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Crítica: com Gaga, roupas de luxo e remix de "I Feel Love”, “Casa Gucci” é um "Poderoso Chefão” gay


Vou começar essa crítica apontando algo que já devo ter apontado em algum(ns) texto(s) dessa presente coluna: não aguento mais cinebiografias. O subgênero (vou chamar assim, mesmo não tão correto) está mais do que saturado em Hollywood - felizmente, a Academia está começando a diminuir o montante de premiações para papéis biográficos - se olharmos para as últimas cinco edições nas quatro categorias de atuação, sete atores levaram um Oscar interpretando algum personagem real - fora os inúmeros indicados. Papéis criados do zero deveriam ser mais bem vistos, a meu ver.

Esse rant é, também, devido aos rumos que o Oscar 2022 se encaminha, apontando mais papéis biográficos nos postos mais altos. Por isso que fui assistir "Casa Gucci" (House of Gucci), do lendário Ridley Scott (diretor de ""Alien: o Oitavo Passageiro", 1979, "Blade Runner", 1982, "Thelma & Louise", 1991, "Gladiador", 2000, e tantos outros clássicos), com um pé atrás.

Outro elemento que garantiu esse pé bem fincado no chão foi a maneira que o filme se vendeu desde o início de sua campanha: o foco era pesadíssimo em cima do elenco, pipocando na tela como todos são Oscar winners e nominees. Claro, isso é um chamariz mais do que efetivo, porém, muitas vezes a estratégia é utilizada para dar luz (e esconder) o óbvio: o que há de bom no filme é seus atores, não o filme em si.


E sim, "Casa Gucci" é mais uma cinebiografia hollywoodiana. O longa conta como a vida da família Gucci foi mudada com o casamento de Maurizio (Adam Driver), o herdeiro do império, com Patrizia Reggiani (Lady Gaga). Ele, no alto do mundo da moda, conhece a filha de um caminheiro em uma festa, recebendo imediata reprovação de Rodolfo (Jeremy Irons), pai de Maurizio, no melhor estilo "o princeso e a plebeia". Ela entende nada de arte, um alerta vermelho para quem habita um dos países com maior apreço pela sua carga cultural do planeta. É claro que ela não pertence àquele universo.

Extremamente ambiciosa, Patrizia se desdobra pra conseguir Maurizio - o início do relacionamento pende bastante para o lado econômico, como se ela estivesse mais interessada na fortuna do pretendente do que nele em si, todavia, o desenrolar dos acontecimentos mostram que sim, Patrizia quer a etiqueta "Gucci" em sua vida, mas também ama Maurizio. E falando no primeiro ato, ele talvez seja o mais irregular da película. Há uma falta de polimento na montagem, com alguns acontecimentos sendo cortados mais cedo do que deveriam (e estamos falando de um filme de 157 minutos), o que pode atrapalhar a imersão de alguns espectadores (apesar de notar as falhas, não foi o caso comigo). Soa como se Maurizio tivesse se apaixonado pela mulher fácil demais.

Rapidamente os dois se casam e então "Casa Gucci" começa de fato. Patrizia conseguiu. Porém, Maurizio tem interesse nenhum em se associar com a marca, controlada por seu pai e Aldo (Al Pacino) - do outro lado, há Paolo (Jared Leto), o filho "idiota e inútil" (esses adjetivos são repetidos inúmeras vezes) de Aldo que almeja levar a empresa para rumos mais, digamos, excêntricos. A Gucci é rapidamente vista como um tabuleiro em que cada peça toma cuidado para dar a próxima jogada.

O filme transita por dois estilos: o melodrama e a sátira, ou seja, é uma obra muito camp. A decisão de Scott neste determinado aspecto mostra que a produção estava ciente do divisor de opiniões que seria a fita - ao invés de focar em um dramão classudo com cara de Oscar - à la "Spencer" (2021), "Casa Gucci" quer transformar sua história em um espetáculo, uma escolha arriscada, e isso se comprova do consenso dividido por parte da crítica: uns amaram e outros acharam irregular.


O ritmo do filme é uma montanha-russa que não dá aviso prévio de quando vai subir lentamente pelo dramalhão e quando vai despencar na comédia - e há momentos realmente hilários, o que surpreende: como uma história sobre jogos de poder, ganância, poder, traição e assassinato pode ser tão leve? Não consigo negar que há algumas moedas de dois lados enormes dentro da exibição, e a maior delas é, com certeza, o personagem de Jared Leto.

Vi em threads no Twitter algumas análises entre os personagens vs. as pessoas reais, e muito foi falado como o Paolo Gucci de Leto tinha nada a ver com o real herdeiro, o que, pelo menos fisicamente, é um fato. Leto está soterrado em maquiagem (alguém aí quer o Oscar da categoria), e Scott empurra o personagem ao máximo, transformando-o em uma caricatura. Já li muito como alguns acharam Paolo o elemento dissonante do longa, contudo, cada momento em que Leto estava na tela era um frescor para mim. Sim, é demasiado e não há tentativas de esconder o peso das escolhas ao redor do personagem, mas é exatamente aí que habitam os dois lados da mesma moeda.

Paolo pode não ser o destaque do roteiro, mas resume muito bem o que é "Casa Gucci": é como um filme da Era de Ouro de Hollywood que se passa em um país ou com uma cultura ~estrangeira: os filmes de Humphrey Bogart, intrigas internacionais com cenários "exóticos" de Alfred Hitchcock ou homenagens à nouvelle vague. Os sotaques que não existem real motivo para existirem (os personagens são italianos, por que falam em inglês?), o exagero de características, tudo é muito nostálgico e delicioso nesse pacote assumidamente cafona (mesmo vestindo roupas de grife).

E falando nos sotaques, um rápido debate. Com tantos graduados em linguística e fonética que surgiram na internet desde o primeiro trailer da obra, muito foi falado sobre os sotaques utilizados, principalmente o de Lady Gaga: ele já foi chamado de russo, alemão, ucraniano e todas as nacionalidades possíveis para apontar como não soava italiano. É só assistir a qualquer vídeo da real Patrizia falando que vemos que o sotaque está igual, porém, não é esse o debate que quero levantar, e sim o seguinte: qual a necessidade absoluta de um filme de ficção ter que ser violentamente igual ao real? Isso não é um documentário, é uma obra fictícia baseada em acontecimentos reais, ou seja, não há qualquer contrato assinado sobre a veracidade. Se tratando de cinebiografias então, a cobrança é ainda maior. Temos que abrir mão desse apego ao real quando o cinema é uma REPRESENTAÇÃO do real - e muitas vezes nem do real é.


Se não bastasse a diversão que é a sessão, ainda temos uma porrada de atuações antológicas. Todos os cinco que compõe o elenco principal merecem uma chuva de elogios (e prêmios), com destaque, evidentemente, à Lady Gaga. Se ela encontrou sucesso com "Nasce Uma Estrela" (2018), em "Casa Gucci" ela rasga o ecrã e carrega o filme nas costas - até nos momentos em que Patrizia não está na tela desejamos que ela retorne o mais rápido possível. Gaga, que cambaleou no início de sua carreira como atriz (não esqueço o Globo de Ouro comprado por "American Horror Story: Hotel", 2015) está consolidada como uma atriz de alto escalação. Conseguir roubar a cena contracenando com AL PACINO (que está irretocável) é prova mais que resoluta de sua competência.

Algo que ficou pairando no ar foi: qual foi a motivação da existência da personagem de Salma Hayek dentro do texto? O letreiro no final informa que sua personagem foi condenada pelo assassinato de Maurizio, entretanto, fiquei em dúvida se realmente existiu essa pessoa. Existindo ou não, a Pina de Salma é bastante descartável - não em termos de atuação, e sim de peso narrativo. Se ela fosse cortada, nada mudaria no enredo, e soa cômico (no mal sentido da palavra) ver a vidente e feiticeira (?) ajudando a cada vez mais tresloucada Patrizia na sua jornada rumo à loucura. Em algumas passagens, pareceu como se Pina existisse apenas na cabeça de Patrizia, ou seja, não precisava estar ali.

De longe, a maior glória de "Casa Gucci" é um feito raramente conseguido por cinebiografias: tudo o que se passou fora do que está na tela é irrelevante. Você não precisa conhecer os personagens, nem suas histórias, nem seus desfechos antes de sentar diante do filme, uma falha recorrente dentro do subgênero. O desenvolvimento de seus personagens, principalmente se tratando de várias jogadas que mudam os rumos de todos, é inteiramente construído no ato fílmico, e você consegue entender perfeitamente as motivações e impactos de cada um, o que foi um alívio tremendo - receava que a fita fosse um "O Irlandês" (2019)

É até estranho colocar tais palavras juntas, mas "Casa Gucci" é um "O Poderoso Chefão" (1972) gay. Intrigas familiares com carregados sotaques italianos, mas adicionando roupas de luxo, remix de "I Feel Love", e, claro, Lady Gaga em cima de saltos agulha e casacos de pele se vingando do marido infiel? Mais queer impossível. O impacto cultural do longa é comprovado no momento em que quase toda a sala do cinema fez o sinal da cruz durante a já icônica fala "Em nome do pai, do filho e da Casa Gucci", e isso vale muito mais do que qualquer prêmio por aí.

O nome dela é Signora Gucci, obrigado.

Crítica: a natureza é a maior (e mais cruel) mãe no conto de fadas de horror “Ovelha”


Atenção: a crítica contém spoilers.

Existe um quadro na parede do meu quarto que informa bem uma das certezas que possuo; nele há a afirmativa "In A24 we trust", quase um mantra. Se você minimamente acompanha o Cinematofagia, já deve saber que a frase é (quase sempre) lei por aqui. Quando a produtora vai para o terror então, é um dos pilares de sustentação do gênero na modernidade - nem preciso discorrer sobre nomes como "A Bruxa" (2016), "Hereditário" (2018), "Clímax" (2019) e "Midsommar" (2019), certo?

Na corrente década, a A24 já prometeu dois novos terrores para se unirem nessa seleta lista de preciosidades, "Santa Maud" (2020) - que desde janeiro habita na lista de melhores do ano, spoiler alert - e "Ovelha" (Lamb), que acaba de chegar na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. "Ovelha" compartilha várias similaridades entre outras fitas da produtora, que já é elemento fundamental da sua filmografia: é o filme de estreia de Valdimar Jóhannsson, diretor e roteirista islandês. A A24 tem apostado em cineastas estreantes em diversos gêneros, acertando com louvor no terror - "A Bruxa", "Hereditário" e "Santa Maud", por exemplo, foram todos filmes de estreia de seus respectivos diretores, e essa característica diz muito não só na forma como a produtora trabalha (apostando em novos talentos) como também na expertise em selecionar projetos de sucesso.


Ao contrário de todos os citados até agora - e da imensa maioria do portfólio da A24 -, "Ovelha" não é falado em inglês. Inteiramente passado na Islândia, o roteiro abraça a língua do país, e tal ponto faz toda a diferença. Em "Ovelha", María (a ótima Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) são um casal de fazendeiros em uma planície gelada do país. Entre cuidar do plantio e de diversos animais, em especial ovelhas, a vida passa de maneira devagar e pacata, sem grandes acontecimentos. O auge acaba sendo o nascimento de cordeiros, com o parto realizado pelos dois, mas até isso já virou atividade corriqueira. Até que um dia um desses pequenos cordeiros choca o casal.



A produção faz escolhas na primeira parte que, apesar de ""frustrantes"", são corretas: demoramos uma boa parte da duração para ver o que assustou os dois. A primeira cena, inclusive, é rodeada de mistério: a câmera é a visão de alguma criatura, que caminha sem pressa até o celeiro onde se encontram as ovelhas. A fita não entrega as peças na tela, deixando o rápido prólogo como estopim nas sombras. É claro que, enquanto plateia, ficamos sedentos de vermos graficamente o que está acontecendo, todavia, imaginar o que está se desenrolando pode ser muito mais intrigante do que de fato ver.

O cordeiro recém-nascido é, de alguma maneira, um híbrido de ovelha com humano - sua cabeça e metade do tronco, até um dos braços, é composto de anatomia ruminante, enquanto o resto do corpo é humano. María e Ingvar acabam "adotando" a criatura e cuidando como se fosse um filho. A faixa temporal na película não é diretamente delimitada, acompanhando com certa precisão a partir do crescimento de Ada (o nome do bichinho), que dorme em um berço do lado da cama do casal.

A calmaria e felicidade da nova família começa a ser perturbada pela ovelha-mãe de Ada, que passa o dia do lado de fora da casa berrando atrás da cria que foi, de certa forma, roubada. María é a mais afetada pelas perturbações do bicho, até que perde a paciência e mata a ovelha - o que ela não sabia era que o irmão de Ingvar, Pétur (Björn Hlynur Haraldsson), acabara de chegar na fazenda e viu todo o ocorrido.



É claro que Pétur não vai entrar no conto de fadas de bom grado - a presença de Ada é uma aberração para ele, reforçado pela maneira que o casal lida com a situação: como se fosse a coisa mais natural do mundo. Fica ainda mais desconcertante quando descobrirmos que "Ada" não foi um nome sem propósito: esse era o nome da filha de María, que morreu em algum momento e de alguma forma não explanada.

Pétur perfura a bolha de fantasia quase histriônica da obra e traz mais elementos dramáticos que dão mais luz à trama. Ele, sempre que o irmão vira as costas, faz investidas sexuais em cima de María, que, apesar de negar, não parece se surpreender, o que demonstra que há uma história ali. Decidido a dar um ponto final naquele absurdo, Pétur tenta matar Ada, contudo, na hora H, desiste, se transformando em uma figura paterna. Aqui acende uma luz vermelha.

Talvez, e esse é um enorme "talvez", Ada (a filha morta) não era de Ingvar, e sim fruto de uma traição de María com Pétur. Com a chegada de Ada (a pequena ovelha), María a acolhe como sua em uma desesperada tentativa de reparação do passado - ela seria "genuinamente" filha do casal. O encantamento pela resolução e substituição do erro é tão grande que Ada se torna o ímo da felicidade dos dois, que a defendem a qualquer custo. A montagem e fotografia (belíssima, mas isso não é difícil, ligar uma câmera em qualquer lugar da Islândia é garantia de imagens perfeitas), no momento em que Pétur está com a arma apontada para Ada, foca na troca de olhares entre o homem e a criatura, e há uma áurea de ternura ali, comprovada pelo próximo corte em que Ada está dormindo no colo de Pétur. Ele viu ali a representação da filha perdida.



A atmosfera denota uma fixação de todos por Ada, talvez um simbolismo que também fomente uma teoria gerada pelo roteiro. É curioso que o animal escolhido seja um cordeiro - poderia ser facilmente um cavalo ou qualquer outro encontrado no cenário rural, então por que um cordeiro? O animal tem fortíssima referência religiosa, sendo, na mitologia cristã, a representação de Jesus, o Agnus Dei. Ada, de certa forma, é o messias daquela família, sendo a salvação e razão para María e Ingvar - até mesmo o problemático Pétur é arrebatado pela pureza da "criança".

Os nomes escolhidos para os poucos personagens não devem ter sido sem propósito. "Ada", em dialeto do povo Aro, na África, significa "a primeira filha", e "nobreza" em origem alemã. "Ingvar" é um antigo nome escandinavo que significa "protegido por deus". "Pétur" é a derivação islandesa do nome "Pedro", que foi um dos 12 apóstolos de Cristo. E "María" dispensa maiores descrições. Até o nascimento de Ada remonta a vinda do salvador na manjedoura.

No clímax da obra, finalmente vemos quem é o pai verdadeiro de Ada, a criatura que acompanhamos no prólogo: uma mistura de homem com bode, ele mata Ingvar e leva Ada embora, para o desespero de María, que perde o marido e a filha em um só golpe. Se você assistiu "A Bruxa" ou tem conhecimento das escrituras bíblicas, a figura da pai é ligada diretamente com Satanás, em uma mistura alucinada dessa mitologia específica - o diretor ainda afirmou que o enredo não é baseado em algum folclore islandês ou da região. Ada pode ter sido uma redenção para a família, mas ela não era deles. Ao ser roubada, a cordeirinha sai de glória à ruína num piscar de olhos.

É bem claro que um longa como "Ovelha" não será de largo apelo popular por inúmeros motivos - o ritmo lento, a ambientação contemplativa, as alegorias complexas, a falta de explicações diretas e até mesmo a língua acabam afastando -, sendo um daqueles filmes que precisam ser digeridos para não ficarem na superfície do "o que diabos foi isso?". Mais um pilar na nova onda de horrores que focam no drama ao invés da gratuidade que muitos exemplares do gênero acabam caindo, "Ovelha" é um estudo declaradamente estranho sobre a morte, a culpa e como encontramos nas mais diferentes coisas um motivo para nos trazer a felicidade. No fim das contas, a moral é que a natureza é a maior mãe de todas, e com ela é olho por olho e dente por dente.
 

REVIEW: Lil Nas X nos convida a mergulhar no infinito complexo e particular de MONTERO

 

Aos 22 anos de idade, a maioria das pessoas pode não ter vivido muita coisa. Mas Lil Nas X de fato já viveu. Foi ainda aos 20 que, ao lado de Billy Ray Cyrus em “Old Town Road”, ele quebrou recordes da Billboard Hot 100 e passou 19 semanas no topo da parada dos Estados Unidos. Homem, negro e gay, Montero Lamar Hill teve um começo de carreira tão grandioso e histórico que dificilmente passaria batido. E o cantor, nascido e crescido no estado da Georgia, embarcou de vez no mainstream e logo teve os olhos ofuscados pelos holofotes da mídia e da indústria.

Se engana você que acha que de lá para cá as coisas foram fáceis. Lil sempre adotou uma postura autêntica e destemida ao falar sobre sua sexualidade de forma aberta e orgulhosa, se tornando um dos símbolos da nova geração de artistas LGBTQIA+.. Até que em março deste ano ele lançou “MONTERO (Call Me By Your Name)”, como lead single de seu debut álbum, e abalou as estruturas do pop.

As polêmicas foram imensas, dignas das grandes divas pop. As diversas referências a ícones e símbolos religiosos o fizeram persona non grata entre os conservadores. A Igreja Católica criticou. O mundo pop não só amou, mas elevou as expectativas sobre o que o artista estaria preparando para seu disco de estreia. Estetica e conceitualmente, já era claro que esse seria um dos destaques de 2021. Batizado de “MONTERO”, o disco quase homônimo prometia trazer um Lil Nas X independente, empoderado e livre das amarras que eventualmente poderiam o ter prendido quando ainda engatinhava (com muita cautela) e conhecia essa indústria por vezes tão ingrata.

Mas o que se viu – ou melhor, se ouviu – a partir da última sexta-feira, no entanto, foi revolucionário, extremamente vulnerável, pessoal e autêntico. Com 15 músicas - quatro delas em parceria com outros artistas, como Miley Cyrus, Doja Cat e Megan Thee Stallion, além da já lançada com Jack Harlow - MONTERO nos leva a uma jornada de vulnerabilidade, orgulho e inconstância sobre o que é ser Lil Nas X, mas mais do que isso: também expressa os sentimentos de uma geração confusa, insegura e que não tem certeza alguma de como será o dia de amanhã. 

Sem mais delongas, confira abaixo a nossa análise faixa a faixa do disco que conquistou nossos corações:

"MONTERO (Call Me By Your Name)"

O smash hit lançado em março e que abriu as portas da era Montero também é competente em abrir o disco. Aqui, Lil Nas X dá um pequeno spoiler do que vem nos próximos 38 minutos de disco. Melódica e liricamente, o artista ainda não entrega todo seu potencial logo de cara, mas nos convida a entender o mundo a partir do seu ponto de vista. Assim como seu nome de batismo, MONTERO apresenta um Lil Nas X se entregando aos socialmente ditos “pecados da carne”, enquanto na verdade aceita e abraça a própria sexualidade. Sem amarras, muito menos culpa.

"DEAD RIGHT NOW"

As intenções do artista ficam mais claras aqui. Nem só de prazeres e aceitações se vive em MONTERO. DEAD RIGHT NOW traz um flow mais lento e intimista que diminuiu o ritmo do disco e dá destaque ao rap do Lil Nas X de hoje que relembra um passado anterior ao de “Old Town Road”, abrindo o coração ao falar sobre todos que duvidaram de seu potencial na música e que, depois de seu sucesso, voltaram a aparecer como se nada tivesse acontecido. Ele também revela a complicada relação com a mãe, que ao beber o agredia. A faixa dois é um recado para essa galera: quem não o apoiou no passado não tem espaço no seu presente.  

"INDUSTRY BABY (feat. Jack Harlow)"

“And this one is for the champions”! Em INDUSTRY BABY, Lil Nas X sabe que venceu. Depois de tantos dias de luta depois do dilúvio, o artista acumula dois hits número 1 da Billboard, conquista fãs ao redor do mundo e se destaca como um dos maiores nomes do pop (e do rap) da nossa geração. A co-produção de ninguém menos que Kanye West, ao lado do duo Take a Daytrip, complementa com perfeição a letra já poderosa, tornando a faixa grandiosa com riffs e trompetes.

"THAT’S WHAT I WANT"

Assim como todas as outras faixas do disco, a quarta traz um sentimento pessoal de Lil Nas X: a solidão e o consequente desejo de amar e ser amado. Sentimentos também universais e atemporais, mas que ganham relevância ainda maior encaixados em um contexto ainda pandêmico, incerto e inconstante. No final do dia, Lil nos representa ao traduzir em palavras aquilo que temos sentido há tanto tempo. Tudo isso sob uma melodia extremamente radiofônica. Te lembrou algo? Que tal dar uma relembrada em “Hey Ya”, do Outkast?

"THE ART OF REALIZATION"

Única interlude do disco, THE ART OF REALIZATION é essencial para respirarmos e entendermos o que vem pela frente. Aqui, diferente de interludes como as de Chromatica, por exemplo, o destaque vai para um pequeno poema em que Montero se pergunta se tem caminhado na direção certa – mesmo assumindo não ter uma direção.

"SCOOP (feat. Doja Cat)"

Direto e reto, SCOOP repete o mood do lead single do CD agora em uma sonoridade que remete facilmente a algum hit de Drake. Na faixa mais narcisista do disco, Lil Nas X desconstrói as ideias de “THAT’S WHAT I WANT”. Ele está focado em cuidar do corpo e, basicamente, continuar sendo um grande gostoso enquanto aproveita a vida de acordo com seus prazeres pontuais. Ele é claro: não quer conversinha, ele só precisa do cara durante a noite. A participação de Doja Cat, apesar de tímida, é certeira e complementa bem a música. Há quem diga que um feat desses merecesse mais. Mas SCOOP serve uma mescla equilibrada entre o pop e o rap, é gostosa e leve de ouvir e tem tudo para bombar em challenges daquele app que-não-podemos-nomear.

"ONE OF ME (feat. Elton John)"

O encontro de dois ícones LGBTs de gerações diferentes serve uma das músicas mais íntimas e profundas do disco, e inicia de vez o bloco mais “pop” do disco. Mesmo depois de se orgulhar do tanto que conquistou na música e de abraçar e se jogar em seu próprio eu, Lil se mostra vulnerável por ter que seguir se provando em uma indústria machista, homofóbica e racista que sempre o subestimou. Uma música sem dúvida grandiosa, cujo piano de Elton John dá um toque especial. Deixando, no entanto, um gostinho de quero mais.

"LOST IN THE CITADEL"

Auge do pop no disco, aqui o cantor abraça a guitarra e se joga na atual tendência emo, optando por se inspirar no pop rock dos anos 80 enquanto entoa uma letra que fala sobre o fim precoce de uma relação que tinha tudo para dar certo. Mais uma vez, o hitmaker deixa claro seus sentimentos e declara luto, assumindo que precisa de um tempo para se reerguer enquanto segue chorando e relembrando o início de tudo. Quem nunca?

"DOLLAR SIGN SLIME (feat. Megan Thee Stallion)"

Rap chiclete e beat envolvente compõem a nona faixa do disco. Sem vulnerabilidade alguma, Lil Nas X se une a Megan Thee Stallion e com uma autoconfiança gigante repete o que ele já tinha falado em lá em cima: “Eu sou o momento e eles vão ter que me engolir”. Outro hit pronto e certeiro para bombar no app de dancinhas.

"TALES OF DOMINICA"

“Back to Black”, a faixa 10 diminui mais uma vez o ritmo do disco, volta a destacar o violão e os sentimentos mais confusos do nosso anfitrião. Aqui, ele mais uma vez escancara sua vulnerabilidade, relatando como é difícil encarar o passado conturbado que marcou sua história. Em mais uma letra que aumenta o nível de suas composições, Nas X é transparente e assume: nenhuma fama, dinheiro e sucesso no mundo vai apagar de sua memória o que já passou.

"SUN GOES DOWN"

SUN GOES DOWN não foi a música que mais chamou a atenção do editor que vos escreve quando foi lançada no final de maio. Com uma letra indiscutivelmente forte, a faixa ganha destaque e qualidade dentro do contexto do álbum. Apesar de ter uma melodia radiofônica, simples, animada e extremamente agradável aos ouvidos, o single promocional aprofunda sua visitação a uma época em que o bullying corroía sua autoestima e confiança como um jovem gay e negro no sul dos EUA. Dor essa que inevitavelmente faz parte de sua história.

"VOID"

Mas é em VOID que Lamar Hill alcança o máximo de sua melancolia. Definitivamente a mais sentimental do disco, a 12ª música é um mergulho no vazio existencial do próprio autor em busca de cura. Versos poderosos como “Eu acho muito difícil conseguir, muito difícil viver. Me conte o que você sabe, agora antes que eu me vá”. A faixa mais longa da jornada homônima do nosso astro chega a ser curta tamanha intensidade, profundidade e complexidade de seus sentimentos. Um depoimento pessoal e extremamente íntimo que de alguma forma se encaixa a mais um sentimento que a maioria de nós experimentou nos últimos meses.

"DON’T WANT IT"

Depois de tirar a máscara e mostrar sua insegurança nua e crua, Lil Nas X aborda a solidão de uma nova forma. Agora, ele busca a cura. Ou ao menos fazer as pazes com seus fantasmas (do passado e do presente). Em meio a faixas tão memoráveis, pessoais e intensas, a 13ª é uma das menos relevantes. Mas acerta em conduzir-nos à última parte da viagem por MONTERO.

"LIFE AFTER SALEM"

Na mera opinião deste editor, a penúltima música entrega uma das sonoridades mais carregadas do álbum - e isso é uma coisa ótima. A estética emo mais uma vez fica clara com as guitarras (o solo que começa aos 2:40 é de arrepiar), e o ritmo do disco começa mais uma vez a cair. Os vocais de Lil ganham destaque anunciando o fim próximo, enquanto o cantor se entrega mais uma vez à vulnerabilidade de um amor que não correspondeu às expectativas e praticamente clama: “Por que você só não pega o que você quer de mim?”.

"AM I DREAMING (feat. Miley Cyrus)"

Apoteótica e surpreendente, AM I DREAMING parece ter sido propositalmente idealizada, escrita e produzida para fechar o álbum. A presença de Miley Cyrus não poderia ser menos óbvia. Fugindo do lugar comum, a última música aposta nos vocais e nas cordas para deixar clara uma mensagem do autor de que nunca esqueçamos de quem ele é e do que conquistou nessas condições. Recado dado. Depois de uma jornada dessas, vai ficar difícil esquecer quem é Montero Lamar Hill. 

***

MONTERO é grandioso. Não apenas por suas composições, muito menos somente por suas melodias e beats de alto nível. É que o disco nos convida – e realmente nos guia – a uma viagem sobre o passado, o presente e o possível futuro do artista. Viagem essa paradoxal e complexa, pois sonoramente Lil Nas X se apresenta durante o percurso como um artista multifacetado e que explora com sucesso e conforto diferentes ritmos e vibes. Liricamente, também é um disco complexo, de altos e baixos, sem medo de dizer o que pensa e sente, nem de expurgar seus maiores demônios e até mesmo dançar com os mesmos.

Corajoso e ousado, o cantor não só se mostra vulnerável, inconstante, empoderado, carente, feliz, melancólico, orgulhoso ou magoado, mas nos faz sentir da mesma forma: mergulhando em seu infinito particular de uma forma igualmente intensa e autêntica.

Mais do que nunca vivemos um período de incertezas e inconstâncias, dias felizes seguidos de dias horríveis. Melancolia mesclada à esperança, e desesperança mesclada ao orgulho de ser quem somos. O debut do americano é sobre a complexidade e a inconstância dos nossos tempos a partir de uma visão pessoal e única. E se ele acha que tinha algo para provar com o disco, pode considerar a missão concluída.

Ele já mostrou que é o momento. MONTERO é o maior ato pop, hip-hop e rap de 2021. E esse título dificilmente estará aberto a discussões nos próximos meses.



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