutilmente violento.

Aïnouz, após a sessão e os aplausos, falou que a película não se tratava de um filme feminista, mas sim uma obra contra o machismo, e essa é uma boa definição. Aquele microuniverso de classe média, de renegação social, de pobreza e marginalização, emula tantas e tantas histórias de resistência que qualquer um pode se sentir envolvido. Forte quando foca nas intimidações do patriarcado e emocionante quando entra no amor incondicional de duas irmãs que se separam graças à maquiavélica união de homens, "A Vida Invisível" é, além de sensacional exemplo do nosso majestoso cinema nacional no Oscar, um garboso melodrama que se torna um documento da nossa sociedade que deve, e muito, à vida feminina. Ter como uma das últimas cenas o rosto de Fernanda Montenegro afogada em saudade é lindo demais.

Crítica: sem histeria coletiva, “Coringa” não é nem incrível e nem descartável

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a 11 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Ator (Joaquin Phoenix)
- Melhor Fotografia
- Melhor Trilha Sonora
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som
- Melhor Figurino
- Melhor Montagem
- Melhores Maquiagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Caso acompanhe o Cinematofagia, já deve ter percebido que eu não escrevo sobre filmes de super-herói. Pelo menos não os mais óbvios, aqueles blockbusters da Marvel e DC - tanto que fiz uma lista de filmes desse subgênero que não caem nos moldes abertamente comerciais que conhecemos. "Coringa" (Joker) nasceu com uma proposta diferente, um comic movie "sério".

A primeira amostra desse discurso veio quando a obra estreou na competição do Festival de Veneza 2019, o que foi uma surpresa. Só que ninguém esperava que o filme não só competiria em um dos maiores festivais do mundo como venceria o Leão de Ouro, o "Melhor Filme" de lá. Nunca antes um filme de super-herói conseguiu isso.

O hype estava instaurado. Desde a vitória, no começo de setembro, a película não saiu da boca do meio, e discussões acerca do prêmio pipocam até hoje - e a discussão ainda vai continuar, afinal, a corrida para o Oscar está só começando e "Coringa" já está na crista da onda. O Leão de Ouro de "Coringa" é controverso e, particularmente, um mal passo para Veneza enquanto vitrine cinematográfica.

Vou explicar: afirmo isso sem pôr na mesa os méritos (e deméritos) da fita, e sim sua produção. "Coringa" é da Warner Bros, uma das maiores produtoras do planeta e conglomerado poderosíssimo, além, é óbvio, de se tratar de um filme baseado em quadrinhos, o mais forte subgênero da cultura contemporânea. A prova? Qual a maior bilheteria de 2019 e uma das maiores de toda a história? "Vingadores: Ultimato". E ainda tem dois outros do mesmo mote no top 5, também com os cofres bilionários. Só nos EUA, "Coringa" teve lançamento simultâneo em mais de 4 mil salas, um número altíssimo, e dá para contar nos dedos quantos conseguem o mesmo luxo - e, não é de se estranhar, mal estreou e já tem $300 milhões em bilheteria.

Como esses fatos conversam com Veneza e o Leão de Ouro? O festival, assim como qualquer outro, é um prêmio da crítica - ao contrário dos Oscars e Globos de Ouro, que são prêmios da indústria. Sendo assim, é para torcer os olhos quando um prêmio da crítica dá a honraria máxima a um filme que não precisa de mais visibilidade e apreço. A produção de "Coringa", por si só, garantiria isso independentemente de qualquer fator, o que só ele, entre os concorrentes, poderia falar o mesmo.


Saber se "Coringa" era realmente o melhor da seleção, só assistindo a todos os indicados, contudo, já pontuei que não é esse o ponto. O ponto é: seria mais interessante festivais darem palco para filmes que nunca estrearão em mais de 4 mil salas, que jamais verão 10% do orçamento milionário de "Coringa" e que não nascerão já com o atestado de sucesso comercial - tendo em vista o número massivo de domínio nas salas de cinema mundo afora. "Coringa" não precisava do Leão de Ouro para ser visto, enquanto vários outros, que podem até ser melhores, serão vistos apenas nos cinemas "de arte" de metrópoles. É para se pensar.

Essa foi apenas a primeira das inúmeras polêmicas que gravitam ao redor de "Coringa" - e toda semana surge uma nova. Do problemático diretor Todd Phillips dando declarações estapafúrdias até o uso de uma música no filme cantada por um pedófilo condenado (e atualmente preso), toda essa publicidade negativa acabou sendo o velho "falem bem ou falem mal, mas falem de mim", e vários recordes de público já foram batidos logo na estreia. Deixei todo esse rolê de lado e sentei na expectativa de finalmente encontrar um longa de super-herói (ou, no caso, de um vilão) tão correto quanto "O Cavaleiro das Trevas" (2008).

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um palhaço de festas em Gothan City, na década de 80. Com inúmeros problemas mentais, incluindo uma risada involuntária nos momentos mais inoportunos possíveis, Arthur se divide entre as idas à terapia e o trabalho, perdido quando ele leva uma arma a um hospital infantil.

Só pela premissa já dá para ter uma ideia de como "Coringa" é um filme dúbio. Arthur é introspectivo, sem um pingo de noção de sociabilidade e cada dia mais soturno, porém, ainda assim, é um palhaço animador de crianças com câncer. A inserção das risadas involuntárias é ainda mais irônica, surgindo em momentos de tensão ou tristeza profunda do personagem; é a desgraça acontecendo e ele rindo descontroladamente.

A Gothan que virá a ser protegida pelo Batman - que aparece aqui com uns 10 anos de idade - é pintada com frieza e escuridão: há um forte tom decrépito, falido e corrupto nos becos e avenidas da cidade, um reflexo não apenas do estado psicológico de seus habitantes, mas também de um EUA em plena era Trump. Há uma guerra fria do povo que tenta sobreviver em meio à miséria e à poluição, como se tudo estivesse prestes a explodir, e essas pressões são fundamentais para o entendimento da cabeça de seu protagonista.


"Coringa" é uma viagem direto ao precipício que jogou Arthur na insanidade completa que é o Joker. Em termos binários, é bem mais complexo o nascimento de um vilão do que de um herói - aliás, a jornada do herói é tão batida que é um macete narrativo com regras detalhadas e copiadas há tempos. E essa dificuldade reside na questão: o que aconteceu que pode, cinematograficamente, justificar a maldade de um vilão? O que o levou até ali?

Indo contra a história clássica, o Joker de Phoenix não surgiu após cair num tanque de resíduo químico - hoje não, "Esquadrão Suicida" (2016). "Coringa" tira todo e qualquer aspecto fantasioso de seu texto e destrói a mente do protagonista das maneiras mais críveis possíveis: é o meio que o torna quem é. Da infância cheia de abusos à uma atualidade renegada, Arthur sofreu desde antes de se entender como gente - e aqui reside o prisma mais preocupante da fita, o vitimismo de Joker.

No clímax, quando a loucura já tá espalhada por todos os poros de Arthur, ele justifica seus atos pelo desprezo social que cai em cima dele, e isso é um traço fundamental da cultura "incel", a bandeira mais levantada pelos detratores do filme. Entretanto, a coisa não é tão sensacionalista como o circo montado pela crítica (sem trocadilhos).

É sempre bom lembrar que estamos falando sobre um vilão, ou seja, não existe justificativa realmente aceitável para entendermos (e acharmos correto) crimes como assassinato - então, a "solidão social" de Arthur é tão comparável quanto a de Travis de "Taxi Driver" (1976), influença gigantesca para "Coringa", ou a de Alex de "Laranja Mecânica" (1971). E também não existe um extremismo perigoso do lado "incel" que tanto pintaram: Arthur é incapaz de se relacionar com uma mulher - a ideia básica do "incel", que literalmente significa "celibatário involuntário" -, porém, isso, em momento nenhum, é o maior peso na personalidade de Arthur - ele até tem um romance imaginário, que logo é esquecido.


Toda a raiva do protagonista não está engatilhada com misoginia, racismo ou homofobia - os gatilhos comuns envolvendo crimes de "incels" -, e sim engatilhada contra o capitalismo e o abuso de poder. Arthur se rebela contra aqueles que possuem força para estagnar injustamente a sua vida, e se torna um símbolo contra Thomas Wayne, o magnata da cidade e pai do futuro Batman - é, inclusive e indiretamente, graças ao Joker que Bruce perde os pais no assassinato no beco, o que desencadeará no surgimento do herói.

Mas não posso fugir da sensação preocupante de glamorizarão ao redor do Joker. Em uma das últimas cenas, ele é ovacionado após dar um tiro na cabeça de um apresentador ao vivo na tevê aberta. Enquanto dialogava internamente sobre o quão controverso é o momento, lembrei de "Relatos Selvagens" (2014); em um dos segmentos, um homem comum explode uma repartição do governo em um surto contra a burocracia do Estado, e, assim como o Joker, vira ícone da resistência. Só que há dois fatores imprescindíveis: em "Relatos", não há vidas tiradas e o ar crítico jamais se distancia da tela, o que não podemos dizer o mesmo de "Coringa".

Joaquin Phoenix, um dos mais interessantes e versáteis atores do nosso tempo, está bem na pele do vilão, mas nem é preciso comparar com Heath Ledger, que fez a mais incrível versão do personagem em "O Cavaleiro das Trevas", para perceber que seu Joker é bom, mas não sensacional. Todd Phillips pesa a mão nas cenas que gritam "vejam como ele atua!" sem necessariamente ter uma atuação tão genial na tela; há cenas que não dosam corretamente a caricaturização natural do personagem, que beira a forçação - fiquei satisfeito, no entanto, em ver que deixaram um ar flamboyant e debochado ali. O próprio Phoenix tem atuações melhores na sua filmografia - em "Ela" (2013) e "Você Nunca Esteve Realmente Aqui" (2017), por exemplo.

O que há de melhor em "Coringa" é a veia niilista e misantropa de seus caminhos. Dentro de uma sociedade tão enferma, desigual e que retira a dignidade de suas pessoas, é árduo não ceder ao cinismo - e Arthur não apenas cede como graciosamente se afoga na falta absoluta de sentido quando afirma que sua vida não é mais uma tragédia, e sim uma comédia. O que mais choca no filme é como ele é tão próximo da realidade, como tantas cidades são réplicas de Gothan e seu sistema enferrujado, e quanto mais próximo, mais palpável e assustador. Não por acaso, é polêmico e complexo seu conteúdo, condizente com uma realidade à par.

Só que, a partir da segunda metade, o zoológico de exposição da atuação de Joaquin Phoenix rouba o palco em detrimento do aparato sócio-psicológico - o filme o entrega como o melhor na tela, e esse brilho não é proporcional ao espaço dado, com vários desenvolvimentos de contextos (esses sim, os protagonistas da trama) sendo deixados de lado. No momento que ele se torna o Joker, há uma queda na qualidade da fita, que se espetaculariza ao máximo para tentar atingir voos épicos e grandiosos, sem conseguir efetivamente. "Coringa" é como Arthur contando piadas: gargalha o mais alto possível no intuito de fazer a plateia rir junto, e, mesmo sendo divertido, não há tanta graça assim.

Crítica: “Era Uma Vez em Hollywood” é uma tortura fantasiada de homenagem à Sétima Arte

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Leonardo DiCaprio)
- Melhor Ator Codjuvante (Brad Pitt)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Figurino
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quentin Tarantino lançando um filme significa que eu estarei no cinema. Não sou desses que acha o diretor o suprassumo da Sétima Arte, mas, de "Cães de Aluguel" (1992) até "Os 8 Odiados" (2015), nunca o vi lançar uma película ruim - "Pulp Fiction: Tempo de Violência" (1994), sua obra-prima, é um dos melhores filmes já feitos, inclusive. Não tinha como não dar meu dinheiro para "Era Uma Vez em Hollywood" (Once Upon a Time in Hollywood), seu novíssimo projeto.

No final da década de 60, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um ator que alcançou o ápice da fama em Hollywood na década anterior, andando atualmente por uma crise artística. Seu melhor amigo - e dublê e motorista e o que aparecer -, Cliff Booth (Brad Pitt), sempre está ali para dar suporte a Rick, no protagonismo ou como coadjuvante de uma série que ninguém assiste.

A mansão de Rick, nos altos montes da ensolarada Califórnia, é ao lado da residência de ninguém menos que Roman Polanski e sua esposa, Sharon Tate (Margot Robbie), um dos apogeus do Cinema na época - Polanski havia acabado de lançar "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos maiores clássicos de toda a história.


Essa dicotomia representa perfeitamente o status artístico do fim da Era de Ouro de Hollywood: de um lado, Rick, a encarnação do declínio; do outro, Polanski e seu magnetismo de sucesso e genialidade. Você pode tentar, mas será árduo não lembrar de "Crepúsculo dos Deuses" (1950), o melhor estudo da fama dentro de Hollywood já criado na telona: Rick chega perto da insanidade de Norma Desmond, o cânone da fama perdida, ao tentar alcançar o prestígio de outrora - semelhanças com Riggan Thomson de "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)" (2015) não são mera coincidência.

Já podemos apontar o óbvio: "Era Uma Vez..." é uma homenagem ao Cinema - mais especificamente à Hollywood, todavia, pincela outros nichos como o faroeste italiano, (conhecidos como Spaghettis). A metanarrativa, então, é uma das principais forças da produção, que mergulha na indústria até demais. O filme chega perto de 3h de duração, o que fundamentalmente não é um problema, a questão é a maneira como Tarantino decidiu preencher seu arrastado filme. Realmente me surpreendi quando lembrei que tanto "Django Livre" (2012) quanto "Os 8 Odiados" possuem durações maiores à de "Era Uma Vez...", e o tempo voa nos dois primeiros, ao contrário do último.

Para quem conhece a filmografia do diretor - que sempre escreve os próprios roteiros - sabe que suas narrativas evocam os dramas de seus personagens de maneira não tão linear. Os acontecimentos não são exatamente fechados, com cada passo sendo um tijolo na construção da trama - um estilo que, particularmente, não me agrada tanto. O que fazia com que isso jamais fosse um empecilho é a vivacidade de suas histórias, sempre cativantes - o que inexiste em "Era Uma Vez...".

A trama gira entorno dos três personagens principais - Rick, Cliff e Sharon. Mesmo se encontrando e se aproximando, eles possuem núcleos completamente distintos, três histórias deveras diferentes; e a montagem não se apressa em mostrar em detalhes cada uma delas. Rick gasta horas nos sets de filmagem, Sharon no cinema vendo o filme em que atua e Cliff flerta com uma garota que acaba se revelando uma das integrantes da família Manson. Nenhuma delas é exatamente empolgante.


Tarantino, cinéfilo inveterado, quer ovacionar o faroeste - gênero fundamentalmente hollywoodiano - e nos cola em Rick por intermináveis filmagens, que são sofríveis. Com cenas longuíssimas, a sensação de que 10% do exibido era o necessário está sentada do nosso lado, o que é reflexo do domínio criativo que o diretor tem sobre suas obras - que tem o poder em decidir como será o corte final do filme, algo raro dentro da indústria.

Com Cliff, soterrado na sombra do personagem de Rick, ganha camadas de composição que surgem e somem sem impacto algum - o filme literalmente para a história para mostrar que ele matou a própria mulher. O que em qualquer enredo seria ponto incontestável, serve para coisa nenhuma - se não existisse, o filme percorreria sem mudanças. E aqui é apenas um dos vários exemplos de entupimentos do roteiro.

É em Sharon que o plot parece alavancar. Não é a primeira vez que Tarantino se apropria de um fato real e a mistura com a ficção - "Bastardos Inglórios" (2009) ressignifica a História e mete a bala em Adolf Hitler, e o mesmo acontece em "Era Uma Vez...". No entanto, aqui temos um grande "porém": ao contrário de Hitler, Sharon Tate não é uma figura universalmente conhecida - durante a sessão que assisti, várias pessoas não a conheciam. E, por não a conhecerem, o viés híbrido do filme não fez sentido.

Sharon foi assassinada pela família Manson, e em "Era Uma Vez...", Tarantino faz o oposto de "Bastardos": poupa a vida da mulher com uma virada deliciosa que subverte expectativas. To-da-vi-a, essa expectativa, essencial no clímax, só existe se você conhecer o destino de Sharon. Sem um desenvolvimento digno em cima do culto bizarro criado por Charles Manson (que aparece em apenas UMA cena), o crime acontece na tela sem motivações e se apega demasiadamente em um fato aquém de sua existência e que não encontra explicações o suficiente dentro de seu corpo. Sem o conhecimento prévio, Sharon é só a vizinha que em uma noite descobriu que a casa ao lado foi invadida. E isso é um grande problema.


E Tarantino não está nem um pouco preocupado se você não catar as milhares de referências que explodem na tela a cada segundo, virando um festival impossível de ser assimilado tamanha afetação. Ele vai nos confins da cultura norte-americana das duas décadas exploradas e põe tudo na tela milimetricamente, uma porrada no interesse do público - ou você quer mesmo ver um episódio de uma série policial de 1965? Chega a ser uma tortura - e tenho certeza de que, caso estive assistindo ao filme em casa, teria abandonado.

Tudo é, como sempre, embalado com muito afinco, da fotografia coloridíssima da era dos hippies até a energética trilha sonora - mas a cansativa história, os inúmeros personagens de apoio que entram e saem da tela, as sequências infinitas de gravações, as subtramas deixadas pra trás, tudo colabora para assassinar a diversão que é elemento intrínseco dentro do cinema tarantiano - e que, em alguns momentos, faziam as falhas passadas serem perdoadas.

É uma surpresa ver o infortúnio de Tarantino ao abraçar um longa mais voltado para o drama - ele se saiu tão bem no subestimado "Jackie Brown" (1997). "Era Uma Vez em Hollywood" carrega os estilos que moldaram um cinema tão característico, porém, sua nova produção é uma inorgânica homenagem à fantasia hollywoodiana pela sua trama que vai matando a própria vida a cada minuto (e são muitos). Se as atuações são de primeira linha e os momentos de ação maravilhosos, "Era Uma Vez" parece não entregar uma recompensa à plateia, mesmo com seu protagonista sendo recebido de portões abertos na magia irrefreável da mitologia por trás da terra do Cinema - e que não está presente no filme que conta sua história, coisa diferente em outras homenagens à Sétima Arte na contemporaneidade, como "La La Land" (2016). Tarantino, pela primeira vez, não é cool, é só chato.

Crítica: “Parasita” balanceia uma das melhores lutas de classe do cinema com humor e acidez

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Filme Internacional
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando o Festival de Cannes rolava em maio, um filme era sempre pontuado na lista de melhores da competição: "Parasita" (Parasite), do diretor Bong Joon-ho, mais famoso pelo sensacional "O Hospedeiro" (2006). Não foi grande surpresa quando ele se tornou o primeiro coreano a vencer a Palma de Ouro - o prêmio de "Melhor Filme" do festival -, e já abrindo os caminhos para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional".

"Parasita" se debruça em cima da família Kim: o pai, Ki-taek (Song Kang-ho, muso de Joon-ho e um dos maiores coreanos na história); a mãe, Choong-sook (Jang Hye-jin); o filho, Ki-woo (Choi Woo-shik); e a filha, Ki-jung (Park So-dam). Eles moram num minúsculo apartamento quase no subsolo e vivem em nível de pobreza. Dobrando caixas de pizza para sobreviver, uma oportunidade brilhante surge quando Ki-woo é convidado para ser professor de inglês em uma luxuosa mansão.

A riquíssima família possui a mesma configuração: o pai, Mr. Park (Lee Sun-kyun); a mãe, Yeon-kyo (Cho Yeo-jeong); a filha e aluna de Ki-woo, Da-hye (Jung Ji-so); e o caçula, Da-song (Jung Hyun-joon). Os incontáveis metros quadrados da propriedade rapidamente viram um terreno fértil para a ascensão social dos Kim: eles vão, um a um, se introduzindo dentro da casa.

Achei curioso perceber as similaridades básicas entre "Parasita" e "Assunto de Família" (2018): ambos asiáticos ("Assunto" é japonês), ambos vencedores da "Palma de Ouro" consecutivamente e ambos retratos da má distribuição de renda na Ásia. Tanto a família de "Assunto" como a de "Parasita" buscam meios à margem da lei para sobreviver e lutar contra a miséria.


A diferença elementar entre os longas é sua abordagem: enquanto "Assunto" é fundamentalmente dramático, seco e sem rodeios, "Parasita" traz a mesma veia narrativa de vários filmes de Joon-ho: uma mistura desconcertante de comédia com drama. Um estilo bastante característico, é fato que nem sempre funciona: quando Joon-ho abraça a comédia com viés comercial ou expositivo demais, vira um desastre - vide "Okja" (2017). Não por acaso, seu maior mal passo é exatamente o que vai até Hollywood.

Quando reside ali mesmo na Coreia do Sul, a tonalidade é bem pontuada - como "Mother - A Busca Pela Verdade" (2009) . "Parasita" não fugiu à regra. Não pense que esse fusão com comédia seja um stand-up na tela: o humor de "Parasita" está no absurdo de suas situações. Em inúmeros momentos a obra me remetia ao trabalho de Yorgos Lanthimos, que também usa da mesma fórmula para construir seus universos únicos. Assim como em "A Favorita" (2018), "Parasita" também entope a duração com sarcasmos inteligentes, e usa a música clássica em contraste com a porraloucagem que está acontecendo, por exemplo.

A narrativa da película é uma montanha-russa: o início é bastante lento, uma subida gradual dentro da trama que desde ali já prometia uma queda vertiginosa. A pegada comédia está pungente, com sequências que em nada acrescentam no plot além de pincelar a tonalidade cômica da coisa - como a cena do bêbado fazendo xixi ao lado da janela da família. Quando o espectador entra na mansão dos Park, o drama ganha mais espaço pelas pautas impostas de maneira muito sutil.

É claro que o mote principal de "Parasita" é uma família se aproveitando (e forçando) situações para sua ascensão econômica - e toda a potência da fita está bem aqui -, contudo, o filme expõe um viés que, pelo menos acho, não é um consenso ou uma ideia coletiva no imaginário de quem habita esse lado do mundo: as desigualdades absurdas do povo ao redor do Mar do Japão.


Essa abordagem é bem mais explícita em "Assunto de Família" - provavelmente pela escolha de tom -, mas "Parasita" só caminha porque é uma crítica direta ao capitalismo. Disse que talvez a ideia central do filme não esteja impressa em nossas cabeças porque, ao pensarmos no eixo Coreia-Japão, imediatamente vislumbramos tecnologias e avanços, o que, como em basicamente qualquer país capitalista, não é uma verdade concretamente partilhada entre seus cidadãos.

Pondo em outras palavras, não imaginava que estes países pudessem ser tão desiguais. Em incontáveis momentos consegui enxergar a mesmíssima história se passando aqui mesmo no Brasil - o filme possui universalidades para dar e vender, o que consegue exportar sua história para todos os cantos do planeta - quanto mais desigual for sua realidade, mais identificável será o filme.

É bastante difícil falar do enredo de "Parasita" e não estragar a experiência de quem ainda não viu. Não só por questões de spoilers, mas também porque esse é um filme de sensações - e elas são fartas e variadas. Você vai do êxtase absoluto ao choque completo - o último ato pega elementos do terror e leva a bizarrice social aos extremos.

No entanto, o filme renderia uma análise longuíssima no que tange a impressão da desigualdade social na Sétima Arte. Aliás, esse tema é central na filmografia de Joon-ho - todos os seus filmes, em algum nível, tocam no assunto -, porém nunca com tanto sucesso como em "Parasita". O cuidadoso texto ainda tem a audácia de carregar um existencialismo puro quando Ki-taek, no auge da bagunça do plano da família, fala que a única forma de não falhar é não ter um plano - o que ilustra a forma como todos estão jogando para cima seus desejos e esperando que caiam de volta.


O obscurantismo vai engolindo a tela enquanto mergulhamos mais profundamente nos meandros das duas famílias, duas configurações tão parecidas mas tão opostas ao mesmo tempo: o exemplo maior é na sequência da chuva, quando os Parks estão confortáveis em sua sala com paredes de vidro e os Kims encontram seu apartamento inundado - notem como a fotografia evidencia a descida dos protagonistas durante a corrida até a casa, uma metáfora visual das junções capitalistas, quando a periferia mora em um nível muito abaixo das camadas mais abastardas. A chuva escorre pelas mansões e se acumula nas favelas. Quem sofre com a chuva é o pobre.

Uma das expectativas iniciais que sofri com o filme partiu do seu título, e, felizmente, foi uma expectativa morta. Não pense o contrário, "Parasita" é um título que não poderia ser melhor aplicado do que no presente filme, contudo, poderíamos imediatamente pensar que a família Kim seria a tal parasita, sugando dos Parks.

Isso não deixa de ser verdade - eles realmente se aproveitam da quase burrice dos patrões -, no entanto, o roteiro é pra lá de competente ao não permitir que habite um binarismo rasteiro e preto no branco. Os Parks, em alguns aspectos, chegam a ser odiáveis - vide a cena do clímax que desencadeia o final -, o que até entrega a chancela para a plateia ficar totalmente do lado dos Kims, que sempre possuíram motivações muito verdadeiras. Querendo ou não, eles são os mestres de cerimônia desse insano picadeiro. O fato é: não existem vilões no filme - não que, por isso, os personagens sejam mocinhos e não haja atitudes absolutamente condenáveis (na verdade o filme é uma sucessão delas) -, mas todos são vítimas do sistema, é ele que os molda naqueles formatos reprováveis. O jogo é mais culpado que os jogadores.

"Parasita" é um dos cumes de 2019 quando cria uma sessão bizarramente divertida sem, jamais, em momento algum, deixar com que o estudo social saia do ecrã. Com um lindo malabarismo de gêneros, o filme enfia a faca em um sistema que fundamentalmente existe ao por um camada acima de outra, o que tira a dignidade do ser humano, predestinado a cometer ações terminais que comprovam o insucesso da separação entre burguesia e marginalizados. Talvez a melhor luta de classe que tivemos no Cinema nessa década - e aqui estamos falando tanto no sentido figurado como no literal.

Crítica: “Dor & Glória” é uma aborrecida jornada sem o reencontro criativo de Almodóvar

Pedro Almodóvar sempre está nas listas de melhores diretores nos cinéfilos mundo afora, e felizmente. O espanhol provavelmente deve carregar o título de maior diretor gay do Cinema moderno, sem jamais, nos quase 40 anos de carreira, deixar os tópicos LGBTs fora de sua filmografia.

Só com o recorte desse século, Almodóvar, vencedor de dois Oscars, carrega alguns dos melhores filmes do período, como as obras-primas "Fala Com Ela" (2002), "Má Educação" (2004), "Volver" (2006) e "A Pele Que Habito" (2011), o que justifica o evento que é o lançamento de qualquer um dos seus filmes. Não foi diferente com "Dor & Glória" (Dolor Y Gloria).


Estreando diretamente na competição principal do Festival de Cannes 2019, "Dor & Glória" segue Salvador Mallo (Antonio Banderas, um dos ícones do cinema almodovariano, estando presente em oito de seus filmes), um diretor de cinema em declínio. Numa depressão pessoal e artística, ele reencontra algumas figuras chaves de sua vida, o que o faz questionar como chegou até ali e, principalmente, como vai ser dali para frente.

A narrativa se divide basicamente em dois córregos, o presente e a infância de Salvador, nos anos 60, com sua mãe sendo interpretada pela musa mór de Almodóvar, Penélope Cruz (criminalmente subutilizada aqui). Nesse vai e vem - que inclui até a cantora Rosalía num papel coadjuvante -, Salvador decide reatar os laços com Alberto (Asier Etxeandia), o protagonista de um dos seus primeiros - e mais bem sucedidos - filmes. Separados há 30 anos graças a uma briga, o retorno é conturbado, principalmente pela parte de Salvador.


Cheios de problemas físicos e emocionais, o diretor encontra dificuldade em conseguir a simpatia do ex colega porque, durante décadas, massacrou o trabalho que Alberto fez em seu filme, uma impressão finalmente mudada. É ele, também, que abre alas para que Salvador entre no mundo das drogas, uma via de escape com prazo de validade curtíssimo.

Devo confessar a você, leitor, que relutei e me questionei bastante se escreveria ou não sobre "Dor & Glória". Almodóvar é um dos meus diretores favoritos e estava bastante ansioso para o sucessor de "Julieta" (2016), que mesmo sendo um filme competente, é nada memorável. As críticas internacionais teciam elogios aos baldes para o novo longa e tinha tudo para que o jejum de quase 10 anos sem uma fita magistral finalmente tenha chegado ao fim - "A Pele Que Habito" foi o último grande Almodóvar.

Só que não demorou muito para perceber que o jejum continuaria. E os motivos foram vários. Um dos melhores diálogos da película, que na maior parte do tempo é uma aula de metalinguagem, diz que o maior ator não é aquele que sabe chorar diante da câmera, mas o que consegue conter as lágrimas. Fiquei com a frase na cabeça e, enquanto matutava, percebi que a afirmação era uma definição fidedigna para o próprio filme.


Percorrendo pelas dores e glórias de Salvador, a produção parece que está prendendo a emoção em todas as cenas - como se o filme estivesse com medo de ser vulnerável. Há uma camada grossa de letargia sobre o ecrã, e a sensação primordial que me abatia era a de anestesiamento; conseguia produzir sentimento nenhum além do tédio. E a conclusão que cheguei é a mais óbvia possível.

O problema está na composição de Salvador. Bandeiras está bem no papel - nada extraordinário como o prêmio de "Melhor Ator" em Cannes poderia sugerir -, todavia, ele foi moldado para ser a versão cinematográfica do próprio Almodóvar. É só olhar para o pôster: o protagonista está na frente de sua enorme silhueta, que é parecidíssima com a do diretor (isso se não for realmente a sombra de Almodóvar).

"Dor & Glória" sofre do mesmo dano de "Roma" (2018): é particular demais. São construções que fazem muito mais sentido para quem está as realizando, sem um apelo que permita um apreço por parte da plateia - não acho que seja necessário afirmar o elementar, mas sim, estou cozinhando essas afirmações dentro da deliciosa esfera da subjetividade, você pode assistir ao mesmo filme e se sentir tocado como nunca na vida. O pequeno Salvador escrevia cartas para os analfabetos de sua vila, assim como a mãe real de Almodóvar, e essa escolha de roteiro só tem um peso concreto para ele - por possuir um laço afetivo ali. Salvador é um personagem que não denota simpatia pelos traços introspectivos, frios e distantes, um confusão emocional que está presa dentro da cabeça e nada mais.

E tome diálogos que evoquem o amor pela arte e monólogos intermináveis que significam coisa nenhuma para ninguém além de quem está o evocando, e, quando mal pisquei, estava mais interessado no design de produção super bonito e colorido. A superfície de "Dor & Glória" é bem mais atraente que seu conteúdo, um reflexo muito bom para exemplificar o quão raso é seu texto.


Outro ponto gritante é como Almodóvar faz um amontoado de reciclagens de diversos temas já explorados dentro de sua filmografia. Artista em declínio? O homem virando deus através de sua arte e tendo uma mulher como secretária e (quase) serva? "Abraços Partidos" (2009). A exposição da homossexualidade na infância? Um filme dentro do filme? Reencontros de ex amores fracassados? "Má Educação". O ato de ser mãe na terceira idade e como a aproximação com os filhos é dificultada? "Volver". Consumo de drogas que reflete a marginalização de LGBTs? "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). E por aí vai.

"Dor & Glória" atira em inúmeras fórmulas já gastas e acerta em nenhuma. É bem verdade que, com o passar dos anos, Almodóvar retornou em tópicos anteriores, no entanto, ele sempre se superava, indo ainda mais longe que anteriormente e entregando mais camadas de profundidade daqueles que são os temas que fizeram seu cinema ser tão celebrado. "Dor & Glória" passa longe da mesma fortuna. É só ver "A Pele Que Habito", por exemplo, uma revolução dentro da carreira do diretor quando seus tópicos são levados a caminhos tão diferentes e inéditos dentro de seu próprio mundo. O rei espanhol talvez precise de uma renovação que quebre as paredes da caixa que ele mesmo se colocou, senão continuará sendo uma repetição de si mesmo.

Almodóvar, no desejo de mostrar como o Cinema salvou a sua vida, realiza um filme estritamente íntimo, o que ceifa a produção através de seus personagens unidimensionais, tramas de perfumaria e uma narrativa que evoca o sono. O todo deixa um gosto ainda mais árido quando até mesmo dentro da filmografia almodovariana há homenagens à Sétima Arte mais vívidas e verdadeiras, sem a chatice que é mais um filme sobre crise artística e a jornada para o reencontro criativo que em nada enriquece os 40 anos de Almodóvar nas salas escuras mundo afora.

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