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Crítica: "The Post", o jornalismo usado em prol do ego e o declínio do spielberguismo

Indicado aos Oscars de:
- Melhor Filme
- Melhor Atriz (Meryl Streep)

O comediante Seth Meyers, apresentador do Globo de Ouro 2018, brincou durante a apresentação de "The Post: A Guerra Secreta" ao trazer vários prêmios enquanto descrevia o filme, o que fez a plateia chorar de rir. E também pudera: um filme sobre jornalismo, guerra, com Meryl Streep, Tom Hanks e dirigido por Steven Spielberg. Quantos Oscars temos aqui? Parecia a receita da produção perfeita para a premiação.

E na verdade é. Porém "The Post" acabou se tornando o indicado a "Melhor Filme" com menos indicações na carreira de Spielberg - e o menor do ano também, com apenas duas. Cotado para os prêmios de "Direção", "Ator", "Roteiro Original", "Fotografia", Trilha Sonora", "Figurino" e "Montagem", só Streep, em sua vigésima primeira indicação, conseguiu figurar na lista da Academia. E isso pode dizer muita coisa.


"The Post" se passa durante o governo de Richard Nixon (1966, para ser mais exato) e narra a redação do The Washington Post tentando conseguir documentos secretos que descrevem a participação dos EUA na Guerra do Vietnã. O governo insistia que a guerra ia bem para o país, mas os documentos mostravam o contrário. A dona do jornal é Katharine Graham (Streep), assumindo após a morte do marido, e vê complicações diante dos colegas, que enxergam sua falta de experiência como um problema - além disso, ela era a primeira mulher a assumir o cargo. Enquanto isso, Ben Bradlee (Hanks), editor-chefe, está arrancando os cabelos para por as mãos nos documentos antes do The New York Times, que já publicou trechos do mesmo.

A primeira parte do longa é basicamente inteira recheada pela construção dos meandros daquele universo, e se arrasta sem dó entre os corredores das redações jornalísticas. São reuniões intermináveis de terno e gravata, milhares de nomes disparados para cima e para baixo, encontros sem grandes relevâncias narrativas, espiões infiltrados para descobrir a manchete da concorrência e toda a burocracia que Spielberg adora encher seus filmes e dar aquela "densidade". É tanta coisa acontecendo, e tudo sem grandes enfoques, que o primeiro ato é uma bagunça completa.


Com a publicação dos trechos pelo TNYT, a justiça intervém e proíbe a publicação do material na íntegra, sob pena de prisão dos envolvidos no jornal. É então que o TWP consegue todos os capítulos do documento, que abre o segundo ato da obra. O dilema fundamental de "The Post" é: deve o TWP publicar ou não o documento? Caso decida pela publicação, todo o jornal corre o risco de parar atrás das grades. Pela pressão política, os patrocinadores do jornal poderão cair fora antes que o barco afunde, principalmente por ter uma mulher como dona da empresa, que já vinha causando problemas de financiamento.

O sub-gênero drama jornalístico já faz sucesso há décadas, como "A Montanha dos Sete Abutres" (1951), "Todos os Homens do Presidente" (1976) e o vencedor do Oscar de "Melhor Filme", "Spotlight: Segredos Revelados" (2015). Um dos mais fortes motes dessa forma de bolo é evocar a integridade jornalística, a importância da impressa e como ela tem papel crucial no funcionamento social - em "Spotlight", por exemplo, vemos um grupo de repórteres enfrentando a igreja e expondo casos de abusos sexuais de padres, o que é imprescindível. Porém tal veia romântica do jornalismo não é latente em "The Post", o que acaba se tornando um problema.


A todo o momento, a principal justificativa que paira sobre as cabeças dos repórteres do TWP para a publicação dos documentos do Vietnã é: temos que publicar antes do TNYT. O Ben Bradlee de Hanks grita a todo o momento que eles devem largar na frente e que, a cada minuto, estão mais longes do furo completo. É claro que o compromisso social está envolvido em tudo isso, afinal, um escândalo político estava em suas mãos, todavia é impossível ignorar a impressão de que o jornalismo aqui está sendo usado como ferramenta de inflação do ego.

A encruzilhada a ser decidida por Katharine, a única com poder de bater o martelo sobre publicar ou não a história, é regida de maneira competente, rendendo os melhores momentos da película. Spielberg arma um circo com repórteres, editores e advogados correndo descabelados, gritando e fumando enlouquecidamente, a fim de escancarar a panela de pressão que todos estão comprimidos, enquanto a protagonista é jogada de um lado para o outro com vários argumentos sobre o destino do documento.


E os momentos finais dessa decisão são os que fazem justiça ao título de "thriller jornalístico" que o filme carrega. Um grande jogo é formado enquanto a plateia - e os repórteres na gráfica à ponto de explodirem - ficam na expectativa: várias pessoas, com diferentes opiniões, formam uma corrente telefônica que termina em Katharine, que permite a publicação frente à ameaça política e quebra de relações.

O que vem a seguir é evidente: o TWP é condenado e vai a julgamento; o último ato é formado então com o desenrolar do impacto da publicação. O que poderia ser feito com certa burocracia é praticamente jogado na tela, retirando toda a carga emocional do momento. Ao invés de desenvolver e brincar com expectativas, o longa entrega o desfecho de forma fácil e insossa, tendo uma ou duas cenas no tribunal e dando o veredito da forma mais letárgica possível. Ao invés de usar o tempo do primeiro e chatíssimo ato para finalizar a obra de maneira bem acabada, a produção resolve tudo em 15 minutos.

E fica gritante o exagero da cenografia adotada pelas escolhas de direção. Spielberg coloca seus atores em movimentos estranhos e não naturais para fazer a fotografia de Janusz Kamiński - duas vezes ganhador do Oscar de "Melhor Fotografia", ambos por filmes de Spielberg - girar ao redor dos mesmos, o que retira até mesmo a atenção para o que está acontecendo, já que fixamos naquele balé estranho. Todo o controle narrativo e de mise-en-scène em "The Post" é deficiente.


E nem mesmo Tom Hanks e Meryl Streep entregam grandes atuações. Enquanto Hanks está no mais absoluto piloto automático - até em "Ponte dos Espiões", também do Spielberg, ele está melhor -, Streep foi indicada ao Oscar puramente por ser Streep. Está muito mais que provado que ela jamais consegue fazer algo ruim, e sua Katharine não foge à regra, porém nada justifica mais uma indicação num ano com atrizes tão fortes - Brooklynn Prince por "Projeto Flórida" e Daniela Vega por "Uma Mulher Fantástica" eram nomes bem mais merecedores. Mas para quem foi indicada por "Caminhos da Floresta" e "Florence: Quem é Essa Mulher?", "The Post" está no lucro - e algo tinha que entrar para justificar a indicação a "Melhor Filme". Apostaram na opção mais fácil (e preguiçosa).

"The Post: A Guerra Secreta" consegue criar uma boa ponte histórica sobre o poder massivo do jornalismo entre o governo Nixon e o atual governo Trump, entretanto, está (bem) longe de figurar no hall dos grandes filmes jornalísticos. Encontra sucesso ao não ser ufanista quando se preocupa em mostrar toda a corrupção e sujeita da América política, todavia só ganha maior destaque pelo selo spielberguiano, que ano após ano parece estar mais distante de uma relevância cinematográfica com real diferença. O número pífio de indicações na premiação que sempre o adorou é um dos merecidos reflexos.

Crítica: a aula de história de "O Destino de Uma Nação" não seria a mesma sem seu insano professor

Indicado aos Oscars de:

- Melhor Filme
- Melhor Ator *favorito*
- Melhor Fotografia
- Melhor Direção de Arte
- Melhor Figurino
- Melhor Maquiagem *favorito*

Todos os anos, ao escrever sobre os indicados ao Oscar de "Melhor Filme", eu falo sobre a "cota histórica" da premiação: aquele filme que remonta acontecimentos importantes e sempre aparece entre os nomeados. "Estrelas Além do Tempo" em 2017, "Ponte dos Espiões" em 2016, "O Jogo da Imitação" em 2015, "12 Anos de Escravidão" em 2014, "Lincoln" em 2013, "O Discurso do Rei" em 2011, e por aí vai.

"O Destino de Uma Nação" (Darkest Hour) é mais um desses exemplos. O filme se passa durante o reinado de George VI, quando o Primeiro Ministro Neville Chamberlain é forçado a sair do mandato ao não segurar as pontas durante a invasão nazista pelo continente europeu. Em meio à toda a bagunça no país, cai no colo de Winston Churchill (Gary Oldman) a função de exercer a liderança política da nação.


A trama central da obra é basicamente Churchill durante a Segunda Guerra tendo que decidir se faz um acordo de paz com Hitler ou parte para a batalha, tendo em vista que a Inglaterra está perdendo. Você provavelmente deve estar pensando "mais uma aula chata de história", mas "O Destino de Uma Nação" consegue encontrar sucesso ao trazer um plot bem simples, sem muitas indas e vindas, nomes intermináveis e horas de sessão com verborragia bélica e planos estratégicos.

Dentro desse contexto, "O Destino de Uma Nação" fecha uma trilogia não prevista que começa com "O Discurso do Rei" e termina com "Dunkirk" (2017). Sim, os três filmes unidos compõe uma grande história em sequência, com seus acontecimentos sendo seguidos. Em "O Discurso" vemos o apogeu do Rei George VI, em "O Destino" temos o mesmo elegendo Churchill como Primeiro Ministro e em "Dunkirk" a efetivação dos planos do político. Como "Dunkirk" estreou primeiro, já sabemos como terminará "O Destino" (um spoiler inevitável), no entanto, isso acaba ajudando na assimilação dos eventos de "O Destino", curiosamente.


Caso tenha notado, durante toda a explanação do longa eu só citei Gary Oldman entre os atores, e a escolha é fácil de ser explicada: o filme é inteiramente dele. Toda a produção é palco para o ator berrar e fazer suas caretas, num legítimo Oscar bait: aquele filme feitinho para dar um Oscar ao seu protagonista. "A Dama de Ferro", "O Quarto de Jack", "A Teoria de Tudo", "O Regresso" e tantos outros nomes se encaixam perfeitamente aqui, o que não é necessariamente algo ruim.

Muitos dos detratores do filme apontam que Oldman só ganhará o Oscar de "Melhor Ator" graças à maquiagem. É fato que o trabalho de transformação aqui é absurdo, quando conseguiram transformar completamente Oldman com traços que em que nada se assemelham a ele mesmo - e extremamente parecidos com o real Churchill. Porém, sem uma composição de voz, postura, trejeitos e uma boa compreensão de personagem, não há maquiagem que dê jeito - quem está por baixo tem que realizar seu trabalho. E Oldman está incrível na caracterização do protagonista, e a prova é que ele faz a plateia torcer por alguém tão complexo e por vezes rude e antipático. Não há desenvolvimento sobre sua personalidade - já o encontramos daquela forma -, porém, os rumos dados pela narrativa para o amadurecimento do protagonista frente à guerra são bastante belos.


Há dualidades bastante interessantes na composição de Oldman para Churchill. Sua maior batalha é ganhar o respeito do próprio partido, que o trata como piada pelo seu modo nada polido e diplomático de lidar com as situações. Se em casa ele é um amor com a esposa, no parlamento ele não mede palavras e cai na gritaria com todo mundo. O próprio Rei afirma ter medo dele pelo modo imprevisível, e pondera sobre a retirada do cargo de Primeiro Ministro - mas quem seria louco o suficiente para aceitá-lo em meio à Segunda Guerra com o país sendo massacrado?

Todos os membros do parlamento colocam o dedo para a mesma solução: fazer o acordo com Hitler. Churchill, ao contrário, é irredutível e não aceita tal plano. É divertido acompanhar alguém tão teimoso, e, para os olhos alheios, aquela teimosia é a mais pura insanidade. Enquanto a guerra acontece lá fora, uma guerra fria se instaura dentro daquelas paredes políticas quando todos fuzilam o Primeiro Ministro. Até para o expectador o tal tratado parece a melhor saída, já que a prioridade no momento é a retirada dos soldados da praia de Dunkirk, e as chances, na melhor das hipóteses, é de conseguir resgatar 10% do corpo bélico antes da chegada dos alemães.


Seja pelas escolhas de roteiro, seja por já sabermos que a operação Dínamo (a que traçou o resgate em "Dunkirk") foi um sucesso por já termos assistido ao filme de Christopher Nolan (ou mesmo por conhecer a história real, alô historiadores!), nós desejamos ver aquele pequeno anarquista desafiar a ordem vigente e decidir seguir suas próprias regras, por mais loucas que elas sejam. E é aqui que habita a força do roteiro e da atuação de Oldman.

O Ministro é tão maluco que decide fugir no meio do dia e pegar um metrô, rendendo a melhor cena de todo o longa. Ele, ao entrar, deixa todos os passageiros boquiabertos. "O que foi, nunca viram um Primeiro Ministro andando de metrô?", brinca. Ao contrário do previsto, o político é altamente caloroso com seu povo, anotando o nome de todos com quem conversa e perguntando suas opiniões sobre o próximo passo estratégico na guerra: todos são contrários à assinatura do tratado de paz. A cena pega pesado no sentimentalismo quando coloca uma menininha para falar em nome da população sobre nunca desistir, o que arranca lágrimas de Churchill, contudo, o viés de escutar os governados ao invés dos governantes de terno e gravata possui sinceridade.


E tecnicamente "O Destino de Uma Nação" é uma aula. A fotografia espetacular passeia lindamente pelos corredores burocráticos do parlamento e milimetricamente analisa o rosto ultra-maquiado de Oldman, claro, para fortalecer a sua presença. Toda a direção de arte é feita em tons de sépia, ao contrário do dourado tão característicos de cinebiografias históricas - e isso reflete a própria situação do país no corrente momento, encurralado pela guerra, lutando por um sopro de esperança. E Joe Wright, diretor de "Orgulho & Preconceito" (2015), "Desejo e Reparação" (2007) e "Anna Karenina" (2012), utiliza letreiros gigantes para situar o espectador das datas em que os eventos se acontecem, uma artimanha bastante divertida.

A brilhante performance de Gary Oldman com certeza eclipsará o trabalho do filme como um todo, que merece ser apreciados em suas partes pela fácil assimilação. Saber o quanto do real há em "O Destino de Uma Nação" fica à cabo dos historiadores, pois a dramatização dos eventos é feita de modo mais empolgante do que o esperado. A obra pode não ser uma dessas cinebiografias históricas irretocáveis e inestimáveis - como "A Lista de Schindler" (1993) -, porém possui valor cinematográfico pela realização competente que alcança níveis de interesses até mesmo para quem não curte o subgênero "aula de história no cinema". E essa aula não seria a mesma sem seu tresloucado professor Churchill.

Você quer parar de me interromper quando estou te interrompendo?

Crítica: "A Forma da Água" une milagre visual com um romance mágico e improvável

Indicado aos Oscars de:

- Melhor Filme
- Melhor Direção *favorito*
- Melhor Atriz (Sally Hawkins)
- Melhor Ator Coadjuvante (Richard Jenkins)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer)
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Montagem
- Melhor Fotografia
- Melhor Direção de Arte *favorito*
- Melhor Figurino
- Melhor Trilha Sonora *favorito*
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

Crítica editada após os indicados ao Oscar 2018

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Disparadamente, o filme que mais esperei da temporada foi "A Forma da Água" (The Shape of Water). Desde sua estreia no Festival de Veneza, quando venceu o prêmio máximo, o Leão de Ouro, os cometários sobre como Guilhermo Del Toro finalmente entregou o sucessor à altura de "O Labirinto do Fauno" (2006) eram os mais animadores possíveis - e diziam muito sobre o que estava por vir.

No Oscar 2007, "Fauno" levou para casa três Oscars ("Melhor Fotografia", "Direção de Arte" e "Maquiagem", e deveria ter levado mais, inclusive) ao trazer um conto de fadas mais adulto com a marca registrada do diretor: uma viagem fantástica com monstros à base de muita maquiagem. Tanto o fauno protagonista como o monstro com olhos nas mãos entraram para a cultura popular e ajudaram a cunhar o status de "clássico" sobre o filme, que é nada além de obra-prima.


Del Toro foi descoberto com "A Espinha do Diabo" (2001), o primeiro filme a salvar sua vida (palavras dele). De "Espinha" até "A Forma da Água", o mexicano deu uma cambaleada notável, conseguindo encontrar o ápice criativo e técnico apenas com "Fauno" - nomes como "Hellboy" (2004) e "A Colina Escarlate" (2015), apesar de visualmente interessantes, falham em diversos outros pontos. E filme após filme esperávamos vê-lo de volta à glória - e esse momento chegou.

"A Forma da Água" é estrelado por Elisa Esposito (Sally Hawkins) e Zelda (Octavia Spencer), duas faxineiras que trabalham numa instalação militar secreta em meio à Guerra Fria. A dupla dinâmica possui uma relação especial: Elisa é muda, enquanto Zelda é sua porta-voz ao traduzir a língua de sinais no trabalho. Num dia qualquer, o coronel Richard Strickland (Michael Shannon) chega de uma viagem da América do Sul com uma criatura (Doug Jones), visando estudá-la e explorá-la.

"A Forma da Água" e "O Labirinto do Fauno" são quase irmãos pelas várias similaridades. Protagonizados por uma outsider tendo que lidar com um vilão fascista num plano de fundo histórico (Guerra Fria e Guerra Civil Espanhola, respectivamente). Ambos são tratados como contos de fadas, e suas protagonistas, Elisa e Ofelia (Ivana Baquero), são representadas como princesas. Claro, esse modelo não segue os rumos dos clássicos Disney, e sim as joga em uma veia sombria, adulta e até macabra, com violência crua e, no caso de "Água", sexo. A grande diferença entre as obras é sua temporalidade artística. Enquanto "Fauno" é um legítima realização contemporânea, "Água" emula a Era de Ouro de Hollywood (1920-60).


Toda a produção se utiliza de técnicas de filmagem utilizadas na época - percebam a cena em homenagem aos musicais do período, coisa que "La La Land" fez ano passado -, além de construir seus personagens ao redor dos arquétipos clássicos. Até a chegada do vilão é uma típica aparição da figura a ser temida: surgindo das sombras e revelando seu impassível rosto enquanto a câmera rapidamente se aproxima dele. "Água" dialoga com o molde da época e atual pois, claro, possui uma visão atualizada do que seria um filme da década de 40.

De cara já percebemos o cuidado estético da fita. Del Toro tem consciência do poder imagético de sua obra e rege cenas que já caem no ecrã com pinta de atemporais. A cor verde, que casa com a fantasia e, claro, o ambiente aquático do estrangeiro cheio de escamas, está presente em praticamente todos os quadros, desde as paredes e figurinos até em detalhes inusitados, como gelatinas, tortas e sabonetes - o design de produção da fita é glorioso, estonteante e de cair o queixo, extraído com esmero pela fluida fotografia. Os efeitos especiais, que finalizam muitas das cenas, são altamente fidedignos e mal notamos quando os cenários não são reais. "Verde é a cor do futuro", fala um personagem, explicando para o espectador o motivo da escolha da graciosa paleta de cores, e "Água" é exatamente isso: a busca pelo futuro inserida na atmosfera retrô da fita.


Os cientistas da instalação de Elisa estão ali para estudar a "cobaia" com o intuito de ver se seu corpo consegue aguentar as condições de sobrevivência fora da órbita terrestre, para, assim, pegar a dianteira na corrida pelo espaço. Mas há um porém: Dr. Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg, o pai do Elio de "Me Chame Pelo Seu Nome") é um espião soviético que está nos EUA tentando tirar proveito das pesquisas norte-americanas com o humanoide.

Enquanto Richard é extremamente violento com a criatura, Robert demonstra compaixão por saber que ali se trata de um ser único, o que abre uma enorme quebra de paradigmas. Ao contrário dos 80 bilhões de filmes estadunidenses sobre a Guerra Fria, o vilão não é o russo. "Água" inverte os papeis ao colocar o americano na posição negativa ao invés do salvador do planeta como praticamente todas as produções já feitas até hoje na terra do Tio Sam.

E aqui esbarramos em mais uma atualização do que seria um clássico: as discussões sociais são mais críticas e menos tendenciosas. Richard possui uma vida de propaganda de margarina: uma casa moderna, filhos correndo para a escola e sua esposa dona de casa pronta para alimentar o marido e prover sexo. O que antes era o exemplo a ser almejado, em "Água" são características de um personagem racista, machista e cruel, tratando com repúdio todos os diferentes.


Numa cena onde interroga Elisa e Zelda (a "criadagem", nas palavras de Richard), ele, depois de muito intimidar a faxineira negra, diz que a cobaia não é um ser humano por não parecer com uma obra de deus. E solta: "Deus parece como um humano, como eu. Ou como você. Talvez mais como eu". O roteiro de Del Toro e Vanessa Taylor - essa produtora e roteirista de "Game of Thrones" (2012-13) - é nada sutil na construção psicológica de seus personagens, e se apropria de arquétipos para por o dedo na ferida. Elisa é a mulher muda, retraída e sexualmente frustrada; Zelda a mulher negra mãezona; e Richard o oficial impiedoso e odioso. O binarismo "mocinhos" e "bandido" é gritante.

A falta de sutileza pode incomodar e deixar o texto fácil demais, porém o filme acerta ao utilizar de algo tão escancarado para tecer suas críticas - algo que um filme de época não se atreveria a fazer ou, se fizesse, seria de forma mais tímida. O melhor amigo de Elisa, Giles (Richard Jenkins), é um homem gay com paixonite pelo atendente da loja de tortas - ele nem gosta das tortas, mas vai até lá só ver o cara. Quando um filme da década de 50 trataria de tais assuntos de tal forma?

Enquanto todas essas tramas acontecem, Elisa cria uma magnética atração pela criatura. A áurea de mistério emana do anfíbio, que recebe o esforço da protagonista para criar uma ligação, rapidamente recompensada, o que prova que o bicho possui inteligência - à sua maneira. É mais uma evidência conclusiva para o Dr. Hoffstetler da importância da cobaia e de como ele deve ser mantido vivo - algo que Richard não está muito interessado em fazer, principalmente depois que a criatura arrancou dois dos seus dedos.


Percebendo que Richard irá matar o anfíbio, Elisa cria um plano com Dr. Hoffstetler para soltar o bichinho antes que seja tarde, o que envolverá todos em sua volta, de Zelda ao Giles. A fuga trará um sentimento conflitante em Elisa: ela deve manter a criatura consigo, arriscando matá-la, ou soltá-la na água, arriscando perdê-la? Enquanto decide, a moça o mantém em sua banheira, que faz a relação estreitar, ocasionando o primeiro encontro sexual do casal.

Sim, a mulher transa com o peixe, ou seja lá a nomenclatura biológica que ele teria. E sim, tudo isso soa ridículo. Todavia é impressionante como o filme consegue obter sucesso ao transformar algo que seria patético em momentos realmente tocantes, e é apaixonante ver como a mulher se entrega para o único ser que parece compreendê-la. As motivações de Elisa para salvar o humanoide são incisivas e bem puras, quando ela diz que ele a vê como ela é ao invés de uma pessoa incompleta, sem voz. E tudo isso só é capaz através da sensacional performance de Sally Hawkins, que transmite tanta verdade sem abrir a boca. Utilizando uma perfeita língua de sinais - os diálogos são reais -, a atriz consegue ultrapassar as barreiras do difícil papel e entregar sinceridade e paixão - e rendem a icônica cena onde ela manda Richard se f*der enquanto só o público entende - através da legenda na tela.


Um elemento delicado, mas que colabora com a narrativa, é a utilização dos figurinos de Elisa. A mulher começa o filme vestindo verde, e, com o passar do amadurecimento da relação com o anfíbio, vai introduzindo tons de vermelho em seu vestuário, até terminar vestida inteiramente com um grande sobretudo carmim. É um detalhe que pode passar despercebido, no entanto, é elemento visual sendo posto na tela como ferramenta de composição da narrativa da protagonista, o que é lindo em todas as maneiras.

E beleza é algo que transborda em "Água". O anfíbio rouba a cena sempre que aparece pela sua construção imagética. Feito quase inteiramente de maquiagem e figurino, apenas os olhos do bicho são efeitos especiais, já que seria impossível criar as pálpebras aquáticas mecanicamente. Suas cores e detalhes corporais, como as luzes em sua pele, são estonteantes, e demoraram três anos para ficarem prontos - e tiveram inspiração no clássico da infância do diretor, "O Monstro da Lagoa Negra" (1954). Doug Jones, parceiro de Del Toro em vários filmes - ele é tanto o fauno quanto o monstro com olhos nas mãos em "Labirinto" - mais uma vez realiza um incrível trabalho ao dar vida a um ser mítico. O ator, preso debaixo de tanta maquiagem, é quase anônimo por não ter seu rosto exposto na tela, sempre entregando o próprio corpo para o nascimento de criaturas, espíritos e demônios.


Monstros são quase sempre associados com terror ou sci-fi, então vermos dentro de um romance - com um humano, ainda por cima - é uma turbulência na camada do cinema. A trilha sonora delicadíssima de Alexandre Desplat é personagem preponderante para a realização do amor do casal e da áurea fabulesca e jocosa da obra, que não possui um elemento técnico fora do lugar. Tudo soa feito sem esforço, o que obviamente não é verdade, mas passa uma sensação de conforto e realismo - e estamos falando de um amor de uma mulher muda com um humanoide para conquistar plateias.

"A Forma da Água" é uma triunfal realização ao dar veracidade a um dos amores mais estranhos já feitos no Cinema, e é exatamente aqui que reside a sua força: é um filme que faz o amor quebrar a barreira do ecrã e atingir o espectador, que sai da sessão tão apaixonado quanto o casal. Reavendo um período clássico da Sétima Arte, a produção tanto homenageia uma época como distorce padrões ao usar estereótipos em prol de discussões sociais importantes. Milagre visual com um dos finais mais arrebatadores do ano, "A Forma da Água" é um filme sobre excluídos, marginalizados e sem voz. Quando os mocinhos são uma trupe formada por uma mulher muda, uma negra, um gay e uma criatura anfíbia da Amazônia, enquanto o vilão é o homem branco americano, é a conclusão de que Del Toro fez um filme político de forma mágica e encantadora.

Incapaz de distinguir a sua forma, eu te encontrei todo ao meu redor.

Crítica: com grande luta feminina, "Três Anúncios Para Um Crime" é o filme certo na hora certa

Indicado aos Oscars de:

- Melhor Filme
- Melhor Atriz (Frances McDormand) *favorito*
- Melhor Ator Coadjuvante (Sam Rockwell) *favorito*
- Melhor Ator Coadjuvante (Woody Harrelson)
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Montagem
- Melhor Trilha Sonora

Crítica editada após os indicados ao Oscar 2018
Atenção: a crítica contém spoilers.

Mildred Hayes (Frances McDormand) é uma mãe que, ao ver três outdoors abandonados, decide alugá-los. Neles ela escreve, respectivamente: "Estuprada enquanto é morta", "E ainda nem uma prisão?", "Como pode, Xerife Willoughby?". A mensagem aqui é curta e grossa; sete meses se passaram desde o assassinato de sua filha e até o momento ninguém foi minimamente ligado ao crime. O Xerife (Woody Harrelson) afirma que a polícia está fazendo seu trabalho, mas o DNA do culpado foi compatível com ninguém dentro dos sistemas. Para Mildred, isso é além de nada.

Sem perder tempo, "Três Anúncios Para Um Crime" (Three Billboards Outside Ebbing Missouri) já começa com seus três anúncios do título - e são esses meros objetos que vão desencadear toda a trama. A renovação dos esqueletos dos outdoors na feroz investida de Mildred atrairá a atenção do público - exatamente o que ela desejava -, e iniciará uma caça às bruxas. O problema é se estão caçando as bruxas corretas.


A polícia, como era de se esperar, fica em polvorosa. Jason Dixon (Sam Rockwell) é o mais revoltado com a instalação das "ameaças", principalmente depois que Mildred vai à televisão falar como "a polícia está ocupada demais torturando pessoas negras para se preocupar em resolver crimes reais" - o quote aqui é exato. Não demora até toda a cidade se revoltar junto - e é o padre da paróquia que vai até à casa de Mildred como porta-voz da população, mas ele é rapidamente enxotado da sala de estar. A mãe é irredutível, mesmo com os lamentos de Robbie, seu filho (Lucas Hedges), assombrado ao relembrar a morte da irmã todos os dias ao passar pelos outdoors.

O primeiro baque dado por "Três Anúncios" é, sem dúvida, a Mildred de Frances McDormand. A atriz é conhecida por criar incríveis personagens coadjuvantes - ela venceu o Oscar de "Melhor Atriz" por "Fargo: Uma Comédia de Erros" sendo que sua personagem só aparece na metade do filme - o que tecnicamente a qualificaria como coadjuvante. Dessa vez temos uma protagonista absoluta: Mildred não rouba, e sim assalta todas as cenas. Mesmo com forte competição - Sam Rockwell está incrivelmente insano - é impossível desgrudar os olhos da atuação brilhante de McDormand.


E o roteiro de Martin McDonagh, que também dirige, é o fomentador dessa performance. Há incontáveis camadas que potencializam a persona de sua protagonista. Mildred está presa no meio de uma sociedade altamente tóxica. Vindoura de um relacionamento abusivo, seu ex-marido a agredia física e verbalmente. As pessoas ao seu redor são violentamente racistas - uma cena emblemática é a do desprezo pelo homem negro à frente da delegacia que segundos depois se revela um xerife. Sua filha é arrancada de forma cruel e ela depende desses homens racistas e machistas para resolver o caso. Sete meses sentada esperando, a mãe não poderia mais ficar de braços cruzados, tendo que usar da criatividade para por um ponto final nesse trágico capítulo de sua vida.

É curioso notar como quase nenhum personagem fica do lado dela em relação aos outdoors. Mesmo ninguém desejando que o culpado não seja encontrado - abertamente, pelo menos -, é uma audácia Mildred decidir fazer algo. Mas por quê? Ora ora, que resposta mais simples: porque foi uma mulher que decidiu fazer esse algo.

Se fosse o pai da vítima, o mesmo que abusava de Mildred, fazendo exatamente a mesma coisa, a recepção teria sido completamente diferente. Uma mulher ousar não só clamar por justiça, como apontar o dedo para um homem, é um absurdo. Usando um trecho do discurso de Laura Dern no Globo de Ouro 2018, mulheres foram ensinadas a não reclamar, naturalização feita por uma cultura do silêncio, e Mildred joga tudo isso no lixo.


Ácida e dura como pedra, a personagem deixa ninguém vê-la suando - principalmente se esse alguém for um homem. Seja em momentos onde ela manda todo mundo calar a boca ou até mesmo dando apenas uma encarada para gelar o sangue, é vibrante seguir seus passos através do filme, composta com uma personalidade que foge do arquétipo dona de casa - todavia, por trás de toda a casca grossa há uma mulher que chora escondida pela perda da filha. As dualidades da mãe de luto são orquestradas sem esforço por Frances, numa das melhores personagens da temporada. Mas sejamos realistas: ela é ajudada pelos próprios personagens masculinos, cada um mais babaca que o outro - o único sensato é, que rufem os tambores, o xerife negro.

Porém não se iluda, achando que todos os homens do filme são malvados enquanto a protagonista é uma princesa e ícone de comportamento a ser seguido. O roteiro não passa a mão na cabeça de ninguém, e até mesmo Mildred possui suas falhas - como na sua relação com James (Peter Dinklage), o anão. Ela não foge da massa que o vê como uma pessoa de segunda categoria, e, apesar de não destratá-lo, vê suas investidas com vergonha ou como uma piada. O preconceito está enraizado dentro do ser humano através de nossas práticas sociais, e fugir dele é um desafio diário.


Num paralelo gritante, o segundo grande baque da obra é o mesmo dado por "Manchester À Beira Mar" no ano passado. Ao invés de deitar para o melodrama, "Três Anúncios" também rola para o humor negro. O espinhoso tema é trabalhado de maneira genial pelo roteiro, que introduz cenas e diálogos bombásticos, hilários e cortantes, que arrancam risos e prendem garganta. Impiedoso, McDonagh elabora situações e reviravoltas magistrais, costurando um jogo de gato-e-rato cheio de cruezas - o vocabulário de Mildred é coberto de "fuck", "shit" e "motherfucker". Uma delícia.

A primeira grande reviravolta do longa é quando Mildred se cansa da passividade e decide agir mais energicamente. Depois que os anúncios não resolveram a situação - aliás, podem ter até piorado - ela incendeia a delegacia. A cena é composta inteligentemente quando a mulher atira coquetéis molotov através das janelas da empresa que fabrica os outdoors, que, sim, se localiza exatamente em frente à delegacia, por mais irônico que isso seja - propositalmente, é claro. Só que ela não sabia um importante detalhe: Dixon estava dentro do local no momento e acaba severamente queimado. Há vários choques e tensões entre os personagens, porém Mildred claramente demonstra que não queria ter causado aquilo ao homem, por mais asqueroso que ele seja.

A segunda reviravolta acontece quando Dixon encontra um homem que narra uma noitada parecida com a noite em que a filha de Mildred morreu. Ele decide então investigar o cara e arma uma briga para coletar o DNA do suspeito - levando uma surra em seguida. Moral da história: ele aceitou apanhar para ajudar Mildred, a mesma mulher que quase o matou na delegacia.


"Três Anúncios" é filme inteligente - e relevante: o que poderia ser um festival de gritos, tiros, sangue e violência entre os personagens sofre uma guinada importante quando as duas principais peças do jogo, que se odiaram o filme inteiro, são postos em posições onde as desavenças devem ser postas de lado em nome de um bem maior. Ao invés de cair na anarquia, como esperávamos, a panela de pressão que é a obra vai diminuindo seu calor para mostrar o poder do perdão. 

É belíssimo ver como o diretor/roteirista transforma meros outdoors em verdadeiros fantasmas capazes de desenterrar ódios que colocam todos os personagens contra si. Em meio à Era Trump, "Três Anúncios" dialoga com perfeição com a camada social doente, que começa a exalar seus preconceitos. Há em todo momento uma sensação de instabilidade, com Mildred andando sobre um campo minado onde a cada esquina pode gerar a fúria de alguém. Uma cena, onde ela é intimidada por um estranho dentro do trabalho, é a encapsulação da espiral de raiva desencadeada pelos anúncios, bodes expiatórios exemplares para a população extirpar sua violência - e o alvo, uma mulher, é bom demais para não ser atingido.


Mas é evidente: Mildred não perdoou o autor do crime que desencadeou toda a história - e também pudera. Ela acabou direcionando sua raiva para os peões errados, mesmo sem nunca ter esquecido quem era o real culpado. Há coisas que não podem ser perdoadas com tamanha facilidade, e, apesar de se reconciliar com Dixon, ambos partem juntos com um plano para matar um suposto estuprador.

Todas as atitudes de Mildred são motivadas pela sua filha: a garota dizia que a mãe não se importava com ela, que coloca três outdoors gigantes em "homenagem" à filha; o culpado do crime nunca pagou pelo mesmo, e ela vai à caça de um provável estuprador para externalizar essa culpa, mais uma forma encontrada pelo roteiro para mostrar que não há o binarismo de mocinhos vs. banidos. O ser humano é complexo demais - e cheio de falhas - para isso. É claro que justiça com as próprias mãos é uma atitude errada, mas o dúbio final é um regozijo, a forma que McDonagh achou para por reticências onde não pôde colocar um ponto final.

"Três Anúncios Para Um Crime" não é apenas uma obra-prima pela sua poderosíssima realização, é um filme certo na hora certa. Nessa onda feminina de denúncias contra abusos, acompanhar a luta de uma mãe em busca de justiça pela morte da filha é a história que precisávamos ver. Com seus personagens escancaradamente conturbados e situações ácidas, temos em mãos um filme atemporal - ou você acha que Frances McDormand virando caçadora de estuprador e colocando todos os homens ao redor em seus devidos lugares não será um clássico?

Crítica: "Lady Bird" alcança raro sucesso apesar de uma história clichê e batida

Indicado aos Oscars de:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Atriz (Saoirse Ronan)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Laurie Metcalf)
- Melhor Roteiro Original

Crítica editada após os indicados ao Oscar 2018

"Lady Bird: A Hora de Voar" entrou para a histeria coletiva quando se tornou o filme mais bem avaliado da história do Rotten Tomatoes, com um perfeito score de 100% de aprovação ao ultrapassar "Toy Story 2" no número de críticas positivas. Apesar de o feito, olhando com praticidade, não dizer lá muita coisa - o sistema de pontuação do site é bastante dúbio, pois filmes com 100% muitas vezes possuem notas gerais bem mais baixas que outros sem a unanimidade -, era um filme dirigido por uma mulher a estar no topo, o que aí sim, seria um feito notável.

Porém a marca não durou tanto tempo assim: um crítico - e por ora, apenas ele - deu uma nota negativa ao filme, que detém 99% de aprovação até o presente momento. E ele mesmo fez questão de apontar: deu uma nota ruim para tirar os 100% do longa. Bem, prioridades. 

Mas cada qual com sua opinião, e a desnecessária caça às bruxas que foi gerada ao redor do tal crítico é um reflexo da tal histeria coletiva que abate filmes altamente aclamados: parece que se forma uma cúpula contra qualquer comentário que vá de encontro à tal obra, e vamos aos fatos: ninguém é obrigado a concordar. Porém não se preocupe, eu faço parte do grupo que aprovou "Lady Bird".


Lady Bird (Saoirse Ronan) é uma estudante do último ano do ensino médio. Seu real nome é Christine McPherson, mas ela rejeita ser chamada assim, pois possui autonomia o suficiente para criar "Lady Bird", um nome dado para ela por ela mesma. Ela vem de uma família de classe média baixa e possui um conturbado relacionamento com sua mãe, Marion (a maravilhosa Laurie Metcalf), já pontuado logo nas primeiras cenas, quando, numa discussão dentro do carro, Lady Bird prefere de atirar para fora do veículo em movimento que continuar ouvindo os sermões da mãe.

A garota estuda numa escola católica e, quando não está ignorando os restritos costumes da instituição, anda pelas ruas dos bairros ricos de Sacramento com sua melhor amiga, Julie (Beanie Feldstein), imaginando qual daquelas suntuosas casas deveria ser a dela; ou folheia revistas de moda e se questiona o porquê de não parecer como as modelos das inúmeras páginas - ao contrário de outras meninas do colégio, que já nasceram perfeitas.


Provavelmente já deve estar claro que a obra se trata de um coming-of-age, aqueles filmes de high school que mostram o crescimento de seus personagens e as tramoias que devem enfrentar para o amadurecimento. E "Lady Bird" não esconde isso: está escancarado que seu desejo é seguir os passos da protagonista e ver como ela se relaciona com essa fase tão complexa da vida, quando somos obrigados a tomar decisões que afetam toda a nossa existência quando nem ao menos sabemos quem somos de verdade.

A primeira grande - e talvez única - diferença do longa para um coming-of-age qualquer é a estrutura familiar dos McPherson, matriarcal. É Marion que controla as rédeas da casa, já que o marido, Larry (Tracy Letts), perdeu o emprego e possui uma personagem nada combatível: é ele que detém o lado emocional do relacionamento, sobrando para Marion o dever de dizer as verdades nuas e cruas para Lady Bird, que pede para a mãe comprar uma revista e é negada com a resposta "Só pessoas ricas leem revistas no banheiro, nós não somos pessoas ricas".


Lady Bird acaba vivendo uma vida dupla: as dificuldades econômicas em casa e uma ilusória vida mais bem sucedida na escola, criando mentiras sobre onde e como vive, que, com toda a obviedade, será desmascarada no decorrer da fita. Ela troca de amigos, de lugares e de comportamento para se encaixar num padrão que não é seu até ter uma epifania e ver que tudo aquilo vale nada.

À essa altura você já deve ter percebido que "Lady Bird" é um filme que conta nada de novo, certo? E é verdade. Quase nada na obra é inédito ou que não tenhamos visto milhares de vezes no cinema: auto-descobrimento, sexualidade, seu lugar no mundo, faculdade, amigos, festas, drogas etc. Um dos principais concorrentes de "Lady Bird" na temporada, "Me Chame Pelo Seu Nome", trata dos mesmos assuntos. O que então faz com que o longa seja tão amado? A forma como essa velha história foi contada. Greta Gerwig, roteirista e diretora do longa, usa sua própria vida como inspiração e se apropria de todos os clichês do gênero para subvertê-los e criar uma peça única à sua maneira.


É compreensível quem assistir ao filme e achar nada de mais pela exaustão do roteiro batido, que, com poucos pequenos cortes, poderia ser exibido na Sessão da Tarde sem problemas. Mas também é compreensível quem ceda ao charme da produção, a maior força da mesma. Saoirse Ronan, finalmente se encontrando como atriz, rege uma personagem extremamente cativante e de fácil apreço pelas sua entrega e as dualidades de sua personagem, ajudada pela construção imagética e de personalidade do roteiro, que a fazem ser excêntrica na medida certa: seus cabelos vermelhos mal pintados, suas unhas com esmaltes descascando, seu quarto colorido e abarrotado de pôsteres. Todo o universo particular da garota é uma delícia.

A vida da menina aspira a ser como um conto de fadas, com muita cor de rosa e o sonho do baile de formatura perfeito. Porém a princesa aqui não possui um castelo, nem príncipe encantado, nem sapato de cristal. Fazendo o contraponto perfeito da solar personalidade de Lady Bird temos sua fada madrinha, Marion. Laurie Metcalf, favorita ao Oscar de "Melhor Atriz Coadjuvante", já está acostumada a dar vida à mães difíceis - ela é a mãe do Sheldon em "The Big Bang Theory" -, e aqui encontra seu apogeu. Sua personagem é deveras complexa: devendo cuidar da casa, ela se vê com a responsabilidade de cuidar do marido desempregado e depressivo, dos filhos nada fáceis e da sua própria vida, dividida entre o papel de dona de casa e enfermeira com jornada dupla.


É latente que os rumos da vida de Marion não foram os que ela traçou para si - ela afirma que nunca imaginava que viveria naquela casa "do lado errado dos trilhos" pelo resto da sua vida. Sem soar como vilã - um acerto bem vindo do roteiro - a mãe possui forte carga emocional pelas extensas camadas de bagagem, exploradas de maneira incrível pelo texto em pequenos momentos - quando ela olha preocupada para a conta do supermercado ou questiona se Lady Bird precisa mesmo usar duas toalhas depois do banho.

E de grandes pequenos momentos o filme está cheio. Greta, que já demonstrou talento para a atuação nos ótimos "Frances Ha" (2012) e "Mulheres do Século 20" (2016), costura sua obra com uma paixão que exala da tela, e mostra seu domínio cinematográfico e criatividade para gerar bons personagens e situações. Em sua estreia solo da direção, Gerwig é a mulher a chegar mais próximo de colocar as mãos num Oscar de "Melhor Direção" desde Kathryn Bigelow, a única a conseguir o feito - por "Guerra Ao Terror" em 2009. Mesmo não sendo a favorita, o roteiro original de "Lady Bird" é uma perfeita união de drama e comédia que a Academia adora louvar com o Oscar.


E todo o aparato técnico do longa colabora com seu sucesso, desde a fotografia inspiradíssima, roubando takes lindos de Sacramento sem abrir mão de um pesado filtro; até a montagem, uma das melhores do ano, que consegue compor um ritmo acelerado e fazem os 93 minutos voarem tão alto quanto sua protagonista. A única falha notável é o final, abrupto em demasia e que ultrapassa o limite do piegas, mas irrisório diante de toda a doçura do filme, produção que coloca os pés da protagonista - e da plateia - no chão, no real, nas durezas do dia a dia.

É inevitável a sensação de familiaridade com toda a trama, todavia, além de esperarmos histórias novas, o cinema é fonte de renovação constante das histórias já contadas. O que Gerwig faz é tão difícil quanto bolar algo inédito: transformar em interessante, genuíno e sincero um produto repetido, sem cair no artificialismo. "Lady Bird: A Hora de Voar" pode não ser original, mas consegue ter força pela linda união das partes, num filme aconchegante sobre seres humanos reais que estão constantemente à procura de si mesmos - árdua tarefa que todos nós enfrentamos.

Você não acha que são a mesma coisa, "amor" e "atenção"?

Crítica: "Me Chame Pelo Seu Nome" é cinema gay de qualidade, mas não merece o Oscar

Indicado aos Oscars de:

- Melhor Filme
- Melhor Ator (Timothée Chalamet)
- Melhor Roteiro Adaptado *favorito*
- Melhor Canção Original

Crítica editada após os indicados ao Oscar 2018

Pode ser prematuro afirmar, mas parece que estamos vivendo o apogeu do cinema LGBT. Filmes com a temática são produzidos há tempos, mesmo que de forma não tão explícita - "Festim Diabólico" (1948), clássico do Hitchcock, é um exemplo com personagens gays sem possuir o tema desenvolvido -, porém estamos encontrando cada vez mais destaques anuais que embarquem nos dramas e vidas dessa população.

Pelo terceiro ano consecutivo, temos um filme LGBT recebendo aclamação e figurando entre os melhores do ano: "Carol" em 2015, "Moonlight: Sob a Luz do Luar" em 2016 e "Me Chame Pelo Seu Nome" (Call Me By Your Name) em 2017, todos premiados e importantíssimos para as discussões que envolvem sexualidade e gênero. Se "Moonlight" venceu o Oscar de "Melhor Filme" na edição de 2017, "Me Chame Pelo Seu Nome" já figura como um dos favoritos, podendo ser o segundo filme gay a ter a maior honraria da Academia.


"Me Chame Pelo Seu Nome" tem causado frisson desde sua estreia no Festival de Sundance, em janeiro deste ano, quando já era cotado para o Oscar de 2018. Dirigido por Luca Guadagnino, a obra segue Elio (Timothée Chalamet), jovem de 17 anos que passa seus dias preguiçosos no interior da Itália. Essa preguiça será abalada com a chegada de Oliver (Armie Hammer), estudante norte-americano convidado pelo pai do garoto a passar as férias em sua casa. A locação, em união com a fotografia e os figurinos, é responsável pelo clima edílico da fita, um filme solar, veraneio e que evoca a liberdade.

Em um legítimo coming-of-age, "Me Chame Pelo Seu Nome" visa desbravar o autoconhecimento de Elio na fase mais turbulenta da vida. Em meio ao marasmo da sua cidade, ele tenta se encontrar como pessoa, sendo obrigado a pegar um grande desvio quando Oliver entra na sua casa. Charmoso, bastante inteligente e facilmente apegável, Elio vê no rapaz o oposto de si mesmo, que passa a vida lendo ou ouvindo música, recolhido na sua própria introspectividade.

O longa acerta em já começar com a chegada de Oliver, logo na primeira cena. Os olhares dados por Elio sobre o cara são imediatamente de curiosidade, um exemplar atrativo para a descoberta de sua sexualidade. Então passamos a seguir os passos de ambos até o florescer do relacionamento.


Aqui esbarramos no primeiro problema: demora uma hora para o relacionamento de fato começar. Até lá, somos obrigados a enfrentar as mais diversas e clichês burocracias do gênero: se de um lado temos a dúvida de Elio sobre seus próprios sentimentos, o filme nos dá aquele velho lenga-lenga do personagem (no caso, Oliver) ficando com uma menina, para o ciúme velado do protagonista, que vai tentando chamar a atenção do outro. Daí para frente, tudo é altamente previsível.

Até que a atenção seja concretamente alcançada, a primeira hora é maçante, sem emoção e recheada de momentos em que nada acrescentam à narrativa. Arqueólogo como o pai de Elio, Oliver vai desde explicações sobre origens linguísticas até visitas arqueológicas. E tome recitais de poemas, e sequências no piano e leituras de autores franceses do século XVIII.

Tudo isso ajuda a compor a persona de Elio, que vive submerso num mundo de cultura, todavia, todos os personagens ao seu redor não recebem grandes estudos. Oliver é um personagem que serve quase exclusivamente para colocar os pés de Elio na sua sexualidade, já que não possui desenvolvimento. Todos ali gravitam ao redor do protagonista e não têm relações tão bem feitas. É tudo no piloto automático, funcionando por um background formado pelo próprio espectador.


E sem tais desenvolvimentos, o nascimento do romance entre o casal não chega a convencer de maneira assertiva. Há pinceladas de composição romântica, como o momento em que Oliver massageia as costas de Elio, para o aborrecimento (forçado) do garoto, que continua ficando com uma garota, seja por desejo fidedigno ou para expulsar Oliver da sua mente.

Porém, quando o relacionamento começa a tomar forma, o filme decola. O primeiro beijo dos dois é feito com uma veracidade rara: é palpável o desejo de ambos, a vontade animalesca de se devorarem, e é curioso ver como é Elio, aquele sem tanta experiência, que dá o primeiro passo, abrindo caminho para Oliver entrar no jogo - e ele entra, mesmo saindo rapidamente.

Se "Me Chame Pelo Seu Nome" acerta na mosca em algo é na relação física do casal: extremamente sensual, a química sexual exala da tela. Os atores conseguem se jogar de cabeça nos personagens, e entregam performances dignas de aplausos pelo comprometimento em momentos tão difíceis como as cenas de intimidade e sexo (nada explícitas). A obra explora bastante os corpos desnudos dos dois, que passam boa parte da metragem sem camisa, molhados, expelindo feromônios. Vemos suas peles, suas ânsias, seus fluidos (e seus pêssegos), e viramos cúmplices do relacionamento, visto de maneira próxima e naturalista.


Obras com temática LGBT quase sempre caem nos chavões de: mostrar os conflitos do personagem com sua família (que não aceita a sexualidade do mesmo); ou lincar com doenças, geralmente as sexualmente transmissíveis; ou enfrentar a morte de algum personagem. "Me Chame Pelo Seu Nome" faz nada disso - não que obras que tragam esses prismas sejam ruins, ainda necessita-se que se debata essas mazelas da vida LGBT, como o recente e ótimo "Viva" (2015), em especial quando esses prismas refletem também as realidades de países menos desenvolvidos.

Os pais de Elio têm ciência da "mais-que-amizade" do garoto com o pupilo, e estão bem com isso. De fato, infelizmente é exceção ter pais que aceitam com a naturalidade devida a relação homossexual do filho, porém o longa não está interessado em discutir a relação do jovem gay com sua família, e sim sua relação consigo mesmo e com Oliver. O namoro dos dois é mostrado como um romance de verão como qualquer outro - leia-se: a forma correta de ser retratada. Claro, há as dificuldades que a população LGBT ainda enfrenta - principalmente quando levamos em conta que a história se passa nos anos 80 -, entretanto, tirando isso, não há diferenças do amor dos dois com um amor hétero.

Um grande exemplo da falta de desenvolvimento do roteiro, atrapalhado pela montagem, é o período de "férias" que o casal tira do universo em que se conheceram. Eles viajam e passam três dias sozinhos, contudo quase nada é mostrado ali. Depois da viagem, Oliver terá que voltar para os Estados Unidos, o que fomentaria a angústia de qualquer um, no entanto, nem mesmo na despedida há a dose de emoção correta para o momento. Elio fica sim devastado, não havia como não ficar, mas tudo é feito letargicamente, apenas na superfície, ao invés de se aprofundar na separação dos dois, no ponto final daquele bucólico amor.


E essa impressão permanece pela maior parte da duração: desejamos nos entregar à emoção, entrarmos com força na história, mas soa como se a produção não se preocupasse tanto com isso. O amor dos dois não extrapola o ecrã e chega até o público - algo que o sexo consegue fazer sem percalços. Quando conseguimos alcançar o coração do filme, no diálogo final entre pai e filho, já estamos nos 45 minutos do segundo tempo de uma longa partida, porém, ainda assim, vislumbramos um belíssimo coração, quando o pai dá uma aula sobre o quão complexo é o nada simples ato de viver.

O filme tem sido recebido com entusiasmo generalizado, mas não dá para fugir: ele entrega quase nada de novo ou que não já tenhamos visto. Tirando o final da película e a excepcional atuação de Timothée Chalamet, que pode lhe render um Oscar de "Melhor Ator" aos 22 anos, há nada realmente fora do comum ou triunfal em "Me Chame Pelo Seu Nome". Não se engane, temos em mãos um bom filme, feito com bastante competência, porém sem alcançar os feitos fora-de-série de obras similares.

"Me Chame Pelo Seu Nome" é uma corretíssima representação da vida gay, um importante acréscimo no debate sobre o assunto e um marco para essa população ao levar o tema à mais alta forma de entretenimento para as massas. A forma como a produção soa tão contemporânea, mesmo revisitando os anos 80, prova como o trato à vida gay foi exemplar. Só é inegável perceber como ele não tem o desenvolvimento de "O Segredo de Brokeback Mountain", a delicadeza de "Carol", a crueza de "Tangerine", a importância de "Moonlight" ou a devastação de "Azul é a Cor Mais Quente", primos no cinema LGBT realizados com muito mais expertise - e muitas vezes sem metade do reconhecimento recebido de "Me Chame Pelo Seu Nome".

Crítica: "Dunkirk" é um exercício tecnicamente impecável, mas sem drama e pessoas não-brancas

Indicado aos Oscars de:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem
- Melhor Direção de Arte
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som
- Melhor Trilha Sonora

Todo lançamento de um filme de Christopher Nolan é um verdadeiro evento. O diretor conseguiu angariar um status invejável dentro de Hollywood e é um dos maiores expoentes do cinema comercial do mundo - tendo em vista que ele se encontra dentro do mais poderoso pólo de Cinema do planeta. Sua fama deu-se, principalmente, pela trilogia Batman ("Begins" em 2005, "O Cavaleiro das Trevas" em 2008 e "O Cavaleiro das Trevas Ressurge" em 2012).

Nesse meio tempo e após a conclusão da franquia, o diretor também lançou dois enormes nomes do cinema contemporâneo: "A Origem" em 2010 e "Interestelar" em 2014. Ambos sucessos de crítica, enormes bilheterias e Oscars em suas prateleiras (o primeiro levou "Melhor Fotografia", "Efeitos Visuais", "Mixagem de Som" e "Edição de Som", enquanto o segundo ganhou "Efeitos Visuais"). Não era pra menos que o novo longa de Nolan, "Dunkirk" seja recebido com tanto entusiasmo.


A obra se passa durante a Segunda Guerra Mundial, quando a operação Dunkirk retirou soldados Aliados das praias da cidade de mesmo nome, no norte da França. Filmes sobre a guerra, sejam abordando a guerra em si ou utilizando-a como plano de fundo, são feitos há muitas décadas, como "A Lista de Schindler" (1993), "O Pianista" (2002), "A Queda! As Últimas Horas de Hitler" (2004), "Casablanca" (1942), "Vá e Veja" (1985), "Apocalypse Now" (1979), "Glória Feita de Sangue" (1957), "O Resgato do Soldado Ryan" (1998), "O Filho de Saul" (2015), "Até o Último Homem" (2016), etc etc etc.

Filmes com esse plano de fundo sobre alguma guerra real ou se inserem como contextualizadores, como o caso de "O Filho de Saul", ou são verdadeiras aulas de história, como é o caso de "Dunkirk". O roteiro de Dolan usa o macete da tripla perspectiva: a história se passa no ar, na água e na terra. Cada um dos trechos da batalha possuem durações diferentes, explicitadas logo no início, para que, concomitantemente, se unam num mesmo final. A jogada não é novidade na cinematografia do diretor, que adora o "pra quê simplificar se eu posso complicar?" - vide o roteiro de "Amnésia" (2000) que conta o filme de trás pra frente e o de "A Origem", lotado de camadas.


Se por um lado essa narrativa tripla é uma jogada bastante ousada, por outro soa gratuito e até confuso. O segmento no ar, por exemplo, que se passa em 1h, é uma chatice sem fim, basicamente mostrando os pilotos tentando derrubar aviões inimigos e preocupados com o nível de gasolina. Enquanto o trecho da terra se passa durante uma semana, com pinceladas nos eventos mais importantes, o ar sobra espaço para o tédio pela repetição de si mesmo.

Outra ousadia abraçada por Nolan foi não ter nenhum personagem como o real protagonista do longa. Quem é a estrela principal do filme é a guerra. Isso soa bastante interessante - e de fato é -, porém, assim como a tríplice narrativa, há prós e contras aqui. A principal vantagem é que não há um "herói", aquele personagem que você sabe que vai salvar o dia e que, mesmo com todos os percalços, nada de mal vai acontecer com ele. Com exceção de Tommy (Fionn Whitehead), o mais próximo do protagonismo entre os atores, todos são peões da guerra - esta, traiçoeira, brinca com o destino de todos de forma perversa.


A desvantagem da batalha ter o maior brilho é que não há desenvolvimento para os personagens. Pegamos apenas um trecho de suas vidas, alguns, como os pilotos do segmento no ar, apenas 1h de suas existências, então é impossível você se apegar a qualquer um deles. Os peões são tão descartáveis para o espectador quanto para a guerra. Se você não se atém aos seres humanos presentes na tela, a que se apegar? A resposta poderia ser à batalha em si, o objetivo do longa, porém, demonstrando de forma bem básica, a Batalha de Dunkirk tem pouca relevância para nosso contexto - talvez para os ingleses, principais locutores dos acontecimentos, o filme deva ter maior importância.

"Dunkirk" falha em algo que é primordial num filme: não há drama. Ao contrário do melodramático "Interestelar", há um excesso de frieza e letargia por parte da película, que não entrega grandes ganchos para a fixação do público. Nomes como Harry Styles (sim, do One Direction, em competente atuação), Cillian Murphy e Mark Rylance (recém vencedor do Oscar de "Melhor Ator Coadjuvante" por "Ponte dos Espiões", 2015, outro longa com guerra como fundo, dessa vez a Guerra Fria) até ganham destaque, mas, impossibilitados de nos afeiçoarmos pelos mesmos, seus destinos são insípidos.


Com uma intricada narrativa, personagens sem desenvolvimento e centenas de figurantes para embaralhar ainda mais a coisa, a obra sofre de um mal que já deveria ter sido abolido: o whitewashing (ou "embranquecimento", no bom português). Mesmo com milhares de atores, não se vê pessoas não-brancas: africanos, indianos e outros povos são excluídos para dar espaço aos ingleses brancos. Em artigo no The Guardian, a escritora indiana Sunny Singh critica a forma histórica escolhida por Nolan:

Mas por que é tão importante para Nolan, e para muitos outros, que o filme expulse toda a presença não-branca na praia e nos navios? Por que é psicologicamente necessário que as tropas britânicas heroicas sejam resgatadas apenas por marinheiros brancos? (...) O exército francês em Dunkirk incluia soldados de Marrocos, Argélia, Tunísia e outras colônias, e em números substanciais. Alguns rostos não-brancos são visíveis em uma cena de multidão, mas é só. (...) [Discutir] isso é importante porque, mais do que livros de história e aulas escolares, a cultura popular molda e informa a nossa imaginação não só do passado, mas do nosso presente e futuro. (...) Todos os contadores de histórias conhecem o poder que detêm. Histórias podem desumanizar, demonizar e apagar. Mas as histórias também são o único meio de humanizar aqueles considerados desumanos; para criar solidariedade, compaixão, simpatia e até amor para aqueles que são estranhos. E é por isso que "Dunkirk" - e de fato qualquer história - nunca é apenas uma história.

A produção até tenta esconder, mas é um produto de evocação inglesa. Há certa "objetividade" na retratação dos fatos, porém, no final, a trilha chorosa não perdoa o ar de superioridade daquele povo da terra da rainha, e como todos são vitoriosos e bonzinhos - que nada difere dos patrióticos filmes norte-americanos, como "Sniper Americano" (2014). Nolan, que é inglês, poderia encerrar seu longa sem cair nessa patifaria tão barata de exaltação que em nada agrega, principalmente ao silenciar várias etnias que estavam em grande número na aula de história que o filme tenta fazer.

Porém, todos os defeitos, que são grandes, não são capazes de ofuscar a beleza das imagens de "Dunkirk". Comentar sobre sua fotografia é chover no molhado, entretanto, é inevitável não falar das belíssimas imagens retiradas por Hoyte Van Hoytema (também diretor de fotografia de "Ela", 2014, "007 Contra Spectre", 2015, e "Interestelar"). Utilizando o horizonte como porto seguro, todos os jogos de câmera, num poderoso rolo de 70mm, são louvores da complacência da natureza, enquanto vemos homens agonizando pelos descaminhos da guerra. Indicação ao Oscar de "Melhor Fotografia" é obrigação.


Outro aparato técnico impressionante é a edição e mixagem de som. "Dunkirk" é um filme sem muitos diálogos entre os personagens porque é a guerra que grita. Ela é o encapsulamento do horror, então a película é um trabalho bastante barulhento. Não um caos de sons aleatórios como vemos num "Transformers" (2007) da vida, mas uma sucessão bem ordenada de tiros, bombas e gritos. A trilha sonora fora de série de Hans Zimmer (vencedor do Oscar de "Melhor Trilha" por "O Rei Leão", 1994) é irretocável, exagerada e violentamente eficiente - excluindo o final -, que, fundidas com os sons diegéticos, orquestram um espetáculo sonoro sem precedentes.

Christopher Nolan consegue contar uma história praticamente só pelas imagens, e comprova sua expertise em domínio cinematográfico, todavia, fica difícil não sair do cinema com aquela sensação de que seu novo filme é muito mais uma afirmação de "vejam como eu sou bom em filmar tudo isso". Doses homeopáticas de tensão são entregues e, mesmo sendo seu segundo filme mais curtos (106 minutos), a duração parece se arrastar por horas a fio, efeito causado principalmente por não nos importamos com o que está no ecrã - estamos mais entretidos pela parte técnica, hipnotizados pelas lindas imagens e como a trilha ajuda a compor o quadro. "Dunkirk", por fim, é um prato de decoração que penduramos na parede da cozinha: de beleza inegável, mas sem comida alguma dentro. O espectador sai da sessão vislumbrado, mas com o estômago tão vazio quanto esse prato.

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