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Lista: as 15 melhores atuações do Cinema em 2020

O Cinematofagia está cada vez mais próximo de publicar a lista com os melhores filmes deste difícil 2020, mas antes vamos celebrar as 15 melhores atuações do ano.

De vencedoras da temporada a estreias inacreditáveis, a lista segue as seguintes regras: não há separação entre papéis protagonistas e coadjuvantes, tendo como critério de inclusão a estreia do filme em solo tupiniquim dentro do ano ou com o filme chegando à internet sem distribuição no país até o fechamento da lista.

Não assistiu a algum dos longas aqui listado? Não se preocupe, pode ler todos os textos que são sem spoilers - e em seguida correr para aclamar essas performances maravilhosas. Quem é indicado ao Oscar Cinematofagia de "Melhor Atuação" do ano? Você pode conferir abaixo.

Adam Sandler em "Joias Brutas"

A missão dos irmãos Josh e Benny Safdie no mundo do Cinema é pegar atores considerados medíocres e transformá-los em apostas no Oscar. Em "Joias Brutas", foi a vez de Adam Sandler. O ator, guilty pleasure e recordista em Framboesas de Ouro (o Oscar dos piores filmes), é há tempos massacrado pela crítica com sua enxurrada de comédias tenebrosas, mas lá no fundo há um bom ator, e aqui está a prova. Sua atuação em "Joias Brutas" - que, apesar de injustamente não ter sido indicada ao Oscar, rendeu o Spirit Award e o National Board of Review de "Melhor Ator" - é um daqueles casos que Hollywood faz renascer a carreira de um nome falido.

Kacey Rohl em "Mentira Nada Inocente"

A história nem é tão inovadora: uma garota está fingindo ter câncer e sua mentira vai chegando cada vez mais perto de um inevitável fim. As grandes sacadas de "Mentira Nada Inocente" são: o roteiro, que prende a plateia na indagação "onde isso vai parar", e Kacey Rohl, na pele da protagonista. Não apenar um filme LGBT que foge totalmente das pautas clássicas da temática, a película é carregada pela insana atuação de Rohl, que dá literal vida a uma enganação de maneira tão forte que ela mesma acredita.

Lady Gaga em "911"

Lady Gaga não surpreende mais no mundo da música, provando há mais de uma década o monstro que é nos palcos, mas foi com "Nasce Uma Estrela" (2018) que ela mostrou seu talento para atuação. É verdade, ela já revelava isso em alguns de seus curtas musicais, e "911" é o ápice: percorrendo toda a narrativa onírica de maneira estrelar, é no plot twist que Gaga libera toda a sua potência e já nos deixa ansiosos para seus próximos passos na Sétima Arte.

Haley Bennett em "Devorar"

Longas que quebram a glamourização da maternidade - e que até a transformam em terror - estão aí há tempos, e "Devorar" é o filhote de "O Bebê de Rosemary" (1968) que estávamos esperando. Uma jovem e recém-casada mulher tem dificuldade em manter o casamento e a vida doméstica. Afogada em tédio e distanciamento emocional, ela descobre que está grávida, fato que desencadeia um transtorno que a faz engolir os mais diferentes objetos. Haley Bennett talvez não havia aceitado um papel tão desafiador quanto esse em sua carreira, e o desafio foi conquistado de forma brilhante.

Sidney Flanigan em "Nunca Às Vezes Raramente Sempre"

Sidney Flanigan fez uma daquelas históricas estreias no Cinema: seu primeiro papel, em "Nunca Raramente Às Vezes Sempre", inundou a atriz de aclamação e prêmios na atual temporada. No filme, ela é uma menina de 17 anos que, ao se ver grávida, embarca em uma viagem pelo país em busca do aborto. É claro que com essa temática a produção está rodeada de polêmicas, contudo, o roteiro empurra as previsibilidades e coloca Flanigan como porta-voz de um tópico que ainda precisa de muito debate.

Daniel Kaluuya & Jodie Turner-Smith em "Os Perseguidos"

"Os Perseguidos" - ou como eu prefiro chamar, "Queen & Slim" (o título original) - ganharia o Oscar de "Melhor Timing" caso houvesse a categoria. É uma fita sobre truculência policial contra a população negra lançado em meio ao movimento "Black Lives Matter". Quando um casal negro, em uma abordagem totalmente desproporcional, mata um policial branco, suas vidas estão condenadas para sempre. O road-movie de estreia de Melina Matsoukas (diretora do lendário clipe de "Formation" da Beyoncé) é lindamente conduzido por Jodie Turner-Smith (em seu primeiro protagonismo) e Daniel Kaluuya (protagonista do oscarizado "Corra!", 2017), que choram, suam e sangram em nome das vidas negras que são constantemente dizimadas pelo racismo estrutural.

Delroy Lindo em "Destacamento Blood"

Depois do imenso sucesso com "Infiltrado na Klan", 2018 (que finalmente lhe rendeu um Oscar), Spike Lee apertou as mãos da Netflix e lançou "Destacamento Blood", mais uma empreitada que deve ir direto para o coração da Academia. E o que há de maior apreço aqui é a atuação antológica de Delroy Lindo. O longa se divide bastante em termos de protagonismo, contando até com o recém-falecido e jamais esquecido Chadwick Boseman, no entanto, é Lindo que assalta todos os momentos em sua caída rumo à loucura, potencializada pela caça a um tesouro que custará a vida de muitos. O Oscar de "Melhor Ator" já tem um indicado (atualização pós-temporada: a esnobada de Lindo foi um crime).

Kelvin Harrison Jr. em "As Ondas"

"As Ondas", até metade de sua duração, é uma obra-prima, e isso se deve, e muito, à Kelvin Harrison Jr. Popular aluno, aspirante e brilhante atleta, sua vida é completamente perfeita até que ele descobre uma lesão em seu ombro que o tirará permanentemente do esporte. Com sua vida ruindo rapidamente, ele levará a situação a um ponto extremo que só funciona graças à sua performance de tirar o fôlego que hipnotiza pela veracidade.

Fathia Youssouf Abdillahi em "Lindinhas"

Sem entrar muito no tópico de como a Netflix quase destruiu "Lindinhas" com seu marketing desastroso, esse foi um dos filmes mais falados do ano na plataforma. Há muita discussão acerca de seu posicionamento, mas há um ponto que se destaca: como Fathia Abdillahi, de 11 anos e em seu primeiro trabalho na telona, foi capaz de interpretar uma personagem TÃO complexa. Esmagada entre a cultura tradicional de sua família versus a liberdade por vezes sem freios da modernidade, a garotinha entra para um grupo de dança que replica o que há de pior na sexualização de crianças. É um trabalho difícil e Abdillahi jamais fica aquém da empreitada.

Maria Bakalova em "Borat: Fita de Cinema Seguinte"

Sacha Baron Cohen deu um show de atuação como o tresloucado jornalista cazaque no filme original de 2006. É claro que a história não seria diferente no lançado-de-surpresa "Borat 2". Só que ele nem é a maior revelação do longa, e sim Maria Bakalova, atriz búlgara que interpreta Tutar, a filha do jornalista que é usada como presente para o então vice-presidente dos EUA. Muito mais que um pastelão escatológico, a presença de Bakalova é fundamental para a veia feminista de toda a loucura, e ela definitivamente rouba a cena de Cohen - e isso quer dizer muita coisa.

Helena Zengel em "Transtorno Explosivo"

Outra criança mostrando que talento não tem idade? Sim, temos. Helena Zengel teve, de longe, o trabalho que mais exigiu de um ator em 2020, e ela entregou sem defeitos. Vivendo uma menina com o transtorno do título, sua personagem é corretamente insuportável ao carregar uma doença mental seríssima que dificulta a vida de todo mundo ao seu redor. Ela grita, ataca e esperneia, e fica ainda mais impressionante assistir às entrevistas de Helena, tão doce e contrastante à sua personagem, um poço e ódio nem sempre reprimido.

Imogen Poots em "Viveiro"

Imogen Poots é uma atriz que merece ser descoberta pelo grande público. Apesar de um currículo vasto, a inglesa ainda não caiu nos radazes de grandes performers do momento, todavia, "Viveiro" veio para mudar essa impressão. Na bizarra fita, ela, juntamente com o namorado, está em busca da tão sonhada casa própria, que não tardará a ser um pesadelo. Poots cai em uma espiral de paranoia, isolamento e desespero com uma facilidade sobrenatural, já trazendo uma das melhores atuações do século.

Riley Keough em "O Chalé"

"O Chalé" não poderia ser O terror de 2020 sem uma atuação à altura. Riley Keough não tem medo de personagens que vão exigir o máximo dela - seu currículo filmográfico não mente -, e ela adiciona "O Chalé" ao seu mais-que-capaz portfólio. Uma breve descrição de como é seu papel é capaz de ilustrar o tamanho da responsabilidade: filha de um fanático religioso, ela foi a única a sobreviver de um massacre-suicida que matou todos da sua comunidade; agora, já adulta, ela ainda sobre gatilhos com imagens sacras, tomando remédios para manter sua curta sanidade mental. Keough, como em todo bom filme de terror, vai perdendo o controle da sua mente e calmamente arromba as portas do Inferno na tela.

Julia Garner em "A Assistente"

Julia Garner tem apenas 26 anos, mas já se encontra no caminho perfeito para cair nas graças de Hollywood. A garota, que começou a carreira liderando dramas indies, já possui um Emmy - de "Melhor Atriz Coadjuvante" pela série "Ozark" (2017-). Ela agora retorna em mais um protagonismo que mostra todo o seu talento. Em "A Assistente", Garner é a personagem título de uma empresa cujo chefe impõe um ambiente totalmente tóxico e machista. Com uma câmera que não descola de seu rosto, ela entrega nuances certeiras de um meio sufocante para quem é mulher.

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Lista: as 10 melhores fotografias do Cinema em 2020

 

Para abrir as listas de "Melhores de 2020" aqui no Cinematogafia, depois de um dos anos mais instáveis da história da Sétima Arte, aqui estão as 10 melhores fotografias do ano, aquelas que nos fizeram falar "dá o Oscar para esse enquadramento". Mas antes de tudo, o que é fotografia?

A fotografia - ou cinematografia, no jargão técnico mais apropriado - é o termo que mais sofre quando alguém elogia o "visual" do filme. Ao contrário do que se pode presumir, a fotografia não é necessariamente tudo o que está na tela, tudo o que podemos ver; ela é a "impressão" do roteiro, ou seja, os enquadramentos, movimento de câmera, uso de filtros, manipulação de cores, exposição de luz e afins.

Quando alguém solta um "olha a paleta de cores maravilhosa desse filme!", muitas vezes ele não está falando da fotografia, e sim do design de produção - a chamada "direção de arte", que compõe todo o aparato físico que está no ecrã. As cores, parte visual mais emblemática, entra tanto na fotografia - pelo trabalho do colorista - como na direção de arte - no trabalho do cenógrafo - e nos figurinos - no trabalho do figurinista. São departamentos distintos e realizados por profissionais diferentes; é a união de todos que fazem um filme ser "bonito" (ou não, caso propositalmente).

Então, o que a lista está julgando é o trabalho de câmera juntamente com a colorização das películas. O critério de inclusão dos citados é o de sempre: ter estreado nacionalmente (em salas comercias, festivais ou plataformas de stream) em 2020 ou ter chegado à internet sem data de lançamento previsto. Preparado para fazer a linha cult na próxima roda de amigos e falar das fotografias mais estonteantes do cinema em 2020? Aqui as 10 melhores pelo Cinematofagia:


Mank

Cinematofragia: Erik Messerschmidt. Edição de Cor: Eric Weidt.

"Mank", novo filme de David Fincher, tem todos os elementos que fazem a Academia tremer da base: é uma homenagem ao eleito "melhor filme de todos os tempos", "Cidadão Kane" (1941). O longa não apenas vai até os passos que levaram à produção do clássico como remonta perfeitamente a rodagem de um filme na Era de Ouro de Hollywood, e a fotografia não poderia ficar de fora. Pesadamente inspirada no trato visual de "Kane", revolucionário dentro do quesito, todo quadro da cinematografia de Erik Messerschmidt aponta para a grandiosidade das películas de época. Pelo menos a indicação ao Oscar da categoria o filme leva - e se ganhar a estatueta, não será surpresa.

A Primeira Vaca

Cinematografia: Christopher Blauvelt. Edição de Cor: Sam Fischer.

Jogando o espectador para o séc. XIX, no interior dos Estados Unidos, "A Primeira Vaca" é uma obra que exala simplicidade à primeira vista, mas é muito mais complexa do que aparenta. A amizade improvável de dois homens, que mudará os rumos de toda a cidadezinha em que vivem, é capturada com uma fotografia estonteante de Christopher Blauvelt, sabiamente executada em um plano mais quadrado, um dos principais elementos que fazem o público embarcar no período.

911

Cinematografia: Jeff Cronenweth. Edição de Cor: Dave Hussey.

Lady Gaga, conhecida pelos videoclipes extravagantes e produções faraônicas, é uma cinéfila de carteirinha, já tendo referenciado inúmeros filmes ao longo da carreira. Com "911", curta em parceria com o aclamado diretor Tarsem Singh, o patamar é elevado para níveis raramente vistos na cultura pop. Inspirando em nomes como "A Cor de Romã" (1969), "8½" (1963) e "A Montanha Sagrada" (1973), a execução imagética realizada pelas mãos de Jeff Cronenweth é de cair o queixo, não se contendo em abocanhar imagens belíssimas como ousando em enquadramentos que denotam toda a carga de sua temática.

Casa de Antiguidades

Cinematografia: Benjamín Echazarreta. Edição de Cor: Mickaël Commereuc.

Se "Casa de Antiguidades" frustrou enquanto obra, sua fotografia deve em nada. Fincado no Brasil atual, em uma colônia de leite sulista, o longa busca retratar as garras do racismo e ageísmo da nossa sociedade. Como era de se esperar, esse retrato vai ganhando ares cada vez mais fantasiosos para encaminhar suas discussões para campos além do óbvio, e a cinematografia de Benjamín Echazarreta é um dos transportes dessa viagem sempre imageticamente bonita.

Devorar 

Cinematografia: Katelin Arizmendi. Edição de Cor: Sam Daley.

"Devorar" pode ser usado com excelente estudo de como a fotografia deve ir bem além de um elemento "bonito" dentro do filme: ela é usada para potenciar a atmosfera da narrativa. Seguindo uma dona de casa de classe alta que passa os dias na tediosa rotina doméstica, Katelin Arizmendi é largamente influenciado por "O Bebê de Rosemary" (1968), ao atirar a maternidade em um campo que beira o sobrenatural e a questionar de formas corajosas e longe de toda a glamourização a obrigação imposta sobre as mulheres no ato de procriar.

Viveiro

Cinematografia: MacGregor. Edição de Cor: Gary Curran.

O objetivo de quase toda cinematografia é emoldurar o ecrã da maneira mais natural e real possível, contudo, o caso de "Viveiro" vai para o extremo oposto. O filme necessita de uma cinematografia totalmente artificial para dar vida ao seu estranho roteiro, e MacGregor atinge sem dificuldades o propósito. Com seu design de produção esteticamente correto é fachada para a trama, com a fotografia escondendo toda a bizarrice com uma estética que passeia por "Edward Mãos de Tesoura" (1990) e "O Show de Truman" (1998), e transforma a casa própria, uma das mais desejadas paisagens, em um verdadeiro labirinto em que cada esquina é um pesadelo.

O Chalé

Cinematografia: Thimios Bakatakis.

Um dos elementos mais seminais para a construção de um bom terror é a fotografia - e não é de admirar que os melhores filmes do gênero também possuem cinematografias de sucesso. "O Chalé" entra nesse panteão: a película nada contra a maré do modelo atual de cinema de terror, acomodado em berrar sustos, e edifica sua atmosfera com muito cuidado, trabalhando com sugestões e temáticas geralmente tratadas com pobreza. A fotografia - do mesmo responsável por "O Lagosta" (2015) e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017) - é fundamental na imersão da história quando captura luzes naturais de maneira não convencional, no limiar entre claridade e escuridão.

1917

Cinematografia: Roger Deakins. Edição de Cor: Greg Fisher.

O atual detentor do Oscar de "Melhor Fotografia", falar do trato visual de "1917" é chover no molhado: a maneira como o longa foi filmado é espetacular. A fotografia de Roger Deakins - que também levou o Oscar por "Blade Runner 2049" (2017) - faz um preciso balé coreografado enquanto segue os protagonistas incessantemente. Editado para parecer uma rodagem sem cortes, o trabalho de câmera rende sequências que já entraram para a história do Cinema pela precisão e poder - e aqui, os exemplos são vários.

Maria & João: Conto de Bruxas

Cinematografia: Galo Olivares. Edição de Cor: Mitch Paulson.

"Maria & João" foi uma fita quase universalmente subestimada, tanto pelo público como pela crítica. É claro, a releitura da história clássica poderia ser muito mais potente caso não cedesse a comodismos (o final é particularmente fraco), todavia, há um elemento indiscutivelmente fantástico aqui: sua cinematografia. "Maria & João" aprendeu com "A Bruxa" (2015) a como fazer um filme de época no aparato visual. Cheio de simbolismos, cores artificiais e enquadramentos irretocáveis, Galo Olivares - em seu trabalho de estreia na cadeira de cinematógrafo em um longa - mostra a que veio sem sutilezas.

O Poço

Cinematografia: Jon D. Domínguez.

Quando um filme longe dos cofres bilionários de Hollywood consegue um feito além da média em termos técnicos, sabemos que é um sucesso. "O Poço", produção espanhola, é um desses filmes. "O Poço" impressiona pelo requinte técnico – e é a estreia do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, mais um motivo para potencializar a boa realização da película. Toda a concepção visual da trama é realizada fantasticamente; quase inteiramente filmado em um único cômodo, o que exigiu o triplo da cinematografia de Jon Domínguez, que foi capaz de dar o tom correto da claustrofóbica trama.

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Crítica: “Suor” e os bastidores da vida nada colorida de uma blogueira fitness

 

Um dos campos mais férteis de estudo na arte atual é uma das revoluções do tempo moderno: as redes sociais. Elas estão presentes nas nossas vidas há relativamente pouco tempo, mas já mudaram nossa forma de viver de maneira drástica. Já temos vários artefatos do audiovisual que discorrem sobre esse impacto - da série "Black Mirror" aos filmes "Ingrid Vai Para o Oeste" (2017) e "Rede de Ódio" (2019), por exemplo -, e temos mais uma obra para agregar na discussão: o sueco "Suor" (2020), do diretor Magnus von Horn, um dos escolhidos na Mostra de Cinema de São Paulo 2020.


O filme segue Sylvia (Magdalena Kolesnik), uma influencer fitness com mais de 600 mil seguidores. A sequência de abertura é o resumo ideal de como ela construiu sua imagem perante o público: em um aulão no meio de um shopping com várias pessoas. A câmera inquieta passeia pela cachoeira de endorfina impulsionada pela blogueira, que é idolatrada pelos seguidores. Após uma aula, uma das alunas diz que Sylvia mudou sua vida ao dar um novo sentido a ela.


Sylvia vai para os bastidores e, ainda afogada em adrenalina, mostra os corredores de sua vida, cheia de frases motivacionais sobre como o corpo almejado só depende de você! Porém, quando a câmera é desligada, a vida da guru fit não é tão colorida assim.



A fama acaba isolando a protagonista, sempre ao redor de pessoas que a amam pela imagem mostrada nas lives do Instagram, ou seja, ninguém a conhece de verdade. Esse mote, a velha desglamourização de atividades atreladas a prestígio, é um dos estudos que mais gosto no Cinema - temos "Cisne Negro" (2010) com o balé, "Demônio de Neon" (2016) com a moda e "Bingo: O Rei das Manhãs" (2017) com a televisão, por exemplo -, então "Suor" era um dos meus mais desejados da seleção da Mostra.


Sylvia faz uma live deixando um pouco de lado sua versão positive vibes e chora ao desabafar o quanto se sente sozinha. O resultado é um puxão de orelha de seu empresário, pois os patrocinadores não ficaram felizes com o vídeo e não acham uma boa ideia atrelar o produto àquilo.


Aqui, já caí em um buraco negro. Eu, formado em Comunicação, claramente já estudei muito sobre redes sociais, mas nunca tinha parado para pensar no absurdismo que é o fenômeno dos influencers. Vamos destrinchá-los. Um influencer é uma pessoa cujo trabalho é ser uma vitrine - como sabiamente já disse Nicole Bahls, "eu sou uma embalagem". Eles não exatamente trabalham com algum talento ou vocação, e sim com suas imagens (no aspecto geral, claro). Quando uma empresa vai escolher um blogueiro para atrelar seu produto, dois são os fatores que mais pesam: como aquela pessoa tem ligação com o produto e quantos seguidores ele possui.


A partir de então, um influencer deve se tornar em uma máquina perfeita. Não há espaço para erros, para fraquezas, para problematizações, caso contrário, o que lhe dá dinheiro – seus patrocinadores – cairão fora. É claro que nem vou entrar nos méritos de pessoas (reais) claramente erradas – e até criminosas – que não perdem dinheiro mesmo com a exposição do caso: o número de jogadores de futebol acusados dos mais diversos e delitos e continuam com o contrato em mãos está aí para provar. Mas voltando, Sylvia carrega o peso dos seus 600 mil seguidores com a responsabilidade de ser intocável em sua conduta.



É bem óbvio que ser uma pessoa de caráter é (ou deveria) ser requisito básico para viver em sociedade, contudo, somos humanos, logo, iremos errar. A cobrança em cima de quem tem milhares de olhos acompanhando cada passo é multiplicada caso comparada com a mesma cobrança de alguém anônimo – e o vídeo de Sylvia está longe de ser um erro, todavia, é motivo o suficiente para o puxão de orelha. Ela segue com sua vida perfeita entre lives com Q&A e recebimentos de mimos para serem divulgados a seus seguidores.


Há uma cena bastante intrigante na metade da sessão: Sylvia está em um shopping e é parada por uma fã altamente entusiasmada. Ela claramente não reconhece a mulher, porém, pelo interesse da fã em simplesmente estar na sua presença, aceitar sentar para tomar um suco. Na mesa, a mulher desata a contar sobre sua vida, no entanto, no momento em que Sylvia também se abre, a fã ignora e pede por uma selfie. É a comprovação de que as pessoas estão interessadas apenas na blogueira, não na pessoa. Elas querem apenas poder dizer que estão com aquela que tem 600 mil seguidores no currículo.


Enquanto sua vida profissional decola, conseguindo marcar uma entrevista no maior programa matinal do momento, Sylvia acompanha quase impotente sua vida pessoal estagnar. A coisa piora quando ela vê que sua mãe está de namorado novo. Não fica explícito, mas lá uma áurea ao redor da protagonista, como ela se indagasse como a mãe consegue um par, mas ela, jovem, bonita e poderosa, segue na solidão.


A partir de então, o texto muda totalmente de foco. Todo o viés da existência digital de Sylvia é deixado de lado para focar na guerra fria entre ela e a mãe apaixonada. Concomitantemente, um stalker aparece na vida dela, estacionando o carro na porta do seu prédio e mandando vídeos através das redes.


Fica inegável a maneira como a sessão sofre uma perda de interesse quando o foco principal é mudado; as personas das pessoas ao redor de Sylvia não são ricas o suficiente para que o espectador se sinta compensado pelo desvio na roda. A subtrama do stalker é bastante promissora, principalmente por ser uma protagonista mulher (cultura do estupro está aí na ativa), mas nem isso recebe um tratamento à altura. A maneira como o tema é encerrado mostra que Von Horn deixou escapar uma película que refletisse a grandiosidade do primeiro ato.


Carregado por uma atuação competente de Magdalena Kolesnik, a blogueira fit que trocaria os 600 mil seguidores por um amor de verdade, “Suor” acompanha discussões pertinentes e composições cinematográficas que mostram como a produção sabia por onde começar – perceba como quase todo figurino de Sylvia perante as câmeras é cor de rosa, uma tentativa visual de impor uma alegria não tão presente ali –, entretanto, acaba deixando inúmeras discussões sobre o fenômeno dos influencers de lado, fomentando debates que não estão necessariamente na tela.



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Crítica: “Casa de Antiguidades” frustra quando não atinge seu potencial de resistência


Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

O principal nome brasileiro na Mostra de Cinema de São Paulo é "Casa de Antiguidades", estreia do diretor João Paulo Miranda Maria. O longa foi escolhido para a seleção do Festival de Cannes 2020 - que veio a ser cancelado por conta da pandemia -, angariando ainda mais atenção ao redor da obra, um dos fortes nomes nacionais para a representação do país na categoria "Melhor Filme Internacional" no Oscar 2021.

A obra é estrelada por Antônio Pitanga no papel de Cristóvão, um idoso trabalhador que saiu do Goiás para uma fábrica de leite em uma colônia alemã do sul. A escolha do ator, por si só, é emblemática. Pai da também atriz Camila Pitanga, Antônio é um dos maiores nomes no Cinema Novo brasileiro, internacionalmente conhecido pelos trabalhos ao lado de Glauber Rocha, Anselmo Duarte e Cacá Diegues. Cristóvão é o primeiro papel do ator em quase uma década, e sua retomada é um acerto não apenas em termos de técnica performática, mas também como misticismo ao redor de sua pessoa.


Uma das primeiras cenas é o personagem conversando com seu chefe. O patrão, dono da fábrica, fala majoritariamente em alemão e diz como, mesmo estando há anos no local, Cristóvão terá o salário reduzido graças à "crise". "Ele é preto e velho, onde acharia algo melhor que isso?", diz o presidente do local para a secretária, que não traduz a fala. Só o público é cúmplice do que real está acontecendo ali.

A vida de Cristóvão do lado de fora da fábrica é bastante solitária. Ele não pega o ônibus para voltar para casa, preferindo ir a pé (os motivos ficam na mente do público). Em casa, sua única companhia é um cachorro com três patas, que é torturado por um grupo de crianças empenhado em infernizar a vida do homem. Em meio a tanta turbulência, uma casa abandonada próxima à sua começa a manifestar objetos que não estavam previamente ali, e acaba se tornando uma segunda casa para Cristóvão.

"Casa de Antiguidades" remonta algumas características presentes no Cinema Novo, como a fusão entre o cultural e o espacial - lembra do drone em formato de nave em "Bacurau" (2019)?, pois é, mesma coisa. A roupa de trabalho de Cristóvão mais parece um traje de astronauta, e, divertidamente, há referências charmosas ao redor da construção imagética, como no momento em que o protagonista observa uma máquina da fábrica com brilhantes luzes vermelhas que refletem em seu "capacete" como em "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968). Essa dicotomia visual é o primeiro elemento da mistura entre o "real" e a "fantasia" que permeia a atmosfera da sessão. 

E, assim como "Bacurau", "Casa de Antiguidades" tem como base textual um câncer da sociedade brasileira: o racismo. Cristóvão está no seio de um movimento separatista, que deseja retirar a "Região Sul" (entre aspas porque, malandramente, o movimento puxa São Paulo no bolo) do resto do país com o argumento de que o "Norte" atrasa a nação pela sua ignorância e corrupção. A coisa é tão absurda que a reunião que evoca com bravura o amor à pátria sulista é feita em alemão. O palanque que Hitler usava nos anos 40 deve estar orgulhoso.

O protagonista assiste a tudo sem entender uma palavra, claro, e é coagido a assinar um abaixo-assinado defendendo a independência da região. Ele, também, ganha uma camisa com a bandeira do "novo país", que é rasgada para servir de curativo para o pobre cachorro. Cristóvão se sente um verdadeiro alienígena em meio àquelas pessoas - seja pela sua cor ou pela sua língua. Todavia, ele não abaixa a cabeça, mesmo sufocado com a uma pressão cultural da maioria. Durante uma cantoria alemã, ele levanta o berrante e interrompe a celebração. Aqui é Brasil, meu irmão.


"Casa de Antiguidades" é um filme marcado pelo silêncio. Cristóvão se deixa sumir em meio às suas memórias, emoções e solidão, já condicionado a saber que sua existência naquele lugar é daquela forma. A tal casa, com os objetos que magicamente aparecem, acaba sendo uma extensão de sua própria consciência, produzindo artefatos que, de alguma forma, se conectam com a história do protagonista. 

Até aqui, a fita demonstrava bastante poder perante as temáticas escolhidas, principalmente pelo seu aspecto folclórico (o Brasil é rico demais em lendas e mitos, sendo terreno fértil para o Cinema), porém, a partir do momento em que a casa é explorada com mais profundidade, a narrativa começa a se perder. Várias tramas são abertas e esquecidas pelo caminho ou não finalizadas com relevância - como toda a situação da mulher no bar, ou as crianças que atormentam o protagonista, ou a própria fábrica e o movimento separatista. Até mesmo a relação do achado do protagonista com a casa não é tão explicada - ela simplesmente está lá.

Vamos descendo por um buraco onírico cada vez que Cristóvão vai achando algo da casa - como o pôster e a pintura rupestre por baixo de um xingamento pichado na parede. Dá para entender muito bem o que está acontecendo - como na sequência em que ele se transforma em um boi -, no entanto, muitos porquês não existem. Lá pela metade da película, deixei de tentar manter uma linha de raciocínio e simplesmente embarcar na viagem do filme e observar quais caminhos ele me levaria - e o trajeto foi se tornando cada vez menos motivador.

"Casa de Antiguidades" é um dos tipos de filmes mais frustrantes que existem: aqueles que almejam ser desvendados e não produzem uma vontade no espectador de tentar entender. É desapontador uma obra trazer tantos pontos de discussões urgentes e sabermos que eles poderiam ter um impacto muito maior. Por exemplo, há várias pichações com o malfadado número 17 na mesma casa que é usada como ameaça para Cristóvão, um símbolo de resistência contra o fascismo que poderia ter uma voz muito mais incisiva com escolhas mais coesas nesse trabalho que, apesar dos muitos méritos, não é sólido o suficiente para ser memorável. Agrega no Novíssimo Cinema Brasileiro, que põe o dedo nas mazelas contemporâneas (como "Que Horas Ela Volta?", 2015; "As Boas Maneiras", 2017; e "Temporada", 2018), mas não se destaca à altura do potencial.


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Crítica: “Nova Ordem” e o terror do real com o nascimento de uma ditadura

Michel Franco é um daqueles diretores que não importa o projeto, se tem sua assinatura, vai chamar a atenção. E o motivo é bem simples: seus filmes são sempre controversos. Com “Nova Ordem” (Nuevo Orden), sua nova empreitada, não foi diferente. Desde a estreia no Festival de Veneza 2020, onde ganhou o Leão de Prata (equivalente ao segundo melhor longa da competição), houve muita expectativa – para o bem ou para o mal – ao redor da película.

Não por acaso, “Nova Ordem” foi o filme de abertura da Mostra de Cinema de São Paulo 2020 – e teve ingressos esgotados. Ele segue a mesma fundamentação de todo o cinema de Franco: explanar como somos capazes dos piores atos com nosso próximo, então, nenhum dos seus filmes são sessões agradáveis, do estudo sobre o bullying em “Depois de Lúcia” (2012) ao drama familiar de “As Filhas de Abril” (2017) – ambos na minha lista dos 100 melhores filmes da década.


“Nova Ordem” é aberto com vários fragmentos de imagens, um prelúdio dos acontecimentos que virão. Logo em seguida, entramos no casamento de Marianne (Naian Gonzalez Norvind), uma jovem de classe alta. Toda a família e convidados aproveitam o pomposo casamento, trazendo presentes caríssimos que são guardados dentro do cofre particular da casa.

Do lado de fora, não tão longe do alcance dos seguranças na porta da recepção – que guardam a entrada e saída de autoridades na festa –, uma enorme manifestação acontece. Os revoltosos estão destruindo o que encontram pela frente em protesto à imensa desigualdade social. Há um detalhe importante para ser falado: o filme se passa em 2021.

Sim, no ano seguinte, porém, de qualquer forma, no futuro. “Nova Ordem” é uma distopia. Melhor dizendo, “Nova Ordem” é o nascimento de uma distopia. A fita tem vários pontos focais que, ao longo da exibição, vão se revezando, no entanto, o primeiro ato é quase exclusivo dentro do casamento. Vemos um fiel retrato da burguesia, e o acontecimento em si só é reflexo irretocável de como o roteiro deseja estudar o abismo social: os ricos estão tão presos em suas bolhas que fazem um casamento em meio a uma crise social fortíssima.

E isso se dá graças à essa falsa bolha em que eles vivem. Eles estão tão certos de que estão em segurança que não faz diferença a manifestação ali próxima. Seus altos muros sempre os guardarão. Essa bolha é momentaneamente perfurada com a chegada de um ex-empregado da mansão: a esposa do homem precisa de uma caríssima e urgente cirurgia, e ele vai até a casa dos antigos patrões pedir por dinheiro.


Cada membro da família da protagonista age de uma forma diferente. A mãe consegue arrumar parte do dinheiro, mas é um pouco ríspida ao informar que aquilo é o suficiente. O pai e o irmão querem que o homem desapareça da casa e Marianne é a única verdadeiramente preocupada com a situação. Aqui, me peguei ponderando sobre vários mecanismos que estão além da narrativa imposta pelo filme.

Dentro das discussões sociais que estamos inseridos, principalmente no atual momento, há uma forte rejeição contra a figura do burguês. É claro, isso permeou a história de qualquer nação capitalista, porém, essa impressão é latente nos dias de hoje, essa era da problematização. E isso é um efeito necessário, afinal, a distribuição precária de riquezas é uma das maiores mazelas desse sistema tão falho. Contudo, ao sentar diante de “Nova Ordem”, quase involuntariamente separamos os personagens da seguinte forma: os ricos são os vilões e os pobres as vítimas.

Quando Marianne decide fazer o que pode para salvar a vida do empregado, já pensamos “olha lá o filme querendo dizer que nem todo rico é ruim”. E sim, pasmemos, essa afirmação é verdadeira. Diante da arte (e vou deixar só nesse campo, já que na vida real seria muito complexa tal ideia), costumamos cair em binarismos fáceis que por vezes deturpam nosso entendimento diante de alguma obra – e me enquadro aqui também. Foi trabalhoso me desvincular da ideia de que toda aquela burguesia é feita por pessoas odiosas e tentar me colocar no lugar das mais diferentes existências explanadas pela película. As pessoas são não totalmente más ou totalmente boas, e essa complexidade não pode ser deixada de fora quando analisamos nossos comportamentos.

Graças a uma série de (inteligentes) encontros e desencontros, Marianne sai da festa antes dela ser invadida pelos manifestantes fortemente armados, que realizam um verdadeiro massacre. Eles roubam, humilham e matam sem pensar duas vezes, e a sequência é dirigida com absurdo poder – e desde de antes do estopim. Franco vai aumentando o fogo debaixo dessa panela de pressão com elementos banais, mas que fazem toda diferença para quem assiste: é uma torneira jorrando água verde, uma sirene gritando ao fundo ou um carro de polícia passando às pressas na frente da casa. Há uma movimentação ao redor da festa que vai engolindo-a, e a tensão é milimetricamente construída quando a plateia sabe que a desgraça está a minutos de acontecer – e os personagens não só não têm ideia do caos iminente como serão cercados sem escapatória.


Tal construção me remeteu bastante ao filme “Mãe!” (2017), última obra-prima de Darren Aronofsky. Ambos os filmes fazem progressões de ansiedade bem similares e se utilizam na violência desenfreada para chegar no mesmo ponto. A partir do momento em que Marianne sai da casa, começamos a ter ciência da dimensão do que está acontecendo – todavia, como é de praxe no cinema de Franco, as coisas vão ainda mais longe. Os militares aproveitam o caos e crise para dar um golpe de Estado e assumir o poder. Soa familiar?

O ritmo do filme é alucinante, a fim de espelhar uma realidade que a América Latina conhece tão bem: a ditadura – e, confesso, tive que parar o filme em alguns momentos para conseguir respirar. As coisas acontecem rápido demais e, quando percebem, os personagens estão presos em um governo violentamente opressor e que trata as pessoas como objetos de extração de interesses. Vários são sequestrados, torturados, estuprados e mortos não apenas para o bel-prazer dos militares, mas também como chantagem para as famílias: elas devem pagar resgates com valores absurdos.

Daí para frente a situação só piora. Franco, muitos poderão dizer, chega a ser sádico com o terror desenfreado que atira em cima de seus personagens, mas nada é longe demais do que qualquer ditadura não conheça. Aqui mesmo no Brasil, sabemos dos horrores que até hoje maculam nossa história. É uma temática assustadora, e visualizar até onde vai a maldade das pessoas em posição de extremo poder é de causar calafrios, porém, deve ficar claro essa impressão para que tenhamos cuidado com nossas democracias.

“Nova Ordem” é mais uma enciclopédia de Michel Franco sobre a maldade humana, mas dessa vez com fortíssimo viés político. Sua moral é óbvia: em um mundo sem a menor empatia e afogado em egoísmo e corrupção, todos nós perdemos. Em meio a uma onda do conservadorismo, do reacionarismo e do fascismo que vêm assolando inúmeras nações mundo afora, a distopia do longa choca pela gigante proximidade com o real. Assistir a este nascimento de uma ditadura termina tão forte, alarmante e pretensioso graças à escolha do diretor de não dar uma aula de História no ecrã, e sim realizar um verdadeiro filme de terror.


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Crítica: “O Problema de Nascer” derrapa com o choque sem consequências

Um dos filmes mais polêmicos do Festival de Berlin 2020 - e detesto a palavra "polêmico" pela frivolidade do uso -, o austríaco "O Problema de Nascer" (The Trouble With Being Born) chegou na Mostra de Cinema de São Paulo 2020 como um dos principais da vitrine para novos diretores - no caso, Sandra Wollner, em seu segundo longa. Durante sua première na Alemanha, vários presentes se retiraram antes dos créditos finais rolarem na tela, mas por qual motivo?


O longa se passa pela óptica de uma androide. A robô, chamada de Elli (Lena Watson), "vive" para substituir a filha de um homem de meia idade que desapareceu há uma década - no melhor estilo "Black Mirror"  (2011-presente) ou "Alpes" (2011). Acompanhamos a existência da máquina em seus tediosos dias, sempre à espera do "pai" retornar para casa. A questão (que fez muitos desistirem da sessão) é que o homem mantém uma """"relação"""" com a androide.



Sim, o homem tem uma espécie de """"relacionamento"""" (não consigo dar menos aspas que isso) com uma robô que substitui sua filha de dez anos. Pois é. Fica bem entendível o motivo para muitos se negarem a navegar pela trama. A primeira parte da duração é focada na vida da protagonista com o "pai". Tudo começa de maneira idílica, com os personagens à beira da piscina, aproveitando a natureza, uma família e cenário totalmente convencionais, contudo, a diretora começa lentamente a introduzir enquadramentos estranhos, que denotam uma relação bizarra sem revelar muita coisa.


A montanha-russa, que sabemos que está chegando naquele ponto que virará uma queda livre, cai com alguns freios, mas cai o suficiente para chocar. A sutileza (acertada) da produção em mostrar nada quando, ao mesmo tempo, grita, consegue causar calafrios. Somos encaminhados por meio dos sons, como um beijo que não conseguimos ver ou um cinto sendo aberto fora do enquadramento. É verdadeiramente uma agonia.


Por mais assustador que seja as próximas palavras que colocarei diante dos seus olhos, a impressão que fica é que a robô é """"apaixonada"""" pelo homem. Todavia, é óbvio que ela está programada para """"sentir"""" o que o homem quiser, ou seja, ela é mero canal dos desejos medonhos do "pai". Por mais aficionado ele seja pela criatura, ele está constantemente com os ouvidos atentos para qualquer sinal da verdadeira filha. Em um momento, enquanto conserta a robô que foi danificada em uma cena que prefiro não relembrar, ele ouve a filha sumida gritando na floresta ao lado da casa, e larga a robô imediatamente para procurá-la. Não seriam esses os termos corretos, mas ali a androide percebe seu verdadeiro propósito: ela é apenas uma substituta que jamais será compara com a "original".


Ela então vai embora e acaba esbarrando com um cara que a "rouba": ele a leva para a casa da mãe para a androide "viver" como o irmão da idosa, morto há gerações. Há uma interessante discussão de gênero aqui quando nos é revelado como somos apegados às convenções de gênero - robôs não possuem gênero, entretanto, não possuímos nem um artigo neutro para designá-la, apenas o binarismo "a robô" ou "o robô".



Durante toda a exibição, há uma narração da androide, que repete o que lhe é contado. Ela é um vazo oco à espera de ser preenchida com memórias que significam nada para ela, mas fazem toda a diferença para a pessoa com quem ela vai interagir, humanizando-a. Quando ela começa a "conviver" com a idosa, seu sistema dá defeito, misturando as memórias do "pai" original com a da idosa, e esta percebe que há algo de muito errado com a criatura.


"O Problema de Nascer" já traz um título bastante explicativo: a robô em momento algum queria existir, mas não é programada para questionar o porquê. O longa reverte a lógica clássica do cinema de ficção-científica com robôs: Elli não anseia a liberdade ou deseja ser humana. Ela apenas é. Ela não questiona, não diz "não", apenas faz estritamente o que lhe é programada. E, mesmo sendo uma base poderosíssima de estudo, que sem dúvidas recai no nosso próprio modo de existir, essa é, também, a recaída da obra.


O filme termina passivo demais diante de uma tema que não permite tal escolha: a pedofilia. Ao final da sessão, corri para ler entrevistas com a diretora e entender suas motivações - que sim, foram compreendidas -, no entanto, quando a robô é puro objeto dos prazeres mais nojentos do criador, há uma aceitação latente. Eu sempre falei: Cinema não é uma escola na tela e não tem compromisso em ensinar o que é certo ou errado de maneira didática, porém, com uma temática tão difícil, é problemático não haver algum grau de pontuação de condenação diante das ações do pai.


É claro que o objetivo da diretora não foi, nem de longe, fazer um freak-show de pedofilia - a atriz mirim teve o nome e o rosto real preservado, usando uma prótese para caracterizar a androide -, no entanto, quando não critica narrativamente o ato após expô-lo de maneiras terríveis (há uma cena em que o pai retira a língua e a vagina da robô para lavar), temos um problema. "O Problema de Nascer" é um filme bem triste sobre como nossa existência é atrelada aos fantasmas das pessoas e acontecimentos que já se foram, entretanto, perde uma boa oportunidade quando não se preocupa em responsável na medida correta.



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Lista: filmes com mulheres que se relacionam com uma criatura não-humana que as satisfazem como homem nenhum

Essa é uma lista de extrema importância - talvez a mais importante que fiz até hoje. Existe um sub-sub-sub-sub-sub-sub-gênero no Cinema (ou assim chamo essa repetição quase involuntária de uma estrutura) que me fascina enormemente: filmes em que a protagonista se cansa dos machos da mesma espécie e faz sexo com com alguma criatura não-humana que consegue satisfazê-la como homem nenhum antes. Sim.

E como não amar obras que estudam isso? É verdade, a variedade de películas ao redor da estrita narrativa selecionada é pouca, mas cada um não consegue ser menos que obra-prima, porque né. Pois bem, os critérios de seleção aqui foram: o filme deve ter como protagonista uma mulher; o sexo deve ser elemento fundamental dentro da trama; e ela deve se relacionar com algum tipo de criatura não-humana, seja ela qual for - por isso, filmes como "A Bela e A Fera" (1991; 2017) não cabem (a Fera é humano, só está transformado; e o sexo não é fundamental para a narrativa).

Ordenei os filmes em ordem cronológica, todavia, todos imperdíveis - e, curiosamente, são todos dirigidos por homens. Uma maratona com essas pérolas do patriarcadicídio é mais que bem-vinda, não é mesmo?


Possessão (Possession), 1981

Direção de Andrzej Żuławski, Alemanha/França.
Desconfiando que sua esposa Anna está o traindo, Mark resolve seguir os passos da mulher para descobrir a verdade. Para ela, em meio a uma séria crise conjulgal, a obsessão do marido a leva aos braços (ou, na verdade, aos tentáculos) de uma criatura bizarra. "Possessão", clássico cult dos anos 80, é uma parábola insana da Alemanha no pós-Guerra Fria. Com uma atuação lendária de Isabelle Adjani como a protagonista, o filme de Żuławski, inspirado em hentais e obras asiáticas como a xilogravura "O Sonho da Mulher do Pescador" (1814), é peça icônica do terror que estaria por vir.

A Região Selvagem (La Región Salvaje), 2016

Direção de Amat Escalante, México.
Em um dia como outro qualquer, um meteorito cai em uma região comum do México. Com ele, um alienígena veio de carona, e seu objeto é......sexo. Do outro lado, há uma mãe sexualmente frustrada já que seu marido na verdade é um homossexual enrustido que a trai com o irmão da esposa. A premissa de "A Região Selvagem" é caótica, e ilustra as hipocrisias e preconceitos da nossa sociedade. No fundo, nada mais é do que uma obra sobre uma mulher se reerguendo depois de tragédias familiares e tentando sobreviver dentro de uma sociedade machista, misógina, ultrarreligiosa e homofóbica, percalços que todos nós conhecemos tão bem. Um longa sobre uma mulher que encontrar o prazer nos tentáculos de um alienígena não poderia ser menos que sensacional - não por acaso é pesadamente inspirado por "Possessão".

A Forma da Água (The Shape of Water), 2017

Direção de Guilhermo Del Toro, EUA.
Um dos melhores vencedores do Oscar de "Melhor Filme" do século, "A Forma da Água" segue uma tímida e reprimida mulher muda. Pela sua deficiência, ela se isola da maior parte do mundo, jamais encontrando um par. A situação muda quando ela conhece, dentro da instalação militar secreta na qual trabalha, um anfíbio humanoide vindouro da Amazônia, capturado para estudos. Só que ela se apaixona perdidamente pela criatura, que, de uma maneira muito estranha, se afeiçoa à ela na mesma medida. "A Forma da Água" traz um dos romances mais absurdos da história da Sétima Arte e consegue ainda mais sucesso quando aquele amor é tão verdadeiro sem que suas partes troquem uma palavra falada sequer.

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Crítica: Lady Gaga atinge novo auge com o impecável filme para “911”

Atenção: a crítica contém spoilers.

Eu conheci Lady Gaga em 2008, já com "Just Dance". Lembro que logo após a música tocar na rádio, o radialista falou "e essa é a música da americana Lady Gaga", e pensei "que diabos de nome artístico é esse". Continuei acompanhando os passos dela, mas para mim, àquela altura, ela era apenas mais uma cantora pop com vídeos dançantes. Foi quando assisti ao vídeo de "Paparazzi" que o jogo mudou. Ali estava uma visão artística que ninguém na indústria estava fazendo.

De "Bad Romance" a "G.U.Y.", vídeos icônicos são abundantes na carreira de Gaga, e ela surpreendeu ao lançar quase sem aviso o curta-metragem para "911", faixa do seu mais novo álbum, "Chromatica". Terceira música a receber um tratamento audiovisual, já havíamos dado uma passeada no universo criado na era com "Stupid Love" e "Rain On Me" com Ariana Grande. Falando em "Rain On Me", o clipe há pouco venceu quatro VMAs, sendo um dos mais premiados da ítalo-americana.

O que havia em comum com os dois primeiros clipes era a pegada sci-fi, com referências que iam de "Blade Runner" (1982)  a "Power Rangers" (1993-). "911", em contrapartida, mesmo dividindo a mesma base, vai para um caminho diferente. O próprio diretor escolhido reflete essa divergência: "911" foi dirigido por Tarsem Singh, diretor indiano famoso por suas composições visuais impecáveis, como em "Dublê de Anjo" (2006). O vídeo é aberto com um travelling por um deserto de areias branquíssimas; Gaga está caída ao redor de uma bicicleta destruída e romãs, sendo observada por uma figura toda de preto em um cavalo escuro como a noite. A figura a guia até um vilarejo, e a transição impecável entre a interlude "Chromatica II" e "911" quebra a atmosfera cinematográfica para entrarmos na mente dance de Gaga.


Aqui notamos o que mais amo na videografia de Gaga: "911" é como "Telephone", "Judas" e "Marry The Night", há um roteiro por trás, e não apenas execuções na tela do conceito da música - como "Stupid Love" ou "Poker Face". E isso era o que estava faltando na atual era, um vídeo verdadeiramente rico para colocar o público para pensar. E ela quebra a cabeça da plateia.

Caso você seja do mundinho cinéfilo, talvez pegue a referência principal para a fundamentação do clipe: o filme "A Cor de Romã" (1968) - e a dica é dada logo na primeira cena. O filme armênico conta a vida de um poeta, mas não da forma convencional, e sim por meio de metáforas poéticas. Lotado de composições visuais belíssimas, a Haus of Gaga (equipe criativa por trás de qualquer trabalho da artista) abraça o filme para unir ao conceito da canção. A romã, inclusive, é conhecida como a fruta da morte pela sua cor vermelho-sangue (e essa ideia é executada no filme).

O plot de "911" é bastante simplório, porém, a narrativa joga diversas ideias para mascarar e confundir quem assiste - e essa técnica é sensacional quando bem executada. Longas como "Boa Noite Mamãe" (2014) fazem o mesmo: criar uma atmosfera e composições que levam a mente do espectador para caminhos que não caiam tão fácil no desvendar da história. Quando pensamos em bons filmes, imaginamos logo histórias mirabolantes e inéditas, porém, muito há para ser realizado em histórias simples quando contadas de maneira criativa, o que "911" faz.


O que chama atenção de primeira no vídeo é o trato imagético: todas as cenas são fotografadas de maneira brilhante. Unindo com os figurinos coloridíssimos e a direção de arte - marca de Singh -, entramos naquele cenário de época que remete ao clipe de "Judas". Gaga é surpreendida com vários acontecimentos, desde um homem que bate sua cabeça incontrolavelmente e duas figuras que surgem do alto da construção - representando Maria (note a roupa inteiramente branca) e Jesus (em uma cena o ator tem correntes de espinhos ao redor dos braços). Um adento importante: mais uma vez a Gaga escala atores negros para interpretar figuras sacras - obrigado por tudo "Like A Prayer".

Entre coreografia e locações cheias de detalhes, Gaga começa a ascender para os céus com uma auréola, contudo, a figura de Jesus a puxa de volta para a terra - e na queda, por um segundo, vemos o rosto da cantora acordando em outro lugar. A cena é referência a um momento igual do filme "8½" (1963), clássico do cinema italiano de Federico Fellini. E, olha só, é um filme autobiográfico que se baseia nos sonhos do seu realizador.

Outra grande referência para "911" é o trabalho de Alejandro Jodorowsky, como "El Topo" (1970) e "A Montanha Sagrada" (1973), e o que esses dois têm em comum com "A Cor de Romã" e "8½"? Todos são obras surrealistas, e "911" não poderia ficar de fora. A música é sobre um antipsicótico que Gaga toma, e discorre sobre doenças mentais: "Continuo repetindo frases de auto ódio / Já ouvi o suficiente dessas vozes / Quase como se eu não tivesse escolha". Gaga, presa naquele cenário inóspito, é seguida sem descanso pelas figuras que a observam sem que ela consiga fazer muita coisa. O que a princípio parece uma perseguição maléfica fica clara como o oposto no plot twist do vídeo.

Tudo aquilo era uma alucinação de Gaga. Ela sofre um acidente enquanto andava de bicicleta e todas as pessoas do seu sonho são representações hiperbólicas das figuras do local: Jesus e Maria, por exemplo, são os paramédicos que salvam sua vida - representada magistralmente no momento em que o homem puxa Gaga de volta à terra quando ela ia em direção aos céus. Com a interlude "Chromatica III" ao fundo, a edição mostra todas as peças e o quebra-cabeças se encaixando de maneira garbosa. E, inclusive, há um painel pintado dentro da alucinação com todo o mistério - assim como "Midsommar: O Mal Não Espera a Noite" (2019) desenha todo seu roteiro na abertura da película.


E muito mais que uma evocação do inconsciente, o roteiro pincela discussões sociais muito importantes, como por exemplo os transeuntes que passavam no momento do acidente: eles estão tirando fotos como abutres. E enquanto uma mulher negra chora com um homem morto no seu colo sem a menor assistência, os bombeiros estão assistindo a um homem branco e rico que parece não ter sofrido um arranhão. Prioridades.

Quando saímos da beleza estranha da alucinação e voltamos à realidade, o choque é bastante grande. Não só pela reviravolta, mas pela mudança de atmosfera, e isso acontece por causa da atuação de Gaga. A atriz, indicada ao Oscar pelo papel em "Nasce Uma Estrela" (2018), entrega a melhor performance de sua carreira. A dor física e emocional do seu papel, que aparentemente causou o acidente por não tomar seu remédio, é avassaladora, exalando seu pesar através da tela quase documentalmente. Talvez por meio da música, que é uma carta aberta e corajosa da artista sobre meus próprios demônios, Gaga consiga transpirar a mensagem em sua atuação dolorosa.

E também demanda perspicácia usar uma música tão dançante e instrumentalmente alegre para um tema tão complexo, e o vídeo acompanha a impressão. Todos os figurinos coloridíssimos adoçam os olhos do quão sufocante é a situação de Gaga, que abre mão de um clipe com 15 dançarinos e cortes energéticos a fim de transformar seu trabalho em uma verdadeira experiência. "911" é comercial o suficiente para agarrar as massas ao ter um ato final explicativo, e é artisticamente no ponto para deixar de ser só mais um e criar unicidade - que no fim das contas é a essência seminal de Gaga.

12 anos depois da sua estreia, Gaga já é sinônimo de videografia extravagante, consolidando sua persona no panteão dos artistas lendários que invadiram a MTV, como Michael Jackson, Madonna, Missy Elliot e afins. No entanto, com "911", a vencedora do Oscar atinge um novo auge artístico e relembra plateias como ela é uma fonte inesgotável de criatividade, aspecto que cada dia mais parece escasso. Seja pelo nível de produção absurdo ou pela extrapolação do conceito da canção, "911" é um daqueles trabalhos que merecem ser chamados de geniais e que devem em nada na corrente do cinema folclórico, simbolista e surrealista. Ela é, e sempre foi, o momento.


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