Atenção: a crítica contém detalhes da trama.
O ano ainda nem acabou e já consigo afirmar que tivemos a melhor safra para o cinema nacional nessa década. Geralmente possuímos um ou dois filmes brasileiros a despontarem como ícones no ano vigente, mas 2018 já ultrapassou essa média; há quatro longas tupiniquins na futura lista com meus favoritos do ano pelo globo: "Aos Teus Olhos", "As Boas Maneiras", "O Nome da Morte" e agora "Ferrugem" - isso sem contar os que ainda tenho que assistir.
A ferrugem é o resultado da oxidação do ferro. Este metal, em contato com o oxigênio presente na água e no ar, se oxida, e desta reação surge a ferrugem que deteriora e corrói pouco a pouco o material original. O processo de ferrugem, por ser uma transformação química, é irreversível.
O ano ainda nem acabou e já consigo afirmar que tivemos a melhor safra para o cinema nacional nessa década. Geralmente possuímos um ou dois filmes brasileiros a despontarem como ícones no ano vigente, mas 2018 já ultrapassou essa média; há quatro longas tupiniquins na futura lista com meus favoritos do ano pelo globo: "Aos Teus Olhos", "As Boas Maneiras", "O Nome da Morte" e agora "Ferrugem" - isso sem contar os que ainda tenho que assistir.
O filme de Aly Muritiba - diretor de "Para Minha Amada Morta" (2015) - se aproxima de "Aos Teus Olhos" quando ambos discorrem sobre o impacto da tecnologia em nossas vidas no presente momento. Em "Ferrugem", acompanhamos a vida de Tati (Tiffanny Dopke), uma adolescente como qualquer outra que adora postar selfies no Instagram e trocar likes com seu atual cursh, Renet (Giovanni de Lorenzi).
A obra se divide em duas partes, e a primeira se passa pela óptica de Tati. A introdução da fita é uma "Malhação" da vida: adolescentes com suas câmeras e celulares a postos, bebendo e ouvindo músicas do momento enquanto jogam "Eu Nunca". De um lado, Tati tenta superar o término com seu ex-namorado, enquanto Renet passa por uma fase complicada com a mãe, ignorando suas ligações. Esses tormentos vão acabar unindo os dois, porém, o que parecia ser o início de uma relação se revela como o fim - em vários sentidos.
A vida da menina é abalada quando, após perder o celular, um vídeo íntimo é compartilhado em um grupo de WhatsApp. Sempre acho cinematograficamente relevante quando uma produção se apropria da realidade para fomentar discussões, seja através de casos em específico - como "O Lobo Atrás da Porta" (2013) - ou vivências compartilhadas, o caso de "Ferrugem". Já vimos diversas histórias em jornais de vídeos íntimos parando na internet, todavia, há uma diferença fundamental nos rumos que a história irar tomar: qual o gênero do indivíduo no vídeo.
Tati chega na escola e percebe todos a encarando, soltando risinhos e piadas veladas, sem saber que o vídeo já estava em todos os celulares. Durante as aulas, então, a coisa é ainda pior, quando ela nem ao menos consegue apresentar um trabalho sem ser motivo de chacota dos garotos da sala. É assustadora a necessidade das pessoas em diminuírem a menina, uma cultura enraizada profundamente - é só vermos a cena no banheiro, com as paredes inteiramente riscadas com xingamentos e obscenidades, muitas vezes direcionadas às garotas, em posições de "vadias" e "putas". E o que o vazamento do vídeo influiu sobre o ex-namorado de Tati? Ele se chateou porque os amigos estão chamando-o de "pau pequeno". Essa é a grande preocupação e impacto na vida masculina.
Enquanto, no início, as amigas de Tati se mostram unidas para ajudar a colega, rapidamente vão se distanciando até a total ruptura de relação, quando a melhor amiga da protagonista vai embora pois o namorado não a quer ali, já que o vídeo chegou aos sites de pornografia. Não fica escancarado o motivo pelo qual levou a amiga a abandonar Tati na mais absoluta depressão, entretanto, isso é reflexo de como não fomentamos a sororidade, com mulheres ajudando a piorar a situação ao não quererem se misturar com outras taxadas como "sujas" - pelos motivos que forem.
Essa primeira metade sobrevoa inteiramente o ensolarado céu da objetividade: tudo está posto na tela de forma óbvia e elementar, sem muitas aberturas para gerar dúvida no espectador. Os caminhos percorridos são bastante previsíveis, e, aqui, isso não é um demérito. Precisamos caminhar pelo esperado a fim de chegarmos na segunda parte, as consequências. E qual o ponto final da "Parte 1"? O suicídio de Tati, diante das câmeras da escola, num último grito de rebelião contra o sistema que a fez tomar aquela atitude. Olhando diretamente para o mesmo tipo de ferramenta que causou a sua ruína, ela deixa claro quem são os culpados.
Até mesmo o trajeto que faz Tati chegar cara a cara com a câmera, um símbolo que deixa de ser mero objeto cara carregar peso esmagador de ideologias, é banhado com machismo. Ela leva a arma do pai até o colégio e, chegando lá, vê que a diretoria está recolhendo todos os celulares dos alunos, revistando suas bolsas e mochilas para nenhum aparelho entrar no prédio. Tati sabia que o fiscal acharia a arma e tudo daria errado, porém, com um risinho asqueroso, o fiscal a deixa passar sem ser revistada. A cena, que dura segundos, arremessa no rosto da plateia todas as linhas de raciocínio que se passaram na cabeça do homem: ele assistiu ao vídeo e gostou do que viu.
A segunda parte segue Renet e os desenlaces após a morte de Tati. Enquanto adentramos com profundidade na vida do garoto, o filme escolhe nos distanciar completamente dos corredores da vida de Tati. Os pais da menina estão presentes em pouquíssimas cenas, e sempre captados apenas em pedaços, sem foco ou em off. O efeito, parecido com o que ocorre em "Deixa Ela Entrar" (2008), isola completamente a protagonista, projetando uma sensação de que ela não tem a quem recorrer, não há figuras que cuidem dela e que possam resolver a questão - até porque ela não fala sobre o vazamento para os pais. A falta de diálogo ajudou a matar a menina.
Renet carrega consigo uma peso que a fita vai aos poucos revelando. O rapaz é deveras melancólico, recluso e, depois do suicídio da colega de sala, há uma morbidez depositada sobre seus ombros. O contraponto é Normal (Pedro Inoue), o estereótipo absoluto do hétero moderno: aquele que se gaba de todas as garotas que ele "pega", piadista e que acha que Tati teve o que mereceu. Quando Renet se irrita com a declaração, Normal responde: "Agora vai ter pena da vadia?".
A tensão entre os dois é solucionada quando descobrimos que eles acharam o celular de Tati e vazaram o vídeo. A diferença é que Renet se culpa, enquanto a vida de Normal segue, olha o trocadilho, normalmente. O roteiro humaniza Renet de diversas formas, tanto mostrando seu arrependimento quanto pela já complicada relação com a família, o oposto de Normal, um adolescente inconsequente que não tem a menor noção do crime que cometeu. Mas não se engane: em momento nenhum o longa retira a culpa de Renet. A humanização desenvolve camadas de construção de personagem, enriquecendo-o e tirando-o do binarismo "mocinhos e vilões".
Tive o prazer de assistir a "Ferrugem" nos cinemas, então pude perceber a reação das pessoas durante a fita. Na primeira parte, já ouvia comentários das pessoas ao lado sobre o eminente suicídio de Tati, mas, de forma impressionante, quase todos pularam da cadeira quando a ela se mata. O choque era generalizado, e isso só me lembrou das delícias que são os poderes da Sétima Arte. Vemos frequentemente as mesmas histórias nos telejornais ou nas redes sociais, no entanto, provavelmente passaríamos batido. Só que o Cinema tem garras que nos fazem pertencer ao que estamos assistindo, transformando a mesma história em algo maior. Fazer alguém pular da cadeira sabendo o que vai acontecer é comprovação da força que um filme possui.
"Ferrugem" convida a plateia a ponderar sobre temas atuais e necessários, como o cyberbullying e porn revenge, ações que conseguem tirar a vida de pessoas. Sem maquiagem e de maneira crua, a fita exclui a catarse para por nossos pés no chão, caminhando ao lado dos personagens com uma veia naturalista imprescindível a fim de assimilarmos o tamanho do problema: precisamos abolir a cultura do machismo, que coloca mulheres em posições de demérito por serem tão sexuais quanto qualquer homem. Outro exemplar do poder que o cinema nacional produz ao fazer com que o espectador coloque a mão na consciência, observando com uma lupa essa trama de difícil digestão. Nós somos igual ao metal: uma vez enferrujados, não dá para voltar atrás - e precisamos assumir as responsabilidades dessa degradação.
A obra se divide em duas partes, e a primeira se passa pela óptica de Tati. A introdução da fita é uma "Malhação" da vida: adolescentes com suas câmeras e celulares a postos, bebendo e ouvindo músicas do momento enquanto jogam "Eu Nunca". De um lado, Tati tenta superar o término com seu ex-namorado, enquanto Renet passa por uma fase complicada com a mãe, ignorando suas ligações. Esses tormentos vão acabar unindo os dois, porém, o que parecia ser o início de uma relação se revela como o fim - em vários sentidos.
A vida da menina é abalada quando, após perder o celular, um vídeo íntimo é compartilhado em um grupo de WhatsApp. Sempre acho cinematograficamente relevante quando uma produção se apropria da realidade para fomentar discussões, seja através de casos em específico - como "O Lobo Atrás da Porta" (2013) - ou vivências compartilhadas, o caso de "Ferrugem". Já vimos diversas histórias em jornais de vídeos íntimos parando na internet, todavia, há uma diferença fundamental nos rumos que a história irar tomar: qual o gênero do indivíduo no vídeo.
Tati chega na escola e percebe todos a encarando, soltando risinhos e piadas veladas, sem saber que o vídeo já estava em todos os celulares. Durante as aulas, então, a coisa é ainda pior, quando ela nem ao menos consegue apresentar um trabalho sem ser motivo de chacota dos garotos da sala. É assustadora a necessidade das pessoas em diminuírem a menina, uma cultura enraizada profundamente - é só vermos a cena no banheiro, com as paredes inteiramente riscadas com xingamentos e obscenidades, muitas vezes direcionadas às garotas, em posições de "vadias" e "putas". E o que o vazamento do vídeo influiu sobre o ex-namorado de Tati? Ele se chateou porque os amigos estão chamando-o de "pau pequeno". Essa é a grande preocupação e impacto na vida masculina.
Enquanto, no início, as amigas de Tati se mostram unidas para ajudar a colega, rapidamente vão se distanciando até a total ruptura de relação, quando a melhor amiga da protagonista vai embora pois o namorado não a quer ali, já que o vídeo chegou aos sites de pornografia. Não fica escancarado o motivo pelo qual levou a amiga a abandonar Tati na mais absoluta depressão, entretanto, isso é reflexo de como não fomentamos a sororidade, com mulheres ajudando a piorar a situação ao não quererem se misturar com outras taxadas como "sujas" - pelos motivos que forem.
Essa primeira metade sobrevoa inteiramente o ensolarado céu da objetividade: tudo está posto na tela de forma óbvia e elementar, sem muitas aberturas para gerar dúvida no espectador. Os caminhos percorridos são bastante previsíveis, e, aqui, isso não é um demérito. Precisamos caminhar pelo esperado a fim de chegarmos na segunda parte, as consequências. E qual o ponto final da "Parte 1"? O suicídio de Tati, diante das câmeras da escola, num último grito de rebelião contra o sistema que a fez tomar aquela atitude. Olhando diretamente para o mesmo tipo de ferramenta que causou a sua ruína, ela deixa claro quem são os culpados.
Até mesmo o trajeto que faz Tati chegar cara a cara com a câmera, um símbolo que deixa de ser mero objeto cara carregar peso esmagador de ideologias, é banhado com machismo. Ela leva a arma do pai até o colégio e, chegando lá, vê que a diretoria está recolhendo todos os celulares dos alunos, revistando suas bolsas e mochilas para nenhum aparelho entrar no prédio. Tati sabia que o fiscal acharia a arma e tudo daria errado, porém, com um risinho asqueroso, o fiscal a deixa passar sem ser revistada. A cena, que dura segundos, arremessa no rosto da plateia todas as linhas de raciocínio que se passaram na cabeça do homem: ele assistiu ao vídeo e gostou do que viu.
A segunda parte segue Renet e os desenlaces após a morte de Tati. Enquanto adentramos com profundidade na vida do garoto, o filme escolhe nos distanciar completamente dos corredores da vida de Tati. Os pais da menina estão presentes em pouquíssimas cenas, e sempre captados apenas em pedaços, sem foco ou em off. O efeito, parecido com o que ocorre em "Deixa Ela Entrar" (2008), isola completamente a protagonista, projetando uma sensação de que ela não tem a quem recorrer, não há figuras que cuidem dela e que possam resolver a questão - até porque ela não fala sobre o vazamento para os pais. A falta de diálogo ajudou a matar a menina.
Renet carrega consigo uma peso que a fita vai aos poucos revelando. O rapaz é deveras melancólico, recluso e, depois do suicídio da colega de sala, há uma morbidez depositada sobre seus ombros. O contraponto é Normal (Pedro Inoue), o estereótipo absoluto do hétero moderno: aquele que se gaba de todas as garotas que ele "pega", piadista e que acha que Tati teve o que mereceu. Quando Renet se irrita com a declaração, Normal responde: "Agora vai ter pena da vadia?".
A tensão entre os dois é solucionada quando descobrimos que eles acharam o celular de Tati e vazaram o vídeo. A diferença é que Renet se culpa, enquanto a vida de Normal segue, olha o trocadilho, normalmente. O roteiro humaniza Renet de diversas formas, tanto mostrando seu arrependimento quanto pela já complicada relação com a família, o oposto de Normal, um adolescente inconsequente que não tem a menor noção do crime que cometeu. Mas não se engane: em momento nenhum o longa retira a culpa de Renet. A humanização desenvolve camadas de construção de personagem, enriquecendo-o e tirando-o do binarismo "mocinhos e vilões".
Tive o prazer de assistir a "Ferrugem" nos cinemas, então pude perceber a reação das pessoas durante a fita. Na primeira parte, já ouvia comentários das pessoas ao lado sobre o eminente suicídio de Tati, mas, de forma impressionante, quase todos pularam da cadeira quando a ela se mata. O choque era generalizado, e isso só me lembrou das delícias que são os poderes da Sétima Arte. Vemos frequentemente as mesmas histórias nos telejornais ou nas redes sociais, no entanto, provavelmente passaríamos batido. Só que o Cinema tem garras que nos fazem pertencer ao que estamos assistindo, transformando a mesma história em algo maior. Fazer alguém pular da cadeira sabendo o que vai acontecer é comprovação da força que um filme possui.
"Ferrugem" convida a plateia a ponderar sobre temas atuais e necessários, como o cyberbullying e porn revenge, ações que conseguem tirar a vida de pessoas. Sem maquiagem e de maneira crua, a fita exclui a catarse para por nossos pés no chão, caminhando ao lado dos personagens com uma veia naturalista imprescindível a fim de assimilarmos o tamanho do problema: precisamos abolir a cultura do machismo, que coloca mulheres em posições de demérito por serem tão sexuais quanto qualquer homem. Outro exemplar do poder que o cinema nacional produz ao fazer com que o espectador coloque a mão na consciência, observando com uma lupa essa trama de difícil digestão. Nós somos igual ao metal: uma vez enferrujados, não dá para voltar atrás - e precisamos assumir as responsabilidades dessa degradação.