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Crítica: “Parasita” balanceia uma das melhores lutas de classe do cinema com humor e acidez

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Filme Internacional
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando o Festival de Cannes rolava em maio, um filme era sempre pontuado na lista de melhores da competição: "Parasita" (Parasite), do diretor Bong Joon-ho, mais famoso pelo sensacional "O Hospedeiro" (2006). Não foi grande surpresa quando ele se tornou o primeiro coreano a vencer a Palma de Ouro - o prêmio de "Melhor Filme" do festival -, e já abrindo os caminhos para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional".

"Parasita" se debruça em cima da família Kim: o pai, Ki-taek (Song Kang-ho, muso de Joon-ho e um dos maiores coreanos na história); a mãe, Choong-sook (Jang Hye-jin); o filho, Ki-woo (Choi Woo-shik); e a filha, Ki-jung (Park So-dam). Eles moram num minúsculo apartamento quase no subsolo e vivem em nível de pobreza. Dobrando caixas de pizza para sobreviver, uma oportunidade brilhante surge quando Ki-woo é convidado para ser professor de inglês em uma luxuosa mansão.

A riquíssima família possui a mesma configuração: o pai, Mr. Park (Lee Sun-kyun); a mãe, Yeon-kyo (Cho Yeo-jeong); a filha e aluna de Ki-woo, Da-hye (Jung Ji-so); e o caçula, Da-song (Jung Hyun-joon). Os incontáveis metros quadrados da propriedade rapidamente viram um terreno fértil para a ascensão social dos Kim: eles vão, um a um, se introduzindo dentro da casa.

Achei curioso perceber as similaridades básicas entre "Parasita" e "Assunto de Família" (2018): ambos asiáticos ("Assunto" é japonês), ambos vencedores da "Palma de Ouro" consecutivamente e ambos retratos da má distribuição de renda na Ásia. Tanto a família de "Assunto" como a de "Parasita" buscam meios à margem da lei para sobreviver e lutar contra a miséria.


A diferença elementar entre os longas é sua abordagem: enquanto "Assunto" é fundamentalmente dramático, seco e sem rodeios, "Parasita" traz a mesma veia narrativa de vários filmes de Joon-ho: uma mistura desconcertante de comédia com drama. Um estilo bastante característico, é fato que nem sempre funciona: quando Joon-ho abraça a comédia com viés comercial ou expositivo demais, vira um desastre - vide "Okja" (2017). Não por acaso, seu maior mal passo é exatamente o que vai até Hollywood.

Quando reside ali mesmo na Coreia do Sul, a tonalidade é bem pontuada - como "Mother - A Busca Pela Verdade" (2009) . "Parasita" não fugiu à regra. Não pense que esse fusão com comédia seja um stand-up na tela: o humor de "Parasita" está no absurdo de suas situações. Em inúmeros momentos a obra me remetia ao trabalho de Yorgos Lanthimos, que também usa da mesma fórmula para construir seus universos únicos. Assim como em "A Favorita" (2018), "Parasita" também entope a duração com sarcasmos inteligentes, e usa a música clássica em contraste com a porraloucagem que está acontecendo, por exemplo.

A narrativa da película é uma montanha-russa: o início é bastante lento, uma subida gradual dentro da trama que desde ali já prometia uma queda vertiginosa. A pegada comédia está pungente, com sequências que em nada acrescentam no plot além de pincelar a tonalidade cômica da coisa - como a cena do bêbado fazendo xixi ao lado da janela da família. Quando o espectador entra na mansão dos Park, o drama ganha mais espaço pelas pautas impostas de maneira muito sutil.

É claro que o mote principal de "Parasita" é uma família se aproveitando (e forçando) situações para sua ascensão econômica - e toda a potência da fita está bem aqui -, contudo, o filme expõe um viés que, pelo menos acho, não é um consenso ou uma ideia coletiva no imaginário de quem habita esse lado do mundo: as desigualdades absurdas do povo ao redor do Mar do Japão.


Essa abordagem é bem mais explícita em "Assunto de Família" - provavelmente pela escolha de tom -, mas "Parasita" só caminha porque é uma crítica direta ao capitalismo. Disse que talvez a ideia central do filme não esteja impressa em nossas cabeças porque, ao pensarmos no eixo Coreia-Japão, imediatamente vislumbramos tecnologias e avanços, o que, como em basicamente qualquer país capitalista, não é uma verdade concretamente partilhada entre seus cidadãos.

Pondo em outras palavras, não imaginava que estes países pudessem ser tão desiguais. Em incontáveis momentos consegui enxergar a mesmíssima história se passando aqui mesmo no Brasil - o filme possui universalidades para dar e vender, o que consegue exportar sua história para todos os cantos do planeta - quanto mais desigual for sua realidade, mais identificável será o filme.

É bastante difícil falar do enredo de "Parasita" e não estragar a experiência de quem ainda não viu. Não só por questões de spoilers, mas também porque esse é um filme de sensações - e elas são fartas e variadas. Você vai do êxtase absoluto ao choque completo - o último ato pega elementos do terror e leva a bizarrice social aos extremos.

No entanto, o filme renderia uma análise longuíssima no que tange a impressão da desigualdade social na Sétima Arte. Aliás, esse tema é central na filmografia de Joon-ho - todos os seus filmes, em algum nível, tocam no assunto -, porém nunca com tanto sucesso como em "Parasita". O cuidadoso texto ainda tem a audácia de carregar um existencialismo puro quando Ki-taek, no auge da bagunça do plano da família, fala que a única forma de não falhar é não ter um plano - o que ilustra a forma como todos estão jogando para cima seus desejos e esperando que caiam de volta.


O obscurantismo vai engolindo a tela enquanto mergulhamos mais profundamente nos meandros das duas famílias, duas configurações tão parecidas mas tão opostas ao mesmo tempo: o exemplo maior é na sequência da chuva, quando os Parks estão confortáveis em sua sala com paredes de vidro e os Kims encontram seu apartamento inundado - notem como a fotografia evidencia a descida dos protagonistas durante a corrida até a casa, uma metáfora visual das junções capitalistas, quando a periferia mora em um nível muito abaixo das camadas mais abastardas. A chuva escorre pelas mansões e se acumula nas favelas. Quem sofre com a chuva é o pobre.

Uma das expectativas iniciais que sofri com o filme partiu do seu título, e, felizmente, foi uma expectativa morta. Não pense o contrário, "Parasita" é um título que não poderia ser melhor aplicado do que no presente filme, contudo, poderíamos imediatamente pensar que a família Kim seria a tal parasita, sugando dos Parks.

Isso não deixa de ser verdade - eles realmente se aproveitam da quase burrice dos patrões -, no entanto, o roteiro é pra lá de competente ao não permitir que habite um binarismo rasteiro e preto no branco. Os Parks, em alguns aspectos, chegam a ser odiáveis - vide a cena do clímax que desencadeia o final -, o que até entrega a chancela para a plateia ficar totalmente do lado dos Kims, que sempre possuíram motivações muito verdadeiras. Querendo ou não, eles são os mestres de cerimônia desse insano picadeiro. O fato é: não existem vilões no filme - não que, por isso, os personagens sejam mocinhos e não haja atitudes absolutamente condenáveis (na verdade o filme é uma sucessão delas) -, mas todos são vítimas do sistema, é ele que os molda naqueles formatos reprováveis. O jogo é mais culpado que os jogadores.

"Parasita" é um dos cumes de 2019 quando cria uma sessão bizarramente divertida sem, jamais, em momento algum, deixar com que o estudo social saia do ecrã. Com um lindo malabarismo de gêneros, o filme enfia a faca em um sistema que fundamentalmente existe ao por um camada acima de outra, o que tira a dignidade do ser humano, predestinado a cometer ações terminais que comprovam o insucesso da separação entre burguesia e marginalizados. Talvez a melhor luta de classe que tivemos no Cinema nessa década - e aqui estamos falando tanto no sentido figurado como no literal.

Crítica: “Dor & Glória” é uma aborrecida jornada sem o reencontro criativo de Almodóvar

Pedro Almodóvar sempre está nas listas de melhores diretores nos cinéfilos mundo afora, e felizmente. O espanhol provavelmente deve carregar o título de maior diretor gay do Cinema moderno, sem jamais, nos quase 40 anos de carreira, deixar os tópicos LGBTs fora de sua filmografia.

Só com o recorte desse século, Almodóvar, vencedor de dois Oscars, carrega alguns dos melhores filmes do período, como as obras-primas "Fala Com Ela" (2002), "Má Educação" (2004), "Volver" (2006) e "A Pele Que Habito" (2011), o que justifica o evento que é o lançamento de qualquer um dos seus filmes. Não foi diferente com "Dor & Glória" (Dolor Y Gloria).


Estreando diretamente na competição principal do Festival de Cannes 2019, "Dor & Glória" segue Salvador Mallo (Antonio Banderas, um dos ícones do cinema almodovariano, estando presente em oito de seus filmes), um diretor de cinema em declínio. Numa depressão pessoal e artística, ele reencontra algumas figuras chaves de sua vida, o que o faz questionar como chegou até ali e, principalmente, como vai ser dali para frente.

A narrativa se divide basicamente em dois córregos, o presente e a infância de Salvador, nos anos 60, com sua mãe sendo interpretada pela musa mór de Almodóvar, Penélope Cruz (criminalmente subutilizada aqui). Nesse vai e vem - que inclui até a cantora Rosalía num papel coadjuvante -, Salvador decide reatar os laços com Alberto (Asier Etxeandia), o protagonista de um dos seus primeiros - e mais bem sucedidos - filmes. Separados há 30 anos graças a uma briga, o retorno é conturbado, principalmente pela parte de Salvador.


Cheios de problemas físicos e emocionais, o diretor encontra dificuldade em conseguir a simpatia do ex colega porque, durante décadas, massacrou o trabalho que Alberto fez em seu filme, uma impressão finalmente mudada. É ele, também, que abre alas para que Salvador entre no mundo das drogas, uma via de escape com prazo de validade curtíssimo.

Devo confessar a você, leitor, que relutei e me questionei bastante se escreveria ou não sobre "Dor & Glória". Almodóvar é um dos meus diretores favoritos e estava bastante ansioso para o sucessor de "Julieta" (2016), que mesmo sendo um filme competente, é nada memorável. As críticas internacionais teciam elogios aos baldes para o novo longa e tinha tudo para que o jejum de quase 10 anos sem uma fita magistral finalmente tenha chegado ao fim - "A Pele Que Habito" foi o último grande Almodóvar.

Só que não demorou muito para perceber que o jejum continuaria. E os motivos foram vários. Um dos melhores diálogos da película, que na maior parte do tempo é uma aula de metalinguagem, diz que o maior ator não é aquele que sabe chorar diante da câmera, mas o que consegue conter as lágrimas. Fiquei com a frase na cabeça e, enquanto matutava, percebi que a afirmação era uma definição fidedigna para o próprio filme.


Percorrendo pelas dores e glórias de Salvador, a produção parece que está prendendo a emoção em todas as cenas - como se o filme estivesse com medo de ser vulnerável. Há uma camada grossa de letargia sobre o ecrã, e a sensação primordial que me abatia era a de anestesiamento; conseguia produzir sentimento nenhum além do tédio. E a conclusão que cheguei é a mais óbvia possível.

O problema está na composição de Salvador. Bandeiras está bem no papel - nada extraordinário como o prêmio de "Melhor Ator" em Cannes poderia sugerir -, todavia, ele foi moldado para ser a versão cinematográfica do próprio Almodóvar. É só olhar para o pôster: o protagonista está na frente de sua enorme silhueta, que é parecidíssima com a do diretor (isso se não for realmente a sombra de Almodóvar).

"Dor & Glória" sofre do mesmo dano de "Roma" (2018): é particular demais. São construções que fazem muito mais sentido para quem está as realizando, sem um apelo que permita um apreço por parte da plateia - não acho que seja necessário afirmar o elementar, mas sim, estou cozinhando essas afirmações dentro da deliciosa esfera da subjetividade, você pode assistir ao mesmo filme e se sentir tocado como nunca na vida. O pequeno Salvador escrevia cartas para os analfabetos de sua vila, assim como a mãe real de Almodóvar, e essa escolha de roteiro só tem um peso concreto para ele - por possuir um laço afetivo ali. Salvador é um personagem que não denota simpatia pelos traços introspectivos, frios e distantes, um confusão emocional que está presa dentro da cabeça e nada mais.

E tome diálogos que evoquem o amor pela arte e monólogos intermináveis que significam coisa nenhuma para ninguém além de quem está o evocando, e, quando mal pisquei, estava mais interessado no design de produção super bonito e colorido. A superfície de "Dor & Glória" é bem mais atraente que seu conteúdo, um reflexo muito bom para exemplificar o quão raso é seu texto.


Outro ponto gritante é como Almodóvar faz um amontoado de reciclagens de diversos temas já explorados dentro de sua filmografia. Artista em declínio? O homem virando deus através de sua arte e tendo uma mulher como secretária e (quase) serva? "Abraços Partidos" (2009). A exposição da homossexualidade na infância? Um filme dentro do filme? Reencontros de ex amores fracassados? "Má Educação". O ato de ser mãe na terceira idade e como a aproximação com os filhos é dificultada? "Volver". Consumo de drogas que reflete a marginalização de LGBTs? "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). E por aí vai.

"Dor & Glória" atira em inúmeras fórmulas já gastas e acerta em nenhuma. É bem verdade que, com o passar dos anos, Almodóvar retornou em tópicos anteriores, no entanto, ele sempre se superava, indo ainda mais longe que anteriormente e entregando mais camadas de profundidade daqueles que são os temas que fizeram seu cinema ser tão celebrado. "Dor & Glória" passa longe da mesma fortuna. É só ver "A Pele Que Habito", por exemplo, uma revolução dentro da carreira do diretor quando seus tópicos são levados a caminhos tão diferentes e inéditos dentro de seu próprio mundo. O rei espanhol talvez precise de uma renovação que quebre as paredes da caixa que ele mesmo se colocou, senão continuará sendo uma repetição de si mesmo.

Almodóvar, no desejo de mostrar como o Cinema salvou a sua vida, realiza um filme estritamente íntimo, o que ceifa a produção através de seus personagens unidimensionais, tramas de perfumaria e uma narrativa que evoca o sono. O todo deixa um gosto ainda mais árido quando até mesmo dentro da filmografia almodovariana há homenagens à Sétima Arte mais vívidas e verdadeiras, sem a chatice que é mais um filme sobre crise artística e a jornada para o reencontro criativo que em nada enriquece os 40 anos de Almodóvar nas salas escuras mundo afora.

Crítica: “Fronteira” mistura realismo social com bizarra fantasia e o resultado é magnífico

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

A Suécia é um dos países mais laureados no Oscar, vencendo três vezes o prêmio de "Melhor Filme Estrangeiro" - e sendo indicado outras 13 vezes. O cinema no país, fortalecido por Ingmar Bergman na década de 60 (todos os três Oscars do país foram para filmes dele), possui uma indústria fortalecida e fonte de obras impressionantes. Foi por isso que me surpreendeu o fato de "Fronteira" (Gräns/Border), o selecionado para o Oscar 2019, ter sido ficado de fora em "Filme Estrangeiro" - o país recebeu indicações nos dois últimos anos consecutivos.

O curioso é que "Fronteira", mesmo não estando nem entre os nove semifinalistas, concorreu ao careca dourado de "Melhor Maquiagem & Cabelo" - merecidamente, devo pontuar, principalmente se tratando de uma produção longe de Hollywood (ou você já se esqueceu que "Esquadrão Suicida" levou essa mesma categoria?). Não levou o prêmio, mas pelo menos pôde estar na maior premiação do mundo. A fita é baseada no conto de mesmo nome de John Ajvide Lindqvist, autor do livro que gerou o fabuloso "Deixa Ela Entrar" (2008), então é garantia de uma história boa, no mínimo.

O longa estreou no Festival de Cannes 2018, já conseguindo ser eleito "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar" - disputa paralela à Palma de Ouro, com filmes menores e mais, digamos, ousados. E "ousadia" é uma palavra que pode definir bem "Fronteira". O longa conta a história de Tina (Eva Melander), uma policial que trabalha na fronteira sueca. Ela é valiosa no serviço por possuir um dom inédito: consegue cheirar quem estiver fazendo algo ilícito. Seus amigos de trabalho não entendem muito bem como ela consegue, mas seu faro é infalível.


Contudo, não é sua habilidade que chama mais a atenção, é sua aparência. Tina é, como ela bem se classifica, feia. Seus traços são estranhos e incapazes de passarem despercebidos; ela não consegue nem ir ao supermercado sem notar pessoas a encarando. O filme não se utiliza de sutilezas nessa abordagem, colocando a câmera colada no rosto da protagonista e fazendo com que a plateia sofra do mesmo mal: ao mesmo tempo que achamos estranho, não conseguimos desviar o olhar.

Esse é o primeiro viés da produção. Pode soar muito piegas quando posto em palavras, mas o filme coloca em cheque a vida em sociedade de pessoas feias. Somos criaturas que colocamos a imagem em absoluto primeiro lugar, afinal, é a partir dala que criamos identidade. A formação do nosso eu enquanto ser social começa quando nos vemos no espelho e tomamos consciência daquilo que visualmente somos. Não estou dizendo que o exterior é mais importante que toda a nossa bagagem e características psicológicas, porém, é a imagem o cartão de visita de quem somos.

Tina mora com um namorado que está mais preocupado com seus cães de briga do que com ela. A relação é fria e asséptica, claramente não existindo uma ligação entre eles - o máximo de proximidade é a curta conversa no jantar sobre o que cada um fez durante o dia. Deprime bater a cara no óbvio: Tina só aceita aquela relação porque é a única que ela acha capaz de ter. Quem mais namoraria com alguém como ela? "A gente aceita o amor que achamos que merecemos", já dizia "As Vantagens de Ser Invisível" (2012), e era aquele namorado postiço que Tina achava merecer graças à sua aparência.


"Fronteira" não é um filme sobre bullying - como "Extraordinário" (2017), que também usa maquiagem para deformar o rosto de seu protagonista a fim de discutir sua inserção no meio. Tina já está acostumada com a atenção que não pediu e tenta fincar seu lugar no mundo, tendo amigos de trabalho e vizinhos para dar bom dia quando passa. Não por acaso, essa "condição" é fomentadora da sua própria personalidade: retraída, seca, enclausurada.

Quase não vemos a protagonista sorrindo ou fora do tom absolutamente profissional que adota durante o expediente - já complicado por ter que lidar diretamente com pessoas, e pior, com pessoas cometendo infrações/crimes. O grande baque do primeiro ato está quando Tina fareja um cartão de memória muito bem escondido por um executivo lustroso - a trama paralela ao descobrimento de Tina consigo mesma. O objeto está cheio de pornografia pedófila, o que abre uma operação da polícia para prender quem quer que esteja por trás daquilo. Tina, claro, é recrutada para o serviço. Pode passar despercebido, mas uma protagonista usando suas habilidades contra o crime? "Fronteira" é um filme de super-herói.

É sensacional a maneira que o roteiro aproxima dois mundos gritantemente distintos: de um lado temos Tina com seu dom sobrenatural; do outro, um problema chocante e real. A caçada policial produz tensão e interesse na plateia sem grande esforço, mesmo com Tina inicialmente não muito inclinada a participar - ela ainda deve continuar usando seu olfato na fronteira. É então que surge Vore (Eero Milonoff), um homem parecido com Tina. Ambos possuem traços faciais e postura semelhantes, e Tina, mesmo farejando a culpa nele, não consegue descobrir a fonte do delito.

O encontro vai desencadear uma série de questionamentos na cabeça da protagonista, que nunca viu alguém parecido com ela e jamais falhou em apontar a culpa de alguém. Ela vai atrás do homem para descobrir quem ele é e todas as certezas de Tina vão sendo derrubadas. Ele come carne crua e insetos, possui uma estranha ligação com animais (assim como Tina) e possui órgãos sexuais femininos - o oposto dela, que tem órgãos masculinos.


Os níveis de condução sobre o campo do fantástico ganha novas proporções no decorrer da fita, sem medo de soar bizarro. A cena de sexo entre aqueles dois estranhos seres é desconcertante e propositalmente nada bela, e o que há de mágico é como toda essa bizarrice é fonte larga de discussões de gênero e sexualidade aqui mesmo do lado de cá da tela. O corpo de Tina é barreira para a exploração de sua sexualidade - afinal, ela é do gênero feminino, mas possui um pênis -, então ela encontra a liberdade que sempre procurou quando Vore surge, e seus corpos literalmente se conectam.

Aqui é o cerne de "Fronteira": sua maior discussão é o entendimento da natureza. Não apenas nossa conexão com a fauna e a flora, nosso lugar nesse planeta azul, mas também nossa própria natureza, aquilo que somos e porquê somos. A resolução do roteiro é bem misantropa, aceitando que pendemos para o pior lado da nossa existência. Vore, niilista nato, fala: "A raça humana é uma parasita na Terra, usa tudo, até a própria cria". É importante, também, os sentimentos que Tina consegue farejar; não é amor ou felicidade, mas sim medo, vergonha e culpa, sentimentos negativos e primários do animal que somos, e sua jornada a fim de encontrar seu lugar no mundo é reflexo perfeito de inúmeras jornadas particulares - por mais fantasioso que o filme seja.

"Fronteira" é uma fábula que reforça dois pilares seminais da arte: o primeiro deles é que devemos expandir nosso conceito do que é bom baseado no belo. O filme realiza imagens nada bonitas (sem entrar no âmbito do que é essa definição), com uma crueza latente que é feita para incomodar, artifícios usados como defeito por muitos - sendo que é o contrário. O segundo é como o recheio de fantasia em demérito do realismo social puro e simples pode ser cabo condutor de debates de uma realidade concreta. Aquela mulher que sente o cheiro de culpa é porta-voz de várias discussões que um documentário poderia levantar, o que é ainda mais impressionante: é a ficção levada ao extremo. Cinema em uma de suas melhores formas.

Crítica: é uma ofensa que “O Grande Circo Místico” tenha nos representado no Oscar

De todas as qualidades do Brasil - que sim, são várias -, escolher filmes para o Oscar não faz parte do grupo. Ao longo da nossa história, focando no novo século, o país demonstrou não possuir a menor noção na hora de selecionar um longa para concorrer à categoria de "Melhor Filme Estrangeiro". Não por acaso, a última indicação que vimos foi em 1999 com a obra-prima "Central do Brasil", há 20 anos.

No século XXI, ao passo que fizemos escolhas corretas - "Cidade de Deus" em 2003, "Tropa de Elite 2" em 2012, "O Som Ao Redor" em 2014" e "Que Horas Ela Volta?" em 2016 -, acumulamos trapalhadas para envergonhar qualquer cinema: "Dois Filhos de Francisco" em 2006, "Lula: O Filho do Brasil" em 2011, "O Pequeno Segredo" em 2017 e agora "O Grande Circo Místico" em 2019. Os motivos para que afirmo serem escolhas erradas são diversos.

Se "Dois Filhos de Francisco" e "Lula" foram nomes enormes dentro do país, tratam-se de obras obviamente regionais, com um apelo universal nulo - qual o impacto que Zezé e Luciano vão causar em alguém, não sei, na Ucrânia? Por outro lado, "O Pequeno Segredo" e "O Grande Circo Místico" não sofrem apenas da sua qualidade individual, mas também por serem selecionados enquanto outros nomes muito maiores foram ignorados.


Já é um crime à cultura contemporânea o fato de "Aquarius" ter sido negligenciado em prol de "O Pequeno Segredo", uma escolha puramente política: a equipe de "Aquarius" protestou na estreia no Festival de Cannes contra o golpe do governo Temer. O caso de "Circo Místico" é ainda pior: tivemos uma pá de filmes muito melhores na disputa. "As Boas Maneiras", "Aos Teus Olhos", "Ferrugem", "O Nome da Morte" e o mais cotado (e esnobado) "Benzinho", sucesso de crítica ao redor do mundo - dono do status "aclamação universal" no Metacritic

A escolha de "Circo Místico" para levar nosso nome para a maior premiação do planeta provavelmente se deu à produção em si. Realizado pelo Brasil, Portugal e França, o filme foi dirigido por Cacá Diegues, um dos fundadores do Cinema Novo e recordista de selecionados a "Filme Estrangeiro": seis de seus filmes foram os escolhidos pela Academia Brasileira de Cinema e Ministério da Cultura (apesar de nenhum deles ter se convertido em indicação). Pelo mesmo motivo, "Bingo: O Rei das Manhãs" foi escolhido ano passado - o diretor, Daniel Rezende, já foi indicado ao Oscar e tem um BAFTA em casa, o que já garante um peso para chamar atenção da Academia. Só que, ao contrário de "Circo Místico", "Bingo" é uma delícia.


Além disso, há dois nomes internacionais no elenco: Catherine Mouchet (que já venceu o César - o Oscar francês) e Vincent Cassel (de "Cisne Negro"). São reforços para o pedigree da produção e chamarizes para votantes de fora. Todavia, muito mais do que a embalagem com rótulos bonitos e chamativos, o que gera o prestígio da Academia é o filme em si.


"O Grande Circo Místico", baseado no poema de 47 versos contido no livro "A Túnica Inconsútil" de Jorge de Lima, segue cinco gerações de uma mesma família vivendo do circo, de 1910 até os dias presentes. O século familiar é ligado por Celavi (Jesuíta Barbosa), o mestre de cerimônias que jamais envelhece - ele vê geração por geração morrer enquanto continua ali. Eis o primeiro grande problema do filme.

Os 105 minutos são divididos entre cinco blocos, focando na atual geração da família. Isso faz com que a plateia não consiga se conectar com os personagens, que permanecem muito pouco na tela. Mas nem isso é desculpa: exemplos de curtas-metragens que arrebatam nossos corações são grandes. O defeito é o roteiro rasteiro que não consegue aprofundar nenhum de seus personagens. Da Beatriz de Bruna Linzmeyer (que tenta, sem sucesso, emular a Satine de Nicole Kidman em "Moulin Rouge") ao unidimensional Fred de Rafael Lozano, eles entram e saem da tela sem gerar a percepção de diferença. Os cortes temporais injetam esperança de uma trama fresca que salve a narrativa, no entanto, são retalhos pseudo-poetizados que não funcionam.

As atuações são ou limadas pelos personagens fracos ou fracas por si só. Nem mesmo Vincent Cassel, que atua em filmes indicados ao Oscar; Mariana Ximenes, a melhor em cena; e Jesuíta Barbosa, um dos maiores atores em atuação do país, são capazes de gerar a menor empatia ou atração. Enquanto o personagem de Cassel é odioso por natureza, o de Barbosa, intitulado de forma sagaz como um trocadilho de "c'est la vie" ("é a vida", em francês), está ali como representação da arte circense, que mesmo após indas e vindas continua ali vivo e intocável. Mas essa metáfora em cima do porta-voz do longa se perde quando as indas e vindas são ruins.


Uma coisa é inegável: o trabalho visual do filme é caprichado. Do design de produção coloridíssimo aos figurinos cheios de detalhes, pelo menos há um departamento que mereça elogio dentro de "Circo Místico". Porém, o que poderia ser usado em prol da narrativa mais parece um jogo com a missão de esconder o quão raso é seu enredo a partir da ilusão da grandiosidade. Há longas sequências de espetáculos que, no fim das contas, servem para nada além de encher os olhos.

E ainda reside uma grande questão: o uso de animais pelo longa. Filmado em Portugal em 2015, desde a fotografia principal o filme enfrenta protestos contra o uso de animais reais como entretenimento. "O uso de animais em circo é um espetáculo degradante, humilhante, que atenta à vida dos animais, que veem as suas vidas e dignidades destruídas. Estamos completamente contra [ao uso de animais no filme] e sabemos que este espetáculo vai perecer. Infelizmente isto está a acontecer e é com o nosso dinheiro", falou Andreia Mota, fundadora do Ação Direta pela Libertação Animal em Portugal, durante as filmagens da fita, que teve mais de 300.000 euros de apoio financeiro público.

Mas, espanta, nada nisso é o principal afundador da película. Somando a todos os defeitos, ainda há espaço para uma misoginia absurda dentro das lonas de "Circo Místico": todas as mulheres existem na tela para serem objetos de prazer sexual dos homens. Elas estão constantemente nuas durante a projeção e são estupradas e mortas durante o sexo (!). Sim, é de largo conhecimento a situação social precária da mulher ao longo da história, mas a gratuidade que todos esses aspectos são colocados na tela é gritante.

"O Grande Circo Místico" é uma produção deprimente que nem de longe merecia o título de melhor filme brasileiro do ano quando nos representou no Oscar 2019. Artificial, gratuito e machista, o resumo mais apropriado ao longa já foi dado: parece ser um filme feito por homens que nunca falaram com uma mulher na vida, só ouviram falar que elas existem. O despreparo diante de um elenco tão diverso, capital para orquestrações visuais fabulosas e trilha sonora do Chico Buarque só afundam ainda mais esse espetáculo que não é grande nem místico.

A decadência de Lady Gaga! Cantora vence seu primeiro Oscar por parceria com Bradley Cooper em “Shallow”

Gente, tem como não ficar feliz pela Gaga? Não tem, não!

Na noite do último domingo (24) aconteceu mais uma edição do Oscar, a maior e mais respeitada premiação do cinema, e depois de tanto se preparar para este momento, Lady Gaga finalmenteee levou a sua primeira estatueta dourada, por conta da canção “Shallow”, com Bradley Cooper. A dupla concorria na categoria de Melhor Canção Original.

Gaga, que nos últimos anos se dedicou a mostrar o quanto era maior e mais relevante que todos os adjetivos que ganhou pelos hits e visuais controversos que marcaram sua carreira, brilhou como ninguém com a estreia nas telonas de “A Star is Born” e, antes do Oscar, já havia faturado também um Globo de Ouro e Grammy pela mesma canção.



Atualmente, Lady Gaga trabalha em seu sexto disco de inéditas, sucessor de “Joanne”, que neste ano garantiu um Grammy pra cantora. Passada uma fase mais introspectiva, espera-se que esse álbum leve a Gaga de “Shallow” e “Million Reasons” de volta para as pistas, já contando com produções de nomes como SOPHIE (Charli XCX, Madonna), Bloodpop (a própria Gaga, Grimes, Justin Bieber) e Boys Noize (Skrillex, Depeche Mode, N.E.R.D).

Pra fechar, a gente te deixa com essa imagem que ilustra um momento de paz e celebração na música pop:




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Atualização: na versão original desta publicação, informamos que a canção de Lady Gaga havia quebrado o recorde de Beyoncé como a ‘música mais premiada da história’, mas houve um engano e essa informação não é verdadeira. Entenda melhor nesta outra matéria. 

Crítica: a glória de “Infiltrado na Klan” é não querer educar brancos, mas sim empoderar negros

Indicado a 06 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Ator Coadjuvante (Adam Driver)
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Montagem
- Melhor Trilha Sonora

Spike Lee é - e sempre foi, desde a década de 80 - um dos grandes nomes do cinema afro-americano. E, mesmo assim, é um diretor bastante subestimado. É certo que em sua filmografia há algumas escolhas duvidosas - se meter com o remake de "Oldboy" (2013) foi uma mácula -, porém, Lee merecia muito mais apreço do que recebe - ele é o diretor do icônico vídeo de Michael Jackson, "They Don't Care About Us", aquele mesmo filmado no Brasil.

Sua carreira é marcada com inúmeros expoentes negros - "Malcon X" (1992) e "Chi-Raq" (2015), por exemplo -, mas há dois grandes pilares que comprovam a expertise do diretor: "Faça a Coisa Certa" (1989) e seu novo filme, "Infiltrado na Klan" (BlacKkKlansman). Desde a estreia no Festival de Cannes 2018, "Infiltrado" era chamado de "o retorno à boa forma" de Lee, recebendo na premiação o Grand Prix, segunda maior honra do festival.

"Infiltrado" segue Ron Stallworth (interpretado por John David Washington), o primeiro policial negro do Colorado. Em plena ascensão da Ku Klux Klan nos anos 70, ele, juntamente com Flip Zimmerman (Adam Driver), arma um plano para se infiltrar na organização e desmantelá-la de dentro para fora. Apesar de uma cinebiografia, e de levantar assuntos pra lá de sérios, o tom usado por Lee na película é a de humor negro (sem trocadilhos): a cena em que Ron liga para a KKK e, imitando a "voz" de um homem branco, fala como odeia negros, é hilária.


Fica ainda mais absurdo quando sabemos que essa é uma história real: Ron é um policial de verdade e (quase) todos os acontecimentos são verídicos. O primeiro passo do protagonista, entrando na polícia mesmo sendo negro, já é uma vitória. É claro, todos os policiais o olham com desconfiança, um corpo estranho que destoa dentro do todo. Isso quando não é sumariamente rebaixado pelos colegas de trabalho, que tentam intimidá-lo pela hierarquia profissional.

As funções de Ron são irrisórias; ele cuida da papelada, ficando escondido no arquivo. Sua maior vontade é ir para as ruas, enfrentar os dilemas do cotidiano, função negada pelos superiores, até que surge uma oportunidade de ouro: ele infiltra-se na reunião de um ativista negro, a fim de ver se há perigos dentro do evento. Para os outros policiais, um policial negro era perfeito para o tal trabalho, mas mal esperavam eles que Ron acabaria não apenas vigiando, mas também acordando para a questão racial.

Naquele oceano de black-powers, os discursos evocam a valorização da beleza, história e dignidade da pessoa negra. Lee usa o filme como palco para reivindicações que burlam a cerca da ficção e atingem a plateia diretamente - ele está quase que quebrando a quarta-parede narrativamente, propulsionando emoções quando seus personagens gritam "Nós somos negros e nós somos lindos" atrás de um palanque escrito "PODER". Há descrições do fenótipo negro e construções preciosas, como os métodos que a supremacia branca usa para o negro odiar o próprio corpo.


E esses tapas na cara são em menos de 20 minutos da fita. Não posso falar em nome de ninguém além de mim mesmo, mas eu, enquanto pessoa branca, transbordei de uma sensação de realização enquanto ser humano logo nesse primeiro ato. Lee não palestra, não dá uma aula, contudo, gera desconstruções efetivas no plano social real. O sucesso é ainda maior quando não existe a sensação de que a narrativa é não interrompida para subir a bandeira da igualdade racial; tudo é diegeticamente fluido.

O encontro transforma as ambições de Ron, e ele tem a ideia de se infiltrar na KKK - maior ameaça existente aos negros. Tudo parece uma loucura descabida - a instituição demandava muita influência através de seus líderes, a polícia não queria mexer com algo tão grande e, óbvio, um policial negro batendo de frente seria preza fácil demais. Ron se esgueira através dos canais de informação da KKK e, quando percebe, está idealizadamente dentro. "Idealizadamente" porque seu nome foi aceito no clã, porém, seu corpo era uma história muito mais complexa.

A saída foi: Ron é a cabeça do falso "Ron", enquanto Flip, que é branco, é o corpo, aquele que vai ao encontro da KKK. De início o plano dá mais que certo, e Flip volta ao quartel recheado de informações sobre os propósitos da seita, porém, ele levanta desconfiança em alguns membros, principalmente de Felix (Jasper Pääkkönen). Flip é judeu, e Felix, não satisfeito em ser um psicopata racista, é antissemita. As relações vão se tornando cada vez mais instáveis - e sabemos que a bomba vai explodir em breve.


Os momentos mais interessantes de "Infiltrado na Klan" são aqueles em que estamos dentro da KKK. A áurea de supremacia é venenosa, e produz asco notar como aquelas pessoas se alimentam do ódio, da intolerância e da ignorância. Os encontros não se resumem a discussões sobre como deus fez o homem branco em sua perfeição, mas chegam a níveis em que os membros armam atentados para matar negros, tudo com um tom leve e jocoso. É de revoltar qualquer um.

Mas a sequência que me fez comprovar a excelência do longa foi quando Lee escancara a nocividade de "O Nascimento de Uma Nação" (1915). O épico de D. W. Griffith, um dos maiores diretores da história e revolucionário em termos de linguagem cinematográfica, tem mais de 3h puras de racismo. É inegável o talento de produção da película, que é sempre referenciada nesse quesito, mas Lee sabe que não há técnica irretocável que justifique o conteúdo deplorável. Os associados da KKK e suas esposas assistem ao filme como na Sessão da Tarde: pipoca, aplausos e gargalhadas, enquanto negros são postos em posição de lixo.

100 anos depois de "O Nascimento de Uma Nação", o Cinema pode já ter adquirido uma consciência de classe, mas a realidade do negro continua precária. Não por acaso, o trecho final de "Infiltrado na Klan" traz imagens reais de manifestações contra a população negra, e não há misericórdia para a plateia, que leva para casa cenas assustadoras de ódio e violência. Lee tem consciência da urgência de gritar seus discursos quando ainda temos movimentações racistas e genocídio negro - ele próprio, dentro de sua pele, não pode transitar em paz pela bandeira que levanta.

Se seu filme é afiado, é resposta da mesma espada que corta a pele negra diariamente, e o maior acerto de "Infiltrado na Klan" é não estar preocupado em educar brancos, mas sim lembrar que a luta é diária. Sua glória é ver que, apesar de estar dentro de uma zona de conforto enquanto temática, a fonte de Spike Lee parece inesgotável, e, além disso, cinematograficamente magistral com "Infiltrado na Klan".

Crítica: “Vice”, cópia ruim de “House of Cards”, e o espetáculo de homens brancos no poder

Indicado a 08 Oscars:
- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Ator (Christian Bale)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Amy Adams)
- Melhor Ator Coadjuvante (Sam Rockwell)
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Montagem
- Melhor Cabelo & Maquiagem

Eu devo começar esse texto com uma confissão: só assisti a “Vice” graças à sua indicação ao Oscar de “Melhor Filme”. “Vice” é um molde cinematográfico que particularmente não me atrai: drama político norte-americano. Para a Academia, no entanto, a opinião é oposta: não pode ver um longa do tipo que já saem distribuindo indicações. Duvida? "The Post: A Guerra Secreta" em 2018, "Ponte dos Espiões" em 2016, "Lincoln" em 2013, e estou apontando apenas nessa década e apenas os que focam nos EUA - se abrir para outros países e colocar guerra no meio, a lista só aumenta.

“Vice” saiu com os bolsos cheios na 91ª edição: foram oito indicações, incluindo “Melhor Direção” e "Roteiro Original" para Adam McKay, “Ator” para Christian Bale e “Atriz Coadjuvante” para Amy Adams. Não foi uma surpresa, e você nem precisa assistir ao filme para entender os motivos do apreço da Academia.

A obra é mais uma cinebiografia indicada ao maior prêmio da indústria, e segue Dick Cheney (Bale), vice-presidente dos Estados Unidos. Ao lado de sua esposa, Lynne (Adams), vemos o desenrolar que levou o homem até a segunda maior cadeira do país. Oscar bait sim senhor.


Além do motivo citado anteriormente, minha falta de animação para a sessão foi devido ao próprio McKay, diretor que não gosto. “Vice” é uma repetição de estilo do filme anterior, “A Grande Jogada” (2015), que também se viu afogado em honrarias, vencendo um contestável Oscar de “Melhor Roteiro Adaptado”. Se não funcionou na primeira vez, não podia esperar um sucesso com o mesmo esquema.

“Vice” começa – e é conduzindo inteiramente – por narração, o problema número #1 da narrativa: ela fala o que está acontecendo ao invés de mostrar. Uma imagem vale mais que mil palavras, já dizem, e McKay tenta comprovar essa afirmação soltando mil palavras para compensar cada imagem. A narração, num saldo geral, serve para basicamente nada, já que nem sua função principal, dar ritmo ao longa, é realizada.

Com o empecilho de carregar um bilhão de diálogos, a montagem busca meios de contornar a verborragia, com cortes rápidos, metáforas visuais e letreiros gigantes. Mas a impressão de estarmos diante de um documentário acadêmico não consegue ser espantada. Essa é a deficiência clássica de cinebiografias do gênero: mais parecem aulas de História do que filmes.


Como comentei na crítica de “Bohemian Rhapsody”, quando o personagem central da cinebiografia não é tão conhecido, ela tende a atingir maior sucesso. Dick Cheney se enquadra aqui muito mais que Freddie Mercury, e “Vice” tem o cuidado de entrar na intimidade do protagonista e abordar lados que não estejam diretamente ligados à Casa Branca, afinal e inevitavelmente, a fita é uma abertura das portas do Olimpo político. Enquanto no mundo real comentamos como o filho da vizinha acabou de entrar na faculdade de Odontologia, lá, o comentário é como o filho do amigo já está concorrendo à presidência.

Não demora muito para notarmos que esses convites para estarmos nos corredores da casa de Cheney são ferramentas políticas de qualquer forma. Quando a trama de sua filha homossexual é introduzida, respirei de alívio; estava ali uma mina de ouro narrativa, todavia, a sexualidade da garota é moeda de troca dos jogos de influência do pai.

Isso soou familiar? “Vice” é uma emulação fracassada de “House of Cards”: seguimos o marido manipulando e se esgueirando entre o corpo político a fim de atingir o maior poder possível – até mesmo Lynne se assemelha com a representação de Claire Underwood. O personagem quebrando a quarta-parede e falando diretamente com o espectador? Sim, temos. O que separa as duas produções – em uma distância esmagadora – é que as ações e acontecimentos de Dick são chatíssimos.


Bale, indicado a mais um Oscar de “Melhor Ator”, está dentro do mesmo padrão do vencedor de 2018, Gary Oldman por “O Destino de Uma Nação”: performance sobre um político embaixo de quilos de maquiagem e enchimentos corporais. Seu trabalho é bem feito, entretanto, a persona de seu papel é monótona, apática e rasteira. Há muito mais interesse no papel de Amy Adams, mas nem mesmo ela é capaz de salvar o filme. Sam Rockwell, recém oscarizado pelo brilhante papel em “Três Anúncios Para um Crime” (2017), só entrou no bolo de indicados mais uma vez por dar vida a George Bush.

“Vice” é aquele filme majoritariamente masculino que tenta ser “cool” para os “parças”, com uma latente tentativa de humor – no meio do filme, os créditos finais começam a subir. Há diversas jogadas que se perdem em meio a tanto blá blá blá – quando aparece na tela que os protagonistas criam cachorros premiados, pensei que tudo estaria perdido; e a “culpa” é do roteiro e direção de McKay. Martin Scorsese usou o mesmo estilo com brilhantismo no divertido “O Lobo de Wall Street” (2013), que tem uma duração ainda maior que a de “Vice”. Há tantos acontecimentos, soterrados pela incessante narrativa, que acompanhar se torna uma tortura.

Nos inúmeros momentos em que meu cérebro se recusava a assimilar o que estava sendo dito, não conseguia imaginar alguém envolvido na produção se divertindo enquanto o filme era feito. E, se do lado de lá todo mundo parece aborrecido com a película, pedir algo diferente do lado de cá soa absurdo. Contudo, abrirei mão: a cena pós crédito, com um cara anti-Donald Trump caindo na porrada com um eleitor enquanto duas garotas falam calmamente o quanto estão empolgadas para o novo “Velores & Furiosos”, é genial.

“Vice” nem tenta ser algo além de uma exibição de homens brancos brincando com o poder e fortalecendo o status quo, que revolução. É assustador, ao término da fita, chegar à conclusão que basicamente nada pode ser retirado de um roteiro que não cala a boca um segundo. Se Hollywood acha essa perda de tempo uma história fundamental para ser contada na telona, alguns produtores teriam ataques cardíacos se soubessem a novela que é a política brasileira atual. Jamais pensei que diria isso, mas o filme sobre um vice-presidente que eu queria assistir seria o de Michel Temer. Poderia até usar o mesmo slogan de "Vice": "Alguns vices são mais perigosos do que outros".

Crítica: “Bohemian Rhapsody” é ótimo enquanto greatest hits (como filme, beira o desastre)

Indicado a 05 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Ator (Rami Malek)
- Melhor Montagem
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

Cinebiografias são uma vertente da Sétima Arte predestinadas ao fracasso. É um trabalho hercúleo fugir do molde formulaico, que se resume em ascensão, queda e redenção, principalmente quando o personagem central é de largo conhecimento do público; quanto mais famoso, mais óbvia a cinebiografia. A batalha de "Bohemian Rhapsody" foi árdua.

Freddie Mercury é uma das figuras mais icônicas da cultura pop, e, juntamente com o Queen, mudaram a música para sempre. Envolto de muita mídia enquanto vivo, a vida de Freddie é, em grande parte, tão conhecida quanto os clássicos da banda. O que falar em um filme que não seja uma repetição?

O "Bohemian" que conhecemos é uma das inúmeras versões produzidas do longa, que desde 2010 passa de mão em mão. Se houve um filme que comeu o pão que o diabo passou, foi ele: vários atores e diretores foram entrando e saindo, na maior parte das vezes por "diferenças criativas". Nem mesmo o trato final ficou livre de caos por trás das câmeras, quando o diretor Bryan Singer foi demitido no meio das filmagens por simplesmente não aparecer (?) no set, além de constantes brigas com Rami Malek, o protagonista. Pelo menos o sucesso comercial de "Bohemian" foi estrondoso, com uma bilheteria passando os 800 milhões de dólares e recordes quebrados para todos os lados - o longa é a maior cinebiografia em termos de arrecadação na história, o que reflete o legado do Queen.

"Bohemian Rhapsody" é aberto pelos preparativos do Live Aid, a mais famosa apresentação da banda. A narrativa usa enquadramentos fechados para criar uma áurea de mistério, sem revelar a caracterização de Malek, enquanto joga "Somebody To Love" nas alturas, para colocar a plateia no mood. É rápido esse prelúdio, mas entrega tudo o que podemos esperar pela frente, para o bem e o mal.


A duração total da fita é de 135 minutos, um filme robusto. Por isso me assustou como o primeiro ato é uma correria desenfreada. Em meia hora, Farrokh Bulsara já é Freddie Mercury e o Queen já está em turnê nos Estados Unidos. Todo o desenvolvimento necessário para dar continuidade aos atos seguintes são deixados de lado, como se o principal da obra fosse jogar a persona de Mercury o mais rápido possível na tela.

As três primeiras cenas são pontuações narrativas fundamentais, que não recebem zelo. Farrokh é um descendente persa que não quer seguir os passos do pai, um homem rígido e nada compatível com a personalidade efervescente do protagonista. Ele rasga as expectativas, as regras e o próprio nome, na ânsia de possuir uma identidade que sirva para ele mesmo. Soa familiar? É a mesma história do filho rebelde que sofre com as amarras familiares e deve se libertar a fim de seguir seus sonhos.

Próxima sequência é Freddie no show da banda Smile em um pub britânico. O vocalista pede demissão e, adivinhem, lá está Freddie pronto para assumir o microfone. Claro, ele é rejeitado pela aparência, convencendo rapidamente Brian May (chega a chocar como Gwilym Lee está igual ao real Brian) e Roger Taylor (Ben Hardy) quando solta a voz. A introdução de Freddie abusa da casualidade para se transformar em algo que foi feito só para colocá-lo ali dentro. Não há cuidado, não há construção. Mal piscamos e já temos Mercury mudando o nome da banda para Queen, já com a logo desenhada. 


Há um oco gigante nas sequências que fincam personagens e acontecimentos. O filme começa com Mercury já sendo o Mercury que todos conhecemos: o roteiro de Anthony McCarten não possui a sensibilidade de crescer o protagonista; não sabemos quais as influências do cantor, seus gostos, sua história. Freddie Mercury em "Bohemian" nasceu exatamente no primeiro minuto do filme. Não consegui me surpreender com esse fato, já que McCarten é especialista em escrever cinebiografias básicas: é dele o roteiro de "O Destino de uma Nação" (2017) e "A Teoria de Tudo" (2014).

Em uma das entrevistas pós desistência, Baron Cohen afirmou que queria um filme proibido para menores de 18, com exibição da realidade de Freddie sem censura, enquanto a banda, consultora criativa da obra, queria um produto para a família. Essa escolha tem impacto fundamental para o desenrolar da película. "Bohemian" é concretamente um filme comercial e, pior, redutivo. A existência de Mercury é diminuída a fim de não chocar, e até mesmo seu lado homossexual é posto na tela com todo o cuidado para não "ofender" a plateia - premissa desrespeitosa por si só. 

O nível vai mais abaixo e diversos alívios cômicos são metralhados, geralmente ao redor do personagem de Ben Hardy, o "palhaço" da turma. Sem nunca receberem o foco com dignidade, os membros restantes do Queen são coadjuvantes de apoio para Rami Malek, em uma performance que entrega competência. Mas, particularmente, o ator não conseguiu me convencer por completo, sempre atrás de uma camada de artificialidade, assim como sua prótese dentária. É inegável que existem momentos em que ele está fisicamente a reencarnação de Mercury, todavia, não há uma demonstração de real estudo além do "vamos copiar cada movimento de Freddie".


A necessidade de facilitação da película também passa pela parte técnica. É involuntariamente cômico como os personagens são introduzidos na tela: com uma construção climática e enquadramentos misteriosos, os atores são exibidos como numa novela mexicana, desesperados em causar impacto. E "Bohemian" teve o azar de competir na temporada com outro longa musical: as sequências no palco de "Nasce Uma Estrela" são realizadas por um diretor, um fotógrafo e um editor que sabem extrair potência do que foi feito, coisa que "Bohemian" não chega perto.

Se diversos aspectos da fita beiram o desastre, não dá para fugir do prazer que são duas sequências, capazes de valer toda a sessão: o Live Aid e a gravação da música-título. O Live Aid foi, sem dúvidas, a cena-chave das filmagens, e o esforço valeu a pena; é o encerramento perfeito e arrepiante para a obra e basicamente coloca o público no meio do show. Contudo, tenho grande apreço pela gravação de "Bohemian Rhapsody", feita no ecrã de maneira inteligente: vamos recebendo pequenos fragmentos da canção antes do tiro final com a versão completa. A batalha da banda com a gravadora, que se recusa a lançar a faixa como single, é deliciosa.

Essa é a moral: a grandeza de "Bohemian Rhapsody" mora exatamente naquilo que ele não fez, as músicas, enquanto suas qualidades cinematográficas são escassas. O filme foi arquitetado pelas pessoas erradas: há mais incompetências do que expertises. Se tirarmos o nome de Freddie Mercury, a produção poderia ser sobre qualquer cantor na montanha-russa da fama, o que demonstra a abissal falta de personalidade da fita. Como celebração da obra do Queen, "Bohemian Rhapsody" atinge a plateia com precisão - correr no fim da sessão para ouvir um greatest hits é caminho sem volta. Como Cinema, no entanto, a história é outra.

E não dá para fugir da esmagadora impressão de que, caso estivesse vivo, Freddie odiaria esse higienizado filme, que passa longe do espírito transgressor que ele era dentro e, especialmente, fora dos palcos.

Crítica: ”O Guia” é um pobre manual sobre racismo para novos habitantes do planeta Terra

Indicado a 05 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Ator (Viggo Mortensen)
- Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali)
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Montagem

Saudações, novo habitante do terceiro planeta do Sistema Solar! É um prazer recebê-lo aqui. Não importa se você é um alienígena ou um terráqueo que acaba de vir ao mundo, sua presença é bem-vinda. Nosso planeta é um lugarzinho curioso de se viver, porém, há algumas noções que você precisa ter em mente para desenvolver uma habilidade social mais fácil.

Aqui existem cadeiras, e colheres, e caminhões, e lençóis, e cercas, e almofadas e, além de tudo isso, também existe o racismo. O que difere o racismo de todos os itens dispostos anteriormente? Ele é ruim e, apesar de você ter se instalado no nosso mundo com ele já existindo, é algo a ser repudiado. É verdade que alguém pode achar, assim como o racismo, que cercas são ruins por ter um amigo que prendeu um braço em uma, saindo machucado, mas isso é outra história.

Eu sei, é complicado entender, como vou criticar algo que já estava aqui quando surgi? Mas saiba, meu bom companheiro, independentemente da sua cor - aliens podem ser roxos? -, o racismo está impregnado e pode moldar como você é visto perante os outros. Bem louco, não? Contudo, não há motivo para desespero caso tudo isso pareça complicado demais. Existem manuais para que te faça compreender como identificar o racismo e quais mecanismos usar para driblá-lo.


Um deles é um filme recém lançado, "O Guia" (Green Book), que conta a real história de Tony Lip (Viggo Mortensen), um segurança italiano que aceita o emprego de motorista do Dr. Don Shirley (o oscarizado Mahershala Ali). A grande questão habita no fato de Don ser um musicista negro em meio aos EUA segregado, e precisa de segurança para viajar pelo sul do país, terrivelmente racista.

Pois bem, caríssimo novato terrestre, o longa tem uma mensagem muito simples: mostrar o quão ruim é o racismo. Você pode tranquilamente sentar e acompanhar as mais de 2h para ter um tutorial completo, com exemplos e discussões acerca do tema. Garanto que, após a exibição, você sairá com uma bagagem competente do tema. De nada.

Mas se você, assim como eu, já reside na Terra há mais tempo, sabe como as garras do racismo atuam. Curiosamente, mesmo com vários anos de carreira no nosso globo, eu não conhecia a história do "The Negro Motorist Green Book" (que dá o nome original da fita), um guia da década de 60 que instruía a população negra sobre quais os locais e cidades que sua presença era permitida, por mais assombroso que isso seja. Talvez seja um conhecimento corriqueiro para quem nasce nos EUA, porém, o filme faz um trabalho digno de reaver esse acontecimento e revelar o quão absurdo já fomos em termos de apartheid.


"O Guia" caminha sobre os dois pólos, Tony e Don. Entre eles, há uma inversão do arquétipo convencional: Tony é branco, mas pobre, sem estudo e vivendo de bicos, enquanto Don, negro, é culto, pianista, letrado e refinado. Quando o motorista entra no apartamento de Don pela primeira vez, o impacto entre as realidades é sem igual, resumidos pela disposição dos móveis - Tony senta numa cadeira enquanto Don senta, literalmente, num trono. A dinâmica entre o "inteligente" e o "boboca" pode ser aos avessos, contudo, é óbvia, só uma pequenina fatia da torta que é o filme como um todo.

Para nós, que contamos com vivências sobre a segregação racial, nada que a fita discorre é novidade. Mesmo se tratando de uma história real, "O Guia" tem nada para falar que nós não já saibamos - se você acabou de chegar à Terra, não me refiro a você. E o racismo, hein, nossa, que barra né, o que os negros têm que passar, acho muito errado isso aí, e acabou o filme.

Com um abuso de didatismo, a película joga váaaarias sequências para, repetidamente, martelar na cabeça de quem vê a frase que destaquei no parágrafo anterior. Os dois protagonistas passam por uma loja de ternos, entrando ao verem um modelo na vitrine. Don deseja provar um, mas é impedido pelo atendente, e por qual motivo? Pois é. Uma chatiação sem tamanho, claro.

Corta a cena. Don está no intervalo de uma apresentação e anseia usar o banheiro. O mordomo prontamente aponta o caminho para o recinto, um casebre de madeira do lado de fora, já que Don não é permitido no banheiro da casa. A pergunta que vale um milhão de reais: por que Don preferiu voltar ao hotel ao invés de usar o banheiro da criadagem? Tempo na tela.


Próxima sequência. É o último concerto da turnê, e toda a equipe janta no restaurante do local. Don é o último a chegar, e adivinhe o que acontece? Eu nem ao menos preciso continuar. Essa é a estrutura de "O Guia", uma sucessão de momentos constrangedores para Don graças ao montante de melanina em seu tecido epitelial.

E isso é algo ruim? Sim, é ruim, mas não pelo motivo mais elementar. Não é defeito um filme - ou qualquer trabalho - reforçar que o racismo é uma praga (pelo contrário), todavia, é ruim para um filme ser uma repetição de si mesmo. Com meia hora de duração já foi transmitida a mensagem inteira dos 130 minutos, com o resto se desdobrando para encontrar mais e mais momentos que gritam VEJA QUE HORROR É O RACISMO, GENTE!

Visando o Oscar, "O Guia" é mais um exemplar a discutir as diferenças sociorraciais e chegar na maior premiação do planeta, o que é sempre bom. Entretanto, é um dos nomes mais rasteiros a trazer essa discussão. Apontando somente longas a serem indicados ao prêmio de "Melhor Filme" nos últimos tempos com a mesma temática, vemos o quão pouca é a contribuição de "O Guia" ao lado deles: "12 Anos de Escravidão", "Estrelas Além do Tempo", "Um Limite Entre Nós", "Corra!", "Selma: Uma Luta Pela Igualdade" e, claro, "Moonlight: Sob a Luz do Luar". Comparar gera até pena.

O problema principal de "O Guia" é a falta de inventividade para pôr na mesa um tema que, querendo ou não, já foi discutido à exaustão e que AINDA precisa ser levantado. Toda a roupagem do filme o coloca num âmbito digno da Sessão da Tarde: importante debate, mas sem a menor ousadia, a fim de não cercear o apelo comercial - e a artimanha funciona, visto o número de honrarias que esse panfleto já conseguiu, como o Globo de Ouro, o National Board of Review e a Guilda de Produtores, o maior peso para o Oscar de "Melhor Filme". É necessário criatividade para sair da caixinha do ordinário e acrescentar, não apenas existir, e nem preciso ir longe para mostrar um exemplo.


"Infiltrado na Klan", que concorre ao lado de "O Guia", também transcorre sobre o racismo, porém, além da sagacidade incrível de Spike Lee, possui uma diferença crucial: está interessado em conversar com os negros ao invés de educar brancos, o oposto de "O Guia" - note o trajeto de Tony, que começa jogando fora os copos usados por negros em sua casa para defender Don. Que herói.

É inegável que existem momentos e diálogos acima da média no filme de Peter Farrelly - conhecido por dirigir, eeeerrrr, "Debi & Lóide" (sim), como "Inteligência não é o suficiente, é preciso coragem para mudar a cabeça das pessoas". Há uma rápida montagem com closes num presépio, mostrando o menino Jesus em toda sua branquitude e olhos azuis, a maior mentira da cultura ocidental. Além do diálogo após a delegacia, quando Don grita que não é aceito pelos brancos por ser negro, nem pelos negros por ter estudo, nem pelos homens por ser gay.

É um sutil tapa na cara do espectador que abre camadas daquela personalidade - mas ainda assim a produção não perde a oportunidade de dar um "climão" e colocar os personagens debaixo de chuva. Não dá para dar uma medalha nem mesmo às atuações: Viggo Mortensen e Mahershala Ali fazem um trabalho digno, mas nada fora de série. Ali, em principal, que parece caminhar ao segundo Oscar de "Ator Coadjuvante", parece deslocado e sob uma direção que em momento nenhum conseguiu retirar o que ele tem de melhor.

É cristalino que o racismo é um horror, todos sabemos - ou deveríamos saber -, e é esta pontuação que faz a existência de "O Guia" ser ainda necessária. A produção, contudo, não tira vantagem dessa necessidade para desenvolver um filme que discuta algo de uma forma além do que já foi posta no ecrã centenas de vezes. Assim como não era preciso reinventar a roda, não cabia aceitar tanta passividade diante do que é óbvio e rasteiro, deixando a fita no âmbito do lugar-comum, apesar de toda boa intenção. Caso você tenha o menor contato com outros seres humanos, esse manual sobre discrepâncias raciais que emula repetições acrescentará nada.

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