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Lista: 10 filmes com 10 línguas que você talvez não tenha ouvido

Minha categoria favorita do Oscar é a de "Melhor Filme Internacional", a antiga "Filme Estrangeiro". Ela é, de longe, a seleção mais variada que a Academia consegue escolher, e isso se baseia na fundamentação da categoria: vislumbrar a cultura dos mais diferentes países por meio do Cinema. Com uma arte dominada pela língua inglesa, é enriquecedor ter contato com uma linguagem que, caso não fosse um filme, talvez jamais conheçamos.

O oligopólio é tão verdadeiro que, nos 92 anos do Oscar, apenas um filme não-inglês venceu a estatueta de "Melhor Filme", o coreano "Parasita", aqui em 2020. Eu, que vasculho as seleções anuais de "Filme Internacional" a fim de ter uma bagagem bem diversificada, busco me aprofundar em línguas que nem sabia que existiam. Então, a lista em questão visa compartilhar essas buscas.

Aqui estão 10 filmes falados (em parte ou inteiramente) em 10 línguas que o grande público provavelmente nunca ouviu na vida. Obviamente, os longas não foram escolhidos somente pela língua, possuindo todos qualidade o suficiente para serem muito mais que um portfólio cultural - você também notará que separei especificamente alguns nomes LGBTs porque sempre bom. Como sempre, todos os textos são livres de spoilers, captando apenas o que cada um tem de melhor para fazer você correr e assistir.


O Confeiteiro (האופה מברלין/The Cakemaker), 2017

Língua: Hebreu
Direção de: Ofir Raul Grazier
Thomas, um confeiteiro alemão, tem um romance secreto com Oren. O sigilo não se deve à sua sexualidade, e sim porque Oren é casado com uma mulher. Quando o namorado morre ao voltar para Israel, Thomas decide ir até a casa do falecido a fim de descobrir o que aconteceu. Só que, ao conhecer a esposa, ele não revela a verdade, e vai se tornando cada vez mais íntimo da viúva. Drama LGBT fincando no meio de Israel é interessante por si só, e o hebreu é uma das línguas mais antigas do mundo, ressurgindo no séc. XIX. "O Confeiteiro" venceu "Melhor Filme" no Ophir, o Oscar de Isreal, um belo feito para um longa gay.

Flores (Loreak), 2014

Língua: Basco
Direção de: Jon Garaño & Jose Mari Goenaga
Um buquê de flores é deixado na porta de uma mulher. Sem cartão ou identificação do remetente, ela acha curioso, mas deixa para lá. Só que outro buquê surge, e outro, e outro, e outro, e aquelas simples flores mudarão a vida dela. A língua basca é proveniente da região de Basco, que fica ao norte da Espanha, e diferente claramente das línguas da região por preceder o latim. "Flores" foi o primeiro filme em basco escolhido para o Oscar de "Melhor Filme Internacional", um feito e tanto, seja como ineditismo, seja como reconhecimento cultural, já que o espanhol é uma das línguas mais faladas em todo o mundo.

Os Iniciados (Inxeba), 2017

Língua: Xhosa
Direção de: John Trengove
"Os Iniciados", escolhido da África do Sul na corrida do Oscar - e sendo semifinalista -, é um filme LGBT que segue rituais de passagem da masculinidade na cultura africana e como a toxidade da figura do macho é difundida nas mais impensáveis sociedades. Recebido com extrema repressão em solo africano pelo conteúdo gay, é um triunfo a produção da fita pela temática dentro da língua Xhosa, falada por 18% da população africana em países como África do Sul, Zimbábue e Lesoto, ainda opressores e com perseguições severas contra minorias.

A Ilha dos Assobios (La Gomera), 2019

Língua: Silbo
Direção: Corneliu Porumboiu
Um policial deve libertar um empresário corrupto da cadeia, mas, para isso, deve entrar em um plano que o força a ir até a ilha La Gomera a fim de aprender o Silbo, língua secreta dos envolvidos no plano. "A Ilha dos Assobios" é majoritariamente falado em romeno, uma língua bem distante da nossa por si só, todavia, vai mais longe ao apresentar o Silbo, que é "falado" por meio de assobios. É fascinante ver os diálogos, quase cantados como pássaros, e a obra faz questão de ensinar na tela como ela funciona - e parece dificílima por ser nada similar com qualquer dialeto popular.

E Então Nós Dançamos (და ჩვენ ვიცეკვეთ’/And Then We Danced), 2019

Língua: Georgiano
Direção de: Levan Akin
Você deve até ter ouvido falar da Geórgia, mas sabe onde fica? O pequeno país fica na divisa entre Europa e Ásia e não possui um cinema tão difundido, mas há películas fantásticas por lá, como o escolhido do país para o Oscar 2020: "E Então Nós Dançamos" foi mais uma obra gay que sofreu retaliação pela população conservadora, e o filme expõe muito bem o quão homofóbica é a sociedade de lá. Conhecida pela sua dança, a história - que inegavelmente segue uma cartilha de filmes do molde - fica mais fascinante pela língua e pelo estudo cultural do país.

Atlantique (idem), 2019

Língua: Wolof
Direção de: Mati Diop
Um romance sobrenatural, "Atlantique" tem o Senegal como núcleo de sua trágica história: um casal tem a relação permanentemente abalada, mas há amores que perduram a eternidade. "Atlantique" foi um marco no seu lançamento: é o segundo filme senegalês consecutivo a ser selecionado pelo Oscar e foi o primeiro em wolof (língua da região do Senegal e Mauritania) e dirigido por uma mulher negra a vencer um prêmio no Festival de Cannes. O maior solidificador da desconhecida língua no Cinema moderno, sem dúvidas.

A Gangue (Плем'я/Plemya), 2015

Língua: Língua de Sinais Ucraniana
Direção de: Myroslav Slaboshpytskiy
Se você acompanha o Cinematofagia, sabe que não perco uma oportunidade de aclamar um dos melhores filmes já feitos. A experiência de assistir "A Gangue" é totalmente única: ele é "falado" em língua de sinais ucraniana, ou seja, você não ouvirá um só diálogo através da voz a sessão inteira. E melhor: não existe legenda para coisa alguma (propositalmente). O diretor - que também não era fluente na língua, precisando de um tradutor para ensaiar com os atores - quis produzir uma sensação jamais vista ao restringir ao máximo os diálogos, testando se o amor e o ódio precisam ou não de tradução. E não precisam. Pena para quem é fluente na língua, que não pode vivenciar o que quase todo mundo vivenciou.

Eu Não Sou Uma Bruxa (I Am Not A Witch), 2017

Língua: Bemba
Direção de: Rungano Nyoni
"Eu Não Sou Uma Bruxa" está bem próximo de "Os Iniciados": ambos vão no interior da África explanar um aspecto cultural acerca do gênero. O filme de Rungano Nyoni vai até a Zâmbia retratar como a tradição da opressão de bruxas ainda é algo recorrente na região, e usa a língua local, a bemba. Mesmo sendo bem desconhecida na cultura popular, é falada por mais de 4 milhões de pessoas na região da Zâmbia, Congo, Tanzânia e Botsuana. "Eu Não Sou" venceu o BAFTA (o Oscar britânico) de "Melhor Estreia", o primeiro falado em bemba a levar um BAFTA em toda a história.

Um Homem Íntegro (لِرد‎/Lerd), 2017

Língua: Persa
Direção de: Mohammad Rasoulof
Farto da política suja de sua cidade, Reza leva toda sua família para o campo, preferindo migrar léguas até a cidade do que conviver com o sistema. Só que a corrupção vai afetar sua vida de qualquer forma. "Um Homem Íntegro" traz um dos personagens mais perseverantes do Cinema quando Reza enfrenta tudo e todos para manter sua integridade, destinada ao fracasso. O Cinema iraniano é um dos mais espetaculares da atualidade e a língua persa uma das mais sonoramente envolventes.

Rafiki (idem), 2018

Língua: Suaíli
Direção de: Wanuri Kahiu
"Rafiki" é uma fita orgulhosa de suas origens. O título em suaíli foi vendido internacionalmente sem tradução, e carrega todo o peso de uma trama: significa "amigo", o termo que as pessoas homossexuais no Quênia chamam seus parceiros. A língua preenche a tela e a diretora Wanuri Kahiu pinta seu país da forma mais colorida que pode para celebrar a resistência de suas personagens em um país que condiciona a mulher ao papel de esposa. Sem surpresas, foi banido no país natal por ser uma "propaganda ao lesbianismo", o que é contra-lei - e, após brigas judiciais para a liberação do filme, o governo queniano de pirraça ignorou o longa na seleção para o Oscar.

***

Crítica: para “Viveiro”, a vida perfeita no subúrbio é uma condenação

Atenção: a crítica contém spoilers.

Gostaria de começar esse texto com um apelo que, ao mesmo tempo, é uma confissão. Eu julgo filmes pelos seus pôsteres. É claro que não é apenas ele que me fará assistir à produção, mas definitivamente possui quase uma ciência por trás das artes feitas e como elas podem gerar sensações que serão (ou deveriam ser) refletivas no filme. Por exemplo, um filme de terror com um cartaz "alegre" vai vender uma imagem discrepante, não é verdade? Enfim, o que quero dizer é: distribuidoras, caprichem em seus pôsteres, eles podem ser essenciais na captura a atenção do público.

Foi isso que aconteceu com "Viveiro", o segundo filme do ainda desconhecido Lorcan Finnegan - e o primeiro co-roteirizado por ele. A arte de divulgação da obra é belíssima e intrigante ao mesmo tempo, o encapsulamento ideal para a história que estava ali: um casal - Gemma (Imogen Poots, assustadoramente fantástica no papel), uma professora; e Tom (Jesse Eisenberg), um jardineiro - está em busca da casa dos sonhos. Eles encontram uma imobiliária que promete o conjunto habitacional perfeito, o Yonder, onde "famílias com qualidade de vida vivem para sempre". Eles são conduzidos por um estranhíssimo corretor - Martin (Jonathan Aris) -, que, durante a visita a uma das casas, desaparece. O casal tenta ir embora, mas simplesmente não consegue encontrar a saída naquele labirinto de casas iguais e desertas.

À princípio, tudo parece ter alguma resposta lógica para o casal, contudo, quando eles decidem seguir o sol e voltam exatamente para a casa #9, onde começaram, descobrem que há algo de muito errado ali. No meio do desespero, Tom incendeia a casa, só para ela estar intocada no dia seguinte; e ainda há uma surpresa: uma caixa é depositada na frente da casa. Dentro, há um bebê e a instrução: "Cuide da criança e sejam liberados".


Há diversos pulos temporais dentro da narrativa, fincando âncoras lineares a partir do crescimento do garoto. Ele cresce em uma velocidade anormal, e em três meses já parece uma criança de sete anos. Não satisfeito, ainda possui um comportamento totalmente desconcertante, com uma voz que claramente não poderia ser dele e imitando todos os passos, gestos, falas e tons de voz que Gemma e Tom fazem. Sua forma principal de comunicar algo que precisa é por meio de um grito ensurdecedor, só interrompido quando consegue o que quer.

O garoto - interpretado na forma infantil por Senan Jennings - é in-su-por-tá-vel, e peça seminal na construção da atmosfera do local. O ambiente, assim como o menino, é esteticamente correto: as casas miraculosamente pintadas, os móveis projetados com zelo, o céu sempre com nuvens perfeitas, todavia, absolutamente tudo ali, com exceção de Gemma e Tom, soam artificiais. Já na primeira refeição na casa, o casal afirma que a comida tem gosto de nada, e é exatamente assim que exala todo o resto. É como viver dentro de uma casa de bonecas gigante: tudo parece muito real, mas é só tocar para saber que é plástico.

É curioso ver como a dinâmica do casal é severamente mudada conforme eles vão acumulando dias presos no Yonder: se no começo discutiam sobre todos os significados que estariam ali, eles perdem essa urgência de sentar e conversar sobre o que diabos está se passando. Há tentativas de quebra do sistema - eles escrevem uma mensagem de socorro enorme no telhado e ficam na porta esperando que a caixa com comida do dia surja -, mas o único objeto de discussão restante é o menino.

Tom prefere deixar que ele morra , um ato de revolta contra o que quer que seja que controle o local - e, também, porque o menino é intolerável -; já Gemma decide manter, e até proteger, o garoto. Isso faz com que um distanciamento da relação os separe de tal forma que, mesmo estando fisicamente próximos, seus objetivos ali são diferentes. Tom está cavando um buraco no jardim da frente após descobrir quem o solo é feito com uma estranha substância; e Gemma vive para cuidar do garoto, mesmo lembrando-o constantemente que não é a mãe dele.

Uma das cenas chaves para entender o filme é a da brincadeira de imitação. Gemma diz para o menino imitar as pessoas que ele conhece, incluindo quem quer que seja que deu um estranho livro para ele. Ao imitá-lo, o menino começa a se transformar em uma criatura, para o desespero de Gemma. O desenho da criatura, uma mistura de humano com pescoço anfíbio, está no livro, junto com um idioma claramente alienígena.


O último ato segue o garoto já adulto, e a comprovação do tema por trás da película surge quando ele levanta o chão (!), como um tapete, e foge por diversas outras dimensões iguais a de Gemma - várias outras casas iguais, mas com famílias diferentes. "Viveiro" é um filme de E.T.s. Recentemente lançado, já podemos encontrar várias debates sobre o que o longa quis passar nos insanos 97 minutos. Vamos entender.

A primeiríssima cena é um ninho de pássaros. Lá, vemos o que um cuco faz: eles, ao invés de construírem os próprios ninhos, roubam os já prontos, depositam seus ovos e deixam o pássaro que o fez cuidar dos filhotes como se fossem seus. Eles são parasitas naturais, roubando a identidade dos reais filhotes e gritando quando precisam ser alimentados. O menino é como o cuco. O título também descreve bem: "viveiro" é uma espécie de aquário que imita um habitat real, e é exatamente assim que Gemma e Tom vivem. Eles são cobaias de uma raça alienígena, que estuda como os humanos agem em uma das configurações mais primitivas da sociedade: a família.


Desde o advento do "american dream" na década de 30, vivemos em um ethos circular que é repetido incansavelmente: o meio nos diz que devemos casar, ter nossa moradia, nossos filhos, criá-los e então morrer. É um passo a passo doméstico muito bem traçado que dita o que será uma vida de sucesso e fracasso. Dentro dos gêneros, o homem é o responsável pelo sustento dessa valsa, enquanto a mulher é quem cuida dos filhos, até que eles possam executar sozinhos o mesmo trajeto. Os aliens estão observando as cobaias desempenharem exatamente esse papel: Gemma cuida do garoto enquanto o trabalho de Tom é cavar o buraco aparentemente sem fim.

Bem no início, na cena da escola, há um diálogo importantíssimo entre Gemma e uma garotinha que encontra dois passarinhos mortos no chão.

- Quem fez isso com esses filhotinhos?
- Eu não sei. Talvez tenha sido um cuco.
- Por quê?
- Porque ele precisa de um ninho.
- Por que ele não faz o próprio ninho?
- Porque a natureza é assim, é como as coisas são.
- Eu não gosto como as coisas são. Elas são horríveis.

A conversa é um exemplo bem lúdico do que o Determinismo tenta explicar. O princípio diz que tudo o que existe na natureza está ligado entre si por rígidas leis universais que excluem o acaso, e que não existe nada que possa frear o que está feito para acontecer. O Determinismo também prega que até mesmo a vontade humana é totalmente predeterminada pela natureza, ou seja, a liberdade é uma ilusão coletiva. E todos esses conceitos caem como uma luva na trama de "Viveiro": Gemma e Tom são apenas experiências incapazes de escapar da força superior das criaturas que projetaram aquele viveiro. Elas só devem seguir o fluxo até que a tarefa ali - criar o menino - seja completada.

O diretor diz, em uma entrevista sobre o trabalho, que o consumismo está consumindo a humanidade. Estamos tão mecanicamente condicionados a uma mesma estrutura de vida que acabamos presos em uma sequência que parece ser a liberdade, o sonho comum, mas só parece. O Transcendentalismo, que provavelmente foi fonte para as postulações do roteiro, critica exatamente esse ponto: eles vão a fundo no ataque ao modelo americano de vida - que é reproduzido ao redor do mundo. Henry David Thoreau, autor do livro "A Vida nos Bosques" - uma das inspirações do filme "Na Natureza Selvagem" (2007) - defende que o homem moderno deve diminuir suas necessidades materiais, que o afasta da conexão com a essência. Dentro de um simulacro da vida ideal, o casal protagonista enxerga as amarras que sempre estiveram ali.

Estamos vivenciando uma fase interessante na mistura de horror e ficção científica - "Sob a Pele" (2013), "Coerência" (2013), "Aniquilação" (2018) -, casando criatividade com as colunas dos dois gêneros: atmosfera e reflexão. "Viveiro" sem dúvidas não é um longa para qualquer paladar: é uma fita lenta, estranha, sufocante e que não vai entregar seus segredos de mão beijada. Sua beleza imagética esconde toda sua bizarrice com uma estética que passeia por "Edward Mãos de Tesoura" (1990) e "O Show de Truman" (1998), e transforma a casa própria, uma das mais desejadas paisagens, em um verdadeiro labirinto em que cada esquina é um pesadelo.


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Crítica: “O Poço” vai de “O Cubo” a Foucault em seu estudo da desumanidade do Capitalismo

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Dentre as várias instituições que formam a sociedade como conhecemos, uma das mais desafiadoras, que já passou por drásticas mudanças e, segundos alguns estudiosos, até presente data ainda não encontrou um modelo que seja ideal, é a prisão. Ou, para ser mais abrangente, o mecanismo de punição do Estado.

Na Europa, antes da Revolução Francesa em 1789, os crimes eram punidos com a tortura e a morte. A figura do rei, detentor absoluto de todas as leis, sentenciava criminosos baseado na ideia de que, se um crime é um ato contra o Estado, e ele é o Estado, um crime é um atentado ao rei. A punição brutal servia tanto para garantir que o acusado não voltasse a cometer o mesmo erro quanto para servir de exemplo para todas as outras pessoas, afinal, tais sentenças eram proferidas de maneira pública. Sabe a clássica cena em que Cersei, em “Game of Thrones”, tem que caminhar nua pelas ruas da cidade enquanto todos os súditos a assistem, como um espetáculo? Pois é. Só que muitos terminavam como em “A Paixão de Joana D’arc” (1928).

A saída da monarquia para a república também mudou o modo de punição, abandonando as execuções públicas para o projeto de encarceramento que conhecemos. Pode parecer que a mudança seja um avanço incrível – o que de certa forma é até verdade (paramos de matar pessoas no meio da rua) –, todavia, ainda estamos bem longe de uma instituição que funcione como deveria. Pode soar, também, que as prisões como conhecemos sejam uma diminuição do poder do Estado sobre seus cidadãos, mas esse poder só é exercido de maneira diferente.

Em “O Poço” (El Hoyo), vamos a alguns anos no futuro – jamais sabemos exatamente quando – em que um novo modelo prisional está em vigor. Ainda baseado no encarceramento, as grades são trocadas por andares: a construção é vertical, como um prédio, e cada andar comporta dois presos. A característica principal – e que rege a ideologia do sistema – é a maneira como quem está lá dentro se alimenta: há um poço bem no meio dos andares, por onde uma plataforma desce todos os dias, como um elevador, levando comida aos presos. No andar nº 0, os cozinheiros estritamente vigiados preparam as melhores refeições possíveis, depositando tudo para que a plataforma desça ao andar nº 1. Então, após alguns minutos, a plataforma desce para o andar seguinte, ou seja, o nº 2 vai comer o que restou do nº 1, o nº 3 vai comer o que restou do nº 2, e assim por diante.

O ponto focal do filme está com Goreng (Ivan Massagué), que acorda no 48º andar. Ao seu lado está Trimagasi (Zorion Eguileor), um senhor já de idade que foi preso por acidental e irresponsavelmente matar um homem. Ele, estando ali há quase um ano, explica como funciona o sistema, e se espanta ao saber que Goreng está ali por vontade própria: o protagonista trocou sua liberdade por um diploma.

Logo de cara já recebemos uma enxurrada de informações, com alguns pontos de destaque: é possível se voluntariar para entrar na prisão, porém, ninguém do lado de fora sabe o que acontece lá dentro – caso contrário, não aceitaria. Mesmo sendo possível conversar com os presos dos andares próximos através do poço, a única pessoa que cada um tem contato é com o companheiro de andar, excluindo a figura do agente prisional. Mas isso não abre brechas para maiores liberdades, pelo contrário: de alguma maneira, a construção é violentamente inteligente, alguma forma de tecnologia pra lá de avançada que sabe se algum dos detentos quebrou a regra básica de lá: você só pode comer enquanto a plataforma estiver no seu andar. Guardar comida é punido com a morte pelo frio ou calor – algo que Goreng descobre rapidamente ao separar uma maçã.


Isso, então, nos remete a quem? Michel Foucault. Se você não for familiarizado com o livro “Vigiar e Punir”, o filósofo resgata um conceito do séc. XVIII primordial para o entendimento de “O Poço”: o Pan-óptico. Do grego “o que tudo vê”, o Pan-óptico é uma construção arquitetônica disposta de maneira em que todas as celas e todos os presos fossem vistos por um só vigilante. É a ideia utópica da cadeia, a vigilância absoluta. Em “O Poço”, essa utopia é real. Há uma força onipresente, capaz de punir qualquer um que quebre a lei fundamental de lá – e não engrossa apenas o caráter físico, mas também o psicológico: uma figura divina que sabe de tudo aumenta a claustrofobia e força seus presos a jogarem o jogo.

Outra característica da prisão é que, todo mês, os presos acordam em um andar diferente. Trimagasi diz que o 48º é ótimo pois a comida ainda chega até lá, afirmando que já esteve em níveis bem mais baixos onde a fome era a única companhia. “O Poço” é um filme de terror, e as imagens criadas pela forma de distribuição da comida são efetivamentes repulsiva: Trimagasi imediatamente devora as sobras tocadas, mastigadas e cuspidas por – atualmente – 94 pessoas sem pensar duas vezes. O design de produção é um dos maiores aliados na geração da atmosfera, criando um banquete capaz de causar ânsia no espectador quando os personagens comem os frangos em pedaços e bolos com cobertura de saliva em pratos imundos. É um contraste enorme entre o que chega no andar dos personagens e o que é feito no andar nº 0, uma cozinha cinco estrelas.

Os únicos poderes que os presos possuem são: eles podem matar o companheiro; eles podem se matar, pulando pelo poço, por exemplo; e eles podem controlar como a comida chegará no andar de baixo. Um dos atos mais grotescos de todo o roteiro parte de Trimagasi, que cospe e urina na comida antes de a plataforma descer. É uma atitude atroz, que condena sem volta todo mundo dali para baixo. Quando questionado por um revoltado Goreng o motivo da atitude, Trimagasi responde: “os de cima provavelmente fizeram o mesmo”.

Essa suposição, que está longe de ser absurda, é baseada no viés misantropo da película: somos seres terrivelmente egoístas. Contanto que nossas necessidades sejam atendidas, os outros não importam mais. Goreng compartilha do sentimento altruísta, e encontra um reforço quando uma mulher tenta conscientizar os presos de outros andares a dividir a comida de maneira igualitária, mas é tudo em vão. O sistema tem uma maneira bem suja de corromper quem está dentro: com a mudança de andares todos os meses, você pode sair de um nível “confortável” e parar em algum onde passará fome. Se eu estou em um andar que chega comida, eu comerei o máximo possível, pois próximo mês posso não ter mais essa regalia. Difícil argumentar contra essa ideia, e basta uma pessoa para arruinar toda a conscientização das outras na divisão do alimento – uma comendo mais o que deve, alguém não terá.

Na metade da exibição descobrimos que os pratos feitos no andar nº 0 são baseados nas escolhas de cada um dos presos, e que haveria comida o suficiente para alcançar todos os andares – que são exatamente 333. Quando acorda no andar nº 122, Goreng vê que a comida há muito tempo acabou, e ali nem é a metade da estrutura – exatamente como no mundo real, que produz alimentos o suficiente para toda a população mundial, e mesmo assim a fome é um problema sólido. Engraçado notar que, no andar 122, Trimagasi amaldiçoa a todos os de cima por comerem tudo o que a plataforma carrega, no entanto, quando está em cima, não pensa duas vezes antes de fazer exatamente o mesmo que viria a condenar. É um círculo vicioso e asqueroso de hipocrisia. O que resta para as centenas de pessoas dali para baixo? Definhar de fome o resto do mês, suicídio ou canibalismo. É claro que a obra não é discreta em abordar essas opções, em cenas que arrepiam.

O primeiríssimo diálogo do filme é “O mundo é dividido em três tipos de pessoas: aqueles que estão no topo, os que estão no fundo, e os que caem”. Não apenas uma definição bem literal da prisão, a fala é uma ilustração perfeita do sistema. Os que estão no topo estão confortáveis, afinal, conseguem comida. Os que estão no fundo querem desesperadamente mudanças. E há os que caem. Sejam os que se atiram poço abaixo ou Goreng, que decide descer pela plataforma para chegar até o último andar e subir até o nº 0 quando a plataforma retornar seu trajeto.


Segundo Foucault, o poder é uma força vertical, exercida de cima para baixo, e atravessa todos os espaços existentes na sociedade. "O Poço" é a construção cinematográfica dessa definição – bem ao pé da letra quando abraça a ideia do “vertical”. Então, os que estão em cima dessa estrutura não querem mudanças, pois jamais abdicarão seus poderes; os que estão embaixo não possuem recursos para produzir essa mudança; e os que caem são os que arriscam tudo para tentar quebrar o status quo. É claro que todos esses conceitos geram várias teorias para explicar a mitologia do longa.

Uma das mais interessantes é que ali seria o intermédio entre o Paraíso e o Inferno. O número de andares não pode ser por acaso: se existem 333 pisos, com duas pessoas em cada um, 666 estão ali dentro, o número do Diabo. Quanto mais abaixo, mais próximo do Inferno você está. A perfeição do andar nº 0 remete à glória de deus ao fazer suas criações, irretocáveis em todos os detalhes. Ele provém tudo que todos precisam e todos poderiam desfrutar do Reino do Céu (o prato favorito de cada um, o único luxo disponível), mas o homem em toda sua ganância está pronto para destruir. Os presos estão ali sendo testados, indo do Céu ao Inferno em busca de uma maneira que os una. Porém, como diz Goreng, nenhuma mudança é espontânea.

Era de se esperar que o final da obra não trouxesse algo conclusivo. Deixando o espectador tirar suas próprias conclusões e imaginar o destino dos personagens, há um problema latente da maneira que o filme escolheu amarrar seu desfecho: ele cria uma sensação de que há algo maior do que realmente existe. Há todo um reforço na ideia de uma “mensagem” a ser levada até o andar nº 0, como se fosse algo enviado pelos deuses ou um simbolismo folclórico além da superfície do ecrã, o que é uma perfumaria bem desnecessária. Parece que o roteiro tem medo de assumir a simplicidade do seu final e tenta torna-lo mais grandioso do que realmente ele é.

Por se tratar de uma produção espanhola, “O Poço” impressiona pelo requinte técnico – e é a estreia do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, mais um motivo para potencializar a boa realização da película. Longe de estúdios bilionários de Hollywood, a concepção visual da trama é realizada fantasticamente; quase inteiramente filmado em um único cômodo, os efeitos especiais são essenciais para a imersão da plateia diante da estrutura, seja nos momentos em que a plataforma magicamente atravessa os pisos, seja nos takes que mostram o quão grande é o poço. E isso reflete também na própria concepção ideológica do todo.

As discussões de “O Poço” soam óbvias – é só você ler a sinopse que a fundamentação central da fita estará presente. Sim, esse é um filme que quer mostrar como a estruturação do Capitalismo é falha, desumana e cruel – e provavelmente você, proletariado, já sabe disso. Do adestramento do corpo pelas prisões à distribuição desigual de recursos, a metáfora cinematográfica do filme preenche todos os requisitos esperados, todavia, há muito mais a ser percebido ao instigar debates sobre as relações entre diversas cenas e o panorama da sociedade contemporânea, uma das melhores funções da Sétima Arte. Uma mistura de “O Cubo” (1997), “Jogos Mortais” (2004) e “O Anjo Exterminador” (1962), “O Poço” é uma alegoria brilhantemente terrível da natureza humana que gera indagações ao mesmo tempo que executa um trabalho de gênero delicioso.

Obs.: parabéns para a Netflix pelo timing assustador ao lançar um filme sobre a importância da divisão de mercadorias exatamente no meio de uma pandemia que causou desinformação e panic buying, esgotando produtos que poderiam ser divididos igualmente. Você aí conseguiu encontrar álcool em gel em algum lugar?


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Lista: 10 filmes da década passada que você talvez não tenha visto (mas deveria)

Caso você não saiba, tenho uma parede inteira no meu quarto coberta com mais de 300 pôsteres de filmes. Sempre que alguém passa por aqui, sai listando quais já assistiu, e alguns deles nunca foram apontados por alguém. Se você não for cinéfilo ou habite na roda do Cinema, é normal que inúmeros longas incríveis passem batido todos os anos, e estou aqui para tentar amenizar essa dor.

Por isso - e para aproveitar que estamos todos em casa nesse momento de pandemia -, escolhi 10 filmes dos anos 2010 que você talvez não tenha visto (mas deveria). Para selecionar as obras, tracei dois parâmetros. 1, o filme não pode ter saído na minha lista com os 100 melhores da década (você já pode ver todos - e escolher quais colocar na maratona - aqui) e 2, o filme não pode ter mais de 1000 votos no Filmow (alguns aqui não passaram de 100).

Tentei, também, trazer uma lista bem diversificada, com filmes de todos os cantos do mundo,  com diferentes línguas e dirigidos por homens e mulheres. Comento sobre cada um deles e o porquê de valerem a pena, mas não se preocupe, todos os textos estão sem spoilers. Sua quarentena está salva (eu espero).


Rainha de Copas (Dronningen), 2019

Direção de May el-Toukhy, Dinamarca.
Uma advogada de sucesso no ramo da proteção infantil acolhe o enteado em sua casa para não contrariar o marido. O problema é que ela vê seu castelo perfeito começar a ruir quando inicia um relacionamento com o garoto. O que começa como uma brincadeira sedutora é levada por "Rainha de Copas" a jogos de poder que terão consequências devastadoras. Liderado por uma atuação perfeita de Trine Dyrholm, o longa é um estudo poderoso sobre o outro lado da pedofilia, quando a mulher é o "predador". Cheio de cenas desconcertantes, a metáfora do título já mostra como o filme anda no campo do ambíguo: rainha de copas é a carta que representa o altruísmo, o que é no mínimo irônico dentro da obra.

Apostasia (Apostasy), 2017

Direção de Daniel Kokotajlo, Reino Unido.
A base de uma família é a religião. Testemunhas de Jeová, a filha mais nova se encontra doente, tendo que se submeter a uma transfusão de sangue para se curar, algo que é proibido pelos preceitos religiosos. A menina escolhe a ciência, e deve ser retirada do seio familiar por isso, mas o que é mais importante para a mãe? O filme de Daniel Kokotajlo é um dos vários na atualidade a questionarem como a fé - de diferentes culturas - pode ser um atraso ao invés de um alívio. A doença que envolve a trama, no fim das contas, não é a da filha.

Borgman (idem), 2013

Direção de Alex Van Warmerdam, Holanda.
Uma rica família mora em sua linda e segura casa. As barreiras dessa fortaleza de arrogância são perturbadas com a chegada do Diabo (ou do Bicho Papão, que seja), mascarado na pele de um sem teto. Sem usar artifícios visuais ou sonoros para construir a tensão, só na base da narrativa, "Borgman" é um filme niilista sobre as mirabolantes formas de agir do mal, que nos seduz de forma tão patética quanto às três crianças com a história da Menina Branca. Uma mistura desconcertante de Yorgos Lanthimos com Michael Haneke, o que garante imagens impactantes que não vão deixar sua cabeça tão fácil.

Irrepreensível (Irréprochable), 2016

Direção de Sébastien Marnier, França.
Com seus 40 anos, Constance não consegue mais emprego em Paris. Voltando para sua cidade no interior, tenta a vaga que tinha antes de ir embora, todavia, o seu ex-chefe prefere contratar uma freelancer que fará o mesmo trabalho ganhando bem menos. Constance então vai dedicar seus dias para fazer a rival sumir do mapa e, então, ter seu emprego. Um estudo de personagem fenomenal, "Irrepreensível" não apenas aponta o dedo para o Capitalismo, que gera rivalidades absurdas, mas também à protagonista, que vai da noite jantando milho em lata à perseguição digna de uma sociopata.

O Monstro de Mil Cabeças (Un Monstruo de Mil Cabezas), 2015

Direção de Rodrigo Plá, México.
Veio do México um dos filmes mais simples e eficientes sobre um dos maiores monstros que habitam nosso mundo: a burocracia. Sonia é uma desesperada esposa que tenta conseguir o tratamento negado pelo plano de saúde para o marido, prestes a morrer. As dificuldades começam logo no hospital, quando várias informações desencontradas são jogadas sobre ela e o médico do marido se recusa a atendê-la. A paciência da mulher vai se esgotando até que ela toma medidas mais drásticas para solucionar a situação. Com um pé em "Relatos Selvagens", porém com muita acidez e sem o humor, "O Monstro de Mil Cabeças" é uma crônica poderosa sobre como o sistema dificulta as nossas vidas e como médicos possuem um desmedido poder de decidir quem vive e quem morre baseado em dinheiro.

Blue My Mind (idem), 2017

Direção de Lisa Ivana Brühlmann, Suíça.
O suíço "Blue My Mind" (belo trocadilho no título) é uma daquelas produções que englobam diversos temas, estéticas e narrativas que arrepiam a epiderme. Uma adolescente entra na puberdade e se choca pelas mudanças físicas após a primeira menstruação - só que, claro, mudanças artisticamente exageradas. Uma mistura de "Cisne Negro" com "Grave", a fita de Lisa Brühlmann une o coming of age com o body horror com o intuito de, fantasiosa e cinematograficamente, embarcar o público nas transformações femininas e a liberdade sem limites da juventude. É usar um clichê ao seu favor e solidificar um longa arrebatador.

Nada de Mau Pode Acontecer (Tore Tanzt), 2013

Direção de Katrin Gebbe, Alemanha.
Um jovem fervorosamente religioso e sem muitos rumos na vida conhece uma família que o adota de maneira postiça. Um acidente ocorre, e o garoto acredita que foi intervenção divina, aceitando de bom grado, sem saber que seria só o primeiro passo do seu bem-vindo inferno. Usando uma justifica plausível para o consentimento do protagonista, "Nada de Mau Pode Acontecer" extrapola o bem-estar do espectador com um festival de cenas grotescas e abusivas, aceitadas por meio da fé cega que cria um mártir injustificado. Pode irritar a passividade do personagem, o que reforça o quão longe o fundamentalismo pode deturpar uma visão. A última frase é chocante.

Anjos Vestem Branco (Jiā Nián Huá), 2017

Direção de Vivian Qu, China.
Em em pequena cidade à beira mar, duas garotas são assediadas por um homem de meia idade em um quarto de hotel. A única testemunha é a recepcionista do hotel, que tem as gravações. Porém, com medo de perder seu emprego caso se envolva com um caso policial, escolhe ficar em silêncio. Um retrato necessário do cinema feminino contemporâneo, "Anjos Vestem Branco" é uma cadeia de eventos que reforçam como a sororidade é fundamental para o fortalecimento da resistência feminina contra a cultura do estupro, ainda melhor quando vindouro de um país com um cinema tão restrito.

A Transfiguração (The Transfiguration), 2016

Direção de Michael O'Shea, EUA.
“A Transfiguração” retrata a vida do maior fã da figura do vampiro que já existiu, que não abre mão de discutir desde cinema cult até literatura pop - um garoto de 14 anos que acredita que, assim como o universo incrível que consome para fugir da dura vida, também é um vampiro. Usando inteligentemente a cultura vampiresca, com viés bem fora-da-caixa deste subgênero já tão saturado, o longa se debruça nessa rica fonte para fugir das obviedades do tema, encontrando espaço para contextualizar o meio e criar personagens intrigantes – é quase como se “Moonlight” não fosse LGBT e colocasse Nosferatu na receita. “‘Crepúsculo’ é péssimo”, diz o protagonista. Então tá.

O Cidadão do Ano (Kraftidioten), 2014

Direção de Hans Petter Moland, Noruega.
Um limpador de neve é escolhido o cidadão do ano. Orgulhoso pelo feito, sua felicidade vai embora quando o filho é assassinado por algo que não fez. Possuído pelo desejo de vingança e justiça, o homem vai desencadear uma guerra entre as facções locais, lideradas pela máfia e um gangster vegano. "O Cidadão do Ano" tem uma premissa que soa bem séria, mas é divertidíssimo pela insanidade. Cheio de gags narrativas e visuais (os anúncios das mortes no ecrã), a película vai agradar os fãs do Quentin Tarantino - aos moldes noruegueses, é claro, mas tão cheio de sangue, humor negro e um roteiro mirabolante e criativo quanto. Porralocagem das boas.

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Crítica: “O Homem Invisível” perde o charme quando sua história fica visível

Atenção: a crítica contém spoilers.

"O Homem Invisível" (The Invisible Man) talvez seja o único terror do atual período de "despejo" do mercado norte-americano a conseguir ser mais do que outra bomba desejando dinheiro - menti, "A Ilha da Fantasia" (2020)? Esse período consiste em janeiro e fevereiro, a época mais fraca para os cinemas norte-americanos graças ao calendário e ao próprio clima - a neve faz com que menos pessoas saiam de casa. Por isso, os estúdios sabem que o que há de pior no seu catálogo deve sair entre os meses - e muitas vezes são filmes de terror horríveis para adolescentes.

O filme de Leigh Whannell está muito bem na crítica local - por aqui, não tanto. Caso você não reconheça o nome de Whannell, ele é uma das mentes por trás de duas das maiores franquias do horror moderno, "Jogos Mortais" e "Sobrenatural". Ele, inclusive, atua em alguns deles - ele é Adam do primeiro "Jogos Mortais" (2004), o que acorda dentro do fatídico banheiro. Com um trabalho bastante ligado ao de James Wan - que parece ter abandonado o terror depois de "Aquaman" (2018) -, essa é a terceira direção de Whannell dentro do gênero - ele dirigiu "Sobrenatural: A Origem" (2015) e "Upgrade" (2018) anteriormente.

Com "Upgrade", vimos a união do terror com grandes elementos de ficção científica, e é isso que ele faz com o reboot de "O Homem Invisível". Cecilia (a maravilhosa Elisabeth Moss, que não pode ver um papel de mulher humilhada que já diz "eu faço!"), após drogar o namorado, foge no meio da noite. O cara, Adrian (Oliver Jackson-Cohen), é um magnata da tecnologia e psicopata, infernizando a vida de Cecilia, que até então não conseguia escapar da abusiva relação. A vida dela dá uma virada quando ela descobre que, duas semanas após a fuga, Adrian se suicidou, deixando uma grande herança para ela.

Aqui já vejo um obstáculo elementar. Vamos por um momento nos colocar no lugar de Cecilia. Não vemos os abusos acontecendo, mas claramente ela terá sequelas emocionais permanentes pelo o que passou - ela mal consegue sair de casa. Então você recebe a notícia que o culpado por tudo isso morreu. Você está, teoricamente, livre. O que eu faria, caso fosse ela? Iria me certificar com toda a certeza que esse planeta comporta de que o cara está morto de fato. Não conseguiria dormir até ter essa certeza, mas ela só aceita a notícia e vida que segue.


Uma das regras básicas que o terror nos ensinou é que você jamais pode dar por vencido um vilão sem saber que ele está mesmo derrotado. Sabe aquela cena que o assassino leva um tiro e todo mundo vai embora, para logo em seguida ele aparecer em pé? Pois é, SE CERTIFIQUEM. A partir de então, todo o filme segue baseado no fato de que Adrian está morto, o que é uma sustentação muito fraca. Estamos falando de um milionário, sociopata e com acesso à tecnologia que deixaria "Black Mirror" tremendo.

O filme, não-diegeticamente falando, quase em momento nenhum quer criar uma dúvida na cabeça do espectador, que não precisa se perguntar "será se ele está morto mesmo?". O título da obra é um spoiler absoluto, deixando claro que não, Adrian não morreu. Todavia, mesmo não deixando espaço para suposições, o filme se divide em três partes, e a primeira delas é, de longe, a melhor.

Os três atos do longa podem ser classificados como "Dúvida", "Hipótese", "Confronto", o que é uma estrutura clássica para a Sétima Arte. Dentro da configuração de "O Homem Invisível", após a suposta morte de Adrian, eventos estranhos começam a acontecer ao redor de Cecilia. Objetos desaparecem, outros surgem em lugares que não estavam e barulhos vindos aparentemente do nada são os estágios iniciais, o que dão ao filme um ar sobrenatural delicioso.

Muitas vezes, durante o primeiro ato, me sentia diante de "Atividade Paranormal" (2007), um dos mais fantásticos nomes do subgênero "sobrenatural" no século. Há uma cena em que Cecilia está na cozinha e a produção joga elementos assustadores de maneira muito sutil - como a faca caindo do balcão -, e aqui habita o que "O Homem Invisível" faz de mais sensacional: a criação de sua atmosfera. Uma das sacadas mais inteligentes é quando a fotografia começa o enquadramento na protagonista fazendo qualquer coisa e dá uma girada, até parar em algum lugar do cômodo que está vazio. Literalmente, vemos nada de anormal, mas a retirada da presença da protagonista cria uma efetiva ideia de "tem alguém ali", e o caso prova que insinuar é mais macabro do que mostrar. Pena que isso só permanece no primeiro ato.

O meandro do filme, a "Hipótese", é quando Cecilia começa a ponderar sobre a morte de Adrian. "Ponderar" foi uma palavra escolhida com muita boa fé, porque acontecem coisas absurdamente óbvias que só não são mais comprobatórias que o próprio Adrian aparecendo - como o frasco de remédio com o sangue do cara. Aqui, Whannell mostra o quanto seu amigo James Wan influenciou seu estilo: há cenas em plano sequência com a câmera passeando pela casa - como em "Invocação do Mal" (2013) - e o momento do lençol é muito "Sobrenatural" (2010), o que diminui um pouco a marca que seria própria do diretor (mas tem nada de errado em se inspirar em quem admiramos, claro). Whannell, inclusive, denota uma estética bem própria na deliciosa cena de ação do hospital, super estilizada e bem "Upgrade".


Só que mergulhamos demaaaais em um padrão cansado no gênero: quando um personagem tem sua sanidade questionada. Dentro de "O Homem Invisível", o macete possui certo fundamento - toda a discussão sobre abusos psicológicos leva à ideia de que a mulher se culpa pelos traumas -, no entanto, o roteiro exagera muito nas situações que transformam Cecilia, para quem não sabe do que ela sabe, em uma completa esquizofrênica. Tudo é construído para que ela pareça uma louca e muitas vezes nem sentido faz - o momento em que uma personagem leva um tapa de algo invisível e culpa Cecilia, que obviamente não seria capaz disso, geograficamente falando (ela não estava tão próxima assim).

O último ato é o "Confronto", quando já sabemos que Adrian está vivo e invisível por meio de uma roupa desenvolvida por ele - a maneira que o filme decidiu revelar isso no ecrã, na escada, é muito boa. Inúmeros comentários foram sobre como o longa não explora esse viés ou como não é "explicado" como funciona a tal roupa. Particularmente, acharia bem ruim se uma palestra sobre o equipamento começasse e, de maneira curiosa, isso revela como é nossa relação com a tecnologia. Na história original, o vilão fica invisível ao tomar uma fórmula. É mais "fácil" aceitarmos uma justificativa química do que tecnológica. Seria porque a tecnologia ainda é algo recente nas nossas vidas? Por que aquela roupa nos gera a intenção de sabermos como funciona e uma mistura de substâncias em um frasco não?

O clímax do filme possui, assim como comentei na crítica de "A Ilha da Fantasia", o vício do terror moderno: uma reviravolta - que vai levar a outra reviravolta. A primeira é totalmente irrelevante e a segunda, na última cena, violentamente previsível, e cunhada sobre um detalhe que é forçado para fazer sentido - Cecilia esconde uma das roupas invisíveis na casa de Adrian (ao invés de usar logo e ter uma vantagem contra o ex) e a usa para matá-lo de verdade. Toda a preciosa atmosfera feita no início já se dissipou por completo com o fraquíssimo final. Nem me surpreendi quando vi que vários dos melhores filmes de terror dos últimos tempos não possuem reviravoltas no sentido convencional da palavra ou não precisam delas para impulsionarem seu plot - "Hereditário" (2018), "A Bruxa" (2015), "Suspiria" (2018), "Mãe!" (2016), "Clímax" (2018) etc. Felizmente, estamos servidos de terrores com reviravoltas relevantes e bem executadas - um beijo para "Boa Noite Mamãe" (2014), "Corra!" (2017) e "Kill List" (2011).

E vou rapidamente pontuar: o quão absurda é a força extrema do Adrian, que consegue derrubar os maiores dos policiais na base do soco? Ele (que é atuado de maneira triste) é aparentemente invencível, porém, é muito puxado ter que engolir sequência atrás de sequência em que ele apaga um monte de brutamontes treinados para o combate. Em "Upgrade" havia uma sólida justificativa para a performance sobre-humana do protagonista, mas aqui, é só preguiça mesmo.

"O Homem Invisível" sofre de uma síndrome elementar do gênero: perde o charme quando passa a ser mais expositivo. Carece de muito cuidado quando uma obra revela suas imagens ocultas e que geravam medo por meio do imaginário, e esse exercício não existe aqui - é só ler o título. Elisabeth Moss carrega muito bem o longa nas costas - afinal, seu antagonista mal aparece na tela -, e, dentro do molde hollywoodiano pipoca em que o filme se encontra, é possível aproveitar a sessão. O revival da clássica história deveria ter aprendido com vários outros que comprovaram: muitas vezes é mais efetivo não mostrar o que o expectador quer ver em prol do clima - "O Bebê de Rosemary" (1968), "A Bruxa de Blair" (1999) e "O Farol" (2019) são exemplos -, e, para um terror, atmosfera pode ser a diferença entre um sucesso e um fracasso.

Crítica: “A Ilha da Fantasia” deveria ser considerado um crime contra à arte

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

A Blumhouse se consolidou como a maior produtora de filmes de terror da atualidade. Criada em 2000, ela é o nome por trás de hits como "Atividade Paranormal" (2009), "Sobrenatural" (2011), "A Entidade" (2012), "Amizade Desfeita" (2015), "Hush: A Morte Ouve" (2016), "Corra!" (2017) e "Cam" (2018) - isso pegando os longas dignos, porque tem muita porcaria.

Terror, sabemos, é o gênero mais massacrado do mercado, lotado de bombas que estão sempre no calendário anual - não dá para acertar todas. Porém, às vezes, o erro vai a um nível além e alcança patamares assustadores, mas não no sentido querido pelos produtores. É o caso de "A Ilha da Fantasia" (Fantasy Island), o primeiro lançamento da Blumhouse na década.

"A Ilha da Fantasia" é uma reimaginação em formato de terror da clássica série de mesmo nome da ABC, lançada em 1977 nos Estados Unidos. Tenho uma turva memória da minha juventude, quando assistia ao seriado na tevê - acho que era o revival de 1998 -, e a achava bem divertida, mas realmente, nada de terror, era bem aventura e fantasia. Dá para entender os motivos que levaram um estúdio a dizer "e que tal se a gente transformar essa ideia em um filme de terror?" - há muito apelo para isso, então não tardou para o filme chegar até nós.

A Ilha da Fantasia é um resort paradisíaco em algum canto do planeta que promete realizar qualquer fantasia dos sortudo levados até lá. Os escolhidos foram: Gwen (Maggie Q), uma mulher que deseja voltar para a noite que foi proposta em casamento e, desta vez, dizer "sim"; Melanie (Lucy Hale), uma garota em busca de vingança contra a bully que a atormentava na infância; Patrick (Austin Stowell), jovem soldado que quer honrar o pai, morto em combate; e Brax (Jimmy O. Yang) e JD (Ryan Hansen), dois irmãos - um hétero e um gay - que só querem ter a melhor festa de suas vidas.


Ao chegarem na ilha, conhecem Sr. Roarke (Michael Peña), o "proprietário" do local e chefe das atividades. Ele diz que ali existem duas regras: cada pessoa só pode escolher uma fantasia e, assim que iniciada, devem ir até o final. Pois bem, a ideia inicial do rolê presume o seguinte: cada um vai vivenciar uma espécie de realidade aumentada que simulará a fantasia - ou, em casos mais simples como o dos irmãos, tem uma festa rolando cheia de corpos semi-nus molhados. Aqui já encontro um problema básico.

Tirando a fantasia dos irmãos - que é baseada em uma experiência facilmente reproduzida -, as dos outros são baseadas em sentimentos, memórias afetivas. Se você deseja uma festa e tem lá uma festa na sua frente, tudo certo, mas se você anseia voltar no tempo para mudar um mal passo, como uma simulação pode ser minimamente satisfatória? Não consigo imaginar alguém saindo de sua casa para viver uma mentira por, o quê, um dia?, e se sentir em paz com isso. Claro que existem níveis desesperados de situações que até uma ilusão pode satisfazer, mas tudo bem, vamos em frente.

Os próprios participantes discorrem sobre como seria a atividade, chutando em hologramas, e partem cada um para a sua. O molde escolhido é um que, além de batido, é patético: os participantes começam "ah, isso não é de verdade", brincam com algo que obviamente é real para só depois perceberem que é mesmo - e, assim, surtarem. Mesmo dentro desse joguinho ridículo, há momentos que não fazem sentido, como na fantasia de Melanie. Ela está em uma sala à la "O Albergue" (2005), com um vidro separando a sua bully, presa em uma cadeira, e um brutamontes com a boca costurada começa a torturá-la. A forma como Melanie derruba o cara é vergonhosa, e ela salva a bully quebrando o vidro. Por que ela não fez isso logo de início?


Aqui já temos como notar o nível de "A Ilha da Fantasia". Esse é um filme que não possui o menor respeito com o gênero que arduamente tenta se encaixar: é um terror que, basicamente, não há uma gota de sangue. Pessoas são torturadas, amarradas, levam tiros, e nada. Por que isso? O estúdio não queria que a classificação indicativa fosse maior do que PG-13 - o nosso "Proibido para menores de 14 anos". Um terror para adolescentes de 14 anos? Muito que bem. Em um momento, quando um dos personagens tem o braço cortado, a montagem destrincha a sequência a fim de mostrar nada, e é como se nada acontecesse. Eles estão mais preocupados em deixar a classificação o mais baixo possível para que seus cofres tenham mais espaço para bilheteria.

A estrutura do filme é como um seriado: cada personagem possui seu bloco de trama, que são revezados. É natural o formato, contudo, fica muito cansativo quando são todos iguais: início + acontecimento relevante + cliffhanger - eles terminam, sempre, com um corte brusco logo após um momento ~bombástico, para deixar o expectador se questionando "o que aconteceu ali?". Funcionaria se a atmosfera costurasse a mínima sensação de perigo, e isso jamais acontece.

Para dar aquele climão inteligente, como se muita coisa tivesse sido pensada na construção do filme, é evidente que teremos reviravoltas, uma das pragas do cinema de terror contemporâneo, que atira qualquer contravenção na trama a fim de "surpreender". Os plot-twists de "A Ilha da Fantasia" são péssimos, sem inspiração e colocados à força para dizer que algo não era esperado pelo público. Até lá, somos massacrados com clichês, como a descoberta de que todos os selecionados estão ligados em alguma tragédia - eeeeerrrr, "Jogos Mortais" (2004-), tudo bem? - e até mesmo a ilha possuindo um "coração" que controla tudo - "Lost" (2004-10), sweetie, I'm so sorry. E engula personagens aleatórios surgindo para salvar o dia, engula viradas de lados, engula regras básicas sendo esquecidas e engula zumbis (sim).

A Blumhouse tem sua grande parcela de culpa na banalização do terror no mercado atual, com alguns dos piores nomes do gênero - "Uma Noite de Crime" (2013), "O Espelho" (2013), "Ouija" (2014), "A Forca" (2015), "Canibais" (2015), "Mártires" (2016), todos horríveis -, todavia, a qualidade (ou a falta dela) extrapolou qualquer expectativa com "A Ilha da Fantasia". Digno de um filme para a tevê dos anos 90 ou uma dessas novelas mexicanas que são reprisadas à exaustão, há qualidade nenhuma de redenção neste que possui o pior antagonista de qualquer filme de terror dos últimos nem-sei-quantos-anos e uma mitologia tão ruim e mal desenvolvida que perde para muitos Filmes B. Esse é um verdadeiro afronte à arte, e revolta pensar que $7 milhões foram investidos nessa atrocidade quando inúmeros artistas com ideias impressionantes morrerão sem ver seus filmes nas telas. A indústria é cruel, mas não precisa chegar tão baixo.

Crítica: Ariana pede para não chamarmos o filme de “As Panteras” e só podemos obedecer

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Olá, querido leitor, depois de um rápido recesso, estou de volta. Como já deve saber, a temporada do Oscar é o momento mais importante do meu ano e me dedico profundamente aos filmes indicados - você pode ler meu Especial 2020 aqui -, e nada mais justo que umas semaninhas de descaço quando a corrida dourada é encerrada. Aproveitei, também, para me atualizar com alguns nomes que deixei passar por terem estreado justamente na briga pela estatueta, como "As Panteras" (Charlie's Angels), reboot da franquia iniciada em 2000.

Se você, assim como eu, viveu a juventude na década de 2000, deve ter um lugar especial para o trio Cameron Diaz, Drew Barrymore e Lucy Liu, que detonaram nos dois primeiros filmes. Não sabia muito o que esperar com o revival, dirigido e roteirizado por Elizabeth Banks - a lendária Effie Trinket da franquia "Jogos Vorazes" (2012-15), que estreou na cadeira de direção com "A Escolha Perfeita" (2015) -, porém, seria interessante ver o molde nas mãos de uma mulher - os dois originais são dirigidos por McG.

E esse é um movimento que começa a ganhar força em Hollywood: mulheres dirigindo filmes com protagonistas femininas. De "Mulher-Maravilha" (2017), dirigido por Patty Jenkins, ao recém estreado "Arlequina em Aves de Rapina" (2020), dirigido por Cathy Yan, blockbusters femininos estão invadindo as salas - para o desespero dos machos de plantão, ávidos pelo fracasso de todos os citados e criando a pior "máxima" do momento: "quem lacra não lucra". É interessante ver a conscientização de que filmes de ação não precisam ser feitos apenas por homens, e que mulheres são, também, capazes de cair na porrada - e sempre bom lembrar que, se deixa machista pistola, então deve ser feito.

As novas Panteras são Sabina (Kristen Stewart) e Jane (Ella Balinska). Ao contrário dos originais, o grupo não abre o filme já formado - nem mesmo Sabina e Jane são uma dupla, apenas coincidem de trabalhar no mesmo caso. A terceira (que oficialmente só se tornará Pantera no final) é Elena (Naomi Scott), uma programadora que cria o Calisto, um dispositivo que pode, devido a um erro, ser usado como arma. Ela tenta impedir que o aparelho seja comercializado com a falha, e vira alvo principal de uma corrida para ter o controle do Calisto.

A primeiríssima cena se passa no Rio de Janeiro, com Anitta na trilha-sonora. Claro que é legal ver seu país na tela, mas tudo vai por água abaixo quando fica evidente que ninguém ali nunca viu um brasileiro na vida. Há um diálogo em português que, juro, só soube que não era em húngaro quando a personagem de Stewart faz referência à língua - tive que voltar a cena algumas vezes pra conseguir entender o que eles estavam falando. Péssimo. Até mesmo em "Amanhecer: Parte 1" (2011), que também possui cena no Brasil, houve um trabalho bem feito.


Elena, posso apontar, é a protagonista do rolê. Todas as três possuem bastante espaço na tela, contudo, o maior desenvolvimento recai sobre ela. O roteiro sabe que detém o poder de incluir vertentes feministas, e, sim, elas estão aqui - literalmente já na primeira fala -, mas são assustadoramente rasteiras. Elena é constantemente silenciada por homens que querem impedi-la de consertar o Calisto, e a diminuem hierarquicamente a todo o momento - é uma exposição de opressões simplórias e pouco imaginativas. Até mesmo no mundo corporativo, que a mulher corre for fora, tudo é posto na tela de forma elementar demais - em uma cena, o chefe de Elena diz que fará o Calisto em cores pastel para as mulheres. Okay.

A personagem é composta sob o estereótipo da nerd desengonçada que entra num turbilhão de aventuras e descobre sua força interior. Tudo bem, o ponto de partida é bem óbvio, mas poderia render uma boa mensagem, principalmente para meninas mais novas, limitadas a carreiras "de mulher". Ser espiã, planejar invasões, correr atrás de vilões tatuados e descer o cacete quando necessário não são elementos suficientes dentro do filme. Para uma mulher ser bem sucedida, ela deve ser linda. Belíssima. E magra. E rica.

Uma sequência, quando Elena chega no quartel-general (ou seja lá o nome do prédio), ela entra em um closet enorme cheio de roupas de gripe, assessórios espalhafatosos e saltos do momento. Uma delas fala "Ah, vocês já entraram no primeiro closet?", e a protagonista, encantada, responde: "E tem outro?". As garotas chegam a discutir se podem ficar com as roupas, porque, ser mulher - aliás, ter uma vida feminina divertida - é viver nessa fantasia de riquezas absolutas e roupas intermináveis.

Não dá para negar que é realmente cool ver mulheres estilosas arrasando na tela - Kristen Stewart e sua bisexual energy, maravilhosa -, todavia, é um pouco contestável que tipo de mensagem o longa quer deixar - até porque, olha só, uma delas vai fazer um dos mais insossos pares românticos do cinema moderno. O molde de "As Panteras" é exatamente esse - dá para ser linda e combater o crime ao mesmo tempo -, e é uma boa dose de diversidade o trio, mas faltam alguns pontos que, para mim, são a chave do sucesso dos primeiros filmes.

O primeiro deles é o cuidado que o texto tem em construir suas sequências. "As Panteras" é um "Três Espiãs Demais" (2001-14), ou seja, lógica não é algo que se faz presente. Há cenas que desafiam a física ou coincidências escancaradas, porém, tudo funciona porque, mesmo com absurdismos, não deixa as regras do universo serem quebradas. Por exemplo: no filme de 2000, as Panteras devem se infiltrar em um prédio extremamente bem guardado; elas copiam as digitais, reproduzem as córneas e copiam as chaves de acesso do pessoal autorizado. Lá dentro, ainda devem passar invisíveis e burlar um sistema para completar a missão. Para tudo isso, elas se disfarçam de homens para não chamar a atenção. Agora em 2020, as protagonistas simplesmente roubam os passes de entrada do prédio de algumas pessoas aleatórias e pronto, tá resolvido, entrando com uma peruca. É de uma preguiça gritante.


O segundo é como a história é tão sem graça; é o básico do básico de todo filme de espião que existe neste universo. O roteiro ainda tenta ser surpreendente, jogando reviravoltas sem o menor impacto e que, na real, nem adentram caminhos coerentes. Um deles é que a chefe das Panteras - interpretada pela própria diretora - some no meio de uma missão, o que as levam a crer que chefe é a real vilã. Ela não é, e quase é morta pela dúvida das Panteras, entretanto, tudo é baseado no fato de que ela some sem dar notícias. Sua justificativa é que ela teve que correr atrás do vilão, mas porque ela não simplesmente avisa? Bastava uma mensagem e toda a confusão seria evitada.

O terceiro, e, a meu ver, o mais importante, é que não existe química entre as novas Panteras. O maior sucesso dos originais é como Diaz, Barrymore e Liu são individualmente perfeitas e ainda melhores juntas. Elas são bem diferentes entre si, mas criam um grupo coeso e violentamente carismático. Stewart, Scott e Balinska até tentam, mas ficam na tentativa. As sacadas são bem escassas e a comédia quase inexistente, deixando espaço para muito clichê e piadas perdidas - meio chato a espiã magérrima repetindo o quanto ama comer. O único diálogo relevante foi o de "Birdman" (2015), e um diálogo em quase duras horas? Preocupante.

Banks, que possui um grande currículo como atriz, claramente não possui a mesma competência na condução de um filme. Sua direção é bem limitada e vários momentos demonstra a falta de domínio da linguagem cinematográfica. Uma delas, bem no final, é quando sua personagem é emboscada por vários homens. Ao cair no chão, há uma clara falta de posicionamento de cena - parece que o roteiro não sabe o que fazer -, e isso poderia ser mascarado com uma montagem e fotografia que foquem no rosto da personagem, porém, ao invés disso, o enquadramento abre a cena e captura o momento de cima, impulsionando ainda mais a falta de condução. É artificial e teatral.

A campanha de "As Panteras" dizia que um novo mundo precisa de novas Panteras. Realmente, o mundo mudou demais entre os 20 anos que separam o primeiro filme e o reboot, mas do que adianta termos novas Panteras se elas estão sob um molde tão formulaico e ultrapassado? O que funcionava em 2000 provavelmente soará cansado nos dias de hoje, e "As Panteras" sofre ainda mais em não construir três protagonistas à altura de Natalie, Dylan e Alex. Sem personalidade, originalidade, iconicidade e impacto cultural - tudo o que já existiu com o selo da franquia - de nada adianta entregar uma Charlie mulher para se autointitular empoderador quando nem o entretenimento é de qualidade. Na música tema, Ariana Grande (que encabeça a triste trilha-sonora) canta: "don't call me Angel", e seu pedido é uma ordem.

P.S.: Terem escalado Noah Centineo como par romântico de uma das protagonistas consegue resumir impecavelmente o nível de "As Panteras".

Análise: “Parasita” e a coroação de uma das mais insanas temporadas da história do Oscar

Em primeiríssimo lugar, nas palavras da Aja, I don't wanna be the one, but I'm gonna be the one: "Parasita" levou o Oscar de "Melhor Filme" e eu avisei. Em uma reviravolta histórica, a Academia mais uma vez olhou para toda a temporada e falou "Huuum, não, obrigado", coroando "Parasita" assim como deu o prêmio máximo para "Moonlight" quando "La La Land" havia vencido absolutamente tudo. Vamos então mergulhar nos resultados e o que eles nos dizem sobre os rumos que o Oscar decidiu tomar.

É apenas a segunda vez que a Associação de Produtores (PGA) e a de Diretores (DGA) erraram ao mesmo tempo o vencedor do Oscar de "Melhor Filme" e "Direção" - ambos foram para "1917", o absoluto favorito da temporada. A cara do Sam Mendes, diretor de "1917", quando perdeu o Oscar de "Direção" é um bom resumo da ruptura da Academia com o resto das premiações, já que ele havia levado tudo até então - e empatado com o Bong Joon-ho no Critics' Choice. Pelo menos ele já ganhou um por "Beleza Americana", porque "1917" é fantástico, mesmo não sendo o melhor que "Parasita".


A temporada do Oscar 2020 foi uma verdadeira montanha-russa. Favoritos surgiam e caíram; crítica apontando para uns, indústria para outros; foi uma viagem. Antes do Globo de Ouro, a primeira entre as grandes premiações e que oficialmente abre a corrida dourada, a briga era entre "O Irlandês" e "História de um Casamento", os queridinhos da crítica que já eram chamados de Oscar winners...... aí o Globo desceu a regra: não estamos interessados na Netflix. "História de um Casamento" levou apenas um enquanto "O Irlandês" saiu de mãos abanando.

E vamos aqui falar de "O Irlandês". O filme de máfia de Scorsese era a maior certeza da temporada e ganhou o montante de ZEEEERO prêmios relevantes em todas as premiações televisionadas - Globo de Ouro, SAG, Critics' Choice, BAFTA, Oscar - vencendo somente um contestável "Melhor Elenco" no Critics'. Esse é o segundo filme do diretor a ser indicado a 10 Oscars e vencer nenhum - "Gangues de Nova Iorque" foi o primeiro, e ambos já estão no panteão de derrotas em toda a história, perdendo apenas para "Momento de Decisão" e "A Cor Púrpura", que perderam as 11 categorias que foram indicados. "O Irlandês", inclusive, é o único entre os indicados a "Melhor Filme" a não sair com algum careca dourado. Força, Pablo Villaça, te amamos.


"História de um Casamento" acabou sofrendo da síndrome de "Nasce Uma Estrela": ambos abriram a janela do Oscar com aclamação, prêmios e o indicativo de fazer a limpa na noite mais importante do Cinema, mas acabaram perdendo força e levando apenas uma estatueta. Cada um com seus motivos particulares, mas interessante ver como favoritos podem mudar drasticamente em questão de meses - e, claro, há a questão da Netflix, que você pode entender melhor aqui.

Com os dois saindo de cena, foi a vez de "Era Uma Vez em Hollywood" assumir a dianteira. O nono filme de Tarantino levou o Critics' Choice de "Melhor Filme", além "Melhor Filme: Comédia" no Globo de Ouro. O diretor estava sedendo para ganhar seu terceiro Oscar de "Melhor Roteiro Original" e viu ser deixado para trás quando "1917" chegou botando banca e fazendo a limpa em seguida - ganhou sete BAFTAs, incluindo "Melhor Filme". Tarantino é tão viciado em pés que foi pisado no Oscar.


Assim como rolou em 2018, todos os quatro vencedores do Oscar de atuação venceram igualmente todas as premiações televisionadas de uma vez, o que indica como a Academia ainda se mantém conservadora nesse departamento, sem espaço para ousadias. O que não é algo exatamente ruim, porém, previsibilidade não é algo que pode ser apontado sobre a edição.

"Parasita" é o primeiro filme na história do Oscar a vencer sem ter diálogos em inglês. Claro, filmes mudos já venceram, mas eram ou produções americanas ou possuíam intertítulos em inglês. De alguma forma, eram filmes voltados para o mercado de língua inglesa, algo que "Parasita" está longe de ser. E demorou "apenas" 92 anos para isso, muito bem. A Academia é tão resistente à filmes estrangeiros que somente 11 foram indicados dentro dos 563, e "Roma" perdeu ano passado exatamente por ser estrangeiro (e por ser da Netflix).

Bong Joon-ho se mudou da Coreia para Los Angeles a fim de se dedicar completamente à campanha de seu filme e se tornou a segunda pessoa com mais vitórias em uma só noite: quatro prêmios - Walt Disney também recebeu quatro Oscars em 1954. Por isso, "Parasita" empata como "Fanny & Alexander" e "O Tigre e o Dragão" como os filmes estrangeiros com mais Oscars no bolso, quatro para cada.

A noite do dia 09 foi um verdadeiro marco. Foi um daqueles momentos que, daqui a décadas, vamos continuar falando sobre. É bem raro o melhor dos indicados ser o real vencedor pela maneira que a categoria é decidida, por meio do voto preferencial (não é o mais votado que ganha, e sim o que aparece mais vezes entre os primeiros lugares dos votantes). Claro que estamos falando de algo que se debruça no campo da subjetividade - você pode achar "Parasita" o pior dos nove -, mas, pelo menos por aqui, "Parasita" se une a "Moonlight" e "A Forma da Água" como vencedores absolutos que burlaram qualquer expectativa, qualquer aposta de acordo com a temporada, e saíram vitoriosos por serem os melhores de suas edições.


Isso quer dizer que todos os problemas da Academia estão resolvidos? Não mesmo. Esse foi um passo importantíssimo para o Oscar começar a abrir os olhos para produções que não estejam na limitada roda de apreço norte-americano - quem aguenta mais um filme americano sobre a indústria americana vencendo? - e, também, para obras compostas por pessoas não-brancas. Todos os três citados no parágrafo anterior são dirigidos por minorias - "Moonlight" por um homem negro, "A Forma da Água" por um latino e "Parasita" por um asiático. Mas só aqui vemos que vários passos ainda estão pela frente: apenas UM filme dirigido por uma mulher venceu "Melhor Filme", "Guerra Ao Terror" em 2010. 10 anos depois e..... pouca coisa mudou e só mais uma diretora foi indicada a "Direção" - Greta Gerwig por "Lady Bird".

Temos que nos manter positivos em relação ao futuro da premiação. Estaria a Academia se distanciando de sindicados e outros apontadores da temporada e começando a pensar como uma entidade única? Seria uma mudança bem-vinda. Outro motivo para alegria é pelo simples fato de que "Parasita" venceu - e ainda abocanhou, além de "Filme" e "Direção", "Melhor Filme Internacional" (o primeiro coreano) e "Melhor Roteiro Original" (o segundo em língua não-inglesa, "Fale Com Ela", em espanhol, foi o primeiro). Além disso, se olharmos para o vencedor do ano passado, "Green Book", é um assustador avanço. You can't sit with us.

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