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As 10 melhores fotografias do cinema em 2021


Para abrir as listas de "Melhores de 2021" aqui no Cinematogafia (ainda teremos as melhores atuações e, claro, os melhores filmes), aqui estão as 10 melhores fotografias do ano, aquelas que nos fizeram falar "dá o Oscar para esse enquadramento". Mas antes de tudo, o que é fotografia?

A fotografia - ou cinematografia, no jargão técnico mais apropriado - é o termo que mais sofre quando alguém elogia o "visual" do filme. Ao contrário do que se pode presumir, a fotografia não é necessariamente tudo o que está na tela, tudo o que podemos ver; ela é a "impressão" do roteiro, ou seja, os enquadramentos, movimento de câmera, uso de filtros, manipulação de cores, exposição de luz e afins.

Quando alguém solta um "olha a paleta de cores maravilhosa desse filme!", muitas vezes ele não está falando da fotografia, e sim do design de produção - a chamada "direção de arte", que compõe todo o aparato físico que está no ecrã. As cores, parte visual mais emblemática, entra tanto na fotografia - pelo trabalho do colorista - como na direção de arte - no trabalho do cenógrafo - e nos figurinos - no trabalho do figurinista. São departamentos distintos e realizados por profissionais diferentes; é a união de todos que fazem um filme ser "bonito" (ou não, caso propositalmente).

Então, o que a lista está julgando, basicamente, é o trabalho de câmera juntamente com a colorização das películas. O critério de inclusão dos citados é o de sempre: ter estreado nacionalmente (em salas comercias, festivais ou plataformas de stream) em 2021 ou ter chegado à internet sem data de lançamento previsto. Preparado para fazer a linha cult na próxima roda de amigos e falar das fotografias mais estonteantes do cinema em 2021? Aqui as 10 melhores pelo Cinematofagia (sem ordem de preferência):


Ovelha (Lamb)

Cinematofragia por: Eli Arenson. Coloração por: Eggert Baldvinsson.

O selecionado da Islândia para o Oscar 2022, "Ovelha" é uma fantasia com toques de terror que necessitava de uma atmosfera ideal para o desenvolvimento de sua estranha história, e a cinematografia da fita é elemento fundamental para seu sucesso. Não é tão difícil assim conseguir um filme visualmente incrível na Islândia - é só apontar a câmera para qualquer lugar do país que é garantia de imagens belíssimas -, mas "Ovelha" sabe utilizar a natureza como elemento dramático, afinal, como bem informa o roteiro, a natureza é maior mãe que existe.

Spencer (idem)

Cinematografia por: Claire Mathon. Coloração por: Peter Bernaers.

De maneira inesperada, "Spencer" é um dos filmes mais "divisivos" de 2021: enquanto o consenso da crítica é de puro deleite, o público em geral não gostou tanto assim da obra. Um elemento, no entanto, é regra: a forma como a história de aprisionamento de Lady Di é filmada com maestria. Com cores escolhidas a dedo e enquadramentos que evidenciam o estado mental da protagonista, somos catapultados para uma década de 90 cheia de glamour e solidão, como se o que está passando diante dos nossos olhos fosse uma memória que, por mais afeto injetemos, não consegue esconder sua melancolia.


O Cavaleiro Verde (The Green Knight)

Cinematografia por: Andrew Droz Palermo. Coloração por: Alastor Arnold.

Dirigido por David Lowery, mesma cabeça pro trás de "Sombras da Vida" - uma das melhores cinematografias do século -, "O Cavaleiro Verde" não tinha como decepcionar. Lowery gosta de utilizar a lente para desenvolver um universo quase paralelo, como se suas histórias não se passassem na nossa realidade, e a epopeia de "O Cavaleiro Verde" busca ser um filme feito como se fosse uma obra fidedigna dos contos fantásticos medievais, abusando de enquadramentos que evocam magia e encantamento. Todos os momentos em que o personagem do título está na tela é um show.


If I Can't Have Love I Want Power (idem)

Cinematografia por: Petra Diensbirova. Coloração por: Bryan Smaller.

O filme que acompanhou o lançamento do quarto álbum de estúdio da norte-americana Halsey, "If I Can't Have Love I Want Power" é uma extravagância imagética que não economiza na grandiosidade de suas imagens. Seguindo uma rainha que abdica de tudo em busca de poder, Halsey foi caprichosa em extrapolar a narrativa do disco com cenas encharcadas de simbolismos que vão muito além de composições visualmente bonitas - são poderosíssimas.


Nomadland (idem)

Cinematografia por: Joshua James Richards. Coloração por: Élodie Ichter.

Aquele que deveria ter vencido o Oscar de "Melhor Fotografia" (desculpa, "Mank"), "Nomadland" arrebatou a todos (e o careca dourado de "Melhor Filme") com a simplicidade em que escancarou as mazelas do capitalismo norte-americano na contemporaneidade. Fotografado pelo parceiro da diretora e oscariada Chloé Zhao, Joshua James Richards, essa mistura de road movie com cinema de denúncia contrasta suas temáticas com cenas de tirar o fôlego, capturadas com uma falsa calmaria: tua soa muito simplista, mas carrega camadas que exprimem a luta de seus personagens ao tentarem sobreviverem àqueles ambientes.


Santa Maud (Saint Maud)

Cinematografia por: Ben Fordesman.

Filmes de terror com viés religioso são um dos meus fracos, principalmente quando fotografados da maneira correta (dá vontade, "A Freira"?). "Santa Maud" é um dos exemplos de louvor. Uma enfermeira, após um acidente fatal, se converte para o cristianismo com certo... radicalismo. Sua missão na terra é salvar a vida (e a alma) de sua nova paciente, custe o que custar. Ben Fordesman (fotógrafo do maravilhoso curta musical "M3LL155X" de FKA Twigs) vai a fundo na "decreptação" do mundo de Maud, extinguindo qualquer tom de cor alegre e afundando a história em imagens lúgubres que estão mais perto do inferno do que qualquer paraíso.


O Santo Desconhecido (The Unknown Saint)

Cinematografia por: Amine Berrada. Coloração por: Laurent Navarri.

Essa pequena joia do cinema marroquino não teve o apreço que merece aqui em terras brasileiras, e espero agora mudar essa realidade. "O Santo Desconhecido" narra o conto de um ladrão que enterra seu roubo no alto de uma colina. Ao sair da prisão tempos depois, ele volta para finalmente resgatar seu tesouro, só para descobrir que o local virou santuário intocável de um santo criado por um vilarejo. Recheado de planos abertos lindos de morrer, o árido norte da África é filmado com paixão e traduz imageticamente o misticismo (e pura comédia) de um povo apegado às tradições.


Duna: Parte 1 (Dune: Part One)

Cinematografia por: Greig Fraser. Coloração por: David Cole.

Um dos projetos mais ambiciosos do século, "Duna" comprova que Denis Villeneuve entrou na ficção-científica (depois de "A Chegada" e "Blade Runner 2049") e não sairá mais dela. Elogiar os aspectos visuais do filme é chover no molhado: efeitos especiais incríveis, figurinos irretocáveis e uma fotografia perfeita compensam qualquer defeito que podemos encontrar no filme como um todo. Villeneuve e Greig Fraser foram assertivos na criação desse mundo distópico que se consolida como um épico (ao menos no trato do ecrã). Oscars virão.


A Morte de Dois Amantes (The Killing of Two Lovers)

Cinematografia por: Oscar Ignacio Jiménez. Coloração por: Drew Tekulve.

Fincando no interior dos EUA, "A Morte de Dois Amantes" é o suprassumo do cinema indie. Um casal em crise decide dar um tempo. A regra é: cada um pode se envolver com outras pessoas, sem ressentimento. A regra é bem seguida pela esposa; já para o marido, ver a amada conseguindo seguir a vida sem ele é uma tortura. O longa se passa através do ponto de vista do marido, que vê seu relacionamento ruir impotentemente, e as imagens da fita são a combinação ideal para a destruição psicológica do fim de um romance - aqui, levado para extremos perigosos demais.


Luz Eterna (Lux Æterna)

Cinematografia por: Benoît Debie. Coloração por: Marc Boucrot.

Parceiro de cinematografia de Gaspar Noé, Benoît Debie sabe, desde "Irreversível", como o diretor é quase um ditador ao tratar suas imagens com o maior choque possível. Depois da festa mais caótica de todos os tempos com "Clímax", Debie vai ainda mais longe no média-metragem "Luz Eterna": são múltiplos trabalhos de câmera, que muitas vezes são colocados lado a lado na tela mostrando pontos de vistas diferentes do inferno que é a filmagem de uma obra. Um filme dentro do filme, "Luz Eterna" é ousado e desconcertante ao querer provar que o pandemônio não é sua história de bruxas high-fashions prestes a serem queimadas na fogueira, são os bastidores.

***

Crítica: com Gaga, roupas de luxo e remix de "I Feel Love”, “Casa Gucci” é um "Poderoso Chefão” gay


Vou começar essa crítica apontando algo que já devo ter apontado em algum(ns) texto(s) dessa presente coluna: não aguento mais cinebiografias. O subgênero (vou chamar assim, mesmo não tão correto) está mais do que saturado em Hollywood - felizmente, a Academia está começando a diminuir o montante de premiações para papéis biográficos - se olharmos para as últimas cinco edições nas quatro categorias de atuação, sete atores levaram um Oscar interpretando algum personagem real - fora os inúmeros indicados. Papéis criados do zero deveriam ser mais bem vistos, a meu ver.

Esse rant é, também, devido aos rumos que o Oscar 2022 se encaminha, apontando mais papéis biográficos nos postos mais altos. Por isso que fui assistir "Casa Gucci" (House of Gucci), do lendário Ridley Scott (diretor de ""Alien: o Oitavo Passageiro", 1979, "Blade Runner", 1982, "Thelma & Louise", 1991, "Gladiador", 2000, e tantos outros clássicos), com um pé atrás.

Outro elemento que garantiu esse pé bem fincado no chão foi a maneira que o filme se vendeu desde o início de sua campanha: o foco era pesadíssimo em cima do elenco, pipocando na tela como todos são Oscar winners e nominees. Claro, isso é um chamariz mais do que efetivo, porém, muitas vezes a estratégia é utilizada para dar luz (e esconder) o óbvio: o que há de bom no filme é seus atores, não o filme em si.


E sim, "Casa Gucci" é mais uma cinebiografia hollywoodiana. O longa conta como a vida da família Gucci foi mudada com o casamento de Maurizio (Adam Driver), o herdeiro do império, com Patrizia Reggiani (Lady Gaga). Ele, no alto do mundo da moda, conhece a filha de um caminheiro em uma festa, recebendo imediata reprovação de Rodolfo (Jeremy Irons), pai de Maurizio, no melhor estilo "o princeso e a plebeia". Ela entende nada de arte, um alerta vermelho para quem habita um dos países com maior apreço pela sua carga cultural do planeta. É claro que ela não pertence àquele universo.

Extremamente ambiciosa, Patrizia se desdobra pra conseguir Maurizio - o início do relacionamento pende bastante para o lado econômico, como se ela estivesse mais interessada na fortuna do pretendente do que nele em si, todavia, o desenrolar dos acontecimentos mostram que sim, Patrizia quer a etiqueta "Gucci" em sua vida, mas também ama Maurizio. E falando no primeiro ato, ele talvez seja o mais irregular da película. Há uma falta de polimento na montagem, com alguns acontecimentos sendo cortados mais cedo do que deveriam (e estamos falando de um filme de 157 minutos), o que pode atrapalhar a imersão de alguns espectadores (apesar de notar as falhas, não foi o caso comigo). Soa como se Maurizio tivesse se apaixonado pela mulher fácil demais.

Rapidamente os dois se casam e então "Casa Gucci" começa de fato. Patrizia conseguiu. Porém, Maurizio tem interesse nenhum em se associar com a marca, controlada por seu pai e Aldo (Al Pacino) - do outro lado, há Paolo (Jared Leto), o filho "idiota e inútil" (esses adjetivos são repetidos inúmeras vezes) de Aldo que almeja levar a empresa para rumos mais, digamos, excêntricos. A Gucci é rapidamente vista como um tabuleiro em que cada peça toma cuidado para dar a próxima jogada.

O filme transita por dois estilos: o melodrama e a sátira, ou seja, é uma obra muito camp. A decisão de Scott neste determinado aspecto mostra que a produção estava ciente do divisor de opiniões que seria a fita - ao invés de focar em um dramão classudo com cara de Oscar - à la "Spencer" (2021), "Casa Gucci" quer transformar sua história em um espetáculo, uma escolha arriscada, e isso se comprova do consenso dividido por parte da crítica: uns amaram e outros acharam irregular.


O ritmo do filme é uma montanha-russa que não dá aviso prévio de quando vai subir lentamente pelo dramalhão e quando vai despencar na comédia - e há momentos realmente hilários, o que surpreende: como uma história sobre jogos de poder, ganância, poder, traição e assassinato pode ser tão leve? Não consigo negar que há algumas moedas de dois lados enormes dentro da exibição, e a maior delas é, com certeza, o personagem de Jared Leto.

Vi em threads no Twitter algumas análises entre os personagens vs. as pessoas reais, e muito foi falado como o Paolo Gucci de Leto tinha nada a ver com o real herdeiro, o que, pelo menos fisicamente, é um fato. Leto está soterrado em maquiagem (alguém aí quer o Oscar da categoria), e Scott empurra o personagem ao máximo, transformando-o em uma caricatura. Já li muito como alguns acharam Paolo o elemento dissonante do longa, contudo, cada momento em que Leto estava na tela era um frescor para mim. Sim, é demasiado e não há tentativas de esconder o peso das escolhas ao redor do personagem, mas é exatamente aí que habitam os dois lados da mesma moeda.

Paolo pode não ser o destaque do roteiro, mas resume muito bem o que é "Casa Gucci": é como um filme da Era de Ouro de Hollywood que se passa em um país ou com uma cultura ~estrangeira: os filmes de Humphrey Bogart, intrigas internacionais com cenários "exóticos" de Alfred Hitchcock ou homenagens à nouvelle vague. Os sotaques que não existem real motivo para existirem (os personagens são italianos, por que falam em inglês?), o exagero de características, tudo é muito nostálgico e delicioso nesse pacote assumidamente cafona (mesmo vestindo roupas de grife).

E falando nos sotaques, um rápido debate. Com tantos graduados em linguística e fonética que surgiram na internet desde o primeiro trailer da obra, muito foi falado sobre os sotaques utilizados, principalmente o de Lady Gaga: ele já foi chamado de russo, alemão, ucraniano e todas as nacionalidades possíveis para apontar como não soava italiano. É só assistir a qualquer vídeo da real Patrizia falando que vemos que o sotaque está igual, porém, não é esse o debate que quero levantar, e sim o seguinte: qual a necessidade absoluta de um filme de ficção ter que ser violentamente igual ao real? Isso não é um documentário, é uma obra fictícia baseada em acontecimentos reais, ou seja, não há qualquer contrato assinado sobre a veracidade. Se tratando de cinebiografias então, a cobrança é ainda maior. Temos que abrir mão desse apego ao real quando o cinema é uma REPRESENTAÇÃO do real - e muitas vezes nem do real é.


Se não bastasse a diversão que é a sessão, ainda temos uma porrada de atuações antológicas. Todos os cinco que compõe o elenco principal merecem uma chuva de elogios (e prêmios), com destaque, evidentemente, à Lady Gaga. Se ela encontrou sucesso com "Nasce Uma Estrela" (2018), em "Casa Gucci" ela rasga o ecrã e carrega o filme nas costas - até nos momentos em que Patrizia não está na tela desejamos que ela retorne o mais rápido possível. Gaga, que cambaleou no início de sua carreira como atriz (não esqueço o Globo de Ouro comprado por "American Horror Story: Hotel", 2015) está consolidada como uma atriz de alto escalação. Conseguir roubar a cena contracenando com AL PACINO (que está irretocável) é prova mais que resoluta de sua competência.

Algo que ficou pairando no ar foi: qual foi a motivação da existência da personagem de Salma Hayek dentro do texto? O letreiro no final informa que sua personagem foi condenada pelo assassinato de Maurizio, entretanto, fiquei em dúvida se realmente existiu essa pessoa. Existindo ou não, a Pina de Salma é bastante descartável - não em termos de atuação, e sim de peso narrativo. Se ela fosse cortada, nada mudaria no enredo, e soa cômico (no mal sentido da palavra) ver a vidente e feiticeira (?) ajudando a cada vez mais tresloucada Patrizia na sua jornada rumo à loucura. Em algumas passagens, pareceu como se Pina existisse apenas na cabeça de Patrizia, ou seja, não precisava estar ali.

De longe, a maior glória de "Casa Gucci" é um feito raramente conseguido por cinebiografias: tudo o que se passou fora do que está na tela é irrelevante. Você não precisa conhecer os personagens, nem suas histórias, nem seus desfechos antes de sentar diante do filme, uma falha recorrente dentro do subgênero. O desenvolvimento de seus personagens, principalmente se tratando de várias jogadas que mudam os rumos de todos, é inteiramente construído no ato fílmico, e você consegue entender perfeitamente as motivações e impactos de cada um, o que foi um alívio tremendo - receava que a fita fosse um "O Irlandês" (2019)

É até estranho colocar tais palavras juntas, mas "Casa Gucci" é um "O Poderoso Chefão" (1972) gay. Intrigas familiares com carregados sotaques italianos, mas adicionando roupas de luxo, remix de "I Feel Love", e, claro, Lady Gaga em cima de saltos agulha e casacos de pele se vingando do marido infiel? Mais queer impossível. O impacto cultural do longa é comprovado no momento em que quase toda a sala do cinema fez o sinal da cruz durante a já icônica fala "Em nome do pai, do filho e da Casa Gucci", e isso vale muito mais do que qualquer prêmio por aí.

O nome dela é Signora Gucci, obrigado.

Crítica: a natureza é a maior (e mais cruel) mãe no conto de fadas de horror “Ovelha”


Atenção: a crítica contém spoilers.

Existe um quadro na parede do meu quarto que informa bem uma das certezas que possuo; nele há a afirmativa "In A24 we trust", quase um mantra. Se você minimamente acompanha o Cinematofagia, já deve saber que a frase é (quase sempre) lei por aqui. Quando a produtora vai para o terror então, é um dos pilares de sustentação do gênero na modernidade - nem preciso discorrer sobre nomes como "A Bruxa" (2016), "Hereditário" (2018), "Clímax" (2019) e "Midsommar" (2019), certo?

Na corrente década, a A24 já prometeu dois novos terrores para se unirem nessa seleta lista de preciosidades, "Santa Maud" (2020) - que desde janeiro habita na lista de melhores do ano, spoiler alert - e "Ovelha" (Lamb), que acaba de chegar na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. "Ovelha" compartilha várias similaridades entre outras fitas da produtora, que já é elemento fundamental da sua filmografia: é o filme de estreia de Valdimar Jóhannsson, diretor e roteirista islandês. A A24 tem apostado em cineastas estreantes em diversos gêneros, acertando com louvor no terror - "A Bruxa", "Hereditário" e "Santa Maud", por exemplo, foram todos filmes de estreia de seus respectivos diretores, e essa característica diz muito não só na forma como a produtora trabalha (apostando em novos talentos) como também na expertise em selecionar projetos de sucesso.


Ao contrário de todos os citados até agora - e da imensa maioria do portfólio da A24 -, "Ovelha" não é falado em inglês. Inteiramente passado na Islândia, o roteiro abraça a língua do país, e tal ponto faz toda a diferença. Em "Ovelha", María (a ótima Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) são um casal de fazendeiros em uma planície gelada do país. Entre cuidar do plantio e de diversos animais, em especial ovelhas, a vida passa de maneira devagar e pacata, sem grandes acontecimentos. O auge acaba sendo o nascimento de cordeiros, com o parto realizado pelos dois, mas até isso já virou atividade corriqueira. Até que um dia um desses pequenos cordeiros choca o casal.



A produção faz escolhas na primeira parte que, apesar de ""frustrantes"", são corretas: demoramos uma boa parte da duração para ver o que assustou os dois. A primeira cena, inclusive, é rodeada de mistério: a câmera é a visão de alguma criatura, que caminha sem pressa até o celeiro onde se encontram as ovelhas. A fita não entrega as peças na tela, deixando o rápido prólogo como estopim nas sombras. É claro que, enquanto plateia, ficamos sedentos de vermos graficamente o que está acontecendo, todavia, imaginar o que está se desenrolando pode ser muito mais intrigante do que de fato ver.

O cordeiro recém-nascido é, de alguma maneira, um híbrido de ovelha com humano - sua cabeça e metade do tronco, até um dos braços, é composto de anatomia ruminante, enquanto o resto do corpo é humano. María e Ingvar acabam "adotando" a criatura e cuidando como se fosse um filho. A faixa temporal na película não é diretamente delimitada, acompanhando com certa precisão a partir do crescimento de Ada (o nome do bichinho), que dorme em um berço do lado da cama do casal.

A calmaria e felicidade da nova família começa a ser perturbada pela ovelha-mãe de Ada, que passa o dia do lado de fora da casa berrando atrás da cria que foi, de certa forma, roubada. María é a mais afetada pelas perturbações do bicho, até que perde a paciência e mata a ovelha - o que ela não sabia era que o irmão de Ingvar, Pétur (Björn Hlynur Haraldsson), acabara de chegar na fazenda e viu todo o ocorrido.



É claro que Pétur não vai entrar no conto de fadas de bom grado - a presença de Ada é uma aberração para ele, reforçado pela maneira que o casal lida com a situação: como se fosse a coisa mais natural do mundo. Fica ainda mais desconcertante quando descobrirmos que "Ada" não foi um nome sem propósito: esse era o nome da filha de María, que morreu em algum momento e de alguma forma não explanada.

Pétur perfura a bolha de fantasia quase histriônica da obra e traz mais elementos dramáticos que dão mais luz à trama. Ele, sempre que o irmão vira as costas, faz investidas sexuais em cima de María, que, apesar de negar, não parece se surpreender, o que demonstra que há uma história ali. Decidido a dar um ponto final naquele absurdo, Pétur tenta matar Ada, contudo, na hora H, desiste, se transformando em uma figura paterna. Aqui acende uma luz vermelha.

Talvez, e esse é um enorme "talvez", Ada (a filha morta) não era de Ingvar, e sim fruto de uma traição de María com Pétur. Com a chegada de Ada (a pequena ovelha), María a acolhe como sua em uma desesperada tentativa de reparação do passado - ela seria "genuinamente" filha do casal. O encantamento pela resolução e substituição do erro é tão grande que Ada se torna o ímo da felicidade dos dois, que a defendem a qualquer custo. A montagem e fotografia (belíssima, mas isso não é difícil, ligar uma câmera em qualquer lugar da Islândia é garantia de imagens perfeitas), no momento em que Pétur está com a arma apontada para Ada, foca na troca de olhares entre o homem e a criatura, e há uma áurea de ternura ali, comprovada pelo próximo corte em que Ada está dormindo no colo de Pétur. Ele viu ali a representação da filha perdida.



A atmosfera denota uma fixação de todos por Ada, talvez um simbolismo que também fomente uma teoria gerada pelo roteiro. É curioso que o animal escolhido seja um cordeiro - poderia ser facilmente um cavalo ou qualquer outro encontrado no cenário rural, então por que um cordeiro? O animal tem fortíssima referência religiosa, sendo, na mitologia cristã, a representação de Jesus, o Agnus Dei. Ada, de certa forma, é o messias daquela família, sendo a salvação e razão para María e Ingvar - até mesmo o problemático Pétur é arrebatado pela pureza da "criança".

Os nomes escolhidos para os poucos personagens não devem ter sido sem propósito. "Ada", em dialeto do povo Aro, na África, significa "a primeira filha", e "nobreza" em origem alemã. "Ingvar" é um antigo nome escandinavo que significa "protegido por deus". "Pétur" é a derivação islandesa do nome "Pedro", que foi um dos 12 apóstolos de Cristo. E "María" dispensa maiores descrições. Até o nascimento de Ada remonta a vinda do salvador na manjedoura.

No clímax da obra, finalmente vemos quem é o pai verdadeiro de Ada, a criatura que acompanhamos no prólogo: uma mistura de homem com bode, ele mata Ingvar e leva Ada embora, para o desespero de María, que perde o marido e a filha em um só golpe. Se você assistiu "A Bruxa" ou tem conhecimento das escrituras bíblicas, a figura da pai é ligada diretamente com Satanás, em uma mistura alucinada dessa mitologia específica - o diretor ainda afirmou que o enredo não é baseado em algum folclore islandês ou da região. Ada pode ter sido uma redenção para a família, mas ela não era deles. Ao ser roubada, a cordeirinha sai de glória à ruína num piscar de olhos.

É bem claro que um longa como "Ovelha" não será de largo apelo popular por inúmeros motivos - o ritmo lento, a ambientação contemplativa, as alegorias complexas, a falta de explicações diretas e até mesmo a língua acabam afastando -, sendo um daqueles filmes que precisam ser digeridos para não ficarem na superfície do "o que diabos foi isso?". Mais um pilar na nova onda de horrores que focam no drama ao invés da gratuidade que muitos exemplares do gênero acabam caindo, "Ovelha" é um estudo declaradamente estranho sobre a morte, a culpa e como encontramos nas mais diferentes coisas um motivo para nos trazer a felicidade. No fim das contas, a moral é que a natureza é a maior mãe de todas, e com ela é olho por olho e dente por dente.
 

Crítica: “A Nuvem Rosa” previu a pandemia em seu (sensacional) estudo do distanciamento social

Existem certas coincidências que são assustadoras demais para serem verdade - e quando envolvem a corrente pandemia, se tornam ainda maiores. Lembro bem quando, no primeiro semestre de 2020, a Netflix lançou "O Poço" (2019), um filme sobre a equidade de recursos e como somos egoístas nessa coisa doida chamada "sobrevivência". A película espanhola refletia bem a loucura em supermercados e a falta de produtos pela compra desenfreada - álcool em gel mesmo, ninguém achava.
 

Pulamos para 2021. Em pleno mês de setembro do corrente ano, estamos caminhando para uma realidade menos caótica pelo avanço das vacinas (defenda o SUS), porém, a quarentena ainda é um fantasma mais que presente. No último dia 02, chegou nas plataformas de stream o filme "A Nuvem Rosa", longa de estreia de Iuli Gerbase. A primeira coisa que vemos sobre o filme, nos segundos iniciais, é um cartão informando que o roteiro foi finalizado em 2017 e as filmagens em 2019. "Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência". É raro vermos uma pontuação tão incisiva sobre um aspecto não-diegético, então por que aquela informação era tão vital para ser a abertura da obra?

A história se passa em algum presente ou futuro mais-do-que-próximo. Giovana (Renata de Lélis) é uma mulher que conhece Yago (Eduardo Mendonça) em uma festa e leva-o para passar a noite em sua casa (empoderadíssima, virei fã). Pela manhã, sirenes disparam ao redor da cidade, e os noticiários informam que nuvens tóxicas cores-de-rosa surgiram ao redor do mundo, matando quem entra em contato em apenas 10 segundos. A regra é fechar todas as portas e janelas e o que quer que dê acesso ao mundo externo, trancafiando todas as pessoas no lugar em que elas estiverem no momento - quem estava em casa, parabéns pela sorte.

Ali estava Giovana com Yago, um homem que ela conhece há menos de 24h. As primeiras reações são um misto de preocupação e frivolidade: por mais que eles levem a sério o que estava acontecendo, há uma latente impressão de "isso vai passar logo". E a partir de então, a câmera de Gerbase se instala claustrofobicamente dentro da casa de Giovana - mais uma fita para a lista de "filmes que se passam inteiramente em um só lugar".

A diretora foi bem esperta na tentativa de manter o espectador junto com os personagens naquela casa. Com exceção do rápido prólogo, não saímos das paredes da residência - até mesmo na cena em que Giovana conhece Yago, estamos afundados em um background escuro, sem conseguir visualizar o local da festa, apenas os personagens. Até esquecemos que um dia aqueles dois sentiram a brisa de uma rajada de vento.

Então, estranhamente, "A Nuvem Rosa" "previu" a pandemia. A distopia natural, no entanto, vai para caminhos que fogem da obviedade fomentada pela premissa. Ao contrário de nomes como "Contágio" (2011, que também se aproxima demais do nosso real) e qualquer longa que se baseia em algum tipo de "fim do mundo", "A Nuvem Rosa" não está tão interessado em estudar o que acontece do lado de fora das paredes de Giovana, focando quase que inteiramente na relação forçada dos dois protagonistas.


Em um momento, Giovana fala que ela e Yago são como um "casal indiano" que se conhece apenas no dia do casamento e devem aprender a conviver um com o outro a partir dali. Esse é o cerne da fita. Banhados por uma áurea rosa emanada pelas nuvens, os dois, que começaram como um lance de fim de noite, mantêm a relação que não estava prevista - e muito é questionado a partir disso. Quando o tempo vai passando e as nuvens não dão sinal de desistência, a situação fica mais precária.

Aqui também está uma das melhores escolhas técnicas e narrativas do filme, a maneira que ele cria as elipses temporais da história. Não há sinais cronológicos diretos de quanto tempo eles estão ali, explorados pelas mudanças físicas dos protagonistas, como o crescimento dos cabelos e da barba de Yago. No começo pode parecer um pouco estranho navegar pelo enredo sem uma bússola temporal, todavia, embarcamos sem problemas quando percebemos qual foi a estratégia selecionada por Gerbase, executada com êxito a partir da montagem certeira.

O primeiro grande estudo do roteiro é a convivência forçada. Giovana e Yago funcionavam muito bem nos primeiros tempos de quarentena, tendo o trabalho (agora home-office) para distrair e fugir da monotonia da rotina, porém, estar 24h por dia ao lado de alguém que você não escolheu se torna um peso cada vez mais difícil de ser carregado.


Giovana com frequência se comunica com amigos e parentes por meio de chamadas de vídeo. Sua irmã mais nova estava na casa de uma amiga quando a nuvem surgiu, estando lá desde então. Uma amiga está sozinha no apartamento depois que o namorado foi à uma padaria no momento que desencadeia a história, prendendo-o lá. Sua saúde mental vai degringolando pela ausência de contato humano, correndo em busca de válvulas de escape que se mostram inúteis, como a compra de um cachorro-robô.

É então entramos no segundo grande estudo do texto, o contato físico. O talo, a pele. Com as relações cortadas com Yago, ele e a protagonista desenrolam estratégias para suprir o desejo sexual - ele através de sexo virtual; ela, por meio de um vizinho de janela. Se ali a coisa não é tão ortodoxa, há situações bem piores: a irmã mais nova liga para Giovana e diz que o pai da amiga engravidou duas outras garotas que também estão lá desde o incidente da nuvem. Sim, o pai engravidou as amigas (menores de idade) da filha - esse momento me recordou "Miss Violência" (2013), uma referência bem-vinda.

E, para o espanto de ninguém, Giovana acaba grávida de Yago - um "bebê da pandemia". A chegada da criança é um ótimo elemento de elipse temporal, com o público podendo mensurar com mais precisão a passagem do tempo - e somos engolidos pelo crescimento da criança e a certeza de que eles continuarão presos ali. É triste pensar que o menino jamais pisou os pés fora daquela casa.


A maior previsão da obra, que deixaria Nostradamus abismado, é a galera que celebra a nuvem. Temos vídeos de youtubers falando como o conjunto de gás tóxico colorido do lado de fora na verdade é uma bênção, vinda para ensinarmos a vivermos de forma melhor. Coatches se aproveitam para vender estilos de vidas vitoriosos, independente da ameaça mortal ao lado da janela. Soa familiar? É o desgosto absoluto.

Com a depressão afogando Giovana, ela ganha de aniversário um óculos de realidade virtual. O presente é um ponto de virada na relação de todo mundo, pois a mulher acaba se perdendo naquela realidade artificial criada pelo óculos - no melhor estilo "Black Mirror" (2011-). Ela vai se distanciando cada vez mais da família para "viver" qualquer simulação dada pelo VR, chegando a espalhar areia em um quarto para se sentir ainda mais em uma praia. Ela anda pela casa de maiô e só interage com alguém nos rápidos momentos em que está fora da praia de led.

Uma das escolhas feitas pelo roteiro pode ser uma faca de dois gumes: raramente temos conhecimento de como está funcionando o mundo exterior. Não sabemos como está o governo, as autoridades e qualquer tipo de poder institucional que reja aquele Brasil, e isso é uma decisão correta. Não interessa os comos e os porquês da nuvem e das configurações que se iniciaram a partir dela - e, curiosamente, por estarmos dentro de uma realidade parecida, a falta dos porquês não é uma deficiência, pelo contrário. Sabemos muito bem como é estar ali - por mais que tenhamos mais liberdade de ir e vir que Giovana e Yago.

Com um final igual um acidente que vemos acontecer, mas podemos fazer nada acerca, "A Nuvem Rosa" fortalece uma veia grossa do novíssimo cinema nacional, a extrapolação criativa de enredos que hiperbolizam nossa realidade a fim de estudá-la e criticá-la - como "As Boas Maneiras" (2017), "Bacurau" (2019), "Trabalhar Cansa" (2011) e "Divino Amor" (2019). Essa veia contraposta o estilo mais clássico da nossa indústria, o "cinema verdade" ("Aquarius", 2016; "Que Horas Ela Volta?", 2015; "Tropa de Elite", 2007; "Temporada", 2018; etc), e não quer fincar as unhas no crível, pelo contrário, almejando desenvolvimentos mais fantasiosos que (absurdamente) soam mais do que reais - e a explanação de "A Nuvem Rosa" sobre o "novo normal" é um espelho desconfortável de ser encarado.

Crítica: “Santa Maud” vai do gênesis ao apocalipse na beatificação do terror

Atenção: a crítica contém spoilers.

O enorme entusiasta do terror que sou, não consigo deixar de apontar um óbvio que, mesmo sendo óbvio, ainda não é óbvio o suficiente: a A24 está salvando o gênero. A distribuidora, que se encontra no apogeu, vem cunhando uma filmografia que, focando no terror, traz os melhores nomes da atualidade. De fato, para cada "Hereditário" (2017) a gente tem 10 "A Freira" (2018), e a A24 é peça primordial no equilíbrio da Sétima Arte.

Então, se a A24 lança um terror, eu assisto. Sim, ela já jogou no mundo alguns nomes que, apesar de longes do patamar de "bomba", podemos fingir que não existiram - "The Monster" (2016) e "The Hole In The Ground" (2019), por exemplo -, porém, estamos diante de mais uma glória da distribuidora: eis "Santa Maud" (Saint Maud).

"Santa Maud", estreia da diretora Rose Glass, orbita ao redor de Maud (Morfydd Clark), uma enfermeira. Após um rápido prólogo, que pincela algum tipo de tragédia, ela parte para um novo capítulo: Maud cuidará de Amanda (Jennifer Ehle, cópia de Meryl Streep), dançarina aposentada que está nos últimos estágios de um câncer. Há uma forte dicotomia entre as duas: Maud é extremamente religiosa, enquanto Amanda não parece andar de mãos dadas com deus.

O longa é um grande diário de Maud. Ouvimos seus mais profundos pensamentos por meio da narração da personagem, que dialoga diretamente com o altíssimo. Ela conta desde acontecimentos corriqueiros - como uma dor que não a abandona - até os desejos de uma vida muito maior do que aquela. Todavia ela permanece ali, crente e paciente de que um grande destino está ao virar na esquina.

Não demora para que outro impedimento surja na epopeia de Maud na salvação de Amanda: ela é lésbica e contrata regulamente uma garota de programa. O espectador mal pisca e Maud não apenas quer salvar o corpo da dançarina, mas principalmente sua alma. Ela joga fora as bebidas, tenta se livrar da acompanhante e costura uma relação cada vez mais íntima, a fim de fincar suas mãos no âmago de Amanda - e com muito bom grado.

"Santa Maud" solidifica uma corrente que parecia perdida no horror: a potencialização do drama. Aqui, é o drama que fomenta o terror, e não o oposto, e essa estrutura é fundamental para o sucesso da fita. Os lampejos de terror existem, contudo, não são o palco principal - pelo menos na maior parte da duração. Um dos primeiros elementos de horror são as cenas em que Maud sente a presença de deus, na tela de maneira física. Ele invade o corpo da enfermeira com uma lentidão e força enorme, quase a desfigurando.

Fica bem claro que a obsessão de Maud para com Amanda terminará, no mínimo, com uma demissão, e isso ocorre quando Amanda confronta a garota sobre a acompanhante, que aparece em uma festa. Ela bate no rosto da patroa após ter sua fé ridicularizada e é sumariamente mandada embora. Isso chacoalha os pilares do mundo de Maud: se foi deus que a colocou ali para salvar Amanda, e ele permitiu que ela a demitisse, então deus a abandonou?


Uma das maiores discussões - e talvez meu aspecto favorito de "Saint Maud" - é a megalomania religiosa. A jovem, a todo o momento, repete que sabe que estava destinada a algo grandioso pelos caminhos traçados por deus. Já presenciei inúmeras vezes pessoas justificando acontecimentos como "obra de deus": se consegui ganhar na loteria, foi porque deus permitiu, amém. Mas por que você conseguiu esse presente dos céus e outros não? O que te faz mais merecedor do que outros? Você orou mais vezes ou deu um dízimo maior nos domingos? Esse pensamento, extrapolado no roteiro de "Santa Maud", é um viés do ego religioso e fundamentalista.

Preciso pausar momentaneamente a narrativa sob a película para adentrar em aspectos particulares: mesmo crescido em um ambiente extremamente religioso, sou ateu. Porém, obras que abordam a religião e seus impactos na vida humana me cativam de maneira exemplar - talvez por ver o contexto sem estar dentro dele. Temos, também, que entender a diferença entre religião e espiritualidade.

Religião é uma instituição que - há mais tempo do que deveria - é alinhada com os interesses da burguesia, enquanto espiritualidade é sua fé, sua crença, e ela não depende de uma instituição para existir. Se essa instituição está aparelhada mediante o interesse da minoria, ela é (em sua base, e falo especificamente da religião presente no filme) ferramenta de adestramento. Maud em algumas cenas entrega seu corpo ao flagelo, um preço pequeno (para ela) quando o retorno é a graça de deus. Só que a relação de Maud com seu deus é mais estreita que a dos meros mortais.

Maud conversa com deus, e ele responde. Em uma das melhores cenas da duração, Maud desesperadamente pede por um sinal do senhor, e ele atende. Literalmente (bem no clima de "A Bruxa", 2017). Ele - falando em galês, escolha interessante de língua - diz que Maud está muito próxima de estar sentada ao seu lado, precisando provar sua adoração uma última vez. Ela precisa salvar a alma de Amanda o mais rápido possível, pois sua morte se aproxima. O que Maud não esperava era que ela se revelaria uma criatura demoníaca - e o momento perfeitamente remete a "O Exorcista" (1973) -, o que leva a Maud a matar Amanda.

Após o assassinato, Maud ganha asas douradas e precisa agora subir aos céus. Ela se encharca em acetona e ateia fogo em si própria. Por ser uma narrativa que se passa simbioticamente por meio dos olhos da protagonista, vemos o fogo sagrado lamber seu corpo e ativar suas asas, enquanto transeuntes se ajoelham diante de tamanho milagre. Maud ri, finalmente conhecendo o amor absoluto do criador. Só que Rose Glass genialmente desliga os olhos de Maud, e vemos em apenas um segundo seu desespero enquanto morre queimada.


Não dá para não pensar "o que foi que eu acabei de assistir??" com o rolar dos créditos, todavia, possuo uma teoria que talvez una todas as peças de "Santa Maud". Maud era uma ferramenta da intervenção sobrenatural, doando seu corpo para as linhas tortas de deus. Porém, Maud não era conduzida por deus, e sim pelo diabo. Na cena em que ele conversa com a protagonista, em momento nenhum se denomina como deus, Maud apenas supõe como verdade. Com poucas dicas do passado da enfermeira, pequenos fragmentos são espalhados pela duração, e vemos que Maud era uma ativadora do caos na terra. No entanto, até mesmo aqui entramos em mais uma discussão. O que é deus?

Nós, inseridos na cultura em que vivemos, temos uma figura bem definida do que é deus. Mas esse é apenas um deus, com culturas diferentes possuindo diferentes representações do que seria essa divindade. No fim das contas, o deus de Maud poderia simplesmente ser o diabo, e não o deus que pensamos à primeira vista. Outro traço que corrobora com esse pensamento é a forma como "deus" interage fisicamente com a protagonista: ela parece está tendo um orgasmo. Se você conhece a história das bruxas, sabe que as mulheres libertárias eram taxadas de demoníacas ao explorarem sua sexualidade - até presente data ainda é um tabu o sexo para a mulher. Não é compatível a imagem do deus bíblico com a forma que ele age no corpo de Maud - o final de "A Bruxa" é um paralelo perfeito para essa ideia.

Quer mais nuances dessa linha de pensamento? Amanda pergunta quem é a santa de devoção de Maud, e ela diz que é Maria Madalena. Caso você não saiba, Maria Madalena era, segundo as escrituras, uma das seguidoras mais próximas de Cristo, e foi pintada como prostituta. Apesar de ser considerada santa por algumas vertentes do catolicismo, ela é figura primordial da mitologia cristã na representação de uma mulher condenada por uma ligação estreita demais com o Messias - alguns apontam que ela era esposa de Jesus (lembra do videoclipe de "Judas", da Lady Gaga?), e essa imagem vai contra o status de imaculado do salvador. Maud, com seu vínculo íntimo com deus, é a Maria Madalena da Inglaterra moderna.

Até mesmo o nome "Maud" não foi gratuito. A protagonista, que na verdade se chama Katie, adota a alcunha depois de se converter. No alemão antigo, "Maud" significa "poderosa guerreira", e é dessa forma que ela se enxerga, um vassalo pronto para entregar a vida na guerra em prol da salvação da humanidade. Maud nada mais foi que uma vítima das enganações de satanás, que, por meio de um enganoso status de "especial", turvou sua mente até que ela se colocasse em posição de messias.

É deveras importante ver como os protagonistas dos terrores da A24 estão todos em uma fuga ferrenha contra a solidão. Os horrores orquestrados ao seus arredores são castigos da condição humana: a de estarmos constantemente em busca de algo que nos dê sentido, e Maud achou esse sentido, no entanto, era o sentido errado. "Santa Maud" é uma estreia impecável que se junta ao seleto panteão de filmes de terror contemporâneos que usam a mitologia religiosa ao seu favor - o último grande nome a conseguir o feito foi "O Chalé" (2019).

Amém, Santa Maud. Louvemos seu nome.

  

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Os 20 melhores filmes de 2020

A melhor época do ano para o escritor que cá se encontra é a época de fazer as listas de melhores do mundinho cinematográfico no ano. Gasto horas catalogando tudo o que assisti até a marca temporal que quero fechar (seja a de metade do ano, ano inteiro ou da década), a fim de trazer a você, leitor, o que considero o suprassumo dos lançamentos (dentro da enorme cerquinha da subjetividade, é claro). Mas 2020 foi um ano diferente.


Com a pandemia, a indústria cinematográfica parou. A produção de muitos filmes foram interrompidas, e os já finalizados foram adiados até que as salas de cinemas possam ser reabertas. O mercado brasileiro - ironicamente - acabou sofrendo menos com isso por receber filmes que já rodaram em outros países meses antes - vários do Oscar 2020, por exemplo, que estrearam internacionalmente em novembro e dezembro, só chegaram aqui após a virada da década. No entanto, mesmo com o fluxo de obras sendo drasticamente reduzido, ainda conseguimos assistir a filmes imperdíveis que salvaram nosso ano (e nossa quarentena). Aqui estão meus 20 longas favoritos de 2020.

De indicados e vencedores do Oscar a pérolas de todos os cantos do mundo, os critérios de inclusão da lista são os mesmos de todo ano: filmes com estreias em solo brasileiro em 2020 - seja cinema, Netflix e afins - ou que chegaram na internet sem data de lançamento prevista, caso contrário, seria impossível montar uma lista coerente. E, também de praxe, todos os textos são livres de spoilers para não estragar sua experiência - mas caso você já tenha visto todos os 20, meu amor por você é real. Preparado para uma maratona do que há de melhor no cinema mundial de 2020?

 

20. O Que Ficou Para Trás (His House)

Direção de Remi Weekes, Reino Unido/EUA.

Um casal de refugiados chega na Inglaterra fugindo da guerra no Sudão. Lá, eles são realocados em uma casa e devem aprender a conviver naquela sociedade abertamente racista, porém, o que há de pior não está do lado de fora, e sim dentro da própria casa. "O Que Ficou Para Trás" é o primeiro filme de terror com qualidade a receber o selo Netflix, e isso se deve graças ao diretor e roteirista Weekes que se utiliza de uma situação bastante específica e contemporânea para orquestrar seu horror com competência. Com referências a várias correntes do gênero, de terror coreano a James Wan, o longa acerta (e muito) ao priorizar o drama familiar e introduzir veia cultural e folclórica para gerar autenticidade. "O Que Ficou Para Trás" consegue ter relevância social e cenas visualmente assustadoras na mesma medida.

19. Os Lobos (El Lobos)

Direção de Samuel Kishi, México.

Uma mãe solteira migra do México para os EUA com dois filhos pequenos. O cenário é um que já conhecemos bem: a ida para o utópico sonho americano, e a familiarização com os personagens e suas histórias é instantânea. O longa se passa majoritariamente por meio da ótica dos dois filhos - e remete bastante a "Projeto Flórida" (2017) e "Nós Os Animais" (2018), todos cinemas de denúncia das mazelas do capitalismo com uma narrativa construída ao redor das crianças e como elas enxergam a pobreza. Quando as economias da família são roubadas, o tom do filme de Kishi é imposto, demonstrando perfeitamente qual é a sua visão (fundamental) de nós enquanto sociedade.

18. Rede de Ódio (Hejter)

Direção de Jan Komasa, Polônia.

Um estudante de Direito é expulso por plágio. Sem expectativas, ele tem como único objetivo entrar no coração de uma família rica enquanto possui uma vida dupla em uma agência de relações públicas especializada em difamações online. "Rede de Ódio" - disponível na Netflix - é um terror da contemporaneidade. Entramos no fundo do poço de mentiras, manipulações e narrativas de ódio que permeiam a política, empurrando o roteiro para medidas extremistas. Uma sessão desoladora por refletir tão bem nossa realidade que se utiliza da tecnologia para promover a intolerância e o fascismo. Pode se passar na Polônia, porém, consegue refletir bem o que passamos no aterrador Brasil atual.

17. Os Perseguidos (Queen & Slim)

Direção de Melina Matsoukas, EUA.

"Queen & Slim" é um daqueles filmes corretos lançados no momento correto. Seguindo o casal protagonista, a vida dos dois é permanentemente afetada quando são parados com um policial branco, que - por basicamente nada - quase os mata. Em legítima defesa, Slim atira no policial, desencadeando uma fuga nacional enquanto protestos contra abusos raciais rolam pelo país. Estreia no Cinema de Melina Matsoukas, diretora de vários videoclipes, como "Formation" da Beyoncé, é bastante intrigante - e também triste - que "Queen & Slim" tenha sido lançado poucos meses antes de George Floyd perder a vida. Floyd não foi o primeiro (e, infelizmente, não deve ser o último) a passar pelo o que passou sob o poder de um sistema que não encontrou falhas ao longo do caminho, e sim foi construído para ser assim, o que faz de "Queen & Slim" um quadro e um aviso de uma sociedade claramente doente.

16. A Primeira Vaca (First Cow)

Direção de Kelly Reichardt, EUA.

Jogando o espectador para o séc. XIX, no interior dos Estados Unidos, "A Primeira Vaca" é um filme que exala simplicidade à primeira vista, mas é muito mais complexa do que aparenta. A amizade improvável de dois homens, que mudará os rumos de toda a cidadezinha em que vivem, é transformada com a chegada da primeira vaca de toda a região, propriedade do homem mais rico de lá. Eles então começam a roubar o leite da vaca para ganhar dinheiro, o que trará uma ruína já exposta na primeira cena. É realmente impressionante como Kelly Reichardt é capaz de extrair tanta pureza, conflitos e divertimentos em cima de uma trama tão básica. Nunca na história do Cinema uma vaca causou tantos problemas.

15. Lindinhas (Mignonnes)

Direção de Maïmouna Doucouré, França.

A Netflix deve se culpar até hoje pela maneira como (quase) destruiu "Lindinhas": inicialmente com uma identidade visual completamente inadequada, a própria diretora da obra, Maïmouna Doucouré, revelou que que se chocou com as escolhas da plataforma e com o número de ameaças de morte que recebeu com a explosão do filme pós-Netflix. Ela não foi consultada sobre as estratégias de marketing adotadas e recebeu um telefonema do próprio CEO da plataforma, desculpando-se pelo ocorrido. No entanto, era tarde demais. O fenômeno ao redor de "Lindinhas" é um afinco estudo sobre a cultura do cancelamento e como as pessoas estão ávidas para eleger o anticristo da semana e derramar ódio sem total embasamento. Se a Netflix errou ao criar a arte inadequada para a obra, é um erro pequeno perto da narrativa criada contra o filme, que culpabiliza (e ameaça) não apenas uma indústria, mas pessoas reais como eu e você. "Lindinhas" encontra precisão enquanto complexa e desafiadora arte contra a sexualização de crianças e um bom objeto de estudo (apesar de involuntário) sobre a criação de percepções na internet em tempos de redes sociais.

14. Nunca Raramente Às Vezes Sempre (Never Rarely Sometimes Never)

Direção de Eliza Hittman, EUA/Reino Unido.

O aborto é um dos temas mais controversos da nossa sociedade atual, encontrando discussões muito calorosas sobre os dois extremos do debate. "Nunca Raramente Às Vezes Sempre" é a carta-aberta de Eliza Hittman sobre a temática. Uma garota de 17 anos está grávida e, com a ajuda da melhor amiga, vai até Nova Iorque para realizar um aborto. A superfície do longa carrega características que, de maneira previsível, nos dará a ideia de irresponsabilidade por parte da garota, contudo, o roteiro nos empurra para um mergulho muito complexo que explica tudo o que ocasionou a protagonista estar ali. A cena que dá título ao filme já é uma das mais incríveis do ano pela veracidade e dor que o corpo feminino está sujeito nas mãos do patriarcado.

13. Outra Rodada (Druk)

Direção de Thomas Vinterberg, Holanda.

Thomas Vinterberg teve uma carreria de altos e baixos: de criador do movimento Dogma 95 com Lars Von Trier a filmes rechaçados pela crítica, o holandês viu na década passada a estabilização de sua arte. "Outra Rodada", sua segunda parceria com Mads Mikkelsen, é mais um capítulo de sucesso em sua filmografia. Vinterberd e Mikkelsen se uniram em 2012 com "A Caça", obra-prima indicada ao Oscar e que verá o mesmo feito com "Outra Rodada"; um grupo de amigos de meia-idade abraçam uma teoria de mantimento do nível alcóolico no sangue para salvar o marasmo de suas vidas, o que não demorará a se mostrar um plano ruim. Unindo em doses sábias de humor e drama, o longa é um estudo esperto da nossa relação com o vício e uma carta de Vinterberg ao amor pelo Cinema: sua filha iria estrelar a fita, porém, morreu com três semanas de filmagens.

12. O Poço (El Hoyo)

Direção de Galder Gaztelu-Urrutia, Espanha.

"O Poço" talvez seja o filme mais badalado de 2020. Não por ser o mais assistido ou o melhor, mas por ter sido lançado em um terreno absurdamente fértil para fomentar suas discussões - e foram inúmeras ao longo das semanas após a Netflix jogar a obra em seu catálogo. Conhecemos uma prisão vertical que tem uma curiosa (e cruel) forma de alimentar seus detentos: através de um poço, onde o andar de baixo comerá o que sobrou do andar de cima. As discussões de “O Poço” soam óbvias – é só você ler a sinopse que a fundamentação central da fita estará presente. Sim, esse é um filme que quer mostrar como a estruturação do Capitalismo é falha, desumana e cruel – e provavelmente você, proletariado, já sabe disso. “O Poço” é uma alegoria brilhantemente terrível da natureza humana que gera indagações ao mesmo tempo que executa um trabalho de gênero delicioso.

11. E Então Nós Dançamos (And Then We Danced)

Direção de Levan Akin, Geórgia/Suíça.

A melhor fita LGBT do ano até o momento, "E Então Nós Dançamos" vem de um país que você talvez nem saiba onde se encontra: a Geórgia, um pequeno país na divisa entre a Europa e a Ásia. Com um cinema ainda proporcional ao tamanho do país, não se engane, a Geórgia é dona de filmes fantásticos, e "E Então Nós Dançamos" foi o selecionado ao Oscar 2020. Um dançarino vai ter que escolher entre aceitar sua sexualidade em um país sufocantemente homofóbico ou viver uma mentira assim que outro dançarino chega em sua escola. A dança georgiana, presente em todo o filme, é usada como catalizador desse amor proibido que termina, também, como um belíssimo documento cultural - e, sem surpresa, foi recebido com protestos pedindo o cancelamento das sessões. No entanto, o filme foi lançado, uma vitória para a resistência LGBT.

10. Devorar (Swallow)

Direção de Carlo Mirabella-Davis, EUA.

Esse pequeno horror indie causou desde a estreia no Festival de Tribeca ano passado, e, ainda bem, não ficou apenas no shock value: uma jovem e recém-casada mulher tem dificuldade em manter o casamento e a vida doméstica. Afogada em tédio e distanciamento emocional, ela descobre que está grávida, fato que desencadeia um transtorno que a faz engolir os mais diferentes objetos. "Devorar" recebeu uma embalagem colorida, harmônica e deliciosa, um contraste perfeito para toda a carga obscura de sua trama. Carregado pela atuação exemplar de Haley Bennett, o filme é uma mistura de "Grave" (2016) com "O Bebê de Rosemary" (1968), transformando o drama de sua protagonista em potência do horror. Bon appétit, baby.

09. Viveiro (Vivarium)

Direção de Lorcan Finnegan, Irlanda.

Todo ano precisamos de pelo menos um longa que seja a definição de "amei, mas não entendi", e "Viveiro" é o nome perfeito para isso. Quando um casal visita um conjunto habitacional em busca de um imóvel e fica preso nas ruas com casas totalmente iguais, rapidamente percebem que foi sua última decisão na vida. Estamos vivenciando uma fase interessante na mistura de horror e ficção científica, casando criatividade com as colunas dos dois gêneros: atmosfera e reflexão. "Viveiro" sem dúvidas não é um longa para qualquer paladar: é uma fita lenta, estranha, sufocante e que não vai entregar seus segredos de mão beijada. Sua beleza imagética esconde toda sua bizarrice com uma estética que passeia por "Edward Mãos de Tesoura" (1990) e "O Show de Truman" (1998), e transforma a casa própria, uma das mais desejadas paisagens, em um verdadeiro labirinto em que cada esquina é um pesadelo.

08. Nós Duas (Deux)

Direção de Filippo Meneghetti, França.

O cinema LGBT viu um apogeu na década passada, e tivemos inúmeras fitas que já entraram para a história, no entanto, ao mesmo tempo, estamos em uma era de saturação na exploração dessa temática, apesar de ser uma comunidade tão plural. A premissa de "Nós Duas", representante francês ao Oscar 2021 de "Melhor Filme Internacional", parecia sobrevoar essa mesma saturação: duas mulheres guardam seu romance há décadas, até que uma tragédia fará com que o segredo saia do andar em que as duas vivem. Lésbicas sofrendo as opressões da sociedade para poderem se amar, groundbreaking. Contudo, "Nós Duas" atinge insano sucesso por trazer um casal idoso, algo por si só negligenciado nas telas, e pelas construções afiadas para justificar sua existência. Esse é um romance lésbico violentamente apaixonante que faz com que esqueçamos os clichês para abraçar uma veracidade rara.

07. Mentira Nada Inocente (White Lie)

Direção de Yonah Lewis & Calvin Thomas, Canadá.

A história nem é tão inovadora: uma garota está fingindo ter câncer e sua mentira vai chegando cada vez mais perto de um inevitável fim. As grandes sacadas de "Mentira Nada Inocente" são: o roteiro, que prende a plateia na indagação "onde isso vai parar", e Kacey Rohl, na pele da protagonista. Não apenar um filme LGBT que foge totalmente das pautas clássicas da temática, a película é carregada pela insana atuação de Rohl, que dá literal vida a uma enganação de maneira tão forte que ela mesma acredita. A tensão é construída brilhantemente, e não conseguimos desviar os olhos da tela graças à certeza da ruína eminente de plano na protagonista. Até aonde alguém vai para sustentar uma mentira? A resposta está aqui.

06. Joias Brutas (Uncut Gems)

Direção de Josh Safdie & Benny Safdie, EUA.

Adam Sandler é um ícone do cinema norte-americano, mas pelos motivos errados. Ele já possui nada mais nada menos que NOVE Framboesas de Ouro (que premia o que há de pior no Cinema), inclusive sendo o detentor do recorde de maior número de prêmios em uma noite: "Cada Um Tem a Gêmea Que Merece" (2011) foi indicado a sete Framboesas e ganhou todas. Todavia, Hollywood adora ver um nome falido encontrando o Olimpo com alguma fita, e Sandler encontrou com "Joias Brutas". Os diretores, os irmãos Josh e Benny Safdie, adoram pegar atores considerados ruins e transformarem em donos de prêmios - como Robert Pattinson com "Bom Comportamento" (2017) -, e o Olimpo de Sandler foi fabuloso: dono de uma joalheria, ele é viciado em jogos de azar e vai levar a vida de todo mundo ao redor numa montanha-russa eletrizante, marca dos irmãos Safdie. "Joias Brutas" é um estudo de personagem raro e imperdível que entrega muito mais que um ator ruim conseguindo quebrar o estigma.

05. Os Miseráveis (Les Misérables)

Direção de Ladj Ly, França.

O vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2019 ao lado da obra-prima tupiniquim "Bacurau" (2019), "Os Miseráveis" é mais um filme a analisar a brutalidade da polícia (majoritariamente contra pessoas negras), tendo a França depois da vitória na Copa do Mundo 2018 como palco principal. Indicado ao Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional", o filme possui vários polos que se chocarão da mesma forma como os diferentes contextos culturais do caldeirão que é Paris, tendo um policial que atira em uma criança negra como estopim de uma revolta. É um daqueles filmes enormes, que não terminam com o rolar dos créditos, permanecendo com o espectador por muito tempo ao pôr no ecrã tantos debates pertinentes e atuais.

04. 911 (idem)

Direção de Tarsem Singh, EUA.

Raramente nas listas de melhores do ano incluo curtas-metragens - é meio injusto comparar um trabalho de minutos com outro que percorre horas -, todavia, "911" consegue burlar qualquer duração. O curta musical de Lady Gaga para a faixa de mesmo nome é, de longe, um dos maiores atos audiovisuais do ano ao transformar uma música pop em um ato imagético de profunda simbologia. Tocando em temas como ansiedade, doenças mentais e remédios antipsicóticos, Tarsem Singh deixa jorrar toda sua veia estilística e molda o filme como uma grande odisseia alucinógena em que cada quadro é milimetricamente irretocável - e, não se contentando em ser visualmente espetacular, ainda tem um plot twist de cair o queixo. Seja pelo nível de produção absurdo ou pela extrapolação do conceito da canção, "911" é um daqueles trabalhos que merecem ser chamados de geniais e que devem em nada na corrente do cinema folclórico, simbolista e surrealista.

03. 1917 (idem)

Direção de Sam Mendes, Reino Unido.

Filme de guerra chegando em premiações, alguém ainda aguenta isso? "1917" teve o trabalho inicial de conseguir conquistar um público cansado de um molde bélico feito para arrepiar a epiderme de premiações, e o resultado é (quase) irretocável - não por acaso ganhou três Oscars e sete BAFTAs. Com foco na Primeira Guerra Mundial, o trabalho segue dois soldados que são mandados em uma missão a fim de evitar um combate ainda maior e mais trágico. Filmado com a técnica de plano sequência - como se não houvesse cortes -, "1917" possui a consciência de que toda a fotografia, som, direção de arte e qualquer elemento técnico não sustenta uma arte que é, primordialmente, o ato de contar uma história. Os pequenos tropeços são ínfimos em meio à experiência visual e sensorial que imerge o espectador nos horrores e nas glórias desse período, sendo um daqueles filmes que nos recorda o quão impressionante e indispensável é a Sétima Arte. Nenhuma outra mídia seria capaz de causar o mesmo impacto.

02. O Chalé (The Lodge)

Direção de Veronika Franz & Severin Fiala, Reino Unido/EUA.

O segundo filme da dupla austríaca que nos presenteou o clássico moderno "Boa Noite Mamãe" (2014), "O Chalé" satisfará o paladar de quem gosta do tipo de terror do primeiro. Duas crianças perdem a mãe quando ela se suicida depois de um ex-marido começar a namorar uma mulher nova. O pai tenta (com insistência) aproximar os filhos da namorada, que possui um passado macabro e, segundo a prole, possui algo de muito errado. Eles ficam presos em uma cabana, e situações inexplicáveis desafiam a sanidade de todos. "O Chalé" nada contra a maré do modelo atual de cinema de terror, acomodado em berrar sustos, e edifica sua atmosfera com muito cuidado, trabalhando com sugestões e temáticas geralmente tratadas com pobreza. A religião católica já perdeu as contas de quantos filmes a tomam como ethos de maneira preguiçosa, sem agarrar o quão assustador pode ser quando roteirizada da maneira certa, e "O Chalé" é um desses exemplos de sucesso, ainda mais louvável quando não possui uma trama sobrenatural, bengala batida e saturada dentro do gênero.

01. Nova Ordem (Nuevo Orden)

Direção de Michel Franco, México.

"Nova Ordem" provavelmente é o filme mais controverso do ano. O "ame ou odeie" definitivo da aurora da nova década, a nova empreitada de Michel Franco segue a coerência de sua filmografia ao contar mais uma história polêmica e difícil: durante uma revolta das classes mais pobres, os militares aproveitam para dar um golpe de Estado, que levará ricos e pobres para o mesmo buraco. A película é mais uma enciclopédia de "franciana" sobre a maldade humana, mas dessa vez com fortíssimo viés político. Sua moral é óbvia: em um mundo sem a menor empatia e afogado em egoísmo e corrupção, todos nós perdemos. Em meio a uma onda do conservadorismo, do reacionarismo e do fascismo que vêm assolando inúmeras nações mundo afora, a distopia do longa choca pela gigante proximidade com o real. Assistir a este nascimento de uma ditadura termina tão forte, alarmante e pretensioso graças à escolha do diretor de não dar uma aula de História no ecrã, e sim realizar um verdadeiro filme de terror.


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