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Crítica: "Moonlight: Sob a Luz do Luar" não é só uma jornada tocante, é uma obra de inestimável importância social

Eleito o melhor filme de 2016 pela crítica, "Moonlight" é uma obra-prima triste, bela e tocante sobre o ser gay, ser negro e ser periférico
Indicado ao Oscar de:
- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali) *favorito*
- Melhor Atriz Coadjuvante (Naomie Harris)
- Melhor Roteiro Adaptado *favorito*
- Melhor Trilha Sonora
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem

Atenção: a crítica contém spoilers.

Certa vez li que é rara a certeza de estar diante de uma obra-prima. De saber, desde o começo do filme, que sua vida não será mais a mesma depois de ver o que está passando diante dos seus olhos – e digo isso em um sentido maior, já que você (quase) nunca sai de um filme na mesma forma que entrou, mesmo que seja uma diferença mínima. E não dá para discordar dessa lógica. É rara, raríssima essa ciência.

Eu sei, é bastante arriscado apontar isso inserido nessa crítica – spoiler alert: “Moonlight: Sob a Luz do Luar” é uma obra-prima –, já que expectativas podem não ser supridas quando lemos algo tão grande sobre qualquer coisa, mas seria leviano não (tentar) pôr em palavras a magnitude que é o melhor filme do ano em diversas listas de críticos mundo afora: com nota 99 (de 100) no Metacritic, o longa foi eleito o melhor de 2016 por 65 críticos, mais do que qualquer outro (o segundo lugar, “La La Land: Cantando Estações”, ficou em #1 na lista de 37 deles).

Olhando pelo prisma do Oscar, o (desnecessário) cerco formado para o prêmio máximo da noite é entre “Moonlight” e “La La Land”, como se tivéssemos que tomar partido entre um deles e torcer contra o outro ao invés de aceitar a possibilidade de gostar de ambos. Mesmo com o favoritismo de “La La Land”, “Moonlight” ainda é o filme mais premiado da temporada: foram, até agora, 141 prêmios contra 134 do musical de Damien Chazelle.

Excluindo todo esse cenário que, mesmo sendo divertido de acompanhar, é irrelevante no sentido puro da arte que é o cinema, “Moonlight” é dirigido e roteirizado por Barry Jenkins, baseado no projeto “In Moonlight Black Boys Look Blue” de Tarell Alvin McCraney (Oscar de “Melhor Roteiro Adaptado” é obrigação). O filme traça a vida de Chiron durante três fases: infância, adolescência e maturidade. Semelhanças com a premissa de “Boyhood: da Infância à Juventude” são naturais, ambos focam, cada um numa maneira, no amadurecimento de seus protagonistas, porém, em “Moonlight”, a liberdade de não ter que filmar durante doze anos (o que “Boyhood” tem de melhor) deu ao roteiro uma coesão primordial para o sucesso da fita.

Imagem: Divulgação/Internet
Chiron, chamado então de “Little” (e interpretado por Alex Hibbert), é uma criança negra perseguida por colegas de escola aos gritos de “Pega esse viadinho”. Acuado e escondido num prédio abandonado para não apanhar, Juan (Mahershala Ali), um traficante local, ajuda o garotinho, muito assustado, e o leva para lanchar, mesmo sendo sumariamente ignorado pelo pequeno, que não abre a boca. Depois, na casa do homem, Little conhece Teresa (Janelle Monáe), namorada de Juan, e juntos começam a construir um laço quase familiar. O motivo? A criança não possui seio familiar que o acolha e o entenda, já que sua mãe, Paula (Naomie Harris), é abusiva e viciada em drogas que está mais preocupada em suprir sua dependência do que com a criança.

O único amigo na escola de Little é Kevin (Jaden Piner), uma das poucas pessoas que consegue se conectar com o retraído garoto. Mesmo achando-o “estranho”, ele tenta ajudar Little a enfrentar a situação com os outros meninos da escola, mandando “mostrar firmeza pros caras”. “Mas eu não sou firme”, responde Little. “Eu sei, mas eles não precisam saber”. A diferença de atitude das duas crianças é evidente, com Little não sabendo o que fazer e como agir diante da masculinidade dos outros meninos, aflorando mesmo numa idade tão precoce.

Imagem: Divulgação/Internet
Num paradoxo bastante interessante, Little consegue ser natural junto com Juan, um homem adulto. Este não trata Little como um ser diferente, e sim um ser à procura de sua verdade e sua identidade. O homem consegue entender o garoto. Numa das cenas mais belas do longa, Juan leva o menino até o mar e o ensina a nadar – nota: Ali estava realmente ensinando Hibbert a nadar no momento. “Eu estou te segurando. Eu prometo, não vou te soltar”. Juan se torna uma figura quase paterna, estando mais presente na vida de Little que a própria mãe, alguém que irradia sentimentos negativos – até para o espectador.

E um dos detalhes mais importante nessa relação é o fato de que a masculinidade do menino não é questionada na presença de Juan, ao contrário dos outros machos em sua volta. Durante essa época de descobertas, Little vê os garotos explorarem seus corpos (em conjunto, inclusive) enquanto ele não se atreve a participar, já que sua sexualidade é um confronto de identidade. Há um misto de curiosidade e confusão em querer conhecer outros corpos masculinos, ainda mais dentro de um sistema onde isso, vindo de um homem, é algo condenável.

E o próprio meio molda o indivíduo. A marginalização social daquelas pessoas negras torna suas vidas algo duro, então os mesmos se encontram numa posição de endurecimento de si para poder lidar com a situação. Nem mesmo os mais novos fogem desse ciclo vicioso, repetindo os arquétipos sociais dos mais velhos em prol da sua sobrevivência e inclusão de suas identidades naquele meio. A periferia, as escolas exclusivas de alunos negros, os locais onde essa população se reúne, tudo é filmado com grande requinte para a construção do espaço físico e social onde Chiron, e todos os outros, habitam.

Imagem: Divulgação/Internet
No momento final dessa primeira parte há um dos diálogos mais sinceros de todo o filme, onde Little questiona a Juan e Teresa o que é ser “bicha”. “’Bicha’ é uma palavra que as pessoas usam para fazer os gays se sentirem mal”, diz Juan. “Eu sou uma bicha?”, pergunta o menino. “Não. Você pode ser gay, mas não pode deixar ninguém te chamar de bicha”. Há um grande poder na cena pelo fato de ser uma criança fazendo tais perguntas, respondidas com grande maturidade pelos dois adultos. Conseguimos parar por um momento e nos colocar na cabeça daquele menino, perturbado por ter que lidar não só com a dúvida interna, mas o julgamento externo. É um momento cruel e reflexo perfeito de tantas realidades.

Na segunda parte, Chiron, agora adolescente (interpretado por Ashton Sanders), sofre ainda mais em todos os departamentos de sua vida. Juan está morto; sua mãe afunda cada vez mais em drogas; seu melhor amigo, Kevin (interpretado agora por Jharrel Jerome) exala uma desconcertante heterossexualidade; e outros rapazes da escola tornam sua vida um inferno. É notável ver a forma como o filme retrata a falta de atitude e responsabilidade por parte da escola em resolver a situação de agressões que Chiron sofre dentro das próprias paredes da instituição. O local é uma selva, cada um por si.

Imagem: Divulgação/Internet
A cena chave desse “meio” da história é o diálogo que Chiron e Kevin tem numa praia, onde os jovens conversam sobre suas vidas e anseios. Há muita crueza na cena, onde as máscaras sociais de ambos vão caindo pouco a pouco. “Você chora?”, questiona Chiron, e Kevin responde: “Não, só me dá vontade”, numa clara recompostura da fachada heterossexual de jamais demonstrar emoção. “Às vezes choro tanto que acho que vou secar por dentro”, responde Chiron, de forma honesta. A conversa consegue abrir Kevin, que beija Chiron, partindo para uma masturbação no garoto, tudo fotografado de forma estupenda.

Nos dias seguintes, Kevin é coagido por Terrel (Patrick Decile) a, junto com um grupo de rapazes, espancar Chiron, que sai bastante machucado. A reação do protagonista, dias depois, é o expurgo máximo: ele quebra uma cadeira nas costas de Terrel. O acontecimento causa consequências e Chiron é preso, saindo algemado da escola. De uma forma demasiadamente sutil, o filme faz um estudo de situação: pense você vendo o noticiário e ouvindo a notícia que um jovem negro quebrou uma cadeira nas costas de um colega de classe dentro da escola. “Vândalo” e “bandido” seriam facilmente os adjetivos que viriam à sua mente. Sabemos os meandros que levaram Chiron a cometer tal (errado) ato, desencadeado por outros atos errôneos, porém é Chiron que leva o rótulo de culpado, de bandido, sendo que, nos altos da situação, ele é a vítima – mesmo extrapolando os limites pela reação radical. Somos convidados a conhecer os pormenores de uma situação que já chega pronta, e nos colocamos no lugar do protagonista. Seríamos então tão passíveis de condenação? Todo ato não é o produto de uma série de acontecimentos?

Imagem: Divulgação/Internet
Pulamos vários anos e chegamos na parte final de “Moonlight”, com Chiron adulto e conhecido pelo codinome “Black” (interpretado por Trevante Rhodes). Sua vida agora se assemelha com a de Juan: Black é um traficante de drogas (outro estudo de situação). Super musculoso, Chiron assumiu uma identidade física completamente diferente, vivendo uma vida de mentira em prol de algo que ele nunca teve: respeito. Um personagem pergunta se ele está “pegando” uma mulher, e ele responde “Estou tentando”, com um breve lapso de mentira que só o expectador pode reconhecer.

Certo dia Black recebe uma ligação de Kevin (interpretado em sua forma adulta por André Holland), convidando-o para jantar no restaurante em que trabalha e se desculpando pelo o ocorrido na juventude, fato que os fizeram acabar com a amizade. No jantar, há grande desconforto entre os dois pelos anos de distância, as mudanças de ambos e o fantasma do acontecimento que os separaram. Enquanto Chiron permanece um pé atrás, Kevin demonstra bastante alegria por vê-lo ali (mesmo dando de carra com os silêncios de Chiron), até que os dois vão até a casa de Kevin depois de uma investida deste: “Você dirigiu até aqui só porque estava com saudade de casa? Onde você vai passar a noite?”.

Imagem: Divulgação/Internet
Na casa, a tensão sexual se torna palpável durante a conversa, com Kevin questionando quem era aquele novo e diferente Chiron e assumindo que nunca fez o que ele realmente queria fazer na vida, e sim o que as outras pessoas achavam que ele deveria fazer, algo que Chiron consegue se identificar. A áurea sexy exala da tela, com ambos gritando por dentro o desejo de um pelo outro. Toda a sequência é bastante sexual, mesmo não havendo um segundo de sexo, prova do domínio cinematográfico estupendo de Barry Jenkins e seus dois atores, além de ótima montagem. É perceptível a batalha acontecendo por trás dos olhos do protagonista, que assume: “Você [Kevin] foi o único homem que me tocou na vida. O único. Eu nunca fiquei com alguém desde então”. Não há mais necessidade de palavras.

“Moonlight: Sob a Luz do Luar” é um filme triste, não há como negar, todavia, ao mesmo tempo, é uma obra genialmente bela, tocante e verdadeira. Acompanhamos a jornada de descoberta de Chiron durante suas três fases e conseguimos pegar carona ao relembrar das nossas próprias jornadas, ainda em curso. Atuado com maestria por Trevante Rhodes, Mahershala Ali e Naomie Harris, temos um olhar brilhante de Barry Jenkins sobre temas muitas vezes esquecidos no cinema, mas urgentes, necessários e representativos como o ser gay, o ser negro, o ser periférico, o que solidifica sua inestimável importância social. Porém, você não precisa se enquadrar em algum desses três “seres” para sentir a delicadeza devastadora que “Moonlight” provoca – mas caso se encaixe, essa é uma história para toda uma vida. A de Chiron e a sua.

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