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Review: P!nk nos apresenta seu lado mais vulnerável (e incrível) no documentário "All I Know So Far"

 



Há pouco mais de uma semana, P!nk nos presenteou com o documentário “All I Know So Far”, lançado através do Amazon Prime Video no dia 21 de maio. O doc, que nos apresenta um novo aspecto de uma das cantoras mais bem sucedidas da atualidade, chega com a clara missão de nos aproximar de Alecia e sua família, que são a base de todas as conquistas e inspirações de P!nk.

Dirigido por Michael Gracey (também responsável por “Rocketman”) e com 99 minutos de duração, o documentário se destaca por seus grandes momentos e cenas fora dos palcos. É aqui que ele se difere de projetos anteriores como o “excuse me, I love you” de Ariana Grande, no qual o espetáculo era o grande foco da produção. Em “All I Know”, os bastidores e momentos em família são o centro das atenções, enquanto trechos de algumas faixas são apresentadas hora ou outra.

Por falar em faixas, o projeto acompanha P!nk em sua passagem pela Europa com a “Beautiful Trauma Tour” (realizada entre 2018 e 2019), e que contou com 156 apresentações em 18 países diferentes. Dá pra imaginar que a cantora consegue acompanhar toda a produção de pertinho e ainda viver ótimos momentos em família? Pois é, she can do it all!

Acompanhada de seu esposo, Carey Hart, e de seus filhos, Willow Sage e Jameson Moon Hart, tudo o que ocorre por trás do palco (incrível, diga-se de passagem), aquece o nossos corações e dá à P!nk o troféu de mãe do ano. O humor, o diálogo e a honestidade entre todos ali presentes são os principais fatores que brilham os nossos olhos e nos fazem querer ser parte dessa família também (por que não?).

Descrito pela cantora como “uma carta de amor reveladora para sua família e para os fãs”, é exatamente essa a impressão que temos ao terminar “All I Know”.

Quanto ao show, que entre algumas adaptações, possuía 21 faixas em sua setlist, P!nk nos apresenta trechos de canções marcantes, como as ótimas “Just Like Fire”, “What About Us”, “Fuckin’ Perfect”, entre outras. O destaque e os spotlights vão para “I Am Here” e a icônica “So What”, que são apresentadas na íntegra para encerrar o projeto. Nelas, P!nk resume muito bem tudo o que faz com maestria: entre vocais perfeitos e acrobacias, toda a energia que ela e sua equipe emanam, certamente irão chegar até você.

Quer sentir um gostinho disso tudo? Dá o play! O Lyric Video da inédita "All I Know So Far" é também um ótimo trailer para o material:


Detentora do "Icon Award" desse ano no Billboard Music Awards, P!nk nos mostra que é um ser humano incrível e muito merecedora de tudo o que conquistou até aqui. Obrigado por todos os hits, por nos acompanhar em TANTOS momentos e por dividir conosco a sua jornada, Alecia!

Crítica: “Santa Maud” vai do gênesis ao apocalipse na beatificação do terror

Atenção: a crítica contém spoilers.

O enorme entusiasta do terror que sou, não consigo deixar de apontar um óbvio que, mesmo sendo óbvio, ainda não é óbvio o suficiente: a A24 está salvando o gênero. A distribuidora, que se encontra no apogeu, vem cunhando uma filmografia que, focando no terror, traz os melhores nomes da atualidade. De fato, para cada "Hereditário" (2017) a gente tem 10 "A Freira" (2018), e a A24 é peça primordial no equilíbrio da Sétima Arte.

Então, se a A24 lança um terror, eu assisto. Sim, ela já jogou no mundo alguns nomes que, apesar de longes do patamar de "bomba", podemos fingir que não existiram - "The Monster" (2016) e "The Hole In The Ground" (2019), por exemplo -, porém, estamos diante de mais uma glória da distribuidora: eis "Santa Maud" (Saint Maud).

"Santa Maud", estreia da diretora Rose Glass, orbita ao redor de Maud (Morfydd Clark), uma enfermeira. Após um rápido prólogo, que pincela algum tipo de tragédia, ela parte para um novo capítulo: Maud cuidará de Amanda (Jennifer Ehle, cópia de Meryl Streep), dançarina aposentada que está nos últimos estágios de um câncer. Há uma forte dicotomia entre as duas: Maud é extremamente religiosa, enquanto Amanda não parece andar de mãos dadas com deus.

O longa é um grande diário de Maud. Ouvimos seus mais profundos pensamentos por meio da narração da personagem, que dialoga diretamente com o altíssimo. Ela conta desde acontecimentos corriqueiros - como uma dor que não a abandona - até os desejos de uma vida muito maior do que aquela. Todavia ela permanece ali, crente e paciente de que um grande destino está ao virar na esquina.

Não demora para que outro impedimento surja na epopeia de Maud na salvação de Amanda: ela é lésbica e contrata regulamente uma garota de programa. O espectador mal pisca e Maud não apenas quer salvar o corpo da dançarina, mas principalmente sua alma. Ela joga fora as bebidas, tenta se livrar da acompanhante e costura uma relação cada vez mais íntima, a fim de fincar suas mãos no âmago de Amanda - e com muito bom grado.

"Santa Maud" solidifica uma corrente que parecia perdida no horror: a potencialização do drama. Aqui, é o drama que fomenta o terror, e não o oposto, e essa estrutura é fundamental para o sucesso da fita. Os lampejos de terror existem, contudo, não são o palco principal - pelo menos na maior parte da duração. Um dos primeiros elementos de horror são as cenas em que Maud sente a presença de deus, na tela de maneira física. Ele invade o corpo da enfermeira com uma lentidão e força enorme, quase a desfigurando.

Fica bem claro que a obsessão de Maud para com Amanda terminará, no mínimo, com uma demissão, e isso ocorre quando Amanda confronta a garota sobre a acompanhante, que aparece em uma festa. Ela bate no rosto da patroa após ter sua fé ridicularizada e é sumariamente mandada embora. Isso chacoalha os pilares do mundo de Maud: se foi deus que a colocou ali para salvar Amanda, e ele permitiu que ela a demitisse, então deus a abandonou?


Uma das maiores discussões - e talvez meu aspecto favorito de "Saint Maud" - é a megalomania religiosa. A jovem, a todo o momento, repete que sabe que estava destinada a algo grandioso pelos caminhos traçados por deus. Já presenciei inúmeras vezes pessoas justificando acontecimentos como "obra de deus": se consegui ganhar na loteria, foi porque deus permitiu, amém. Mas por que você conseguiu esse presente dos céus e outros não? O que te faz mais merecedor do que outros? Você orou mais vezes ou deu um dízimo maior nos domingos? Esse pensamento, extrapolado no roteiro de "Santa Maud", é um viés do ego religioso e fundamentalista.

Preciso pausar momentaneamente a narrativa sob a película para adentrar em aspectos particulares: mesmo crescido em um ambiente extremamente religioso, sou ateu. Porém, obras que abordam a religião e seus impactos na vida humana me cativam de maneira exemplar - talvez por ver o contexto sem estar dentro dele. Temos, também, que entender a diferença entre religião e espiritualidade.

Religião é uma instituição que - há mais tempo do que deveria - é alinhada com os interesses da burguesia, enquanto espiritualidade é sua fé, sua crença, e ela não depende de uma instituição para existir. Se essa instituição está aparelhada mediante o interesse da minoria, ela é (em sua base, e falo especificamente da religião presente no filme) ferramenta de adestramento. Maud em algumas cenas entrega seu corpo ao flagelo, um preço pequeno (para ela) quando o retorno é a graça de deus. Só que a relação de Maud com seu deus é mais estreita que a dos meros mortais.

Maud conversa com deus, e ele responde. Em uma das melhores cenas da duração, Maud desesperadamente pede por um sinal do senhor, e ele atende. Literalmente (bem no clima de "A Bruxa", 2017). Ele - falando em galês, escolha interessante de língua - diz que Maud está muito próxima de estar sentada ao seu lado, precisando provar sua adoração uma última vez. Ela precisa salvar a alma de Amanda o mais rápido possível, pois sua morte se aproxima. O que Maud não esperava era que ela se revelaria uma criatura demoníaca - e o momento perfeitamente remete a "O Exorcista" (1973) -, o que leva a Maud a matar Amanda.

Após o assassinato, Maud ganha asas douradas e precisa agora subir aos céus. Ela se encharca em acetona e ateia fogo em si própria. Por ser uma narrativa que se passa simbioticamente por meio dos olhos da protagonista, vemos o fogo sagrado lamber seu corpo e ativar suas asas, enquanto transeuntes se ajoelham diante de tamanho milagre. Maud ri, finalmente conhecendo o amor absoluto do criador. Só que Rose Glass genialmente desliga os olhos de Maud, e vemos em apenas um segundo seu desespero enquanto morre queimada.


Não dá para não pensar "o que foi que eu acabei de assistir??" com o rolar dos créditos, todavia, possuo uma teoria que talvez una todas as peças de "Santa Maud". Maud era uma ferramenta da intervenção sobrenatural, doando seu corpo para as linhas tortas de deus. Porém, Maud não era conduzida por deus, e sim pelo diabo. Na cena em que ele conversa com a protagonista, em momento nenhum se denomina como deus, Maud apenas supõe como verdade. Com poucas dicas do passado da enfermeira, pequenos fragmentos são espalhados pela duração, e vemos que Maud era uma ativadora do caos na terra. No entanto, até mesmo aqui entramos em mais uma discussão. O que é deus?

Nós, inseridos na cultura em que vivemos, temos uma figura bem definida do que é deus. Mas esse é apenas um deus, com culturas diferentes possuindo diferentes representações do que seria essa divindade. No fim das contas, o deus de Maud poderia simplesmente ser o diabo, e não o deus que pensamos à primeira vista. Outro traço que corrobora com esse pensamento é a forma como "deus" interage fisicamente com a protagonista: ela parece está tendo um orgasmo. Se você conhece a história das bruxas, sabe que as mulheres libertárias eram taxadas de demoníacas ao explorarem sua sexualidade - até presente data ainda é um tabu o sexo para a mulher. Não é compatível a imagem do deus bíblico com a forma que ele age no corpo de Maud - o final de "A Bruxa" é um paralelo perfeito para essa ideia.

Quer mais nuances dessa linha de pensamento? Amanda pergunta quem é a santa de devoção de Maud, e ela diz que é Maria Madalena. Caso você não saiba, Maria Madalena era, segundo as escrituras, uma das seguidoras mais próximas de Cristo, e foi pintada como prostituta. Apesar de ser considerada santa por algumas vertentes do catolicismo, ela é figura primordial da mitologia cristã na representação de uma mulher condenada por uma ligação estreita demais com o Messias - alguns apontam que ela era esposa de Jesus (lembra do videoclipe de "Judas", da Lady Gaga?), e essa imagem vai contra o status de imaculado do salvador. Maud, com seu vínculo íntimo com deus, é a Maria Madalena da Inglaterra moderna.

Até mesmo o nome "Maud" não foi gratuito. A protagonista, que na verdade se chama Katie, adota a alcunha depois de se converter. No alemão antigo, "Maud" significa "poderosa guerreira", e é dessa forma que ela se enxerga, um vassalo pronto para entregar a vida na guerra em prol da salvação da humanidade. Maud nada mais foi que uma vítima das enganações de satanás, que, por meio de um enganoso status de "especial", turvou sua mente até que ela se colocasse em posição de messias.

É deveras importante ver como os protagonistas dos terrores da A24 estão todos em uma fuga ferrenha contra a solidão. Os horrores orquestrados ao seus arredores são castigos da condição humana: a de estarmos constantemente em busca de algo que nos dê sentido, e Maud achou esse sentido, no entanto, era o sentido errado. "Santa Maud" é uma estreia impecável que se junta ao seleto panteão de filmes de terror contemporâneos que usam a mitologia religiosa ao seu favor - o último grande nome a conseguir o feito foi "O Chalé" (2019).

Amém, Santa Maud. Louvemos seu nome.

  

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Crítica: “Suor” e os bastidores da vida nada colorida de uma blogueira fitness

 

Um dos campos mais férteis de estudo na arte atual é uma das revoluções do tempo moderno: as redes sociais. Elas estão presentes nas nossas vidas há relativamente pouco tempo, mas já mudaram nossa forma de viver de maneira drástica. Já temos vários artefatos do audiovisual que discorrem sobre esse impacto - da série "Black Mirror" aos filmes "Ingrid Vai Para o Oeste" (2017) e "Rede de Ódio" (2019), por exemplo -, e temos mais uma obra para agregar na discussão: o sueco "Suor" (2020), do diretor Magnus von Horn, um dos escolhidos na Mostra de Cinema de São Paulo 2020.


O filme segue Sylvia (Magdalena Kolesnik), uma influencer fitness com mais de 600 mil seguidores. A sequência de abertura é o resumo ideal de como ela construiu sua imagem perante o público: em um aulão no meio de um shopping com várias pessoas. A câmera inquieta passeia pela cachoeira de endorfina impulsionada pela blogueira, que é idolatrada pelos seguidores. Após uma aula, uma das alunas diz que Sylvia mudou sua vida ao dar um novo sentido a ela.


Sylvia vai para os bastidores e, ainda afogada em adrenalina, mostra os corredores de sua vida, cheia de frases motivacionais sobre como o corpo almejado só depende de você! Porém, quando a câmera é desligada, a vida da guru fit não é tão colorida assim.



A fama acaba isolando a protagonista, sempre ao redor de pessoas que a amam pela imagem mostrada nas lives do Instagram, ou seja, ninguém a conhece de verdade. Esse mote, a velha desglamourização de atividades atreladas a prestígio, é um dos estudos que mais gosto no Cinema - temos "Cisne Negro" (2010) com o balé, "Demônio de Neon" (2016) com a moda e "Bingo: O Rei das Manhãs" (2017) com a televisão, por exemplo -, então "Suor" era um dos meus mais desejados da seleção da Mostra.


Sylvia faz uma live deixando um pouco de lado sua versão positive vibes e chora ao desabafar o quanto se sente sozinha. O resultado é um puxão de orelha de seu empresário, pois os patrocinadores não ficaram felizes com o vídeo e não acham uma boa ideia atrelar o produto àquilo.


Aqui, já caí em um buraco negro. Eu, formado em Comunicação, claramente já estudei muito sobre redes sociais, mas nunca tinha parado para pensar no absurdismo que é o fenômeno dos influencers. Vamos destrinchá-los. Um influencer é uma pessoa cujo trabalho é ser uma vitrine - como sabiamente já disse Nicole Bahls, "eu sou uma embalagem". Eles não exatamente trabalham com algum talento ou vocação, e sim com suas imagens (no aspecto geral, claro). Quando uma empresa vai escolher um blogueiro para atrelar seu produto, dois são os fatores que mais pesam: como aquela pessoa tem ligação com o produto e quantos seguidores ele possui.


A partir de então, um influencer deve se tornar em uma máquina perfeita. Não há espaço para erros, para fraquezas, para problematizações, caso contrário, o que lhe dá dinheiro – seus patrocinadores – cairão fora. É claro que nem vou entrar nos méritos de pessoas (reais) claramente erradas – e até criminosas – que não perdem dinheiro mesmo com a exposição do caso: o número de jogadores de futebol acusados dos mais diversos e delitos e continuam com o contrato em mãos está aí para provar. Mas voltando, Sylvia carrega o peso dos seus 600 mil seguidores com a responsabilidade de ser intocável em sua conduta.



É bem óbvio que ser uma pessoa de caráter é (ou deveria) ser requisito básico para viver em sociedade, contudo, somos humanos, logo, iremos errar. A cobrança em cima de quem tem milhares de olhos acompanhando cada passo é multiplicada caso comparada com a mesma cobrança de alguém anônimo – e o vídeo de Sylvia está longe de ser um erro, todavia, é motivo o suficiente para o puxão de orelha. Ela segue com sua vida perfeita entre lives com Q&A e recebimentos de mimos para serem divulgados a seus seguidores.


Há uma cena bastante intrigante na metade da sessão: Sylvia está em um shopping e é parada por uma fã altamente entusiasmada. Ela claramente não reconhece a mulher, porém, pelo interesse da fã em simplesmente estar na sua presença, aceitar sentar para tomar um suco. Na mesa, a mulher desata a contar sobre sua vida, no entanto, no momento em que Sylvia também se abre, a fã ignora e pede por uma selfie. É a comprovação de que as pessoas estão interessadas apenas na blogueira, não na pessoa. Elas querem apenas poder dizer que estão com aquela que tem 600 mil seguidores no currículo.


Enquanto sua vida profissional decola, conseguindo marcar uma entrevista no maior programa matinal do momento, Sylvia acompanha quase impotente sua vida pessoal estagnar. A coisa piora quando ela vê que sua mãe está de namorado novo. Não fica explícito, mas lá uma áurea ao redor da protagonista, como ela se indagasse como a mãe consegue um par, mas ela, jovem, bonita e poderosa, segue na solidão.


A partir de então, o texto muda totalmente de foco. Todo o viés da existência digital de Sylvia é deixado de lado para focar na guerra fria entre ela e a mãe apaixonada. Concomitantemente, um stalker aparece na vida dela, estacionando o carro na porta do seu prédio e mandando vídeos através das redes.


Fica inegável a maneira como a sessão sofre uma perda de interesse quando o foco principal é mudado; as personas das pessoas ao redor de Sylvia não são ricas o suficiente para que o espectador se sinta compensado pelo desvio na roda. A subtrama do stalker é bastante promissora, principalmente por ser uma protagonista mulher (cultura do estupro está aí na ativa), mas nem isso recebe um tratamento à altura. A maneira como o tema é encerrado mostra que Von Horn deixou escapar uma película que refletisse a grandiosidade do primeiro ato.


Carregado por uma atuação competente de Magdalena Kolesnik, a blogueira fit que trocaria os 600 mil seguidores por um amor de verdade, “Suor” acompanha discussões pertinentes e composições cinematográficas que mostram como a produção sabia por onde começar – perceba como quase todo figurino de Sylvia perante as câmeras é cor de rosa, uma tentativa visual de impor uma alegria não tão presente ali –, entretanto, acaba deixando inúmeras discussões sobre o fenômeno dos influencers de lado, fomentando debates que não estão necessariamente na tela.



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Crítica: “Casa de Antiguidades” frustra quando não atinge seu potencial de resistência


Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

O principal nome brasileiro na Mostra de Cinema de São Paulo é "Casa de Antiguidades", estreia do diretor João Paulo Miranda Maria. O longa foi escolhido para a seleção do Festival de Cannes 2020 - que veio a ser cancelado por conta da pandemia -, angariando ainda mais atenção ao redor da obra, um dos fortes nomes nacionais para a representação do país na categoria "Melhor Filme Internacional" no Oscar 2021.

A obra é estrelada por Antônio Pitanga no papel de Cristóvão, um idoso trabalhador que saiu do Goiás para uma fábrica de leite em uma colônia alemã do sul. A escolha do ator, por si só, é emblemática. Pai da também atriz Camila Pitanga, Antônio é um dos maiores nomes no Cinema Novo brasileiro, internacionalmente conhecido pelos trabalhos ao lado de Glauber Rocha, Anselmo Duarte e Cacá Diegues. Cristóvão é o primeiro papel do ator em quase uma década, e sua retomada é um acerto não apenas em termos de técnica performática, mas também como misticismo ao redor de sua pessoa.


Uma das primeiras cenas é o personagem conversando com seu chefe. O patrão, dono da fábrica, fala majoritariamente em alemão e diz como, mesmo estando há anos no local, Cristóvão terá o salário reduzido graças à "crise". "Ele é preto e velho, onde acharia algo melhor que isso?", diz o presidente do local para a secretária, que não traduz a fala. Só o público é cúmplice do que real está acontecendo ali.

A vida de Cristóvão do lado de fora da fábrica é bastante solitária. Ele não pega o ônibus para voltar para casa, preferindo ir a pé (os motivos ficam na mente do público). Em casa, sua única companhia é um cachorro com três patas, que é torturado por um grupo de crianças empenhado em infernizar a vida do homem. Em meio a tanta turbulência, uma casa abandonada próxima à sua começa a manifestar objetos que não estavam previamente ali, e acaba se tornando uma segunda casa para Cristóvão.

"Casa de Antiguidades" remonta algumas características presentes no Cinema Novo, como a fusão entre o cultural e o espacial - lembra do drone em formato de nave em "Bacurau" (2019)?, pois é, mesma coisa. A roupa de trabalho de Cristóvão mais parece um traje de astronauta, e, divertidamente, há referências charmosas ao redor da construção imagética, como no momento em que o protagonista observa uma máquina da fábrica com brilhantes luzes vermelhas que refletem em seu "capacete" como em "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968). Essa dicotomia visual é o primeiro elemento da mistura entre o "real" e a "fantasia" que permeia a atmosfera da sessão. 

E, assim como "Bacurau", "Casa de Antiguidades" tem como base textual um câncer da sociedade brasileira: o racismo. Cristóvão está no seio de um movimento separatista, que deseja retirar a "Região Sul" (entre aspas porque, malandramente, o movimento puxa São Paulo no bolo) do resto do país com o argumento de que o "Norte" atrasa a nação pela sua ignorância e corrupção. A coisa é tão absurda que a reunião que evoca com bravura o amor à pátria sulista é feita em alemão. O palanque que Hitler usava nos anos 40 deve estar orgulhoso.

O protagonista assiste a tudo sem entender uma palavra, claro, e é coagido a assinar um abaixo-assinado defendendo a independência da região. Ele, também, ganha uma camisa com a bandeira do "novo país", que é rasgada para servir de curativo para o pobre cachorro. Cristóvão se sente um verdadeiro alienígena em meio àquelas pessoas - seja pela sua cor ou pela sua língua. Todavia, ele não abaixa a cabeça, mesmo sufocado com a uma pressão cultural da maioria. Durante uma cantoria alemã, ele levanta o berrante e interrompe a celebração. Aqui é Brasil, meu irmão.


"Casa de Antiguidades" é um filme marcado pelo silêncio. Cristóvão se deixa sumir em meio às suas memórias, emoções e solidão, já condicionado a saber que sua existência naquele lugar é daquela forma. A tal casa, com os objetos que magicamente aparecem, acaba sendo uma extensão de sua própria consciência, produzindo artefatos que, de alguma forma, se conectam com a história do protagonista. 

Até aqui, a fita demonstrava bastante poder perante as temáticas escolhidas, principalmente pelo seu aspecto folclórico (o Brasil é rico demais em lendas e mitos, sendo terreno fértil para o Cinema), porém, a partir do momento em que a casa é explorada com mais profundidade, a narrativa começa a se perder. Várias tramas são abertas e esquecidas pelo caminho ou não finalizadas com relevância - como toda a situação da mulher no bar, ou as crianças que atormentam o protagonista, ou a própria fábrica e o movimento separatista. Até mesmo a relação do achado do protagonista com a casa não é tão explicada - ela simplesmente está lá.

Vamos descendo por um buraco onírico cada vez que Cristóvão vai achando algo da casa - como o pôster e a pintura rupestre por baixo de um xingamento pichado na parede. Dá para entender muito bem o que está acontecendo - como na sequência em que ele se transforma em um boi -, no entanto, muitos porquês não existem. Lá pela metade da película, deixei de tentar manter uma linha de raciocínio e simplesmente embarcar na viagem do filme e observar quais caminhos ele me levaria - e o trajeto foi se tornando cada vez menos motivador.

"Casa de Antiguidades" é um dos tipos de filmes mais frustrantes que existem: aqueles que almejam ser desvendados e não produzem uma vontade no espectador de tentar entender. É desapontador uma obra trazer tantos pontos de discussões urgentes e sabermos que eles poderiam ter um impacto muito maior. Por exemplo, há várias pichações com o malfadado número 17 na mesma casa que é usada como ameaça para Cristóvão, um símbolo de resistência contra o fascismo que poderia ter uma voz muito mais incisiva com escolhas mais coesas nesse trabalho que, apesar dos muitos méritos, não é sólido o suficiente para ser memorável. Agrega no Novíssimo Cinema Brasileiro, que põe o dedo nas mazelas contemporâneas (como "Que Horas Ela Volta?", 2015; "As Boas Maneiras", 2017; e "Temporada", 2018), mas não se destaca à altura do potencial.


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Crítica: “Nova Ordem” e o terror do real com o nascimento de uma ditadura

Michel Franco é um daqueles diretores que não importa o projeto, se tem sua assinatura, vai chamar a atenção. E o motivo é bem simples: seus filmes são sempre controversos. Com “Nova Ordem” (Nuevo Orden), sua nova empreitada, não foi diferente. Desde a estreia no Festival de Veneza 2020, onde ganhou o Leão de Prata (equivalente ao segundo melhor longa da competição), houve muita expectativa – para o bem ou para o mal – ao redor da película.

Não por acaso, “Nova Ordem” foi o filme de abertura da Mostra de Cinema de São Paulo 2020 – e teve ingressos esgotados. Ele segue a mesma fundamentação de todo o cinema de Franco: explanar como somos capazes dos piores atos com nosso próximo, então, nenhum dos seus filmes são sessões agradáveis, do estudo sobre o bullying em “Depois de Lúcia” (2012) ao drama familiar de “As Filhas de Abril” (2017) – ambos na minha lista dos 100 melhores filmes da década.


“Nova Ordem” é aberto com vários fragmentos de imagens, um prelúdio dos acontecimentos que virão. Logo em seguida, entramos no casamento de Marianne (Naian Gonzalez Norvind), uma jovem de classe alta. Toda a família e convidados aproveitam o pomposo casamento, trazendo presentes caríssimos que são guardados dentro do cofre particular da casa.

Do lado de fora, não tão longe do alcance dos seguranças na porta da recepção – que guardam a entrada e saída de autoridades na festa –, uma enorme manifestação acontece. Os revoltosos estão destruindo o que encontram pela frente em protesto à imensa desigualdade social. Há um detalhe importante para ser falado: o filme se passa em 2021.

Sim, no ano seguinte, porém, de qualquer forma, no futuro. “Nova Ordem” é uma distopia. Melhor dizendo, “Nova Ordem” é o nascimento de uma distopia. A fita tem vários pontos focais que, ao longo da exibição, vão se revezando, no entanto, o primeiro ato é quase exclusivo dentro do casamento. Vemos um fiel retrato da burguesia, e o acontecimento em si só é reflexo irretocável de como o roteiro deseja estudar o abismo social: os ricos estão tão presos em suas bolhas que fazem um casamento em meio a uma crise social fortíssima.

E isso se dá graças à essa falsa bolha em que eles vivem. Eles estão tão certos de que estão em segurança que não faz diferença a manifestação ali próxima. Seus altos muros sempre os guardarão. Essa bolha é momentaneamente perfurada com a chegada de um ex-empregado da mansão: a esposa do homem precisa de uma caríssima e urgente cirurgia, e ele vai até a casa dos antigos patrões pedir por dinheiro.


Cada membro da família da protagonista age de uma forma diferente. A mãe consegue arrumar parte do dinheiro, mas é um pouco ríspida ao informar que aquilo é o suficiente. O pai e o irmão querem que o homem desapareça da casa e Marianne é a única verdadeiramente preocupada com a situação. Aqui, me peguei ponderando sobre vários mecanismos que estão além da narrativa imposta pelo filme.

Dentro das discussões sociais que estamos inseridos, principalmente no atual momento, há uma forte rejeição contra a figura do burguês. É claro, isso permeou a história de qualquer nação capitalista, porém, essa impressão é latente nos dias de hoje, essa era da problematização. E isso é um efeito necessário, afinal, a distribuição precária de riquezas é uma das maiores mazelas desse sistema tão falho. Contudo, ao sentar diante de “Nova Ordem”, quase involuntariamente separamos os personagens da seguinte forma: os ricos são os vilões e os pobres as vítimas.

Quando Marianne decide fazer o que pode para salvar a vida do empregado, já pensamos “olha lá o filme querendo dizer que nem todo rico é ruim”. E sim, pasmemos, essa afirmação é verdadeira. Diante da arte (e vou deixar só nesse campo, já que na vida real seria muito complexa tal ideia), costumamos cair em binarismos fáceis que por vezes deturpam nosso entendimento diante de alguma obra – e me enquadro aqui também. Foi trabalhoso me desvincular da ideia de que toda aquela burguesia é feita por pessoas odiosas e tentar me colocar no lugar das mais diferentes existências explanadas pela película. As pessoas são não totalmente más ou totalmente boas, e essa complexidade não pode ser deixada de fora quando analisamos nossos comportamentos.

Graças a uma série de (inteligentes) encontros e desencontros, Marianne sai da festa antes dela ser invadida pelos manifestantes fortemente armados, que realizam um verdadeiro massacre. Eles roubam, humilham e matam sem pensar duas vezes, e a sequência é dirigida com absurdo poder – e desde de antes do estopim. Franco vai aumentando o fogo debaixo dessa panela de pressão com elementos banais, mas que fazem toda diferença para quem assiste: é uma torneira jorrando água verde, uma sirene gritando ao fundo ou um carro de polícia passando às pressas na frente da casa. Há uma movimentação ao redor da festa que vai engolindo-a, e a tensão é milimetricamente construída quando a plateia sabe que a desgraça está a minutos de acontecer – e os personagens não só não têm ideia do caos iminente como serão cercados sem escapatória.


Tal construção me remeteu bastante ao filme “Mãe!” (2017), última obra-prima de Darren Aronofsky. Ambos os filmes fazem progressões de ansiedade bem similares e se utilizam na violência desenfreada para chegar no mesmo ponto. A partir do momento em que Marianne sai da casa, começamos a ter ciência da dimensão do que está acontecendo – todavia, como é de praxe no cinema de Franco, as coisas vão ainda mais longe. Os militares aproveitam o caos e crise para dar um golpe de Estado e assumir o poder. Soa familiar?

O ritmo do filme é alucinante, a fim de espelhar uma realidade que a América Latina conhece tão bem: a ditadura – e, confesso, tive que parar o filme em alguns momentos para conseguir respirar. As coisas acontecem rápido demais e, quando percebem, os personagens estão presos em um governo violentamente opressor e que trata as pessoas como objetos de extração de interesses. Vários são sequestrados, torturados, estuprados e mortos não apenas para o bel-prazer dos militares, mas também como chantagem para as famílias: elas devem pagar resgates com valores absurdos.

Daí para frente a situação só piora. Franco, muitos poderão dizer, chega a ser sádico com o terror desenfreado que atira em cima de seus personagens, mas nada é longe demais do que qualquer ditadura não conheça. Aqui mesmo no Brasil, sabemos dos horrores que até hoje maculam nossa história. É uma temática assustadora, e visualizar até onde vai a maldade das pessoas em posição de extremo poder é de causar calafrios, porém, deve ficar claro essa impressão para que tenhamos cuidado com nossas democracias.

“Nova Ordem” é mais uma enciclopédia de Michel Franco sobre a maldade humana, mas dessa vez com fortíssimo viés político. Sua moral é óbvia: em um mundo sem a menor empatia e afogado em egoísmo e corrupção, todos nós perdemos. Em meio a uma onda do conservadorismo, do reacionarismo e do fascismo que vêm assolando inúmeras nações mundo afora, a distopia do longa choca pela gigante proximidade com o real. Assistir a este nascimento de uma ditadura termina tão forte, alarmante e pretensioso graças à escolha do diretor de não dar uma aula de História no ecrã, e sim realizar um verdadeiro filme de terror.


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Crítica: “O Problema de Nascer” derrapa com o choque sem consequências

Um dos filmes mais polêmicos do Festival de Berlin 2020 - e detesto a palavra "polêmico" pela frivolidade do uso -, o austríaco "O Problema de Nascer" (The Trouble With Being Born) chegou na Mostra de Cinema de São Paulo 2020 como um dos principais da vitrine para novos diretores - no caso, Sandra Wollner, em seu segundo longa. Durante sua première na Alemanha, vários presentes se retiraram antes dos créditos finais rolarem na tela, mas por qual motivo?


O longa se passa pela óptica de uma androide. A robô, chamada de Elli (Lena Watson), "vive" para substituir a filha de um homem de meia idade que desapareceu há uma década - no melhor estilo "Black Mirror"  (2011-presente) ou "Alpes" (2011). Acompanhamos a existência da máquina em seus tediosos dias, sempre à espera do "pai" retornar para casa. A questão (que fez muitos desistirem da sessão) é que o homem mantém uma """"relação"""" com a androide.



Sim, o homem tem uma espécie de """"relacionamento"""" (não consigo dar menos aspas que isso) com uma robô que substitui sua filha de dez anos. Pois é. Fica bem entendível o motivo para muitos se negarem a navegar pela trama. A primeira parte da duração é focada na vida da protagonista com o "pai". Tudo começa de maneira idílica, com os personagens à beira da piscina, aproveitando a natureza, uma família e cenário totalmente convencionais, contudo, a diretora começa lentamente a introduzir enquadramentos estranhos, que denotam uma relação bizarra sem revelar muita coisa.


A montanha-russa, que sabemos que está chegando naquele ponto que virará uma queda livre, cai com alguns freios, mas cai o suficiente para chocar. A sutileza (acertada) da produção em mostrar nada quando, ao mesmo tempo, grita, consegue causar calafrios. Somos encaminhados por meio dos sons, como um beijo que não conseguimos ver ou um cinto sendo aberto fora do enquadramento. É verdadeiramente uma agonia.


Por mais assustador que seja as próximas palavras que colocarei diante dos seus olhos, a impressão que fica é que a robô é """"apaixonada"""" pelo homem. Todavia, é óbvio que ela está programada para """"sentir"""" o que o homem quiser, ou seja, ela é mero canal dos desejos medonhos do "pai". Por mais aficionado ele seja pela criatura, ele está constantemente com os ouvidos atentos para qualquer sinal da verdadeira filha. Em um momento, enquanto conserta a robô que foi danificada em uma cena que prefiro não relembrar, ele ouve a filha sumida gritando na floresta ao lado da casa, e larga a robô imediatamente para procurá-la. Não seriam esses os termos corretos, mas ali a androide percebe seu verdadeiro propósito: ela é apenas uma substituta que jamais será compara com a "original".


Ela então vai embora e acaba esbarrando com um cara que a "rouba": ele a leva para a casa da mãe para a androide "viver" como o irmão da idosa, morto há gerações. Há uma interessante discussão de gênero aqui quando nos é revelado como somos apegados às convenções de gênero - robôs não possuem gênero, entretanto, não possuímos nem um artigo neutro para designá-la, apenas o binarismo "a robô" ou "o robô".



Durante toda a exibição, há uma narração da androide, que repete o que lhe é contado. Ela é um vazo oco à espera de ser preenchida com memórias que significam nada para ela, mas fazem toda a diferença para a pessoa com quem ela vai interagir, humanizando-a. Quando ela começa a "conviver" com a idosa, seu sistema dá defeito, misturando as memórias do "pai" original com a da idosa, e esta percebe que há algo de muito errado com a criatura.


"O Problema de Nascer" já traz um título bastante explicativo: a robô em momento algum queria existir, mas não é programada para questionar o porquê. O longa reverte a lógica clássica do cinema de ficção-científica com robôs: Elli não anseia a liberdade ou deseja ser humana. Ela apenas é. Ela não questiona, não diz "não", apenas faz estritamente o que lhe é programada. E, mesmo sendo uma base poderosíssima de estudo, que sem dúvidas recai no nosso próprio modo de existir, essa é, também, a recaída da obra.


O filme termina passivo demais diante de uma tema que não permite tal escolha: a pedofilia. Ao final da sessão, corri para ler entrevistas com a diretora e entender suas motivações - que sim, foram compreendidas -, no entanto, quando a robô é puro objeto dos prazeres mais nojentos do criador, há uma aceitação latente. Eu sempre falei: Cinema não é uma escola na tela e não tem compromisso em ensinar o que é certo ou errado de maneira didática, porém, com uma temática tão difícil, é problemático não haver algum grau de pontuação de condenação diante das ações do pai.


É claro que o objetivo da diretora não foi, nem de longe, fazer um freak-show de pedofilia - a atriz mirim teve o nome e o rosto real preservado, usando uma prótese para caracterizar a androide -, no entanto, quando não critica narrativamente o ato após expô-lo de maneiras terríveis (há uma cena em que o pai retira a língua e a vagina da robô para lavar), temos um problema. "O Problema de Nascer" é um filme bem triste sobre como nossa existência é atrelada aos fantasmas das pessoas e acontecimentos que já se foram, entretanto, perde uma boa oportunidade quando não se preocupa em responsável na medida correta.



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Crítica: Lady Gaga atinge novo auge com o impecável filme para “911”

Atenção: a crítica contém spoilers.

Eu conheci Lady Gaga em 2008, já com "Just Dance". Lembro que logo após a música tocar na rádio, o radialista falou "e essa é a música da americana Lady Gaga", e pensei "que diabos de nome artístico é esse". Continuei acompanhando os passos dela, mas para mim, àquela altura, ela era apenas mais uma cantora pop com vídeos dançantes. Foi quando assisti ao vídeo de "Paparazzi" que o jogo mudou. Ali estava uma visão artística que ninguém na indústria estava fazendo.

De "Bad Romance" a "G.U.Y.", vídeos icônicos são abundantes na carreira de Gaga, e ela surpreendeu ao lançar quase sem aviso o curta-metragem para "911", faixa do seu mais novo álbum, "Chromatica". Terceira música a receber um tratamento audiovisual, já havíamos dado uma passeada no universo criado na era com "Stupid Love" e "Rain On Me" com Ariana Grande. Falando em "Rain On Me", o clipe há pouco venceu quatro VMAs, sendo um dos mais premiados da ítalo-americana.

O que havia em comum com os dois primeiros clipes era a pegada sci-fi, com referências que iam de "Blade Runner" (1982)  a "Power Rangers" (1993-). "911", em contrapartida, mesmo dividindo a mesma base, vai para um caminho diferente. O próprio diretor escolhido reflete essa divergência: "911" foi dirigido por Tarsem Singh, diretor indiano famoso por suas composições visuais impecáveis, como em "Dublê de Anjo" (2006). O vídeo é aberto com um travelling por um deserto de areias branquíssimas; Gaga está caída ao redor de uma bicicleta destruída e romãs, sendo observada por uma figura toda de preto em um cavalo escuro como a noite. A figura a guia até um vilarejo, e a transição impecável entre a interlude "Chromatica II" e "911" quebra a atmosfera cinematográfica para entrarmos na mente dance de Gaga.


Aqui notamos o que mais amo na videografia de Gaga: "911" é como "Telephone", "Judas" e "Marry The Night", há um roteiro por trás, e não apenas execuções na tela do conceito da música - como "Stupid Love" ou "Poker Face". E isso era o que estava faltando na atual era, um vídeo verdadeiramente rico para colocar o público para pensar. E ela quebra a cabeça da plateia.

Caso você seja do mundinho cinéfilo, talvez pegue a referência principal para a fundamentação do clipe: o filme "A Cor de Romã" (1968) - e a dica é dada logo na primeira cena. O filme armênico conta a vida de um poeta, mas não da forma convencional, e sim por meio de metáforas poéticas. Lotado de composições visuais belíssimas, a Haus of Gaga (equipe criativa por trás de qualquer trabalho da artista) abraça o filme para unir ao conceito da canção. A romã, inclusive, é conhecida como a fruta da morte pela sua cor vermelho-sangue (e essa ideia é executada no filme).

O plot de "911" é bastante simplório, porém, a narrativa joga diversas ideias para mascarar e confundir quem assiste - e essa técnica é sensacional quando bem executada. Longas como "Boa Noite Mamãe" (2014) fazem o mesmo: criar uma atmosfera e composições que levam a mente do espectador para caminhos que não caiam tão fácil no desvendar da história. Quando pensamos em bons filmes, imaginamos logo histórias mirabolantes e inéditas, porém, muito há para ser realizado em histórias simples quando contadas de maneira criativa, o que "911" faz.


O que chama atenção de primeira no vídeo é o trato imagético: todas as cenas são fotografadas de maneira brilhante. Unindo com os figurinos coloridíssimos e a direção de arte - marca de Singh -, entramos naquele cenário de época que remete ao clipe de "Judas". Gaga é surpreendida com vários acontecimentos, desde um homem que bate sua cabeça incontrolavelmente e duas figuras que surgem do alto da construção - representando Maria (note a roupa inteiramente branca) e Jesus (em uma cena o ator tem correntes de espinhos ao redor dos braços). Um adento importante: mais uma vez a Gaga escala atores negros para interpretar figuras sacras - obrigado por tudo "Like A Prayer".

Entre coreografia e locações cheias de detalhes, Gaga começa a ascender para os céus com uma auréola, contudo, a figura de Jesus a puxa de volta para a terra - e na queda, por um segundo, vemos o rosto da cantora acordando em outro lugar. A cena é referência a um momento igual do filme "8½" (1963), clássico do cinema italiano de Federico Fellini. E, olha só, é um filme autobiográfico que se baseia nos sonhos do seu realizador.

Outra grande referência para "911" é o trabalho de Alejandro Jodorowsky, como "El Topo" (1970) e "A Montanha Sagrada" (1973), e o que esses dois têm em comum com "A Cor de Romã" e "8½"? Todos são obras surrealistas, e "911" não poderia ficar de fora. A música é sobre um antipsicótico que Gaga toma, e discorre sobre doenças mentais: "Continuo repetindo frases de auto ódio / Já ouvi o suficiente dessas vozes / Quase como se eu não tivesse escolha". Gaga, presa naquele cenário inóspito, é seguida sem descanso pelas figuras que a observam sem que ela consiga fazer muita coisa. O que a princípio parece uma perseguição maléfica fica clara como o oposto no plot twist do vídeo.

Tudo aquilo era uma alucinação de Gaga. Ela sofre um acidente enquanto andava de bicicleta e todas as pessoas do seu sonho são representações hiperbólicas das figuras do local: Jesus e Maria, por exemplo, são os paramédicos que salvam sua vida - representada magistralmente no momento em que o homem puxa Gaga de volta à terra quando ela ia em direção aos céus. Com a interlude "Chromatica III" ao fundo, a edição mostra todas as peças e o quebra-cabeças se encaixando de maneira garbosa. E, inclusive, há um painel pintado dentro da alucinação com todo o mistério - assim como "Midsommar: O Mal Não Espera a Noite" (2019) desenha todo seu roteiro na abertura da película.


E muito mais que uma evocação do inconsciente, o roteiro pincela discussões sociais muito importantes, como por exemplo os transeuntes que passavam no momento do acidente: eles estão tirando fotos como abutres. E enquanto uma mulher negra chora com um homem morto no seu colo sem a menor assistência, os bombeiros estão assistindo a um homem branco e rico que parece não ter sofrido um arranhão. Prioridades.

Quando saímos da beleza estranha da alucinação e voltamos à realidade, o choque é bastante grande. Não só pela reviravolta, mas pela mudança de atmosfera, e isso acontece por causa da atuação de Gaga. A atriz, indicada ao Oscar pelo papel em "Nasce Uma Estrela" (2018), entrega a melhor performance de sua carreira. A dor física e emocional do seu papel, que aparentemente causou o acidente por não tomar seu remédio, é avassaladora, exalando seu pesar através da tela quase documentalmente. Talvez por meio da música, que é uma carta aberta e corajosa da artista sobre meus próprios demônios, Gaga consiga transpirar a mensagem em sua atuação dolorosa.

E também demanda perspicácia usar uma música tão dançante e instrumentalmente alegre para um tema tão complexo, e o vídeo acompanha a impressão. Todos os figurinos coloridíssimos adoçam os olhos do quão sufocante é a situação de Gaga, que abre mão de um clipe com 15 dançarinos e cortes energéticos a fim de transformar seu trabalho em uma verdadeira experiência. "911" é comercial o suficiente para agarrar as massas ao ter um ato final explicativo, e é artisticamente no ponto para deixar de ser só mais um e criar unicidade - que no fim das contas é a essência seminal de Gaga.

12 anos depois da sua estreia, Gaga já é sinônimo de videografia extravagante, consolidando sua persona no panteão dos artistas lendários que invadiram a MTV, como Michael Jackson, Madonna, Missy Elliot e afins. No entanto, com "911", a vencedora do Oscar atinge um novo auge artístico e relembra plateias como ela é uma fonte inesgotável de criatividade, aspecto que cada dia mais parece escasso. Seja pelo nível de produção absurdo ou pela extrapolação do conceito da canção, "911" é um daqueles trabalhos que merecem ser chamados de geniais e que devem em nada na corrente do cinema folclórico, simbolista e surrealista. Ela é, e sempre foi, o momento.


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Crítica: a cultura do cancelamento e como a Netflix estragou o ótimo “Lindinhas”

Atenção: o texto contém detalhes da obra.

Lá estava eu na minha passeada pelo Twitter quando vejo a hashtag "#CancelNetfix" nos Trend Topics, os assuntos mais falados do mundo no momento. Pensei que seria revolta de fãs por alguma série sendo cancelada pela plataforma ou algo do tipo, então continuei rolando a timeline. A hashtag permanecia no dia seguinte, junto com mais uma: "#Pedoflix". Okay, algo sério estava acontecendo.

E o que aconteceu foi: na última quinta (09), a Netflix lançou o filme "Lindinhas" (Mignonnes) no seu catálogo. O longa, uma produção francesa e senegalesa, estreou no Festival de Sundance no comecinho de 2020, recebendo ótimas críticas e o prêmio de "Melhor Direção" para sua realizadora, Maïmouna Doucouré - e a Netflix correu para adquirir os direitos de exibição internacional. Como podemos ver, até Sundance tudo estava indo bem, o problema começou quando a Netflix colocou as mãos no filme.

E a bomba estourou quando a plataforma decidiu o marketing promocional da obra: o pôster escolhido era bastante diferente da arte original. Como vemos abaixo, o cartaz francês é colorido e celebrativo, mostrando suas protagonistas em posição de alegria e liberdade, o que quase todo coming of age quer exalar na tela. No entanto, a arte feita pela Netflix coloca as meninas em um figurino curtíssimo e poses provocantes. Elas, no filme, têm 11 anos. Juntamente com o nome do filme, "Lindinhas", a falta de contextualização da cena em questão (que está no filme) gerou revolta na internet, e com muita razão. Nem é preciso ser um entendedor de semiótica para ver a discrepância entre as duas imagens e o que elas querem vender - e, ironicamente, a Netflix fez exatamente o que a obra critica.

Pôster original francês X Pôster internacional feito pela Netflix

A revolta virtual levou a Netflix a soltar uma nota de desculpas, dizendo: "Nós estamos profundamente arrependidos pela arte inapropriada que usamos para 'Lindinhas'. Não é correto - e nem representa o filme. Nós atualizamos as artes e descrições do filme". É meio alarmante pensar que a arte passou por diversas pessoas e departamentos e ainda assim conseguiu ver a luz do dia sem ser barrada. A retratação da plataforma demonstra que reivindicações online são, sim, efetivas, e a vida poderia seguir. Mas não seguiu.

O terreno já estava capinado e adubado para o que chamamos de "cultura do cancelamento": a Netflix estava permanentemente maculada pelo júri da internet, acusada de promover a pedofilia (?). Até o momento que escrevo este texto, o filme está sendo massacrado pelo público, com nota 2.1/10 no Imdb e um assustador 0.6/10 no Metacritic, o extremo oposto dos comentários da crítica. Tive que parar tudo e assistir ao filme para saber se o cancelamento em massa era fruto de justiça ou pura histeria coletiva - e, confesso, só soube da existência da fita por meio da turba com foices nas redes sociais.

A película gira ao redor de Aminata (Fathia Youssouf Abdillahi), uma menina recém-chegada em Paris com a família, vindoura do Senegal. Eles agora moram em um dos bairros pobres da capital, e Amy carrega o peso da religião de sua família nas costas. Desde sempre ela ouve como a mulher deve respeitar e obedecer seu marido, e que suas vidas orbitam ao redor do matrimônio. Aminata olha tudo com cara de que concorda com nada daquilo. Na nova escola, ela conhece um grupo de meninas que, apesar de dividir o corpo geográfico com Amy, vive em um universo totalmente diferente: elas usam roupas curtas, não andam "na linha" e possuem um grupo de dança - chamado de "As Lindinhas". Os olhos de Amy se enchem ao ver a realidade delas.

Aqui está um dos pilares fundamentais do coming of age, quando uma protagonista quer se encaixar em um mundo que não é seu - imediatamente lembrei do ótimo "Garotas" (2014), da proprietária do cinema francês contemporâneo, Céline Sciamma. Ambos, além de se passarem no mesmo lugar, anseiam ir até o cerne da relação de um grupo de meninas que crescem a partir dos laços ali criados.

Dentro de casa, o dilema de Amy é com o pai: ele chegará do Senegal com outra esposa - a cultura permite a poligamia dos homens. Ela vê como a mãe tenta esconder a dor de saber que o marido escolheu outra mulher e como é irrelevante para ela seus sentimentos sobre o fato. Sua tia empurra a ideologia da religião à força na menina, sendo preparada para "virar uma mulher" (a partir da menstruação), o que apavora Amy.


E lá está ela: sufocada entre duas culturas tão opostas e tão fortes. Uma enclausura a figura feminina enquanto a outra a liberta, contudo, essa liberdade extrapola os limites do bom senso - e o roteiro critica os dois extremos. A fita não tem rodeios em filmar como as meninas estão cada vez mais cedo abraçando uma cultura que as sexualiza. Por meio de videoclipes e Instagrans, elas estão a um clique das selfies de figuras como Kim Kardashian e Kylie Jenner, a um clique de videoclipes como o de "WAP" da Cardi B e Megan Thee Stallion, com seus corpos volumosos em roupas minúsculas e reveladoras (e totalmente dentro dos seus direitos absolutos de existirem, não pense o oposto).

Com o montante de atenção e apreço, é aquele tipo de corpo e life style que é o desejado, principalmente para garotas, que sofrem desde sempre a pressão por uma beleza inatingível. Esse tipo de conteúdo é apropriado para garotas daquela idade? Quem deve fiscalizar isso? Importante pontuar que toda a produção ao redor das atriz mirins (que arrasam) foi feita com supervisão dos pais, apoiando as discussões do texto. "Eu explicava tudo que estava fazendo e as pesquisas que fiz antes de escrever a história. Fui muito sortuda que os pais das meninas também eram ativistas, estão estávamos todos no mesmo lado. Naquela idade, as meninas já tinham visto aquele tipo de dança. Qualquer criança com um celular pode achar esse tipo de imagem nas redes sociais hoje em dia", disse a diretora sobre a motivação por trás do filme.

Amy e suas novas amigas treinam exaustivamente para um concurso de dança que acontecerá em breve. Enquanto assistem a vídeos no YouTube, vão aprendendo novos passos para garantir o prêmio - e o filme pincela em vários momentos o quão sexualizado será o produto final, todavia, choca quando vemos a coreografia executada no concurso. É desconcertante ver menininhas de 11 anos rebolando e fazendo gestos sexuais, aprendidos nos smartphones, e Doucouré faz questão de mostrar a reação da audiência presente diante do espetáculo horrendo: todos vão de incredulidade a total assombro. Uma mãe na plateia cobre os olhos da filha.

Então "Lindinhas" levanta questionamentos urgentes: de quem é a culpa por tudo isso? É das meninas, que não possuem discernimento na malpropriedade da dança? É da facilidade de acesso do mundo moderno, com conteúdos infinitos nas mãos de quem possuir um aparelho conectado com a internet? É dos pais das meninas, que não tomam cuidado com o tipo de material consumido pelas filhas? É da sociedade, que incentiva cada vez mais cedo a "adultizar" crianças e adolescentes em cima de salto alto, croppeds e batons?

Não dá para apontar o dedo para um culpado: todos nós somos. As meninas são as últimas a serem responsabilizadas por não possuírem base sólida para entender a dimensão de seus atos, e isso é reflexo, também, da falta de educação sexual em casa e nas escolas. Garotas são distanciadas ao máximo de qualquer debate na temática, ilustrado na cena em que uma delas encontra uma camisinha usada e as outras surtam achando que ela, só por ter tocado, "pegou AIDS". Com discussões acerca, as meninas se reforçariam de armaduras para se proteger, afinal, vivemos na cultura do estupro. Ao esconder o sexo da vida delas, a sociedade acaba fortalecendo a postura predatória do homem.


O roteiro vai superficial e acertadamente na figura dos pais das meninas - com exceção da família de Amy. Não há muita noção dessas figuras, como se elas se educassem sozinhas, uma triste realidade. E como culpar esses pais tão pobres, que não possuem tempo de fiscalizar com afinco a educação dos filhos quando devem se desdobrar para trabalhar e sobreviver? Uma delas fala que basicamente não vê mais os pais, criando-se na vida, nas ruas. O sistema é cruel demais e são camadas em cima de camadas que vão piorando a situação daquelas garotas.

Já percebemos que o roteiro de Doucouré não apenas coloca no ecrã um leque de problemáticas ao redor da vida de crianças e adolescentes diante da sexualização (com alguns exageros que poderiam ser lapidados) como também introduz questionamentos que vão além da tela. Então por que tantos comentários odiosos? O que justifica uma nota 0.9 para o filme? A resposta está no olhar de patrulha. Esse conceito - que tive contato por meio da maravilhosa cantora Mahmundi - é sobre como estamos 24h por dia esperando um deslize de alguém na internet e como levamos esse deslize para níveis desproporcionais a fim de recebermos o certificado de "desconstruidão". Como a Netflix errou feio no marketing de "Lindinha", a histeria coletiva deitou e rolou.

Em momento n-e-n-h-u-m o longa glorifica o comportamento das meninas, pelo extremo contrário: é um filme bastante triste e desconfortável sobre a lamentável situação que resume tão bem a realidade do lado de cá. Lembra da Melody? A cantora mirim de (agora) 13 anos viralizou nas redes, e é só você entrar no Instagram dela para notar uma imagem longe de alguém de 13 anos. Muita revolta já aconteceu pela forma como a carreira da menina - gerenciada pelo pai - é cunhada na sexualização, e isso é só um exemplo dentro de milhares, famosos ou anônimos. Já viu as fotos de adolescentes com seios marcados por baixo das camisas e muita maquiagem e pensou "Nossa, eu nessa idade estava brincando" enquanto eles posam em fotos sensuais ou adultizadas? Pois é. É uma montanha-russa o desenvolvimento de Amy: ela começa brincando com o irmão, passa pela adultização que desmorona seu emocional e termina em uma das cenas mais lindas do ano, quando finalmente volta a ser criança.

Entrando na hashtag "#Pedoflix", vi váaaarios tweets com a cena do concurso e legendas inflamadas sobre como a Netflix reforça a pedofilia com o filme. É um desserviço (para dizer o mínimo) pegar uma cena, retirar de todo o seu contexto e postar em rede social para ganhar likes e levar para frente uma ideia que não existe. É muito apelativa a facilidade de dar RT em comentários assim, afinal, é mais prático assistir a um vídeo de 1 minuto e cunhar uma opinião do que assistir aos 96 minutos de duração. Em tempos que tanto se fala em "fake news", tirar conclusões a partir de tweets assim é o mesmo que ler uma manchete e afirmar sem ler toda a matéria (e se ela é, de fato, verdade). Esse é um dos enormes males da maneira como consumimos internet atualmente: tomamos como verdade sem nos aprofundarmos no tópico.

Maïmouna Doucouré, que obviamente não teve poder algum na forma como seu filme foi inicialmente vendido, disse em entrevista que que se chocou com o número de ameaças de morte que recebeu com a explosão do filme pós-Netflix. Ela não foi consultada sobre as estratégias de marketing adotadas e recebeu um telefonema do próprio CEO da plataforma, desculpando-se pelo ocorrido. No entanto, era tarde demais. O fenômeno ao redor de "Lindinhas" é um afinco estudo sobre a cultura do cancelamento e como as pessoas estão ávidas para eleger o anticristo da semana e derramar ódio sem total embasamento. Se a Netflix errou ao criar a arte inadequada para a obra, é um erro pequeno perto da narrativa criada contra o filme, que culpabiliza (e ameaça) não apenas uma indústria, mas pessoas reais como eu e você. "Lindinhas" encontra precisão enquanto complexa e desafiadora arte contra o patriarcado e um bom objeto de estudo (apesar de involuntário) sobre a criação de percepções na internet em tempos de redes sociais.

Antes de cancelar qualquer coisa, certifique-se.


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Crítica: “Host”, o primeiro terror da quarentena, e a pior chamada já feita no Zoom

Um filme de terror com a atual pandemia do COVID-19 não seria algo que demoraria a aparecer, tinha certeza – tragédias e dramas reais são terrenos férteis para a ficção do gênero –, mas jamais imaginei que teríamos um pronto durante a pandemia. “Host” foi lançado no último dia 30 na plataforma Shudder e aproveita o momento não apenas para gerar um filme, mas também para entreter quem está na mesma situação que seus personagens - trancafiados dentro de casa como uma pessoa de caráter que respeita o isolamento social.

“Host” conta a história de um grupo de amigos que, assim como eu e você, tentam estreitar a distância por meio de videoconferências em tempos de distanciamento físico. O ecrã da película é a tela de um computador, mais especificamente através do aplicativo Zoom – que viu sua popularidade atingir níveis jamais imaginados desde o início da quarentena –, então sim, “Host” é um autêntico “browser horror”. Esse “sub-subgênero” se trata de obras que têm o computador como local dos acontecimentos; alguns exemplos: “V/H/S: Viral” (2014), “Cam” (2018); "Buscando" (2018); “The Den” (2013, o melhor disparado de todos do formato); e, é claro, “Amizade Desfeita” (2014).


O browser horror é o que há de mais moderno no impacto da tecnologia no ato de contar uma história. Porque não se trata de elementos técnicos – a tecnologia atual é capaz de construir universos inimagináveis por meio de efeitos especiais –, e sim de transformar a própria tecnologia. Ela é a própria história. E chamo de “sub-subgênero” porque ele é uma ramificação de um subgênero bem famoso (e saturado) do terror: o found-footage, aquelas fitas que simulam uma gravação real – os “A Bruxa de Blair” (1990) da vida. O que faz do browser horror uma novidade interessante é o ineditismo de seu formato – ainda temos poucos nomes lançados –, porém, com certeza, será mais uma artimanha que cairá no desgaste. Mas isso é uma conversa para outra hora.

A comparação de “Host” com “Amizade Desfeita” é inevitável. Realmente me questionava durante a exibição como fica a questão de direitos autorais, porque “Host” é basicamente uma cópia de “Amizade Desfeita”, só mudando o aplicativo usado (em “Amizade” era o Skype) e o pontapé do horror. De resto, tudo igual. E nem aponto isso como um defeito, é apenas uma contestação. Ou não, talvez seja um defeito, afinal, “Host” em momento algum consegue soar como algo inédito ou fresco – já vimos tudo aquilo antes e da mesma forma.


Todavia, temos que levar em consideração vários elementos. Ao contrário de “Amizade Desfeita”, distribuído pela gigante Universal, “Host” é um filme independente. Tudo o que se passa na frente das “webcams” (entre aspas porque obviamente não eram câmeras de notebooks) foram montados e gerenciados pelos próprios atores, incluindo os efeitos visuais como cadeiras sendo arrastadas pelo vento ou objetos voando de prateleiras. O trabalho é bem aquela parceria com amigos em que cada um faz sua parte para sair o todo, e o todo funciona.

Mas focando no roteiro – co-escrito pelo diretor, Rob Savage. Cinco amigas (há um sexto amigo, mas ele sai da chamada antes do rolê começar de fato) decidem fazer uma sessão espírita com uma médium. Ah, gente, vamos fazer o que hoje? Que tal jogar Gartic? Ou melhor, que tal uma sessão espírita? Vamos! Uma das regras dadas pela médium é que os espíritos não podiam ser desrespeitados, caso contrário, algo de ruim poderia acontecer. Uma das meninas finge que ouviu a presença de um suicida, e é claro que a brincadeira vai ser o chamariz da ruína de todos. Quem nunca em um filme de terror fez o oposto do que era dito?

Uma das coisas que mais gostei em todo o roteiro é que ele não apela para qualquer tipo de drama prévio, ou trauma, ou carga emocional, ou mistério do passado. A história começa e termina bem ali, sem precisar se apoiar em qualquer outra coisa, e isso é bastante difícil de ser realizado. É verdade que o filme é um média-metragem – possui apenas 55 minutos –, o que obviamente diminui espaço para erros, no entanto, ainda é um bom sucesso um arco absolutamente construído em 1h. As relações das personagens não possuem qualquer relevância além do fato de que elas são amigas, e ponto final. Todo o resto necessário para o entendimento é construído na tela.

E, sendo curto, o caos não demora a acontecer; e por ser um filme tão familiar, sentamos exatamente para ver espíritos sem pena dos pobres personagens. Então, sim, temos jump scares. Eu, este assíduo amante do terror, já comentei inúmeras vezes como os sustos são uma bengala que enfraquece o gênero ao ser usada de maneira gratuita – tanto que o público em geral baseia a qualidade de um filme de terror na quantidade de sustos que ele possui, e os estúdios têm total ciência disso, por isso somos maltratados com bombas como “Annabelle” (2014) e similares. Contudo, no caso de “Host”, os sustos são (na maior parte) bem pensados. Tirando o último deles, que fica gritante quando acontecerá, os sustos funcionam por aliar imprevisibilidade (na medida do possível, claro) com a qualidade do que nos assusta. Há uma cena na escada que me fez pular da cadeira, e, depois de tantos e tantos filmes de terror, me assustar é difícil.


Mas não só de “Amizade Desfeita” vive “Host”. O filme é uma pequena colcha de retalhos de vários nomes do terror, usando referências charmosas. Por exemplo, há uma cena em que uma das meninas joga um pano no ar e ele fica no formato do espírito, clara referência ao fantasma clássico de lençol – inclusive há essa cena em “O Homem Invisível” (2020). Em outro momento, uma das personagens joga farinha no chão para ver os passos do espírito, igual em “Atividade Paranormal” (2007). O espírito, inclusive, andou assistindo à franquia e adorava abrir todas as prateleiras das cozinhas com a mesma violência de Toby. E pessoas sendo arrastadas de um lado para o outro? Temos sim.

Foi muito bom ver, também, o cuidado da produção em não usar a pandemia como um cenário sem peso para o roteiro. As personagens comentam como está sendo o distanciamento e o que fazem nesse “nOVo NoRMaL”, além de cumprimentarem as pessoas fora do isolamento com uma batidinha de cotovelos – fiquei pensando como, daqui a 50 anos, poderemos relembrar com apuro como foram esses meses tão marcantes nas nossas vidas ao assistir ao filme. Mas o melhor é na sequência em que uma das garotas, ao sair de casa visando fugir do espírito, coloca sua máscara e corre para a rua. A menina estava sendo seguida por uma entidade sobrenatural assassina e MESMO ASSIM lembrou de colocar a máscara, pois já bastava uma ameaça para matá-la. Hoje não, corona vírus. Você, que diz que saiu de casa e esqueceu a máscara, não tem desculpa, dê meia volta e vá buscá-la.

“Host”, o primeiro terror da quarentena, tem tudo o que a ela precisa: é um filme de terror curto, divertido, bem realizado e com sustos para entreter a plateia. Além disso, se passa na tela de um computador, e com os cinemas fechados, temos a imersão completa quando deixamos de lado nossos desktops para darmos lugar à tela de trabalho amaldiçoada das personagens. Se não é inédito e beira o plágio, aproveita o momento para ser um filme certo na hora certa, porque, há quase meio ano trancados dentro de casa, tudo o que queremos são alguns minutos de espairecimento, e nada melhor do que espairecer com demônios sanguinários no Zoom. Não vale mais reclamar daquela aula vista pelo aplicativo, as pobres meninas tiveram uma sessão bem pior.


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