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Lista: os 20 melhores filmes de terror da década

Preciso começar esse post apontando uma obviedade provavelmente desagradável para você que chegou até aqui: essa não é uma lista com os melhores filmes de terror dos anos 2010. Pelo menos não da maneira que você imagina. Eu, como extremo entusiasta do horror desde sempre, já esbarrei com inúmeras listas de melhores de alguma faixa temporal específica, e basicamente todas tinham algo em comum: o que era considerado "terror".

A ideia comum do que é "terror" é aquele filme que assusta - os "Invocação do Mal" e "Annabelle" da vida (que, entrando rapidamente no âmbito da subjetividade, são péssimos). Sim, os exemplos citados e seus similares são filmes de terror, porém, o gênero abrange muito, mas muito mais. Na nossa atual indústria do cinema, que condiciona filmes de terror no molde de jump-scares, muita coisa é deixada de fora ao não ser considerado terror, o que é uma insanidade.

Em uma rápida busca na definição de "terror" como gênero cinematográfico, encontramos que é um gênero que visa explorar o macabro, criando medo ou repulsa no público por meio de uma força maligna - que vai de demônios, vampiros e bruxas até desastres naturais e serial killers. E isso é uma definição do todo, se entrarmos nos sub-gêneros, a coisa vai ainda mais além.

Nesse encerramento de década, podemos ver que os anos 10s foram marcados por duas vertentes bastante fortes: o remake e o found-footage. Vimos inúmeros revivals de clássicos, como "Deixa Ela Entrar" (2010), "A Hora do Pesadelo" (2010), "Doce Vingança" (2010), "Maníaco" (2012), "Carrie: A Estranha" (2013), "A Morte do Demônio" (2013), "Poltergeist" (2015), "A Bruxa de Blair" (2016), "Suspiria" (2018), e a lista continua. Do outro lado, com o sucesso absurdo de "Atividade Paranormal" e "Rec", o found-footage encontrou um boom, com "O Último Exorcismo" (2010), "V/H/S" (2012), "Amizade Desfeita" (2014), "A Possessão de Deborah Logan" (2014), "A Visita" (2015), etc etc etc. E, não é uma surpresa, a saturação dos moldes só ajuda na ideia de que terror não é um gênero "sério" - só ver quantos filmes de terror foram indicados ao Oscar de "Melhor Filme" nos últimos 10 anos: dois longas (e ambos estão na presente lista).

Sem mais delongas, os critérios de seleção e classificação da lista: 1: ser um longa metragem lançado na década de 2010; 2: ter o gênero "terror" como um dos principais em sua ficha técnica; 3: a maneira como o filme trabalha o terror. Então, a ordem da lista não está baseada no filme como um todo, e sim na qualidade, relevância e execução do terror, o que deixa a ordem mais justa ao ser avaliado um gênero que tem pesos diferentes entre as obras. Como sempre, todos os textos são livres de spoilers e, agora, acompanhados do sub-gênero mais marcante de cada escolhido. Pronto para a maratona?

20. Os Famintos (2017)

Dirigido por Robin Aubert, Canadá. Sub-gênero: terror zumbi.
Zumbis estão presentes na cultura pop há gerações, tendo seu ápice na modernidade com a série “The Walking Dead”. Seja com abordagens voltadas ao gore – como em “Madrugada dos Mortos” – ou à comédia – vide “Zumbilândia” –, nenhum vence “Os Famintos” na categoria que basicamente não é explorada em gêneros fantásticos: o realismo. Como seria o mundo se, de fato, zumbis tomassem conta? Esse é o pontapé da produção, que, apesar de inevitavelmente carregar traços de terror, é, acima de tudo, uma produção dramática. Narcotizante, tenso e climático, “Os Famintos” é conquista notável como trabalho de gênero – e aqui você pode, sem medo, falar “olha essa fotografia fa-bu-lo-sa!”.

19. Evolução (2015)

Dirigido por Lucile Hadžihalilović, França. Sub-gênero: terror fantástico.
"Evolução" parece se passar em outro universo e outro tempo. Fincando em uma ilha, um garoto vive com sua mãe. Todos os habitantes são crianças meninos, suas mães e as enfermeiras do hospital local, o lugar que todos os garotos vão parar. "Evolução" beira o limite do hermético, porém, vai arrebatando o público quando joga pedaços do quebra-cabeças que soluciona o todo, um mistério que caminha sobre a certeza e o fantástico e entrega tanto beleza quanto morbidez.

18. Kill List (2011)

Dirigido por Ben Wheatley, Reino Unido. Sub-gênero: terror psicológico.
Ex-soldado sofrendo para manter as contas em dia aceita o trabalho de matador de aluguel. Só que, para seu espanto, ao apontar a arma para a vítima comprada, ouve um agradecimento. "Kill List" e seu ritmo lento pode afastar a plateia mais acostumada com um terror incansável, mas a sessão vale total a pena pela direção seguríssima de Wheatley. Cultos obscuros, tragédias passadas e teorias da conspiração são os temperos dessa pérola ainda escondida para o mainstream, capaz de arrepiar a epiderme com seu último ato devastador.

17. Grave (2016)

Dirigido por Julia Ducournau, França. Sub-gênero: terror dramático.
Uma garota vegetariana recém chegada na faculdade é forçada a comer carne no trote do curso, o que desencadeia uma fome por carne humana que, pouco a pouco, vai dominando a menina. Seguindo a tradição do horror francês, "Grave" é uma metafórica viagem que força o espectador a vislumbrar o desabrochar violento de uma garota para os desejos mais primitivos do seu ser, dialogando com a repressão sexual feminina num final para ver de joelho. Há bastante metáforas na tela que visam debater como as mulheres ainda são tratadas como pedaços de carne pela sociedade. Só que, aqui, as mesas viram.

16. A Região Selvagem (2016)

Dirigido por Amat Escalante, México. Sub-gênero: terror sci-fi.
O sexo em si é um tabu enorme ainda hoje, mas, muito mais que o ato sexual, a sexualidade especificamente feminina é ainda mais censurada. Homens são quase treinados, desde pequeno, a explorarem sua sexualidade, uma área proibida para o sexo oposto. Com o mexicano "A Região Selvagem", é a vez das mulheres. Quando um meteorito cai na cidade de Alejandra, ela finalmente descobre o prazer nas mãos (ou nos tentáculos) de um alienígena, que rende cenas bizarras pelos gráficos e pela interpretação assustadoramente palpável. Filme com mulheres abraçando suas sexualidades, em que a protagonista se cansa dos machos da mesma espécie e fazem sexo com uma criatura não-humana que consegue satisfazê-la como homem nenhum? Obra-prima.

15. A Caverna (2014)

Dirigido por Alfredo Montero, Espanha. Sub-gênero: found footage.
Que o found footage já deu o que tinha que dar, todo consumidor do terror já sabe. Só que, de vez em quando, ainda é lançado algum exemplar que mostra que, com criatividade e competência, ainda há o que ser extraído da técnica. "A Caverna" é um dos maiores acertos do horror contemporâneo ao unir a veia comercial com o primor da arte - a plateia vai se manter grudada na cadeira enquanto se contorce de claustrofobia num produto de real qualidade. Simples em sua premissa e estrelar em concepção, o longa faz o que muitos terrores esquecem: o quanto nós mesmos somos estopins para o medo. É muito mais fácil aceitarmos o medo vindouro de algo que existe do que vampiros, lobisomens ou demônios - e em situações como a de "A Caverna", a pessoa do seu lado é seu inimigo mais do que qualquer alienígena invadindo o planeta.

14. O Segredo da Cabana (2012)

Dirigido por Drew Goddard, EUA. Sub-gênero: terrir.
Uma galera jovem vai aproveitar as férias em uma cabana na floresta, local que vai ser o túmulo de muitos. Soa familiar? Sim, essa é uma premissa pra lá de conhecida, e é proposital. "O Segredo da Cabana" vai no que há de mais óbvio e clichê no terror norte-americano e, de forma sagaz, reinventa uma roda já há muito tempo gasta. Um terrir legítimo (terror + comédia), o filme enterrou essa história específica de maneira criativa, lúdica e que jamais deixa a bola cair, criando camadas cada vez mais eletrizantes. O clímax, uma enorme homenagem ao gênero, é sensacional.

13. No Tecido (2018)

Dirigido por Peter Strickland, Reino Unido. Sub-gênero: terror sobrenatural.
Uma mulher recém-divorciada decide reaver sua vida amorosa. O que ela precisa para dar aquele ânimo na sua autoestima? Um vestido novo. Ela escolhe um longo vermelho e maravilhoso, sem saber que ele é um objeto amaldiçoado, decidido a matar quem o use. Sim, "No Tecido" é um filme sobre um vestido assassino. A película sabiamente não se leva tão a sério (nem teria como), jogando toda a sua seriedade na composição do ecrã de seu universo, um híbrido majestoso entre o novo e o velho. Hilário e desconcertante na medida correta, "No Tecido" é delicioso em sua atmosfera e visual.

12. A Casa Que Jack Construiu (2018)

Dirigido por Lars Von Trier, Dinamarca. Sub-gênero: terror dramático.
O nome de Lars Von Tier está sempre de mãos dadas com a polêmica, já que o diretor não tem papas na língua e coloca no ecrã temas tabus e controversos. "A Casa Que Jack Construiu" não foge da regra: ao seguir 12 anos na vida de um serial killer, Trier passa a faca sem piedade no império cultural e político de Donald Trump, expondo as brutalidades sociais afloradas pela vitória do presidente norte-americano - cada um dos segmentos são brutais em termos visuais e violentos como crítica. Mesmo sutilmente (foco nos bonés vermelhos), "Casa Que Jack" escancara a América que ensina crianças a amarem armas, que gera massacres em escolas e que vira as costas para não ajudar o próximo. Uma sátira não só ao "homus trumpus" como ao cinema de horror, Trier nos leva até ao Inferno a fim de mostrar que o conservadorismo virou uma praga.

11. Cisne Negro (2010)

Dirigido por Darren Aronofsky, EUA. Sub-gênero: terror psicológico.
Um dos seletos filmes de terror a serem indicados ao Oscar de "Melhor Filme" (e, no caso, o vencedor moral da categoria em 2011), "Cisne Negro" tem o desafio de sua protagonista (que deu "Melhor Atriz" à Natalie Portman) de interpretar o papel principal do balé "O Lago dos Cisnes": ela é ideal como o Cisne Branco, o lado puro, mas não consegue exalar o Cisne Negro, o viés fatal. Uma montanha-russa, "Cisne Negro" funciona como metáfora da perseguição artística pela perfeição, e o quanto essa corrida pode nos levar à loucura. Desglamourizando a beleza do balé, há uma verdadeira guerra na cabeça da protagonista, que vai rapidamente ruindo seu psicológico e misturando real e alucinação.

10. Demônio de Neon (2016)

Dirigido por Nicolas Winding Refn, Dinamarca. Sub-gênero: terror psicológico.
Uma jovem e virginal garota chega na cidade grande com o sonho de se tornar modelo, e "Demônio de Neon" está para a moda assim como "Cisne Negro" está para o balé. No entanto, o grande editorial de luxo que é o filme de Refn aborda de forma mais brutal e macabra os corredores sujos de inveja e sangue que alimentam (e matam de fome) sonhos e egos, sendo uma psicodélica viagem ao submundo fashion, com requintes técnicos violentamente perfeitos evocando sensações desconcertantes no espectador, forçado a embarcar em loucuras de página de revista. O final, onde o filme empurra todos os limites, culmina numa das mais memoráveis e arrepiantes conclusões dos últimos tempos, a última cereja do bolo grotesco – todavia sempre lindíssimo – trabalho que é “Demônio de Neon”.

9. O Farol (2019)

Dirigido por Robert Eggers, EUA. Sub-gênero: terror psicológico.
Dois marinheiros são atirados em uma ilhota no meio de lugar nenhum com o único objetivo de cuidar do farol lá presente. O mais velho, atuando no local há muito tempo, parece fissurado pela luz do farol, impedindo que o novato se aproxime. Dono de um par de cenas instantaneamente icônicas, "O Farol" é a solidificação do cinema de Eggers como mitológico quando condena seus personagens - e o algoz é a própria natureza. O filme não tem problema em fotografar nossa existência como algo decrépito, fadado ao insucesso quando estamos tão preocupados em saciar nossos egoístas desejos. Somos de uma fragilidade tão aparente que, às vezes, a natureza nem precisa se esforçar para nos destruir. Nós mesmos nos encarregamos disto.

8. Corra! (2017)

Dirigido por Jordan Peele, EUA. Sub-gênero: terrir.
O último terror a chegar no Oscar de "Melhor Filme", "Corra!" é um evento cultural e marco no gênero. Um jovem negro finalmente vai à casa dos pais da namorada branca. Há toda uma tensão velada, que parte do próprio protagonista, mas todos não param de falar o quanto estão de braços abertos para a diversidade do casal, o que, não surpreendentemente, é faxada para um plano maquiavélico. O longa não está preocupado em esconder seus clichês e óbvias referências; o que “Corra!” está preocupado é em compor momentos que elevam o seu gênero, carregado por cenas geniais e discussões sobre racismo postas de maneira lúdica, esperta e incisiva pelas lentes do diretor/roteirista Jordan Peele - que levou o Oscar de "Melhor Roteiro Original".

7. Midsommar (2019)

Dirigido por Ari Aster, EUA. Sub-gênero: terror folk.
"Midsommar", o "O Homem de Palha" da nossa geração, tem uma robusta duração, desconcertantes sequências e inundação de simbolismos, o que tornam a sessão uma trabalhosa digestão para a plateia. Usando o folclore sueco como combustível de seu roteiro, o longa é narcotizante e hipnótico ao reforçar o terror antropológico e cultural, além de mais uma comprovação (colorida e luminosa) de que Ari Aster é um mestre no que faz e um dos mais bizarros términos de relacionamento que o Cinema já fez. Teria sido mais fácil terminar por mensagem.

6. Boa Noite Mamãe (2014)

Dirigido por Veronika Franz & Severin Fiala, Áustria. Sub-gênero: terror dramático.
Dois irmãos gêmeos estão ansiosos pelo retorno da mãe, afastada de casa para se submeter à cirurgias plásticas. Todavia, quando ela retorna, os irmãos têm plena convicção de que aquela mulher é uma impostora. "Boa Noite Mamãe", um dos raríssimos exemplares a serem selecionados para o Oscar de "Melhor Filme Internacional", é uma lenta epopeia de duas crianças tendo que lidar com uma dúvida esmagadora, potencializada pela escolha imagética brilhante da mãe, que emana uma áurea vilanesca. Brincando com expectativas e reações, esse é um clássico do terror contemporâneo pela excelência em suas imagens, atmosfera e realizações.

5. Clímax (2018)

Dirigido por Gaspar Noé, França/Bélgica. Sub-gênero: terror psicológico.
"Clímax" não é uma produção recomendável, mas pelos motivos corretos: quando um grupo de dançarinos descobre que a bebida da festa foi batizada com LSD, o lado mais animalesco de cada um vem à superfície. Esse é um filme que não só demanda como suga o emocional do público, tão massacrado quanto os personagens, presos em uma bolha ácida que não escolheram e nem podem escapar. E talvez seja a impotência - tanto nossa como deles - que faz "Clímax" tão bizarro. Gaspar Noé nunca pôs os dois pés no terror, apesar de sempre flertar no gênero, e dessa vez ele não apenas entrou como filmou um show de horrores inacreditável, transformando cinema em uma experiência sensorial.

4. Mãe! (2017)

Dirigido por Darren Aronofsky, EUA. Sub-gênero: terror psicológico.
Um dos filmes mais controversos e divisores de opinião da década, "Mãe!" possui uma forte mitologia, mas não se trata de monstros ou elementos sobrenaturais. O horror é feito pelas nossas próprias mãos, e poucas obras são capazes de fomentar o pavor que é a sessão servida por "Mãe!".  Bebendo largamente da fonte bíblica, Aronofsky consolida seu nome na arte e realiza mais um imperdível - e sim, pretensioso - capítulo de sua cinematografia, que, apesar de não ser um filme para todos os públicos, é inesquecível pelas imagens e discussões, com a exclamação do título sendo um pequeno aviso para o que está por vir. Não senta na piaaaaa!

3. Suspiria (2018)

Dirigido por Luca Guadagnino, EUA/Itália. Sub-gênero: terror sobrenatural.
Remake do clássico de Dario Argento, lançado em 1977, Guadagnino abandona o compromisso com a trama do original e cria uma película prórpia, seguindo apenas a premissa: uma dançarina americana chega à uma escola de balé em Berlim que é controlada por bruxas. As atuações, os diálogos e todos os aspectos visuais de "Suspiria" são irretocáveis, todavia, o melhor é sua atmosfera. Há imagens de beleza estonteante ao lado de cenas perturbadoras, emolduradas por uma narrativa onírica que, a partir de sua técnica, tem a capacidade de transformar o mundo físico em algo etéreo. Dotado de pretensão para dar e vender, "Suspiria" é um pesadelo filmado que consegue ser traduzido por um diálogo proferido aos berros: "Isso não é vaidade, é arte!".

2. A Bruxa (2015)

Dirigido por Robert Eggers, EUA/Canadá. Sub-gênero: terror sobrenatural.
“A Bruxa” trata de muitos subtextos, mas é, acima de tudo, uma celebração do caos. É a regurgitação fidedigna de todos os maiores medos que nós temos: medo da solidão, perda, dor, morte, do mal em si. O filme não é de fato assustador no modo convencional da palavra, é macabro pelas suas metáforas, com algumas passagens perturbadoras que chocam pela crueza e vivacidade do mal. Ainda por cima, é pilar fundamental para a indústria do terror, colocando nos grandes postos um estilo marginalizado aos cinemas de arte e mudando os rumos do gênero.

1. Hereditário (2018)

Dirigido por Ari Aster, EUA. Sub-gênero: terror sobrenatural.
Em boa parte da duração, parece que "Hereditário" se contentará em ser um filme que, ao invés de produzir medo, vai explanar acerca do seu impacto sobre o ser humano, o que é concreto até chegarmos ao clímax, um pesadelo assustador na tela que não mede limites para catapultar o espectador no meio do pandemônio instaurado. Tudo é milimetricamente justificável, e, por isso, ainda mais aterrador e impactante, parindo diante dos nossos olhos um dos melhores finais da história do cinema de terror – soando ainda mais delicioso quando percebemos que “Hereditário” é o trabalho de estreia de Ari Aster, logo num gênero tão difícil. Daqueles filmes fundamentais não só para o terror como também para o Cinema. "O Exorcista" finalmente encontrou seu filhote no novo século.

Crítica: “O Farol” captura a miserável relação do homem com o natural (e o inatural)

Atenção: a crítica contém spoilers.

Robert Eggers presenteou a humanidade, em 2015, com um dos melhores filmes de terror do século: “A Bruxa”, um conto macabro que atira o espectador diretamente nas lendas sobre bruxaria, satanismo e ritos pagãos do séc. XVII, ou seja, uma delícia. Um sucesso estrondoso de público e crítica, Eggers parecia um talento nato para o gênero e o Cinema como um todo com uma das melhores estreias dos últimos tempos - ele levou o prêmio de "Melhor Direção" no Festival de Sundance 2015.

Sua segunda odisseia é “O Farol” (The Lighthouse), que compartilha algumas semelhanças com o filme anterior. “O Farol” é baseado nas lendas de marinheiros do séc. XIX e seus monstros vindouros das profundezas dos oceanos. Quando dois homens vão para uma ilhota no meio do nada a fim de cuidar de um farol, as coisas começam a caminhar sobre a linha da realidade e loucura.

Assim como o pilar seminal do Cinema, o que primeiro captura o interesse da plateia em “O Farol” é o viés imagético: o longa foi inteiramente filmado em preto e branco e com o ratio 1.19:1, conhecido como “tela quadrada” – outro filme recente famoso por usar a mesma estética é “Mommy” (2014), que literalmente encolhe a tela quando os personagens se encontram encurralados. Essa é exatamente a função da escolha estilística do filme de Eggers: além de, obviamente, evocar os primórdios da Sétima Arte, com fotografias fidedignamente emuladas em “O Farol”, o ecrã quadrado gera uma constante sensação de aprisionamento.

Com apenas dois personagens em cena, a configuração é posta assim: Ephraim Winslow (Robert Pattinson) é contratado por Thomas Wake (Willem Dafoe) quando seu último ajudante vai embora “após enlouquecer”. A função de Winslow é cuidar dos afazeres gerais na ilhota, enquanto Wake é incumbido de vistoriar a lâmpada do farol – a mais importante atividade dali. As regras são bem simples: Winslow deve fazer tudo no seu turno sem reclamar e jamais entrar na sala da lâmpada, trancada no topo da estrutura.

Já nos primeiros dias, Winslow percebe que há algo de estranho na proibição; Wake é visto nu e completamente em êxtase diante da potente luz. Durante os estranhos jantares, o mais velho fala como o último ajudante afirmava que o farol era casa de forças sobrenaturais, despertando uma fagulha dentro de Winslow. Descobrir o que se passa lá em cima viraria uma missão.


Na solidão e tédio massacrantes, os dois homens se aliviam sexualmente de formas distintas, mas igualmente desconcertantes: enquanto Wake se masturba banhado na luz, Winslow usa como estimulante uma pequena estátua de uma sereia, deixada para trás pelo último ajudante. É bastante necessário perceber as dinâmicas sexuais dos dois, afinal, o sexo é elemento determinante na condição psicológica de ambos – com ênfase em Winslow.

Além da área sexual, outro complexo textual que colide para gerar o combustível da trama é o quão supersticioso é Wake. Para ele, a existência humana está simbioticamente alinhada com a natureza, sem deixar de esquecer que os deuses e forças divinas são quem controlam todo esse jogo. Uma gaivota de um olho só insiste em perseguir Winslow, que eventualmente a mata – a cena é sensacional quando o personagem expurga um lado reprimido em cima da ave. Imediatamente, a fabulosa fotografia nos eleva até o topo do farol, nos mostrando que os ventos mudaram e, assim, uma tempestade é iminente. Wake culpa Winslow: para ele, gaivotas são marinheiros reencarnados, e sua morte é má sorte garantida.

Em diversas entrevistas de promoção da obra, Eggers sempre repetia uma mesma frase: “Nada de bom pode dar certo quando dois homens ficam presos em um prédio fálico”. Além da tirada cômica, o diretor entrega uma enorme fatia do simbolismo costurado pelo roteiro quando aqueles machos vivem para preservar um falo gigante de pedra enquanto não conseguem satisfazer verdadeiramente seus apetites sexuais – até mesmo em um rápido momento os personagens estão à beira de se beijarem.

Enfim chega o dia que Winslow poderá ir embora, só que o barco que viria buscá-lo não aparece. Convencido por Wake, os dois embarcam no álcool e o entorpecimento prega peças que muitas vezes não se revelam como verdadeiras ou meras ilusões - com exceção das manipulações mentais feitas por Wake, que faz Winslow nem saber mais quantos dias já se passaram. Winslow encontra uma sereia nas rochas perto do oceano, e a voluptuosa criatura se entrega deliciosamente ao homem – houve até mesmo um estudo para criar o órgão genital da sereia, o que remete ao polonês “A Atração” (2015), dono das melhores sereias do Cinema moderno. Aqui, a película abre uma ruptura definitiva sobre a veracidade de seus acontecimentos, embarcando na polpa do navio em uma narrativa onírica que se recusa a ser desvendada. Não dá para afirmar o que é real ou não (a sereia realmente esteve ali ou foi uma criação de Winslow após sua fixação com a estátua?) - e o charme não é tentar apontar o dedo para as ilusões, e sim se deixar levar por elas.


Se em algum momento pairar a dúvida sobre o bom andamento da sessão – afinal, é um filme em P&B e com apenas dois personagens falando sem parar –, qualquer receio é dissipado quando as duas atuações são tão lendárias. Willem Dafoe é um dos melhores atores do nosso tempo e realiza uma performance irretocável como o caricato ex-marinheiro violentamente apegado em suas crenças. Para ele, deus é o mar. Seus monólogos shakespearianos, sejam com sussurros ou berros, são dignos de qualquer premiação e uma das mais refinadas atuações de 2019. Robert Pattinson, que há um bom tempo já comprovou seu talento (se você ainda está em 2008 na era “Crepúsculo”, favor assistir a “The Rover: A Caçada”, 2014, “Bom Comportamento”, 2017, e "High Life", 2018), não deixa o palco ser roubado por Dafoe quando incorpora uma persona tão complexa, desafiadora e que não tem pudores em cenas cruas e difíceis. Ele sua, sangra, vomita e goza de maneira animalesca. Não é exagero apontar sua performance de a melhor do seu currículo, digna de Oscar.

Um dos mais belos aspectos repetidos de “A Bruxa” em “O Farol” é o contato humano com o meio. No universo de Eggers, a natureza é cruel e impiedosa, uma força poderosíssima que é capaz de nos matar com uma facilidade ridícula. Presos numa pedra com o mar incessantemente socando o que estiver pela frente, com os ventos rasgando a pele, a composição da película – locações, fotografia, figurinos, trilha sonora, design de produção – é genial no intuito de gerar uma atmosfera miserável, bem refletora da época em que se passa, quando a vida era sinônimo constante de sofrimento, de mazelas, de enfermidades. Parece que Eggers condena seus personagens, e o algoz é a própria natureza, o que faz seu cinema ser mitológico: somos servos do meio, e, quando tentamos domá-lo, sua ira é como os castigos vindos do Olimpo. Tão verdade que esses castigos não são somente físicos, mas também fantásticos.

Então chegamos no clímax, o derradeiro momento que Winslow consegue ver o que reside no farol. Assim como “O Bebê de Rosemary” (1968), “Pulp Fiction: Tempo de Violência” (1994), “A Bruxa de Blair” (1999) e tantos outros, “O Farol” não permite que o público veja o que o personagem (aos gritos) vê, deixando no campo imaginário. É um fato que isso vai irritar muita gente, tão acostumada a ver em detalhes os demônios e espíritos que aterrorizam o terror, todavia, é um acerto não revelar o que causou tamanha reação em Winslow (um dos melhores finais do ano, de longe) assim como era muito mais interessante imaginar como seria o filhote do Satanás do que graficamente vê-lo.

O final é deveras enigmático e nada narrativamente explicado: quando se depara com a luz, Winslow despenca escada abaixo. O último frame é o personagem ensanguentado ao lado do farol enquanto gaivotas comem seus órgãos. Muito mais que o gore, o simbolismo do momento requer conhecimento de um lado histórico pincelado no roteiro: a mitologia romana e grega, mais especificamente as histórias de Ícaro e Prometeu.


Ícaro sonhava em sair de Creta pelos céus e, voando perto demais do Sol, acabou caindo para sua morte. Prometeu – que não possui um conto tão conhecido como o de Ícaro – era um titã que roubou o fogo sagrado a fim de dividir com os humanos. Zeus, revoltado e temeroso com as consequências de tamanho poder na mão do homem (nem dá para julgá-lo), decide punir Prometeu: ele ficaria eternamente preso a uma rocha enquanto aves comiam seus órgãos.

Os dois mitos são abraçados pelo roteiro: Wake representa um guardião divino – até mesmo seu visual evoca tal sensação –, e proíbe Winslow de se aproximar da luz que rege suas vidas. Este, ganancioso, chega próximo demais do farol, que o derruba e, graças ao acidente, é devorado vivo pelas aves. A ilha é quase um purgatório, um espaço de condenação de Winslow (que possui um passado manchado) enquanto o farol é a maçã proibida do Jardim do Éden: chegar perto demais é uma sentença trágica. Claro, tais interpretações são especulativas e com o intuito de tentar encaixar as peças dadas pela obra, talvez a maior diferença entre “O Farol” e “A Bruxa”.

“O Farol” se debruça muito mais no simbolismo, nas construções no campo abstrato, enquanto “A Bruxa” é mais expositivo e empírico – e, admito, isso dá uma leve pontada de descontentamento, com uma sensação de que poderia haver mais orquestrações do horror (algo que também acontece com “Midsommar”, 2019). É bem mais difícil, por isso, vislumbrar a plateia chamando “O Farol” de um filme de terror; se em “A Bruxa” o capeta em pessoa dá o ar da graça, “O Farol” tem gêneros bem mais predominantes que os elementos de horror: é um filme dramático com ares de mistério e fantasia. “O Farol” é tão terror quanto “Cisne Negro” (2010), "Demônio de Neon" (2016)“A Região Selvagem” (2016): todos são filmes-pesadelos e importantes solidificadores de um gênero bastante fluido e que ainda é posto em caixinhas (até presente data eu vejo pessoas declamando o impropério de que "A Bruxa" não é terror por "não dar susto"). Mesmo não tendo o terror como prato principal, os exemplos executam seus elementos brilhantemente, não diferente de "O Farol".

Robert Eggers mais uma vez coloca o pé na Sétima Arte com imenso talento, domínio e pretensão – exatamente por isso que suas histórias são tão fortes. “O Farol” é um sucessor à altura de “A Bruxa” ao mais uma vez quebrar o paradigma de que o ser humano é o que há mais poderoso sobre a face da terra: é a própria terra quem domina nossa existência. O filme não tem problemas em fotografar essa existência como algo decrépito, fadado ao insucesso quando estamos tão preocupados em saciar nossos egoístas desejos. Somos de uma fragilidade tão aparente que, às vezes, a natureza nem precisa se esforçar para nos destruir. Nós mesmos nos encarregamos disto.

Análise: porquê as quase 3h do corte do diretor marcam “Midsommar” como uma obra-prima

Atenção: o texto contém spoilers.

Se por algum acaso você não seja um desses cinéfilos que acompanham as notícias do mundinho do Cinema, talvez tenha perdido a versão do diretor de "Midsommar: O Mal Não Espera a Noite" (2019) - segundo filme de Ari Aster, badalado diretor do maior terror da década, "Hereditário" (2018). Do que se trata? Originalmente conhecida como "director's cut", é a versão idealizada pelo diretor, que diverge da versão lançada em cinemas. Isso acontece porque, quando a distribuidora garante os direitos de vender o filme para as salas, ela tem poder em decidir o corte que vai ser exibido - e inúmeros longas ganharam uma edição especial contendo o filme projetado originalmente.

Quando Ari Aster chegou com o corte final de "Midsommar", a A24, distribuidora da obra, falou com toda educação: "então, dá pra cortar mais?". O filme finalizado pelo diretor tinha 171 minutos, quase 3h, e era uma versão grande demais, o que seria menos vendável.

Há uma lógica mercadológica por trás da decisão da A24: quanto maior a duração de um filme, menos sessões diárias ele pode ter; enquanto um filme de 1:30h tem, digamos, seis sessões, o de 3h obviamente só caberá na metade delas, o que corta pela metade o montante a ser arrecadado. Além disso, o público se assusta com 3h de filme, escolhendo, muitas vezes, um mais curto entre as opções em cartaz - nem vou entrar no mérito dos filmes de super-herói com 3h (ou mais), afinal, é um filão à parte e exceção à regra.

Aster então voltou para a sala de edição e, sofridamente, reduziu seu filme à duras penas, o que foi aprovado para ser distribuído. A versão de cinema, com 147 minutos, ainda assim era robusta, mas o suficiente de acordo com a A24. Foi essa a versão que eu – e todo mundo – assistiu primeiramente (deixo aqui meu descontentamento com a demora do lançamento da película em solo brasileiro, mais de dois meses depois da estreia internacional e uma semana antes do lançamento digital).

Felizmente, o diretor conseguiu, também, lançar sua versão idealizada – nos cinemas foi apenas nos EUA, no entanto, o arquivo digital chegou no final de setembro, facilitando o acesso ao que seria o corte ideal segundo seu realizador. Antes de entrarmos na versão estendida de “Midsommar”, uma rápida passada pela sinopse: após uma tremenda tragédia pessoal, Dani (Florence Pugh) vai com o namorado Christian (Jack Reynor) para a Suécia, a fim de presenciar as comemorações do solstício de versão de uma comunidade isolada. Lá, ela se divide entre os bizarros ritos e o relacionamento à beira do desastre.

Seria um exagero dizer que nova versão é um “filme diferente” do que vimos no cinema; mesmo 20 minutos (a duração retirada) bastando para mudar completamente um filme, vários momentos que Aster retirou são cortes de aceleração de ritmo. Eles são diminuídos e, comparando com o corte de 147 minutos, não fazem tanta diferença assim – como a sequência dentro do carro, quando o pessoal está dirigindo até o local das comemorações. No entanto, existem cenas vitais para unir o todo e que foram ou descartadas completamente ou severamente decepadas. Vamos a cada uma delas.

1: Christian convida Dani a ir até a Suécia

Há um atrito latente quando Dani descobre que Christian vai até a Suécia – sem informa-la. Na versão de cinema, há um grande corte entre esta cena e o momento que Christian avisa aos amigos que Dani vai acompanha-los (para o desgosto quase geral). Já na versão completa, a cena se desenrola mais, acrescentando detalhes sobre o estado emocional da protagonista – ainda de luto pela morte da família – e como o namorado é, sem rodeios, um completo covarde. A cena vista da maneira que Aster intencionou é um grande bloco que ilustra a precária união dos dois.

2: Christian esquece do aniversário de Dani

Como um lixo de namorado que é, Christian esquece do aniversário da amada – mesmo a viagem sendo exatamente no dia. Esse corte foi bem pequeno, porém, Aster agora deixa explícito do esquecimento quando Pelle, um dos amigos, avisa Christian sobre a data – antes só vemos Christian preocupado com algo e perguntando se Dani falou sobre alguma coisa. Deixar abertamente expositivo projeta ainda mais como o namorado não coloca Dani como prioridade.

3: A cena do lago

Após o primeiro estágio das comemorações – a fatídica cena do penhasco –, há outro passo cultural que é totalmente excluído no corte de cinema. Acontece um ritual que mostra um garotinho decidido a se suicidar em nome da Mãe Natureza, para o desespero de Dani (inclusive, tal ritual vai explicar como um dos personagens morre no final, uma dúvida que não é claramente respondida pelo corte de cinema). Ela diz a Christian que vai embora, enquanto o namorado fala um belo “então pode ir, porque eu não vou”.

Há uma briga de extrema importância aqui, e não consigo ver motivos que convenceram Aster a tirar toda a sequência – ela poderia vir imediatamente após a cena anterior sem o ritual do lago. Talvez o motivo da exclusão seja porque essa é a única cena noturna depois que os personagens chegam no vilarejo – no corte de cinema, a luz do dia não vai embora momento algum, um efeito brilhante.

4: Christian planeja roubar a tese de Josh

A motivação fundamental da viagem é que Josh, um dos amigos, está fazendo sua tese de doutorado em Antropologia, e usará a comunidade como objeto de estudo. Só que Christian, até então perdido sobre o tema de sua tese, decide roubar a ideia do colega. Enquanto assistia ao filme, achava muito deslocado o estopim para essa decisão, que não havia recebido tratamento devido – tudo surgia do nada.

E o motivo para esta impressão é graças ao corte feito na cena em que Christian agradece Pelle pelas informações sobre a comunidade, sendo que foi Josh quem fez a pergunta. Ali está a semente do que viria a florescer no roubo da ideia, um acontecimento muito sutil, mas que fundamenta uma motivação que recebe muito peso no roteiro, afinal, é mais um bloco de construção da persona de Christian.

5: Christian se aproxima de Maja

Uma das cenas mais desconcertantes de “Midsommar” é o ritual sexual que faz Christian engravidar Maja, uma das meninas do vilarejo. Há diversas trocas de olhares entre os dois, todavia, a primeira interação entre eles, no que vimos no cinema, é na derradeira cena da cópula. Isso porque foi retirado um momento em que ele deliberadamente vai até Maja com o pretexto de investigar sobre a cultura do local. Isso acontece logo após a briga do lago, como se Christian já não estivesse dando a mínima para a relação e dando abertura para a garota que estava jogando sinais de interesse.


Como podemos ver, Aster priorizou manter as cenas que colocam Dani em primeiro plano em detrimento do desenvolvimento de Christian, limado com a redução de 20 minutos, então, assistir à versão completa é uma experiência muito mais rica. Os cinco pontos citados são peças-chaves na costura do roteiro sobre como Christian é enquanto pessoa e, principalmente, enquanto namorado de Dani.

Muito peso psicológico foi retirado, e todo ele é fundamental para entendermos com ainda mais afinco a decisão do clímax, quando Dani escolhe sacrificar o (ex) namorado. Nem o público consegue ficar do lado do rapaz quando ele se mostra egoísta, egocêntrico e totalmente preocupado unicamente em si próprio, passando por cima de quem seja necessário.

E é inegável como esse lado ainda mais reprovável de Christian impacta diretamente em Dani, explicando sua instabilidade emocional e destruição psicológica. Pelle pergunta para ela: “Você se sente acolhida por ele?”. Com todas as cenas completas, a resposta é um “Não” ainda mais definitivo.

Curioso, também, perceber como os minutos a mais tornam “Midsommar” mais fluido – já que as peças se unem de maneira correta –, e as quase 3h correm sem que percebamos. É verdade que, querendo ou não, estamos revendo o filme e revisando alguns pontos e simbologias que antes não percebemos – como o painel que abre o filme e possui o roteiro do começo ao fim. Seguir por esse caminho – primeiro ver a versão de cinema e depois o corte do diretor – é a experiência mais interessante enquanto filme e enquanto entendimento da indústria. Com 20 minutos a mais, “Midsommar” se consagra como obra-prima.

Crítica: “Predadores Assassinos” tem muitos crocodilos e pouca coerência

Atenção: a crítica contém spoilers.

Existem alguns subgêneros da Sétima Arte que possuem características tão específicas que o molde, com o tempo, fica cansado – comentei sobre na crítica de “Bohemian Rhapsody” (2018) e as cinebiografias. “Predadores Assassinos” (Crawl), uma das maiores apostas do calendário de estreias no terror em 2019, junta três subgêneros: o disaster, o survivor e o natural.

O último, o mote de terror com forças naturais (principalmente animais) se voltando contra os humanos, tem célebres nomes, como o cult “Os Pássaros” (1963), que tem um título autoexplicativo sobre o que declara guerra contra o homem. Mas a consolidação veio com “Tubarão”, clássico de 1975 de Steven Spielberg. O maior já produzido, o filme foi um marco e acabou disseminando vários animaizinhos fofos matando gente ao longo das próximas décadas: "Orca: A Baleia Assassina" (1977), "Piranha" (1978), "Cujo" (1983) e, o mais recente sucesso, "Águas Rasas" (2016), só para citar alguns.

O impacto de “Tubarão” foi tão grande que o número de turistas nas praias norte-americanas caiu depois do filme, que gerou pânico do oceano na plateia. Porém, estamos falando de mais de 40 anos atrás: o mote funcionava efetivamente. Hoje, a história é outra.

No caso de “Predadores Assassinos”, são crocodilos os psicopatas da vez. Com a chegada de um furacão devastador, Haley (Kaya Scodelario) vai até a casa do pai, Dave (Barry Pepper), quando ele desaparece. A menina, uma nadadora, encontra o pai no assoalho embaixo da casa com ferimentos gravíssimos - incluindo fratura exposta -; e o que ocasionou a quase morte do homem foi um enorme crocodilo, que entrou com o nível da água cada vez mais alto devido ao furacão.

Aqui temos o segundo molde do longa: o disaster, quando a obra explana um desastre natural como terremoto, tsunami, queda de meteoro e até o apocalipse. Há uma camada muito fina de discussão dentro de “Predadores Assassinos” que conversa com alguns disasters: o aquecimento global. É tão fina esta camada que mal dá para perceber, mas ela está lá, e é um desperdício não haver uma discussão relevante sobre, afinal, estamos em uma época de larga discussão sobre nosso impacto no meio ambiente e como este reage com alterações climáticas.


A maior parte de “Predadores Assassinos” se passa na parte debaixo da casa, onde os personagens devem rastejar para poder se locomover – um dos reflexos do título do filme, que, em tradução literal, significa “Rastejar”; é claro que o outro reflexo é o próprio andar dos crocodilos. Como o local é bastante limitado, a direção do filme teve um grande desafio na hora de filmar o que estava acontecendo ali – com uma dificuldade adicional com a água subindo gradualmente.

Em muitos momentos, “Predadores” possui eco de “Um Lugar Silencioso” (2018) – que possui sequências que unem esses dois elementos, lugar fechado e água –, o que ilustra a competência desse departamento. Não há nada realmente espetacular ou inédito, mas a fotografia dá conta de imprimir no ecrã o claustrofóbico ambiente, melhorado ainda mais pelo filtro pesado jogado na tela, acentuando o tom de aprisionamento.

Os protagonistas da fita, os crocodilos, são fermentados e enormes. Por serem o atrativo mor da película, esperava efeitos visuais mais verossímeis que não retirassem o impacto toda vez que eles apareciam – há momentos que ultrapassam o limite do aceitável e soam puramente artificiais. E quando os antagonistas não são tão eficientes, o clima vai por ralo abaixo – não dá para gerar apreensão no que é visualmente falso.

Aí retorno a um ponto que levantei no início: “Tubarão” causou frisson e pavor no espectador há décadas atrás, será que ainda estamos tão suscetíveis ao mesmo efeito? É bom lembrar que o medo é, também, subjetivo, e provavelmente muita gente saiu em pânico de “Predadores”, no entanto, não já passamos do tempo em que animais conseguiam ser efetivos propulsores do terror no Cinema?


Lembrava, então, de “Água Rasas”, que tem uma surfista lutando pela vida enquanto um tubarão a persegue. Os elementos são parecidíssimos com os de “Prepadores”: a protagonista está machucada, presa em uma ilhota minúscula e correndo contra o tempo pois a maré está subindo, o que dará acesso ao tubarão enfim a pegá-la. Mesmo não sendo um clássico ou um filme sensacional, “Águas Rasas” é uma sessão muito boa enquanto produto de entretenimento. 

“Predadores” também existe com o intuito puro e simples de entreter, divertir e, sim, ganhar o bastante para se pagar, o que nem de perto é um problema – é uma das funções elementares do Cinema a catarse –, porém, quando comparado com “Águas Rasas”, fica muito, mas muito para trás, porque este funciona como conjunto, ao contrário de “Predadores”.

Assim como Blake Lively está para lá de digna em “Águas”, Scodelario entrega uma atuação muito boa. A garota – descendente de brasileiros – faz todo o filme valer a pena e não deixa a atuação cair em nenhum segundo, mesmo com o roteiro se esforçando para soar patético.

Primeiramente, há diversas sequências em que os personagens poderiam se salvar dos crocodilos. No assoalho, as paredes possuem padrões de tijolos com vários buracos, que facilmente seriam derrubados com um ou dois chutes – e, mesmo possuindo grades do lado de fora, é burrice nem ao menos TENTAR sair por ali. Quando Haley encontra uma portinhola – convenientemente emperrada pelo lado de fora –, segundos depois um policial entra na casa; ela, ao invés de continuar na portinhola, que seria aberta pelo policial e salvando o dia, vai até o outro lado do assoalho. É claro que o policial morre em seguida.


E diversas baboseiras sem sentido são jogadas com o decorrer da duração, desde os crocodilos não gostando do barulho dos canos até a ridícula sequência, já fora da casa, quando Haley tenta pegar um barco. Todo ser vivo que caminhou pela rua alagada foi sumariamente assassinado pelos crocodilos, mas a menina e o pai caminham uma boa parte sem serem importunados pelos monstros – e Haley chega até o barco à nado, inspirada pelo pai e seu discurso motivacional e mais rápida do que três crocodilos. Claro que sim.

Não vamos esquecer que tudo isso acontece com o pai tendo uma perna fraturada e metade do ombro arrancado e Haley com duas enormes mordidas pelo corpo. Os personagens são quase decepados e continuam a fugir como se nada tivesse acontecido. Sei que pode soar um pedido exagerado pedir coerência em um filme com crocodilos gigantes, no entanto, o mínimo que deveria acontecer é nexo no roteiro. Quando tem personagem quase perdendo uma perna e logo depois ganhando a medalha olímpica de natação contra crocodilos, há algo de errado.

Há, para o requisito, um draminha familiar para tentar arrancar uma lágrima e fazer com que nos apeguemos aos personagens, há jump-scares super deslocados – porque óbvio que os crocodilos faziam suspense na hora de estraçalhar alguém –, até um cachorro é colocado no meio (e felizmente termina inteiro). Esse é um filme totalmente dentro de um molde já batido e que não faz nada além da média para ser ou tenso ou divertido. Só preenche uma cartilha e está satisfeito.

“Predadores Assassinos” pode agradar quem espera uma sessão inteiramente moldada para matar o tédio e nada mais – é um filme curto e direto ao ponto, o que é bom. Fora isso, é apenas outra e qualquer obra com bichos devoradores de gente que some com o rolar dos créditos – a atuação de Kaya Scodelario é o único ponto válido de apreço. É ironicamente raso esse filme que esconde seus monstros nas profundezas da água, tão cristalina que parece surgir de uma fonte termal e não pelas mãos de um furacão.

Crítica: “Midsommar” e o hipnótico horror cultural em plena luz do dia

Atenção: a crítica contém spoilers.

Caso você ainda não tenha sido apresentado a Ari Aster, ele é proprietário do melhor filme de terror da década: "Hereditário" (2018). Conseguir um marco em um gênero tão difícil (e logo em sua estreia) fez com que o sucessor, "O Mal Não Espera A Noite" (Midsommar), fosse recebido com imensas expectativas. E isso é tanto benéfico quanto maléfico.

"Midsommar" segue os passos de Dani (Florence Pugh, maravilhosa desde seu estouro em 2016 com "Lady Macbeth"), uma estudante que vê sua vida ruir quando a irmã bipolar se suicida e, ao mesmo tempo, mata os pais. Em absoluto choque, Christian (Jack Reynor), seu namorado, é o único em quem ela pode se apegar no meio dessa tragédia; a questão é que Christian está há muito tempo tentando terminar com Dani, sem saber como cair fora da relação por puro medo e covardia.

Existem diversas similaridades entre "Hereditário" e "Midsommar", assim como várias diferenças, porém, a mais gritante é a que está presente em todo o filme: "Midsommar", com exceção do prólogo, se passa inteiramente na luz do dia, ao contrário de "Hereditário", um filme majoritariamente noturno. Essa quebra não só difere as obras como separa "Midsommar" de quase todos os filmes de terror já feitos.

Dos primórdios do terror na Sétima Arte, ainda com os filmes mudos, até os adventos tecnológicos dos efeitos visuais da modernidade, um elemento é quase intrínseco no gênero: a escuridão. Este é o medo básico do ser humano, o medo do escuro, do desconhecido, daquilo que está nas trevas esperando para atacar, e os nomes, desde clássicos como contemporâneos, a se passarem no escuro – ou, pelo menos, possuírem seus clímaces longe da luz do sol – são abundantes, desde “O Bebê de Rosemary” (1968) e “O Exorcista” (1973) até “Rec” (2007) e “A Bruxa” (2015). "Midsommar" bebe na fonte de "O Homem de Palha" (1973) e "A Montanha Sagrada" (1973) em suas composições, simbolismos e construções imagéticas - e ambos são predominantemente diurnos.

Para tentar fugir do luto que, mesmo meses depois, ainda é uma ferida aberta, Dani aceita o convite (forçado) de Christian para ir até a Suécia com os amigos do rapaz. Lá, eles vão participar de uma celebração de nove dias que acontece a cada 90 anos, em uma comunidade isolada que anualmente celebra a festa da Rainha de Maio, um dos vários ritos daquela cultura.

Ao chegarem no vilarejo, bastante afastado de qualquer contato com o mundo, o clima de toda a fita é instaurado quando temos um sol fortíssimo iluminando todas as dimensões da propriedade. Não há detalhes escondidos, bem ilustrados quando a entrada do local é um gigante sol feito de madeira. Na chegada, somos apresentados aos costumes locais de celebração do solstício de verão, período em que há mais horas de dia do que de noite.


E aqui há o primeiro sinal de que tem algo de errado: com exceção de poucos momentos menos ensolarados, o sol jamais vai embora. Por ser um grupo de universitários, os jovens aproveitam a viagem para curtir e aceitam de bom grado os alucinógenos oferecidos pelos habitantes do vilarejo, o que agrava ainda mais a sensação de deslocamento temporal. Um deles pergunta as horas e, mesmo com o sol a pino, eram 9h da noite segundo os relógios.

Confesso que aqui encontrei o primeiro descontentamento com “Midsommar”: quando ele abraça um molde tão cansado sem, de fato, elevá-lo a algo fora da caixa. O filme é como os milhares já feitos que possuem adolescentes/jovens adultos indo para o meio do nada e, atraídos por sexo e drogas, caem nas presas dos vilões. “Cabana do Inferno” (2002)? “O Albergue” (2005)? Os exemplos estão aí. A coisa vai ainda mais longe com o personagem de Will Poulter, o alívio cômico que atira piadinhas e está mais preocupado em pegar alguma das várias garotas do vilarejo. É um humor deslocado.

Isso pode dar a falsa impressão de que “Midsommar” pende para o lado comercial ou pipoca do terror, o que não é verdade, nem de longe. A película é lentíssima e dedica seus 147 minutos na imersão do espectador na cultura local, o que é uma faca de dois gumes. Aster não queria que seu filme soasse culturalmente gratuito, e fica evidente que houve extensa pesquisa ao redor dos rituais inseridos naquele contexto, porém, ao mesmo tempo, a obra muitas vezes soa como um “Globo Repórter”.

Vemos muito de perto o passo a passo de cada momento das celebrações, e muitas vezes tudo soa chato. Não imediatamente, há muito hipnotismo diante das imagens, todavia, ao passarmos pela sequência, cai um pensamento de “isso não acrescentou muita coisa” ou “isso poderia ter sido sem tantos detalhes”. E olha que estou falando da versão cortada da A24, distribuidora do filme, para os cinemas; a versão original do diretor tem 3h.

Outro grande aspecto diferenciador entre "Hereditário” e “Midsommar” é que o primeiro é um terror, com o objetivo de causar medo. O novo, no entanto, não assusta - ele, um horror, quer te causar incômodo. Há cenas chocantes, claro, no entanto, as construções climáticas não seguem os mesmos caminhos que um filme de terror seguiria – até pelo fato de tudo ser tão expositivo pela questão da luz. Confesso que foi um pouco árduo superar a decepção que senti quando vi que "Midsommar" não tinha aspectos macabros ou assustadores como esperava pelo combro "sucessor de 'Hereditário' + cultos pagãos".


O primeiro momento que escancara o horror é no primeiro ápice dos rituais, quando dois idosos se suicidam ao se atirarem de um penhasco. A fotografia (espetacular) de Pawel Pogorzelski, sob os olhos sádicos de Aster, segue sem medo as quedas e foca nos corpos sendo destroçados com o impacto. Dani e seu grupo, claro, fica horrorizado, principalmente porque toda a comunidade não parece se abalar com a cena. A matriarca explica: aquilo é um costume corriqueiro, já que a comunidade enxerga a morte como uma parte natural do nosso ciclo. “Ao invés de morrermos com medo ou vergonha, nós entregamos nossas vidas. Não faz sentido lutarmos contra o inevitável, isso corrompe o espírito”. A última parte é dita estrategicamente para Dani, um prelúdio do que está por vir.

Aliás, “Midsommar” está soterrado em foreshadowings – há diversos fragmentos do roteiro dados logo no início - e é divertido ficar atento às paredes à procura de pistas. A imagem que abre o filme já mostra os idosos se atirando do penhasco; o galpão que possui as camas é um enorme mural com várias pinturas do que está prestes a acontecer; o quadro na casa de Dani, com uma garota coroada beijando um urso, que reflete o final; e a brincadeira das crianças da vila, chamada “esfola o tolo”, o destino de um dos personagens; além de outros exemplos.

Após o suicídio dos idosos, parece que o horror de “Midsommar” finalmente chegou para ficar, mas ainda temos um longo trajeto a percorrer. O roteiro introduz uma discussão muito boa sobre estudos culturais: Dani quer ir embora após presenciar tão horripilante cena, porém, como diz Christian, aquilo para o vilarejo é normal, e que nossa cultura, que coloca idosos em asilos, deve ser assustador para eles. Há muitos estudos que questionam a validade do ato de não se discutir culturas, mesmo quando estas são problemáticas ou abertamente ruins. Qual o limite de proteção de uma tradição?

Outro fator latente para Dani é que o namorado não parece muito interessado no que está acontecendo ou nos sentimentos da garota. Sempre é outra pessoa a acalmar os nervos da protagonista, enquanto Christian permanece inerte e até egoísta em relação a todos a sua volta. No final do segundo ato, no auge do desaparecimento premeditado dos personagens, Christian joga o corpo fora e diz não ter associação alguma com um dos seus (até então) melhores amigos, para o assombro de Dani, que o vê vomitando aquelas palavras naturalmente.


Outro problema da fita é a maneira como ela expõe o sumiço gradual dos personagens: ela não expõe. Tirando um deles, não vemos na tela o ataque contra os personagens, que desaparecem quase passivamente. O que poderia ser um forte elemento climático, não é construído para embarcar demasiadamente no misterioso, do que fica fora do quadro. É tanto que, quando os corpos começam a aparecer, o impacto não é tão forte como poderia exatamente por não haver a tal construção ao redor dos sequestros.

O último ato, ponto alto da celebração, começa com o concurso para decidir quem será a Rainha de Maio. Depois de muita droga e alucinações, Dani vence, e é coroada em uma enorme comemoração, enquanto Christian é induzido a entrar em um ritual próprio: ele é escolhido pelos anciões a engravidar uma das garotas do local, prática realizada com frequência – por ser uma comunidade pequena, apenas primos podem copular, sendo preferido forasteiros, levados até lá com o intuito de procriação.

A cena em questão é uma cópula bizarra: filmada com uma beleza incongruente, Christian transa com a garota enquanto várias mulheres nuas assistem. É tudo tão constrangedor que chega a ser engraçado, e esse é o tipo de humor retirado de maneira inteligente, ao contrário do pastelão que vinha pontualmente aparecendo. Mesmo entre risos, não dá para não perceber o horror da sequência.

E é claro que Dani vai saber do ocorrido, o que desencadeia no ataque máximo: ela percebe que perdeu absolutamente tudo. Sua família está morta, os colegas desapareceram e seu imprestável namorado finalmente deu um motivo definitivo para acabar a relação. Enquanto surta, várias mulheres da vila a acolhem e, em um ritmo assustador, choram e gritam na mesma frequência de Dani.

Esse momento é fundamental para entendermos os rumos do final do filme: Dani finalmente é emocionalmente compreendida. Ela, agora a Rainha de Maio, é acolhida com imenso prazer pela comunidade, sendo chamada de “irmã” pelas garotas do local, que, quase literalmente, compartilham dos sentimentos daquela que é a realeza. E isso explica as várias cenas com os moradores da vila imitando os sentimentos dos outros – quando o idoso se atira do penhasco e não morre, os habitantes gritam em sincronia com a dor do personagem; durante a cópula, as mulheres ao redor gemem junto com a garota perdendo a virgindade. Eles são um corpo só.


A última etapa da celebração, após a coroação da Rainha de Maio, é o sacrifício para a manutenção da paz do local: nove pessoas devem morrer para expulsar o mal da vila. Oito delas já estavam previamente escolhidas: os amigos de Dani; outros visitantes; dois membros do culto, voluntários para a dádiva do sacrifício; e o último deve ser decidido pela Rainha de Maio. As opções são: um dos moradores do local, escolhido através de um sorteio; e Christian. Não é lá grande surpresa quando Dani escolhe sacrificar Christian.

“Midsommar” é uma gigante alegoria sobre a posse do controle. Dani perde o controle absoluto de sua vida: ela vê sua família inteira morrer de uma só vez e o namorado, aquele que deveria lhe dar suporte emocional, está cada vez mais distante e prestes a cair fora. Ela busca desesperadamente algo que lhe dê a paz que é a sensação de controlar as rédeas da própria vida, e ela encontra na vila. Ela é capaz de decidir entre a vida e a morte de pessoas, o controle absoluto, e ela escolhe matar aquilo que a prendia na vida passada, na escuridão. Até mesmo a transição do filme é uma metáfora perfeita para isso: quando sua família morre, é noite; ela só encontra a luz do dia quando está na vila, e essa luz é infinita.

É claro, o filme não está glorificando tudo isso; há uma forte crítica ao fanatismo religioso. Dani está na ruína absoluta, extremamente suscetível a qualquer coisa que lhe garanta conforto, e aquela religião pagã é a receita exemplar para isso, ainda mais tão regada a alucinógenos que, como bem diz os moradores, ajudam quem toma a desapegar do passado e se abrir às novas sensações. É por isso que, vendo o namorado em chamas, ela sorri. O que antes era vulnerabilidade agora é ocupada pelo poder. Ela finalmente se vê parte de um todo – ilustradas pelas visões que Dani tem do seu próprio corpo fundido com a natureza. Sob o efeito de drogas e fundamentalismo, a redoma sacra que envolve docemente a protagonista em seus braços é tudo o que ela precisava. É bom demais para se revoltar contra os absurdos que estavam diante dos seus olhos.

"Midsommar" não é um fácil filme: sua robusta duração, desconcertantes sequências e inundação de simbolismos tornam a sessão uma trabalhosa digestão para a plateia. Tão diferente, mas ao mesmo tempo tão parecido com "Hereditário" ao usar o luto como pontapé de seu clima, é injusto comparar as duas obras quando seus objetivos (e luzes!) são tão discrepantes - e, convenhamos, superar "Hereditário" seria utópico. "Midsommar" é narcotizante e hipnótico ao reforçar o terror antropológico e cultural, além de mais uma comprovação (dessa vez colorida e vibrante) de que Ari Aster é um mestre no que faz e um dos mais bizarros términos de relacionamento que o Cinema já fez. Teria sido mais fácil terminar por mensagem.

Crítica: mesmo parecendo mais adulto, o balão de “It: Capítulo 2” está murcho

Atenção: a crítica contém spoilers.

Após 27 anos do primeiro encontro com Pennywise (Bill Skarsgård), ou A Coisa, o Clube dos Perdedores é obrigado a voltar para a cidade de Derry e confortar de uma vez por todas o palhaço demoníaco que está disposto a continuar com sua matança. "It: Capítulo 2" (It Chapter Two) continua a saga iniciada em "It: A Coisa" (2017) dois anos após o lançamento deste que é a maior bilheteria de um terror em toda a história (sem o ajuste inflacionário) - foram $700 milhões ao redor do globo.

Desde o início da produção da sequência, um fato me chamava muita atenção: como os atores escolhidos para interpretarem as versões adultas eram bizarramente parecidos com as crianças do primeiro filme. Não vou nem citar a lista dos nomes, porém eles parecem ter sido escolhidos a dedo - e até coadjuvantes são iguais aos atores mirins. Mais sorte ainda quando nomes tão grandes como Jessica Chastain, James McAvoy e Bill Harder aparecem no casting.

O filme é aberto, assim como o anterior, com um assassinato pelas mãos do Pennywise, para avisar que o palhaço já está na ativa. Contudo, o caso do "Capítulo 2" já chegou envolto de controversas: um casal gay é brutalmente espancado por um grupo homofóbico, e um deles é morto pelo Pennywise. Já adianto: não li ao livro de Stephen King. Lendo comentários acerca, soube que a passagem em específica contém no material original, porém, na tela, a cena é preocupantemente descontextualizada.

A ideia, imagino, era fomentar a áurea de violência da cidade, quase exalada a partir da presença de Pennywise - um dos criminosos inclusive fala "Bem-vindo à Derry" quando espanca um dos gays. Todavia, é muito diferente da morte de Charlie no primeiro filme, já que foi inteiramente feita a partir de um monstro sanguinário e não-humano. Ver corpos homossexuais sendo violentados por puro ódio e que não acrescentam na narrativa só tem um nome: gratuidade.


Quando os pedaços do cadáver deste personagem - interpretado pelo reizinho Xavier Dolan, já acostumado a sofrer quando atua em filmes - são encontrados, é o alerta de que os Losers devem voltar e impedir que as mortes continuem se espalhando. O primeiro ato começa com Mike (Isaiah Mustafa), o único do grupo original a nunca ter saído de Derry, ligando para todos os outros amigos de infância e informando para eles correrem até a cidade.

Pois bem, esse início é deveras confuso. Não fica muito claro qual a dinâmica que está acontecendo entre os personagens que foram embora: eles parecem não se lembrar dos eventos da infância. Após a sessão, fui ler sobre e descobri que sim, no livro é isso que acontece, no entanto, o filme presume esse conhecimento prévio (e indevido) e não se preocupa em desenvolver o que é a base para o pontapé inteiro da trama. Ora parece que os personagens lembram de nada, ora que lembram de alguma coisa, é uma desordem sem tamanho.

O único que lembra de tudo é Mike, exatamente por não ter saído da cidade. Essa dinâmica é tão contraditória que, fundamentalmente, quem saiu da cidade se recorda de nada, entretanto, Ben (Jay Ryan), o ex-gordinho e agora malhadíssimo que eventualmente vai mostrar sua nova barriga de tanque, ainda nutre um amor por Bervely (Chastain) vinte e sete anos depois. Supera.

Mesmo sendo os mesmos personagens do primeiro longa, os protagonistas são pessoas diferentes, afinal, quase três décadas se passaram. O roteiro é corrido demais ao abordar suas vidas presentes, o que apresentaria ao espectador quem eles são no agora - há pontuações interessantes, principalmente no caso de Bervely, presa em uma repetição da relação extremamente abusiva com seu pai; seu atual marido é um psicopata que a trata como objeto. Um deles até comete suicídio e nem aparece por dois minutos inteiros, um peso narrativo irrisório.

Aí começa o segundo passo do plot. Mike explica os acontecimentos e diz já ter um plano para matar A Coisa, um ritual indígena que também ilustra como o palhaço chegou em Derry: pegando carona em um meteorito. Sim, Pennywise é um alienígena. Enquanto essa mitologia é muito boa, o lado do ritual é apresentado de maneira incongruentemente pronta. É como uma receita que magicamente brotou do chão, sem preparação ou background algum para o público.


E falando em receita, "Capítulo 2" é uma cópia da estrutura do filme antecessor. Podemos pensar, "bem, é uma decisão lógica, afinal, é a continuação", mas não, não é. No "Capítulo 1", nós acompanhamos cada um dos personagens enfrentando Pennywise particularmente, e a mesma coisa acontece aqui. Uma enorme parte da duração - que é bem robusta, quase 3h - é dedicada à separação de seus peões e cada um deles esbarrando com os terrores d'A Coisa.

Mesmo havendo momentos inspirados - a sequência da Bervely com a idosa é ótima -, é uma repetição gigantesca e previsível. Sabemos cada passo, cada susto, cada desdobramento, o que não engrossa uma atmosfera, afinal, uma das premissas básicas do terror é o medo do inesperado. Andando passo a passo atrás do molde original, surpresas quase não estão à vista.

Algo que me chamou atenção é como a película não é.........adulta. Não esperava algo cerebral ou cult, mas "Capítulo 2" não amadurece sua narrativa em momento algum, além de empalidecer quando posto lado a lado com o elenco infantil. Soa estranho quando temos atores consagrados não dando conta de superarem um bando de crianças, e fica cristalino quando o filme embarca em flashbacks e coloca protagonistas originais na tela. Eles possuem muito mais química e um tom mais correto.

Se o primeiro é uma aventura macabra, o segundo não alcança uma coesão de estilo, afinal, aquele grupo de quarentões caindo em trapalhadas é desconcertante. O que deveria ser mais sério e atmosférico é apenas uma emulação do que deu certo antes - e que, obviamente, não funciona de modo igual. "Capítulo 2" é, sim, mais "assustador" - não chega a dar medo, todavia, possui uma gama bem legal de ideias de terror (a cabeça com pernas de aranha é uma delícia) - só que são tantos tiros para todos os lados que se torna uma bagunça com supérfluos - subtramas, como a do garotinho na sala de espelhos, podiam ser descartadas.

Depois de horas de sustos (alguns bem baratos), chegamos no "vamo-vê", o embate com Pennywise. O clímax já começa errado quando o tal ritual que caiu dos céus serve para coisa nenhuma e é esquecido rapidamente - o que também joga fora a relevância narrativa do momento em que os personagens se separam. Quando cara a cara com A Coisa, agora em forma de uma aranha enorme, a montagem ruim vai derrubando o que já estava fraco.


A solução do problema é a última pá de terra no enterro do filme: os Losers começam a xingar e menosprezar Pennywise, que vai (fisicamente) diminuindo até chegar a um ponto que seu coração fica exposto, a peça chave de sua existência. Em um primeiro estalo, achei curioso o conceito da derrocada do vilão: Pennywise é a personificação do bullying - ele ataca as inseguranças e medos de suas vítimas, como qualquer "valentão" -, e só é derrotado quando o bullying se volta contra ele. No campo das ideias, o gosto desta solução é doce, porém, na tela, é cinematograficamente preguiçosa.

E de preguiça o terror comercial e hollywoodiano entende. Forças sobrenaturais, demônios imbatíveis, entidades sanguinárias são, geralmente dentro desse nicho, derrotados por uma artimanha patética. Quer exemplos? A maior franquia de terror moderna é "Invocação do Mal", que já rendeu vários spin-offs e dinheiro aos baldes, e os dois filmes principais da saga possuem a mesma preguiça: em "Invocação do Mal" (2013), o satanás vai embora com pensamentos felizes; e Valak, o demônio em forma de freira em "Invocação do Mal 2" (2016), cai por terra ao ouvir seu nome. Simples assim.

Vendo por um lado positivo, além de ser uma sessão que não cansa tanto para a longa duração, "Capítulo 2" abraça uma metanarrativa criativa quando coloca o Stephen King em pessoa falando mal dos finais de suas próprias histórias - uma ideia pra lá de disseminada entre os leitores -, além de gerar referências bem divertidas do universo kinguiano, como para "O Iluminado" (1980) - tem um "Heeere's Johnny!" - e "Carrie: A Estranha" (1976) com a inundação de sangue.

A impressão que "It: Capítulo 2" desenha à plateia é que parece ser um filme andando com muletas: está preste a cair a qualquer momento, mesmo não indo ao chão de fato. A vivacidade que residia na obra anterior abre espaço para uma irregularidade colateral - o roteiro formulaico e efeitos visuais ruins explicam. Sempre será um prazer ver Bill Skarsgård encarnando um dos vilões mais icônicos da contemporaneidade cinematográfica, mas nosso retorno à Derry não é o prazer que foi a primeira vez que chegamos nessa cidadezinha infernal. Talvez, na próxima, o balão vermelho não estará tão murcho (Skarsgård já afirmou que voltaria para um terceiro).

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