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Crítica: “Sombras da Vida” e nossa eterna busca pelo sentido da vida (ou a falta dele)

Existencialista, niilista, melancólico e poético, "Sombras da Vida" é um tapa na cara sobre a finitude nossa de cada dia
Histórias de fantasmas habitam o imaginário do cinema há gerações. Já na aurora do cinema, em 1896, o primeiro filme de horror feito, "O Castelo Assombrado" do genial Georges Méliès, trazia fantasmas. Espalhados pelos mais diversos gêneros, as entidades assombram comédias, dramas, romances e, principalmente, terrores, sendo descritos, também, como espíritos e demônios.

"O Sexto Sentido" (1999), "Os Outros" (2001), "Atividade Paranormal" (2007), "Espelhos do Medo" (2008), "Sobrenatural" (2011) e "Amizade Desfeita" (2014) são alguns dos vários nomes que moldaram o terror moderno que bebe na fonte dos fantasmas. Todos esses prepararam nossas percepções para, ao pensarmos em fantasmas, logo formarmos a imagem de uma criatura assustadora e temível. "Sombras da Vida" vem então para adicionar um novo capítulo do cinema fantasmagórico, mas distorcendo bastante essas subjetivações ao redor da imagem da criatura.


"Sombras da Vida" (A Ghost Story) nos apresenta um casal, M (Rooney Mara) e C (Casey Affleck). Certo dia uma tragédia os separa quando C morre num acidente de carro, deixando M sozinha e inconsolável. O que poderia ser previsível, seguirmos a vida da mulher durante e pós o luto, é driblado quando seguimos então o fantasma de C.

O primeiro acerto do longa é a composição visual de C no after-death. David Lowery, diretor e roteirista da obra, vai ao básico do básico e cria um fantasma de lençol branco, o que há de mais elementar quando se trata da entidade - os fantasmas de "O Castelo Assombrado", de mais de um século atrás, são exatamente assim. Claro, há todo um cuidado no figurino de Affleck, embaixo de um lençol gigantesco e com dois furos nos olhos, forrados por tecido preto. Até mesmo a forma dos círculos oculares são imprescindíveis para a composição imagética do personagem ao darem um ar melancólico a ele.


Outra escolha estética bastante correta é o ecrã do filme, um quadrado ao invés do usual retângulo. Lowery explicou que escolheu o ratio quadrado porque seria uma ligação à situação de C, preso numa caixa ao abandonar a liberdade pós morte para se manter em plano terreno. É evidente que, acima de tudo, filmar um quadrado dar um ar indie e, por quê não?, cool ao longa, porém não soa gratuito, principalmente com a ideia do diretor. Andrew Droz Palermo, fotógrafo do terror "Você é o Próximo" (2011), não se deixa limitar pelo ecrã e consegue retirar imagens belíssimas, desde os planos abertos, onde vemos a imensidão solitária em que C agora habita, até os closes e detalhes, captando a beleza e tristeza do ordinário, do comum, do dia a dia.

Ainda no hospital, após acordar para o pós-vida, C encontra uma porta iluminada, o caminho para a eternidade - ou o paraíso, você dá o nome que quiser -, mas ele não entra. Ao invés disso, vai até a casa em que dividia com a esposa para acompanhar como ela está lidando com a situação. Ela, claro, está péssima, todavia, ao invés do melodrama, o diretor escolhe em filmar um lado introspectivo da situação, sem pressa. Há uma cena de oito minutos ininterruptos onde vemos M chegando em casa e comendo uma torta. É impossível não pensar pelo menos uma vez "qual a necessidade de mostrar tudo isso?", porém é importante vermos de forma crua e banal como é a vida de alguém após uma tragédia.


E, como é de se esperar, o tempo passa e M começa a fazer aquilo que é tão humano: seguir em frente. Sua vida passa num piscar de olhos na frente de C, sempre ali observando, até que ela aparece com um novo namorado, para a fúria do fantasma. A própria mulher demonstra se sentir um pouco culpada, mas nada é capaz de diminuir a raiva de C, que assombra - literalmente - a casa, piscando as luzes e derrubando diversos livros de uma estante, até que ela decide se mudar dali.

Antes de ir embora, M deixa um bilhetinho escondido dentro de uma fresta da parede da casa - algo que ela faz desde pequena ao se mudar, para guardar um pedaço seu no local -, o que vira o objetivo de vida (ou, no caso, de morte) do fantasma: descobrir o que ela escreveu. Enquanto não consegue pegar o papelzinho, ele aterroriza a vida de qualquer morador que se atreva a viver na casa, afinal, ali é o lar dele e da esposa, não importa a circunstância.


O filme brinca de maneira estrelar com os gêneros, apropriando-se de fragmentos de romance, terror e até comédia (é cômico ver o fantasma imóvel ao fundo das cenas enquanto as pessoas vivem sem ter ideia de que ele está ali) para compor algo único, original e fresco - e tudo com um orçamento baixíssimo, apenas 100 mil dólares, algo inimaginável em Hollywood. Temos aqui um cinema autoral, um sopro de ar fresco em meio a tantas sequências, reboots e franquias intermináveis.

Enquanto tenta descobrir o que tem no papel, curiosamente, C vai aprendendo um pouco com quem está na casa. Em determinado momento, um homem, no meio de uma festa, conta como todos nós estamos fadados ao esquecimento. Não importa o quanto tentemos, em vida, resguardar nossa memória: quando nos formos, um dia ninguém mais se lembará de nós. A cena não é um tapa apenas nas nossas caras, mas na de C também. Ele percebe, ali, que a esposa vai esquecer dele um dia. A casa que ele tanto ama também vai ser destruída. O mundo que ele conhece tão bem está, nesse segundo, mudando. Tudo foi feito para acabar. Então qual o propósito?

"Sombras da Vida" é um filme sobre o ato de não seguir em frente. Curiosamente, não é o lado de cá que decide não tocar com a vida, é o fantasma que se recusa a sair dali. Ele se apega desesperadamente à realidade com a esposa, à casa e sua velha vida, mesmo tudo isso tendo acabado. Largar tudo e cair no desconhecido gela a espinha de qualquer ser humano, na nossa louca natureza de conforto e segurança. Somos minúsculos, passageiros e finitos, e é impossível não perder o sono com essa máxima absoluta. Existencialista, niilista, melancólico e poético, "Sombras da Vida" é um longa que vai arrancar seu coração, porém, ao mesmo tempo, te encantar pela maneira belíssima que David Lowery mostra nossos objetivos nesse planetinha perdido no espaço.

P.S.: a música-tema do filme, "I Get Overwhelmed", vai ficar eternamente na sua cabeça (e isso é uma bênção).

disqus, portalitpop-1

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