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Os 10 melhores filmes de 2023 (até agora)


Você piscou e metade de 2023 já passou, acredita? Agora que estamos descontando tudo o que perdemos no mundinho da Sétima Arte nos tenebrosos anos de pandemia, estamos recheados de filmes fantásticos chegando nos cinemas, então é claro que eu teria que vir aqui com meus filmes favoritos de 2023 (até agora).

Caso você já conheça o Cinematofagia, o foco aqui sempre foi e sempre será a busca por filmes que não necessariamente estejam no radar na grande indústria - principalmente quando olhamos para a distribuição brasileira, que ainda sofre com atrasos de meses em comparação com estreias internacionais, inclusive de países minúsculos. Vários longas já aclamados lá fora só chegarão aqui no segundo semestre, mas tudo bem, a lista de fim de ano virá aí.

De vencedores do Oscar a pérolas de todos os cantos do mundo, os critérios de inclusão da lista são os mesmos de todo ano: filmes com estreias em solo brasileiro em 2023 - seja cinema, streaming e afins - ou que chegaram na internet sem data de lançamento prevista, caso contrário, seria impossível montar uma lista coerente. E, também de praxe, todos os textos são livres de spoilers para não estragar sua experiência - mas caso você já tenha visto todos os 10, meu amor por você é real.

Sem mais delongas, meus 10 filmes favoritos do primeiro semestre de 2023:


10. A Morte do Demônio: A Ascensão (Evil Dead Rise)

Direção de Lee Cronin, EUA.

Em 2013, o remake de "A Morte do Demônio" prometeu ser uma das mais assustadoras obras que o Cinema já pôs os olhos. Um sabor como terror, gore e insanidade que é característica da franquia, tivemos que esperar 10 anos para uma continuação, e a espera valeu a pena. "A Morte do Demônio: A Ascensão" consegue ir além e superar o filme de 2013 quando segue uma família arruinada que encontra o último prego no caixão quando o Livro dos Mortos cai em suas mãos. São 97 minutos de puro horror e com personagens fantásticos e uma das melhores atuações do ano: Lily Sullivan como a maestrina do gore.


09. Sem Ursos (No Bears)

Direção de Jafar Panahi, Irã.

O iraniano Jafar Panahi ficou famoso com seu estilo de misturar realidade com ficção, se inserindo em seus próprios filmes como um personagem central. Em "Sem Ursos", ele usa sua própria condição política - de ser impedido de deixar o Irã - como condutor do enredo: enquanto tenta dirigir um filme ao lado da fronteira, se mete numa confusão quando vira testemunha de uma briga familiar cunhada à base de religião e tradições conservadoras. "Sem Ursos" é mais um grito contra um país repressor que fez o diretor ir parar atrás das grades por sua "propaganda contra o regime". Cinema político em seu auge. 


08. Raquel 1:1 (idem)

Direção de Mariana Bastos, Brasil.

Mais um elemento do Novíssimo Cinema Brasileiro ao colocar suas mãos em discussões sociais embaladas em premissas extremamente criativas: Raquel é uma adolescente que, após uma tragédia, se curva à religião. A questão é que, quanto mais Raquel fortalece sua fé, mais ela discorda dos preceitos escritos na Bíblia, principalmente sobre a visão submissa da mulher. Então ela decide fazer algo que chocará toda a cidade: reescrever as escrituras sagradas. "Raquel 1:1" se deita sobre "Carrie: A Estranha" (1976) e "Santa Maud" (2020) nesse conto sacro, feminista e disruptivo que une folclore, cultura e elementos de terror para colocar a plateia para pensar nos símbolos que deixam dúbio o papel de Raquel como messias de uma nova crença.


07. Tori & Lokita (idem)

Direção Luc & Jean-Pierre Dardenne, Bélgica/França.

Os irmãos Dardenne estão desde 1987 explanando diversos cosmos sociais da Bélgica, que inesperadamente são universais. Indicados NOVE vezes à Palma de Ouro no Festival de Cannes - com duas vitórias -, os belgas são aclamados pela crueza e coragem de seus filmes, e com "Tori & Lokita" não poderia ser diferente: dois imigrantes africanos tentam sobreviver na Bélgica em meio a racismo, misoginia e um sistema que está empenhado em separá-los. Com um tom documental, o longa é uma jornada dolorosa que discute a crise imigratória na Europa e como esses imigrantes são corpos sujeitos à marginalização - até serem descartáveis.


06. A Piedade (La Piedad)

Direção de Eduardo Casanova, Espanha/Argentina.

Eduardo Casanova ficou famoso mundialmente logo no seu filme de estreia, "Peles" (2017), que com toda a certeza será uma das obras mais bizarras que você verá na vida (está disponível na Netflix, aproveite). Sua segunda película, "A Piedade", estava envolta de muita curiosidade por parecer seguir os moldes que formavam o cinema "casanovadiano": personagens estranhos, cenas desconcertantes e um design de produção cor-de-rosa. Aqui, uma mãe chamada Piedade é obcecada pelo seu filho, e a relação disfuncional dos dois vai sofrer um baque com o diagnóstico de câncer do filho. É verdade que "A Piedade" não vai até aonde "Peles" vai no quesito "o que diabos é isso", porém, é um capítulo fabuloso na filmografia do espanhol, um pilar chiquérrimo (e excêntrico) do cinema queer.


05. Beau Tem Medo (Beau is Afraid)

Direção de Ari Aster, EUA.

Um dos melhores diretores da atualidade, Ari Aster tinha um problemão em mãos: conseguir manter o nível dos seus dois primeiros filmes, "Hereditário" (2018) e "Midsommar: O Mal Não Espera a Noite" (2019). O mais curioso é que, se nos dois citados, o diretor teve que entrar no maquinário da indústria e moldá-los de acordo com o gosto da A24, sua distribuidora parceira, "Beau Tem Medo" recebeu carta branca para Ari despirocar e fazer o que diabos quisesse. O resultado? Um pesadelo satírico como nenhum outro. Sob o comando do vencedor do Oscar Joaquin Phoenix, "Beau Tem Medo" são 3h de insanidade que segue Beau em uma epopeia para chegar na casa da mãe após um acidente. Com sequências alucinógenas, cenas sem o menor sentido aparente e plot-twists incalculáveis, você passará dias tentando montar o quebra-cabeças do "mommy issues" do ano - e olha que acabamos de falar de "A Piedade". 

 

04. Até Amanhã (Until Tomorrow)

Direção de Ali Asgari, Irã/Catar.

Fereshteh é uma mãe solteira no coração do Irã, um escândalo por si só. Ela esconde a criança de todo mundo, com apenas duas pessoas sabendo da existência da filha: Atefeh, sua melhor amiga; e Yaser, o pai da criança que não tem o menor interesse em assumir o papel. Fereshteh segue bem com a vida, mediante a situação, mas tudo parece que está por um fio quando sua família informa que fará uma visita surpresa. Ela então corre pela cidade, à procura de alguém que poderá ficar com a menina por apenas uma noite. "Até Amanhã" é um drama impecável que estuda a vulnerabilidade da mulher num país que pinta um filho "ilegítimo" como desonra absoluta. Cada minuto que passa, mais o público se aflige com a situação de Fereshteh, que entrega uma das mais fantásticas cenas do ano - a do táxi. 

 

03. Tár (idem)

Direção de Todd Field, EUA/Alemanha.

Lydia Tár é uma maestrina de absurdo sucesso e conduz uma das melhores orquestras do mundo. Por trás de todo o glamour de sua abarrotada agenda, Lydia deve lidar com o casamento ameaçado, sua carreira em corda bamba e fake news sobre seu caráter. "Tár" tem quase 3h, em um robusto filme que está para a música clássica como "Cisne Negro" (2010) está para o balé e "Demônio de Neon" (2016) está para a moda, estudando as percepções de estrelas na mídia e a ascensão e queda de ídolos. Se o texto consegue carregar tantos temas complexos com maestria (bah dum tss), é a atuação lendária de Cate Blanchett que eleva a sessão a um patamar de obra-prima e que fará "Tár" ser lembrado por toda a história.


02. Morte Infinita (Infinity Pool)

Direção de Brandon Cronenberg, Canadá/Croácia.

Em 2022, David Cronenberg - um dos pais do horror norte-americano - voltou à velha forma com o incrível "Crimes do Futuro"; em 2023, é a vez do seu filho. Brandon Cronenberg prova que é um pupilo exemplar do Cinema de seu pai ao lançar "Morte Infinita": um rico casal está em luxuoso resort e verá suas férias (e suas vidas) pegarem um caminho monstruoso ao conhecer outro casal veterano. Ao causarem um acidente, os ricaços descobrem uma das leis do país: assassinato é pago com a morte do culpado pelas mãos da família da vítima, todavia, quem tem dinheiro tem uma saída, e no universo fílmico de "Morte Infinita" há um segredo macabro. Alexander Skarsgård e Mia Goth (que diz "SIM!" para qualquer roteiro que a descreve como "personagem psicótica") dão vida (e morte) para um roteiro narcotizante que possui cada vez mais camadas quanto mais você reflete sobre. O último pilar da "Santíssima Trindade do Transhumanismo Contemporâneo", ao lado de "Crimes do Futuro" e "Titânio" (2021). Amém.

 

01. A Baleia (The Whale) 

Direção de Darren Aronofsky, EUA.

Um dos longos mais polêmicos de 2023 - o que não é raridade dentro da carreira de Aronofsky, "A Baleia" conseguiu abocanhar dois Oscars e marcar o retorno triunfal de Brendan Fraser, que levou o careca de "Melhor Ator" ao viver um professor obeso em seus últimos dias de vida. A carga dramática de "A Baleia" engalfinha por um peso emocional raro - curiosamente, mesmo com toda a dor do texto, o filme possui o final mais esperançoso de toda a filmografia de Aronofsky, no entanto, chegar até lá é uma tortuosa viagem que com certeza não agradará a todos. A cereja do bolo que refletiu o status de obra-prima para "A Baleia" veio quando, na cena final, em uma revelação que amarra toda a história, uma pessoa sentada ao meu lado na sessão levou as duas mãos ao rosto em completo frenesi. É a beleza da tristeza e a feiura da alegria em um dos mais arrebatadores finais da década, que arrancaram minhas lágrimas como nunca antes diante da Sétima Arte.

Crítica: a autodestruição (e ascensão) de Brendan Fraser e o festival de lágrimas em “A Baleia”


Atenção: a crítica não contém spoilers, contudo, pincela alguns detalhes específicos da trama.

Darren Aronofsky, um dos meus diretores contemporâneos favoritos, já passou por um processo que acontece com todo diretor que cai nas graças de Hollywood. Eles começam autorais, com uma personalidade fílmica definida, e vão para a grande máquina, recebem roteiros prontos e perdem toda a magia que possuíam; são raros os casos que passam pelo processo e continuam entregando obras que não carregam só seus nomes, mas suas marcas - o grego Yorgos Lanthimos (com "A Favorita", 2019) e o canadense Denis Villeneuve (com "A Chegada", 2017) são exemplos de sucesso.

Aronofsky passou, mais cedo ainda, por isso. É verdade, quando dirigiu roteiros prontos, não houve problemas - "Cisne Negro" (2010) é apenas um dos melhores filmes do século -, porém, depois de retornar com um roteiro seu em "Mãe!" (2017), sua próxima empreitada seria novamente com um roteiro externo: "A Baleia", adaptação da polêmica peça de Samuel D. Hunter (e com o texto levado para o Cinema pelo mesmo autor).

Confesso que, em 2023, não havia um filme que me produzia mais expectativa que "A Baleia" - "Beau is Afraid" vem logo na cola -, por vários motivos. Primeiro, por ser um Aronofsky, e, ignorando a bomba "Noé" (2014), minha casa serve a ele. Depois, pela aclamação estrondosa de Brendan Fraser. E, por último, por ser um filme da A24. Virou queridinha da Academia? Virou. Mas não é só da Academia, é que ela é boa mesmo. A maior produtora - e paixão de 11 a cada 10 cinéfilos de Twitter - tem uma lista de sucessos tão absurda que se tornou peça fundamental na produção da Sétima Arte na contemporaneidade - não por acaso, é dona do filme com o maior número de indicações ao Oscar em 2023, "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", também conhecido como o maior ato cinematográfico de 2022.

Mas foquemos em "A Baleia". O filme é um aprofundamento em cinco dias na vida de Charlie (Fraiser), de uma segunda à uma sexta, e como ele tenta se reconectar com sua filha de 17 anos, Ellie (Sadie Sink, de "Stranger Things"). Inteiramente passado dentro de um pequeno e escuro apartamento, com exclusivos takes que mostram o exterior do local, a obra já começa de uma maneira bastante simbólica. Charlie é um professor gay que, em suas aulas à distância, jamais liga sua webcam. A câmera vai se aproximando no quadradinho que deveria ser a imagem do professor, mas que está inteiramente preta pelo desligamento da webcam (que ele mente afirmando que ela está quebrada), e vamos nos afogando naquela escuridão que é a imagem de Charlie para as pessoas - e para ele mesmo.

O professor é um homem com obesidade mórbida. Com quase 300kg, Charlie vive reclusamente, possuindo apenas duas visitas frequentes: Liz (Hong Chau), sua enfermeira; e um entregador de pizza, que jamais o vê. Durante a fatídica semana, também, surge Thomas (Ty Simpkins), um missionário de uma igreja que esbarra em um quase ataque cardíaco de Charlie. O homem pede, ofegante, para que Thomas leia uma ácida resenha de "Moby-Dick", o clássico de Herman Melville que traça um paralelo com a própria vida de Charlie, para a total confusão do missionário. Ali surge, também, uma relação simbiótica, com o objetivo de Thomas se tornando salvar a alma de Charlie, ateu inveterado.

A única relação saudável (afetivamente falando) que Charlie mantém é com Liz, que genuinamente demonstra amor e carinho por ele. Destaquei o "afetivamente" na frase anterior porque, mesmo sabendo que a pressão de Charlie está a horas de explodir, ela ainda traz sanduíches para ele, uma pequena ação de "conforto" para o professor - por mais nociva ela seja. Ela clama diariamente que ele vá a um hospital, porém, pelos valores absurdos do sistema médico norte-americano - defenda o SUS -, ele se nega. "É melhor está morto de dívidas do que morto", pontua Liz.

Mais à frente, descobrimos o principal motivo para a negação de Charlie, contudo, fica implícito que sua atual forma também é uma grande razão para isso. Há muito preconceito com pessoas obesas dentro do meio médico, e Charlie com certeza não quer passar por mais um obstáculo. A obesidade por si só é vista com extremos maus olhos por ser a ruptura de dois padrões ao mesmo tempo: o de saúde e o estético. Darren Aronosfky, inclusive, comentou em entrevistas que teve contatos com médicos que se surpreenderam com a carga psicológica do personagem, quase um espanto por ele também ser...... gente.

O âmago do longa está, sem dúvidas, na dinâmica entre Charlie e Ellie. A garota nutre um ódio narcotizante contra o pai por ele ter abandonado a família há 8 anos para viver com o então namorado, Alan. A questão é que Alan morreu, o que fez Charlie entrar em profunda depressão e desenvolver um quadro de compulsão por comida, levando-o ao estado atual. "Você é nojento", vomita Ellie, que logo acrescenta: "Não falo da sua aparência. Mesmo se não fosse gordo você continuaria sendo nojento". A filha é absolutamente cruel com o pai, só aceitando ficar ali quando Charlie oferece dinheiro e ajuda para um trabalho. Mesmo ficando, ela não poupa as doses de crueldade, ofendendo, humilhando e ridicularizando o pai.

Um aspecto bastante inteligente na produção da fita é a maneira como o design de produção e a cinematografia trabalham o apartamento de Charlie. Primeiramente, o ecrã possui um aspect ratio (a proporção da tela) de 1:33, a "tela quadrada". Muito mais que uma escolha imagética, a tela reduzida possui dois efeitos: comprimir a história em um quadrado, aumentando a claustrofobia do todo, e enfatizar o tamanho de Charlie, que parece ainda maior com uma janela tão pequena. É como se a sensação de aprisionamento sentida pelo personagem dentro do próprio corpo fosse transplantada na superfície fílmica. Outro aspecto é: ao contrário do que vemos comumente, o sofá não está encostado na parede, e sim no meio da sala. É um detalhe muito pequeno, mas que faz total diferença no desenvolvimento das relações em cena. Todos os personagens, na imensa maioria das sequências, estão na frente ou do lado de Charlie, seja no sofá ou em alguma poltrona. Ellie, por sua vez, é muitas vezes filmada por trás do sofá. Com uma mobilidade reduzida, Charlie não consegue se virar para trás, enquanto a filha oferece um festival de ofensas. É uma dinâmica que agride por meio da linguagem cinematográfica e uma escolha estética primorosa.

Por um momento, me surpreendi que todos os ataques da garota não eram recebidos da maneira que esperava - com dor -, até entender o motivo: mesmo Ellie odiando o pai, ninguém seria capaz de odiá-lo tanto quanto ele próprio. Charlie também está desesperado para consertar a relação, mais uma carga para que ele aceite o que vier de Ellie. Seria muito fácil cair em chavões rasos da figura do mártir, aquele personagem que aceita todo o peso do mundo por possuir um coração tão bondoso, mas Charlie está longe de ser assim (ainda bem). Ele mesmo assume seu egoísmo em relação ao abandono da família, sua negligência em relação à criação da filha e seu descaso com ele mesmo. Há momentos de pureza, sim, mas também de tortura como poucas vezes já vi. Nos ímpetos de raiva, Charlie come descontroladamente, e é uma dor absurda assistir àquelas cenas.

Ele não come mais pelo prazer de comer, e sim como forma de autodestruição. Cada mordida é uma tentativa de acabar com tudo, e não consigo lembrar de um filme que demonstre esse sentimento de maneira tão crua quanto "A Baleia", e aqui reside o eixo que liga a história com o cinema aronofskyano: a obsessão - a de Nina pelo perfeccionismo em "Cisne Negro", a do marido pela sua obra em "Mãe!", a de Sara pelos comprimidos em "Réquiem para um Sonho" (2000) e a de Charlie por comida. Todas essas obsessões são o combustível que tanto move quanto incendeia os personagens de Aronofsky.

Um fato bastante intrigante é a forma como a peça original foi transposta para a tela. Procurei assistir ao máximo de trechos que encontrei na internet com filmagens de várias montagens no teatro, e todas tinham algo em comum: a plateia gargalhava. A atmosfera no palco era descontraída e leve, assombrosamente o oposto do que vemos no filme, e isso se dá a partir da direção de Aronofsky. Foi realmente histriônico ver as mesmas falas sendo ditas fora do contexto presenciado na fita, quase como se tudo ali fosse uma caricatura, e não algo "real". Não consigo imaginar, mesmo assistindo às cenas, como aquele texto pode soar tão divertido a ponto de arrancar risadas do público, o que catapulta a força do diretor ao transformar a história em algo verdadeiramente impactante. Há, sim, uma cena em específico que possui humor, todavia, até mesmo dentro do contexto do filme é uma risada modesta.

Enquanto na peça a maquiagem é bastante... evidente, no filme é completamente perfeita, e isso é mais um apontamento seminal. A caracterização de Charlie no teatro reforça a áurea de caricatura, e esse seria um resultado desastroso na fita: a seriedade que o trabalho de maquiagem assume é para evitar que "A Baleia" seja um "Norbit" (2007) ou um "O Amor é Cego" (2001). O que esses dois exemplos têm em comum? São comédias que usam maquiagem para transformar atores em personagens obesos. Esses personagens estão ali para te fazer rir, com seus corpos sendo carros-chefes da alegoria. O intuito em "A Baleia" é retirar qualquer sombra de comédia e não tornar o corpo de Charlie em elemento jocoso, e sim uma pessoa completa, que o faz ser um personagem bastante inédito.

Religião, sexualidade, estética, paternidade... O texto de "A Baleia" é recheado de camadas complexas que se desenrolam brilhantemente, contudo, há um ponto elementar de ser entendido. Aquela semana de Charlie é o resultado de um longo processo causado pela homofobia. Alan, seu finado parceiro, se suicida pela culpa cristã diante da sua sexualidade, o que acarreta toda a trama. Ao contrário da maioria dos filmes LGBTQIA+ que orbitam ao redor do preconceito e de como a vida dos seus indivíduos são acometidas por esse preconceito, "A Baleia" é um "pós". Pensemos em "O Segredo de Brokeback Mountain" (2005), por exemplo: "A Baleia" seria uma "continuação", o que ocorreu após o final do filme de Ang Lee, empurrando os efeitos colaterais da homofobia ao máximo. Ninguém agrediu Alan ou proferiu maldições a Chalie - a homofobia aqui é uma mão invisível que enforca seus oprimidos. É um sistema tão violento que não precisa de um terceiro para agir, ele invade a cabeça das suas próprias vítimas, kamikazes que sujam as mãos e tiram uma culpa que seria direta.

A carga dramática de "A Baleia" está paralela à insanidade em "Mãe!" - quanto mais a fita progride, maior a tragédia de um e o caos de outro. Somos engalfinhados por um peso emocional raro com a aproximação do fim em diálogos memoráveis pela dureza - quando Charlie fala que não quer que exista uma vida após a morte para que Alan não o veja naquele estado foi um soco no estômago. Curiosamente, mesmo com toda a dor do texto, "A Baleia" possui o final mais esperançoso de toda a filmografia de Aronofsky, no entanto, chegar até lá é uma tortuosa viagem que com certeza não agradará a todos. A cereja do bolo que refletiu o status de obra-prima para "A Baleia" veio quando, na cena final, em uma revelação que amarra toda a história, uma pessoa sentada ao meu lado na sessão levou as duas mãos ao rosto em completo frenesi. É a beleza da tristeza e a feiura da alegria em um dos mais arrebatadores finais da década, que arrancaram minhas lágrimas como nunca antes diante da Sétima Arte.

P.S.: todo o elenco de "A Baleia" está fenomenal - Sadie Sink literalmente faz o papel da sua vida -, entretanto, o que Brendan Fraser entrega é um milagre. Se houver justiça, o Oscar de "Melhor Ator" é dele.

Os 25 melhores filmes de 2022



Provavelmente 2022 foi um dos anos mais rápidos do século? Talvez por finalmente estarmos (quase) 100% de volta à realidade normal depois dos anos tenebrosos de quarentena, então decidimos viver tudo o que fomos impedidos. Em um ano da retomada com tudo na Sétima Arte, finalmente estamos podendo, em grande escala, apreciar o Cinema novamente. Então é claro que eu teria que vir com meus filmes favoritos de 2022.

Caso você já conheça o Cinematofagia, o foco aqui sempre foi e sempre será a busca por filmes que não necessariamente estejam no radar na grande indústria - principalmente quando olhamos para a distribuição brasileira, que nesse ano está bastante aquém, com atrasos de meses em comparação com estreias internacionais, inclusive de países minúsculos. Mas no fim deu tudo certo, e essa lista visa celebrar o melhor do Cinema.

De indicados ao Oscar a pérolas de todos os cantos do mundo, os critérios de inclusão da lista são os mesmos de todo ano: filmes com estreias em solo brasileiro em 2022 - seja cinema, Netflix e afins - ou que chegaram na internet sem data de lançamento prevista, caso contrário, seria impossível montar uma lista coerente. E, também de praxe, todos os textos são livres de spoilers para não estragar sua experiência - mas caso você já tenha visto todos os 25, meu amor por você é real - e aqui a lista no Letterboxd para você marcar quais já viu.

Sem mais delongas, meus 25 filmes favoritos de 2022:

 

 


25. Athena (idem) 

Direção de Romain Gavras, França.

Uma grata adição para o catálogo da Netflix, "Athena" tem menos de 100 minutos, mas é um verdadeiro épico. Com a morte de um garoto pela polícia, uma rebelião que atinge toda a França gera um impacto sem volta. Tendo como foco principal o conjunto residencial Athena, local onde a família do garoto assassinado mora, a fita é uma eletrizante epopeia sobre a sede de justiça que nos relembra a glória do Cinema pelas cenas de explodir a mente: desde a impressionante sequência inicial até os travellings sobre o Athena, a obra é um portfólio espetacular de uma arte inigualável. Não foi uma surpresa quando os créditos informam que Ladj Ly - diretor do maravilhoso "Os Miseráveis" (2019), foi um dos roteiristas de "Athena".


24. Vórtex (Vortex) 

Direção de Gaspar Noé, França/Bélgica.

Gaspar Noé já marcou seu nome (para o bem ou para o mal) na história do Cinema com seus filmes extremos - destaque para "Irreversível" (2002), "Viagem Alucinante" (2009) e "Clímax" (2018) -, então foi uma surpresa a abordagem adotada em "Vórtex". Seguindo a vida de uma casal de idosos, "Vórtex" vislumbra com bastante proximidade como a relação dos dois vai sucumbindo a partir da evolução da demência da esposa. Com uma sutileza anormal para o diretor, a obra é a versão noédiana de "Amor" (2012), mas não se engane: mesmo com toda a calmaria de ritmo há uma latente tragédia humana quando o filme olha sem piscar diante da irrelevância que temos sobre esse planeta e como estamos fadados para o esquecimento. Poderia, sim, ter meia hora a menos, todavia, é uma experiência dolorosa e necessária.


23. Argentina, 1985 (idem) 

Direção de Santiago Mitre, Argentina.

Ao ler a sinopse de "Argentina, 1985", você pode ficar com preguiça: o filme retrata os acontecimentos que levaram ao julgamento dos militares responsáveis pela ditadura argentina - entretanto, o que poderia ser só uma aula de história se torna um suspense político nas mãos de Santiago Mitre. Mesmo com 140 minutos, "Argentina, 1985", que está prestes a ser indicado ao Oscar de "Melhor Filme Internacional", é um filme fundamental sobre o uso da esfera jurídica para a reparação história - ainda mais impactante quando a Argentina foi o ÚNICO país da América Latina que julgou e condenou os responsáveis pelas atrocidades da ditadura - aprende, Brasil. A cena do argumento final durante o tribunal é de arrancar lágrimas para qualquer sociedade que já esteve presa na mão de ditadores. Nunca mais.


22. A Menina Silenciosa (An Cailín Ciúin) 

Direção de Colm Bairéad, Irlanda.

Mais um semifinalistas ao Oscar 2023 de "Melhor Filme Internacional", "A Menina Silenciosa" é sobre uma menininha em um lar construído com base na negligência que vai viver com parentes distantes quando sua mãe está prestes a ter mais um filho. O filme irlandês não possui um molde que me agrada: é uma pequena história contada com bastante realismo, contudo, a força de sua narrativa está na belíssima emoção desencadeada pelos personagens, pessoas solitárias em busca de afeto. No fim das contas, todos nós estamos em busca de um espaço que nos acolha verdadeiramente - e "A Menina Silenciosa" prova que pequenas histórias rendem enormes filmes quando contados com muito amor.

 

21. Quanto Mais Cru Melhor (Barbaque)

Direção de Fabrice Eboué, França.

Um casal dono de um açougue enfrenta a recessão e vê seu negócio afundar sem controle - assim como seu casamento. Quando um crime acontece - o assassinato de um homem vegano -, a carne do falecido vai parar na prateleira do açougue, virando sem querer a mais nova iguaria para a clientela que forma filas. É aí que o casal vira caçadores de veganos. Sim, é isso aí. "Quanto Mais Cru Melhor" não tem papas na língua no politicamente incorreto ao abordar discussões hilárias em que rimos com a mão na consciência, numa contraposição de veganos absurdamente insuportáveis e seus protagonistas desprezíveis. O banquete visual é servido com cenas gráficas explícitas que evocam toda a bizarrice de sua premissa.

 


20. O Acontecimento (L'événement)

Direção de Audrey Diwan, França

Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, "O Acontecimento" vai até a França da década de 60 quando uma universitária descobre que está grávida. O desespero da menina está à flor da pele, mas não o suficiente para impedi-la de buscar meios fora da lei para conseguir um aborto. Com um dos temas mais polêmicos da atualidade, "O Acontecimento" estuda um tempo quando o aborto era um tabu ainda mais forte - apesar de não termos evoluído tanto assim 60 anos depois. A menina é abandonada por todo mundo e se vê obrigada a buscar meios brutais que rendem cenas desconcertantes - mas importantes - sobre como a criminalização do aborto é uma violência. De fato, "O Acontecimento" é um dos melhores filmes já feitos sobre a temática.


19. Crimes do Futuro (Crimes of the Future)

Direção de David Cronenberg, Canadá/Reino Unido.

David Cronenberg voltou para a ficção-científica, podemos dormir em paz. 23 anos após seu último sci-fi, Cronenberg retorna com "Crimes do Futuro" ao lado de três enormes nomes: Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristen Stewart. Um futuro não definido possui humanos com mutações genéticas que afetam dois pilares fundamentais de suas existências: eles não sentem mais dor e infecções deixaram de existir. Soa incrível, não? Só soa. Essa distopia cronenberguiana é tudo o que diretor serviu com "Videodrome" (1983) e "A Mosca" (1986): uma bizarrice estética que tenta apontar o dedo para a forma com que nos relacionamos. De fato, o começo da fita é bastante hermético, sem espaços para grandes aproximações, no entanto, quando a chave do sentido é girada, todo aquele estranho universo onde a cirurgia é o novo sexo encontra lógicas espetaculares.

 

18. Ao Cair do Sol (Sundown)

Direção de Michel Franco, México/França.

Michel Franco está entre os meus cinco diretores favoritos da atual geração em seu cinema pessimista e misantropo - é dele três dos melhores filmes dos últimos anos: "Depois de Lúcia" (2012), "As Filhas de Abril" (2017), e meu filme #1 de 2020, "Nova Ordem". "Ao Cair do Sol" não fica atrás: uma família passa férias no México, porém, todos devem voltar ao saber que a matriarca morreu. A questão é que Neil (Tim Roth) faz todo e qualquer malabarismo para não sair dali, o que perturba sua irmã, Alice (Charlotte Gainsbourg). O cerne do texto é esse, por que diabos Neil inventa qualquer desculpa para não voltar para casa? Com uma apatia destoante, "Ao Cair do Sol" é um afiado estudo de personagem que não abre mão do seu segredo até os últimos minutos, quando toda a viagem desgraçada de Neil faz sentido.

 

17. As Bestas (idem)  

Direção de Rodrigo Sorogoyen, Espanha/França.

Um casal francês se muda para um vilarejo nos confins da Galiza - comunidade autônoma no norte da Espanha - para viver sua vida eco-friendly e restaurar casas abandonadas. O problema é que uma grande empresa quer comprar as terras do local, e, ao contrário de todos os outros moradores, o casal não quer vender a propriedade. Isso cria uma animosidade entre os nativos e os estrangeiros, afogando a situação em xenofobia e violência. "As Bestas" possui atuações brutais, uma fotografia estonteante e um roteiro que escalona a situação até alcançar medidas extremas e impiedosas que balanceiam um jogo de interesses que, apesar de opostos, fazem completamente sentido para suas partes.


16. A Morte de um Cachorro (La Muerte de un Perro)

Direção de Matías Ganz, Uruguai/Argentina.

Há um sub-sub-gênero (vou chamar assim) no Cinema que tenho particular deleite: histórias que possuem um pequeno acontecimento se tornando o caos, uma Lei de Murphy cinematográfica. "A Morte de um Cachorro" se enquadra nesse hall: Mario é um veterinário em Montevidéu que, após um descuido no trabalho, acaba matando um cachorro; a partir de então, sua vida tranquila e burguês vira de cabeça para baixo. A cada segundo há mais pessoas envolvidas na bagunça que Mario conduz sem freio, que gera brigas, roubos e mortes, até desbocar em um final genialmente cara de pau. Não dá para acreditar no quão cretinos conseguem ser os personagens para limpar a própria pele, e cabe à plateia se divertir com o desespero de todos os presentes - incluindo o cachorro da família. Ninguém escapa.

 


15. Suave & Silencioso (Soft & Quiet)

Direção de Beth de Araújo, EUA.

O nome da diretora já entrega: sim, ela tem os pés no Brasil. Nascida nos EUA, mas com cidadania tupiniquim, Beth de Araújo dirige a fita mais revoltante de 2022, de longe. É verdade que o próximo da lista tem cenas bem mais chocantes, porém, o que assombra no filme de Araújo é a proximidade com o real e o atual. Minha sessão foi ainda mais forte quando sentei diante do filme sabendo NADA acerca, e nunca pensei como uma simples torta, símbolo das iguarias norte-americanas, poderia derrubar meu queixo. Filmado inteiramente sem cortes - a câmera só desliga no último segundo após ligada -, "Calmo & Silencioso" é o terror do ódio moderno com violento poder em texto e imagens.


14. Não Fale o Mal (Speak No Evil)

Direção de Christian Tafdrup, Dinamarca/Holanda

O nome de Christian Tafdrup ainda não é tão difundido nas rodas de Cinema, e isso deve ser mudado pra já com "Não Fale o Mal". Uma família dinamarquesa está de férias e conhece uma simpática família holandesa. Com a barreira linguística não existindo, os adultos formam uma amistosa ligação, que recebe o convite para um estreitamento ainda maior quando os dinamarqueses são convidados para um fim de semana na casa dos holandeses. É aí que a amizade vai por água abaixo. "Não Fale o Mal" é perverso, não tendo piedade com seus personagens e, consequentemente, com a plateia, ao atirar a todos em situações desconcertantes que escondem um segredo repugnante, tudo baseado em uma fuga de conflitos que, apesar de soarem forçadas vistas de fora, são plausíveis em sentidos amplos. E desolam.

 

13. Não! Não Olhe! (Nope)

Direção de Jordan Peele, EUA.

Existem filmes e existem experiências, e o foco principal de "Não! Não Olhe!" é o espetáculo. O terceiro terror de um dos mestres da atualidade, Jordan Peele - vencedor do Oscar pelo já clássico "Corra!" (2017) - continua seu mais-que-necessário cinema negro com uma família que é perseguida por um e.t. que decidiu transformar em casa o céu da fazenda dos protagonistas. Com performances ímpares de Keke Palmar e Daniel Kaluuya, "Não! Não Olhe!" é uma fita para ser degustada na tela gigante, com um som poderosíssimo que emoldura a maior sessão pipoca de Terror do ano e que eleva à uma nova potência o Terror alienígena - e que design belíssimo o do bichinho.

 

12. Até os Ossos (Bones And All)

Direção de Luca Guadagnino, Itália/EUA.

Luca Guadagnino é célebre por "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017), mas seu melhor filme é, sem a menor dúvida, "Suspíria: A Dança da Morte" (2018), remake do clássico de 1977. Então o italiano sabe fazer um terror, e prova mais uma vez com "Até os Ossos". Uma menina é abandonada pelo pai aos 18 anos por não conseguir lidar com a natureza dela: ela é canibal. No universo do filme, canibais são uma espécie diferente de seres humanos, que nascem com a necessidade de ingerirem carne humana e com a capacidade de identificarem outros canibais pelo olfato. Ao ser abandonada, ela parte para descobrir o mundo e a si própria ao lado de outros canibais, se apaixonado por um que tem mais experiência na caçada. "Até os Ossos" passeia pelo drama, romance e terror com cenas que misturam ternura e gore na mesma medida. O significado final do título é arrasador.

 

11. Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin)  

Direção de Martin McDonagh, Irlanda/Reino Unido.

Martin McDonagh havia uma tarefa difícil: fazer um filme tão bom quanto "Três Anúncios Para Um Crime" (2017), um dos melhores da década passada. Parabéns, McDonagh, você conseguiu. "Os Banshees de Inisherin" volta 100 anos no tempo, em uma Irlanda assolada pela guerra civil. Se de um lado as bombas ecoam pelo país, do outro, em uma pequena ilha, a guerra é entre dois amigos: do dia para noite, um dos homens para de parar com o outro, o que destrói a vida de todo mundo. Com atuações perfeitas de Colin Farrell e Brendan Gleeson, "Os Banshees" é uma tragicomédia irretocável que alcança níveis cada vez mais absurdos no conflito dos (até ontem) amigos e como o desprezo é pior do que o ódio.



10. A Tragédia de Macbeth (The Tragedy of Macbeth)

Direção de Joel Coen, EUA.

Devo confessar que minha animação para "A Tragédia de Macbeth" não era das maiores. Apesar de ser dirigido por Joel Coen (a metade da dupla Joel & Ethan, donos da obra-prima "Onde os Fracos Não Têm Vez", 2007) e com um elenco estrelar, a adaptação do conto de William Shakespeare não soava tão interessante, todavia, o espetáculo que é a película derruba qualquer dúvida. Quando um trio de bruxas proclama o trono para Macbeth, sua saga para a glória e a queda afeta a vida de todos a sua volta. Com um dos melhores designs de produção e cinematografia já feitos na história do Cinema, Denzel Washington e Frances McDormand carregam a história com um poder avassalador, sem jamais tornar desinteressante um roteiro que é falado em inglês arcaico (!).

 

09. A Caixa (La Caja) 

Direção de Lorenzo Vigas, Venezuela/México.

O representante venezuelano para o Oscar 2023 - e que infelizmente não figurou entre os semifinalistas -, "A Caixa" é uma curiosa história de um garoto que é mandado pela avó para resgatar os restos mortais do pai, que foi encontrado em uma vala clandestina. Após recuperar a caixa com a ossada do pai, ele, no ônibus de volta, avista um homem que ele jura ser o pai. A partir de então, a vida do garoto e do homem muda pra sempre. "A Caixa" é um estudo de situação com potência incrível ao analisar como funciona a paternidade - seja real ou "emprestada" - e a maneira como elementos machistas são transpostos de pai para filho. O menino faz de tudo para poder receber um amor que nunca teve, porém, vale mesmo a pena?


08. Deserto Particular (idem)

Direção de Aly Muritiba, Brasil.

Um policial afastado do cargo por má conduta mantém um relacionamento virtual com uma misteriosa mulher que desaparece sem deixar rastros. Ele sai do sul do Brasil até o Nordeste a fim de encontrar a amada, só para descobrir que ela não é uma mulher cis, e sim uma pessoa não binária. Aly Muritiba ficou conhecido pelos seus pesados e obscuros filmes - assista a "Ferrugem" (2018) - e decidiu mudar seus ares com "Deserto Particular", um drama com toques de romance que mergulha de cabeça em discussões de gênero e sexualidade com uma delicadeza perspicaz.  Não apenas um dos melhores filmes do Novíssimo Cinema Nacional, uma das mais certeiras escolhas de representantes para o Oscar, como também um exemplar fabuloso do cinema LGBTQIA+.

P.S.: "Deserto Particular" estreou no Brasil no finzinho de 2021 em circuito limitado, chegando na HBO Max em 2022, então vai entrar na lista de 2022 sim, a lista é minha e é isso.


07. Red Rocket (idem)

Direção de Sean Baker, EUA.

Na minha casa, nós louvamos Sean Baker. O coração da sua filmografia gira em torno da observação de grupos que, por motivos que sejam, caem no trabalho sexual - as travestis de "Tangerina" (2015), a mãe da protagonista de "Projeto Flórida" (2017), etc. Em "Red Rocket" temos Simon Rex como Saber, um ex-ator pornô cujo sucesso é apenas uma memória. Tendo que retornar para a cidade que prometeu nunca mais por os pés, ele conhece e se apaixona por Raylee (Suzanna Son), uma atendente menor de idade. O trunfo de "Red Rocket" é ver até onde conseguimos detestar o carismático Saber, um poço aparentemente sem fundo de trambicagens, roubos e sim, pedofilia. O questionamento principal é: o Cinema deve ter uma moral intocável e sem espaço para dúvidas? Ou ele pode analisar personagens odiosos sem precisar transformá-lo em exemplo? É uma discussão complexa, e Baker assume o risco de não poupar o caráter tenebroso de seu protagonista em prol de uma punição explícita na ficção.

 

06. O Bom Patrão (El Buen Patrón) 

Direção de Fernando León de Aranoa, Espanha.

"O Bom Patrão" foi um fenômeno sem precedentes na Espanha. O filme de Aranoa recebeu absurdas 20 indicações no Goya (o Oscar da Espanha), vencendo seis, incluindo "Melhor Filme", "Direção" e "Roteiro Original". E cada um foi merecidíssimo. O longa é sobre o dono de uma fábrica de balanças que está de olho em um prestigioso prêmio, cujo qual vê sua empresa como finalista. Faltando uma semana para o comitê da premiação vistoriar a fábrica a fim de fecharem a votação, o patrão está disposto a resolver todo e qualquer problema que possa interferir na fachada perfeita do lugar. Com uma atuação brilhante de Javier Bardem como o presidente da empresa, "O Bom Patrão" é um malabarismo insanamente divertido de um homem ambicioso e manipulador que passa por cima de qualquer limite em busca de uma placa para por em sua parede.

 


05. Santa Aranha (Holy Spider)

Direção de Ali Abbasi, Dinamarca/Suécia.

O iraniano Ali Abbasi está há pouquíssimo tempo na indústria cinematográfica, mas já nos presenteou com a obra-prima "Fronteira", meu filme favorito de 2018. Agora ele retorna com mais um espetacular filme: "Santa Aranha" remonta a história real de Saeed Hanaei, um serial killer que assassinou 16 garotas de programa no Irã para "limpar as ruas da impureza". A obra se divide entre dois pontos de vista: de Saeed e suas "justificativas" e da jornalista Arezoo, que arrisca sua vida para capturar o psicopata. A dinâmica da película é certeira ao abandonar o velho "quem será que é o culpado?" para desenvolver as motivações contrastantes dos dois protagonistas. E, por ser uma história real, é ainda mais triste como ainda existem culturas completamente misóginas, com o caso tendo apoio da mídia e do povo, afinal, Saeed era um cavaleiro de deus.


04. O Homem do Norte (The Northman)

Direção de Robert Eggers, EUA.

Em sua terceira excursão para contos do séculos passados (depois das obras-primas "A Bruxa", 2015, e "O Farol", 2019), Robert Eggers entrega mais uma obra-prima que amplia a mitologia de seu cinema, sempre dançando entre o fantástico e o terror com uma assinatura própria espetacular para um autor tão jovem. Pegando a plateia pelo pescoço e forçando-a a embarcar em um barco que está fadado ao sangue, todas as profecias ditas através da boca de bruxas conduzem histórias em que a natureza (seja a do planeta ou a nossa própria) está presa a grossas cordas do destino. Resta a você acompanhar o degringolar dos personagens "eggerianos", pobres vítimas de forças sobrenaturais que turvam as suas missões de descobrirem quem são. "O Homem do Norte" é tudo que você poderia esperar de uma saga viking milionária assinada por Robert Eggers.


03. Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness)

Direção de Ruben Östlund, Suécia/França.

Ruben Östlund conseguiu um feito que poucos podem ter no currículo: vencer a Palma de Ouro (o "Melhor Filme" do Festival de Cannes e a maior honraria de um festival cinematográfico do mundo) com dois filmes consecutivos: "A Arte da Discórdia" em 2017 e agora em 2022 com "Triângulo da Tristeza". O core do cinema "ostlundiano" é a crítica de diversas formas culturais e sociais das camadas mais altas da sociedade, e "Triângulo" vai até um luxuoso cruzeiro cheio de milionários e a maneira assustadoramente patética que eles vivem afogados por tanto dinheiro. Com um dos roteiros mais brilhantes da década, "Triângulo" é um exercício magistral


02. Faces do Medo (Men)

Direção de Alex Garland, Reino Unido.

Alex Garland já surgiu na indústria com o pé na porta ao lançar "Ex Machina: Instinto Artificial" (2014), e cunhou ao longo dos anos um cinema que mistura ficção científica com discussões sobre nossas vidas e regras. "Os Homens" segue a mesma ideia, com uma mulher que, após o suicídio do marido, se isola em uma vila no meio do nada para superar o luto. A grande questão é: todos os homens da vila são exatamente iguais (e criativamente performados pelo mesmo ator, Rory Kinnear). O título pode ser muito óbvio, mas "Os Homens" é uma odisseia bizarra e claustrofóbica que desfila uma infinidade de agressões que as mulheres encontram todos os dias, sem cair em execuções óbvias - são simbolismos que exigem uma pesquisada ao fim da sessão, principalmente com os 10 minutos finais, uma das sequências mais bizarras do século. E Jessie Buckley está fantástica.


01. Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All at Once)

Direção de Daniel Scheinert & Daniel Kwan, EUA.

Se você acompanha as listas de "Melhores do Ano" aqui do Cinematofagia, já deve ter notado como amo filmes dos confins do mundo, e adoraria que o melhor filme de 2022 fosse algum muito cult de um país longínquo, mas não teve jeito. 2022 é de "Tudo em Todo o Lugar". A maior bilheteria na história da A24, "Tudo em o Todo Lugar" virou um fenômeno sem precedentes; até mesmo a produtora deve ter ficado surpresa. Seguindo uma imigrante coreana em um EUA falido que deve salvar o mundo (ou os mundos), o filme parece pegar carona na temática do momento, os multiversos, porém, com um roteiro concebido em 2010, a fita dos Daniels - que sabem fazer uma obra insanamente contemplativa - é uma aula de qualquer aspecto da Sétima Arte pelo domínio absurdo do material em mãos. Um filme para rir, chorar e contemplar a absurda falta de sentido em nossas pequenas em inúteis vidas, no mais delicioso niilismo cinematográfico possível. Mas é orgânico, viu?

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