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Crítica: "Até o Último Homem" é um filme de guerra gospel pronto para beatificar seu protagonista

Indicados aos Oscars de:
- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Ator (Andrew Garfield)
- Melhor Montagem
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

Depois que Kathryn Bigelow deu uma chacoalhada em Hollywood com "Guerra ao Terror", levando os Oscars de "Melhor Filme" e "Direção" em 2010 (alguém lembra desse?), a cota “filmes de guerra” foi consolidada. Claro, filmes bélicos concorrem (e vencem) o Oscar há muito tempo – “Asas”, o primeiro vencedor do prêmio máximo lá em 1930, é um longa sobre guerra –, porém, nessa nova década, esses filmes têm ganhado grande visibilidade e, quase sempre, saem dentro do mesmo molde.

De “Guerra ao Terror” até hoje, a categoria “Melhor Filme” já abrigou “Cavalo de Guerra”, “A Hora Mais Escura”, “Sniper Americano” e, na edição de 2017, “Até o Último Homem”, indicado a outras cinco categorias. Dirigido por Mel Gibson, que já tem o Oscar de “Melhor Filme” e “Direção” na estante por “Coração Valente”, o longa marca o fim do hiatus de 10 anos do diretor – seu último filme foi “Apocalypto”, em 2006.

“Até o Último Homem” revive a história real de Desmond Doss (interpretado por Andrew Garfield), um médico pacifista que vai à Segunda Guerra se negando a segurar uma arma. Adventista do Sétimo Dia, o moço, que quase matou o irmão quando criança, cresceu num lar bastante religioso onde o mandamento “Não matarás” é o pilar central de sua vida, decidindo, quando vê todos em sua volta se alistando, a ir também à guerra, mas para salvar vidas, não tirá-las.

Imagem: Divulgação/Internet
Aqui já conhecemos o maior trunfo da obra: ele trata como herói um herói de verdade. Em filmes de guerra, muitas vezes o protagonista é posto na figura do salvador da pátria carregando várias facetas negativas. Usando como comparação, Chris Kyle, protagonista de “Sniper Americano”, é condecorado com o título de herói por ter matado mais de 150 pessoas em combate – muçulmanos em sua maioria. Essa alarmante inversão do “herói” é posta de forma naturalizada na fita e nos faz questionar sobre a banalização não só do rótulo, como da vida humana. Desmond Doss, ao contrário, salvou a vida de mais de 70 soldados, o que é um exemplo louvável, principalmente quando inserido dentro do contexto da obra.

Então, sim, Doss é um herói, e “Até o Último Homem” aproveita isso da forma mais batida e óbvia possível: usando a estrutura do "monomito", um conceito que narra uma jornada cíclica da formação de mitos. Christopher Vogler, roteirista de Hollywood, escreveu um memorando para a Disney na década de 80 com o molde para a criação de seus heróis, popularizando a ideia, que já veio da literatura e chega até o jornalismo. Mas qual é a estrutura do monomito? Há diversas variações, mas, basicamente, podemos elencar 10 passos:

1. O mundo comum: o mundo ordinário onde o herói habita antes da história começar;
2. O chamado da aventura: algum problema se apresenta ao herói;
3. A recusa do chamado: o herói hesita a aceitar o chamado, geralmente por medo;
4. O encontro do mentor: o herói encontra um mestre, uma figura superior que o ajudará a enfrentar a aventura;
5. O cruzamento: o herói abandona o mundo comum e entra no mundo mágico;
6. A barriga da baleia: o herói enfrenta uma série de testes, encontra aliados e inimigos;
7. A aproximação: o herói consegue êxitos durante as provações;
8. A prova traumática: uma grande crise de vida ou morte se passa para o herói;
9. A recompensa: após enfrentar a morte, o herói supera seu medo;
10. O caminho de volta: o herói, vitorioso, pode voltar para o mundo comum.

Conhecendo o monomito, vários filmes com esse mesmo percurso passam na sua cabeça, imagino, e “Até o Último Homem” segue cada um deles. Doss mora na Virgínia (1), vê seus amigos indo à guerra (2), mas, com medo e pela pressão da família, contrária ao seu alistamento (3), receia num primeiro momento. Ao conhecer a enfermeira Dorothy Schutte (Teresa Palmer) e se apaixonar num óbvio romance miojo (feito em três minutos, bastou dar uma mexidinha), o jovem decide aprender anatomia para servir como médico na guerra contra o Japão.

Imagem: Divulgação/Internet
Sob comando do sargento Howell (Vince Vaughn) (4), nosso garoto modelo enfrentará, no quartel (5), o inferno nas mãos de todos (6) ao se negar a manusear uma arma, etapa necessária para a formação militar. Numa cena que remete à cena clássica de “Nascido Para Matar” de Stanley Kubrick, Howell grita, joga insultos e intimida os soldados numa manutenção de hierarquia (absurda) dos quartéis, porém, Vince Vaughn não é R. Lee Ermey e jamais convence no papel de sargento linha dura, numa atuação pífia que o roteiro não colabora, inserindo tiradas cômicas (ou, no papel, deveriam ser) que nunca funcionam.

A pressão psicológica sob Doss se torna agressão física quando os outros soldados não aceitam aquele corpo estranho entre eles, espancando o protagonista enquanto dorme. Este, ao invés de denunciar os agressores, prefere fingir que nada aconteceu. “Eu tenho um sono pesado”, diz ele para o sargento. O molde do roteiro é forçar de qualquer maneira a áurea de mártir para o personagem, um ser superior que aceita todas as humilhações em prol do que acredita.

Imagem: Divulgação/Internet
Essa utopia comportamental pode até ter sido o que o real Doss fez em sua vida, mas, em tela, é algo desproposital e que só enfraquece a trama. Doss é posto em posição de messias, preferindo a integridade do “silêncio” a dedurar seus próprios colegas de quartel. Para o longa, esse é o papel de alguém superior. Na verdade, aceitar tal injustiça a troco de nada é só aceitar a posição de babaca mesmo.

Por insubordinação ao recusar-se a segurar uma arma, Doss é preso. Aqui entra Tom (Hugo Weaving), pai do nosso herói, ex-soldado e o estopim para a convicção fora do comum de Doss: alcoólatra e agressivo, Tom tentou matar a mãe de Doss com um revólver num surto de raiva. Ao impedir, Doss prometeu a si mesmo (e a deus) nunca mais segurar uma arma. O pai usa seus contatos no corpo militar para conseguir soltar Doss e permitir que ele vá para combate sem precisar de uma arma, o que fecha o laço narrativo do personagem, ganhando o perdão ao salvar o filho. A esposa de Doss (sim, o pedido de casamento rola ainda na primeira parte do longa) aparece aqui rapidamente para desaparecer pelo resto da obra. Mais figurante do que isso, impossível.

Imagem: Divulgação/Internet
Agora todos os detalhes estão resolvidos e o filme parte para a Batalha de Okinawa, no Japão. Lá, a tropa de Doss descobre que os japoneses estão destruindo o exército americano, o que se comprova no primeiro embate. As cenas de guerra possuem lampejos de condução acima da média, o que fez com que Gibson fosse indicado a “Melhor Diretor”. Ele, famoso por adorar a crueza da morte humana – vide “Paixão de Cristo”, retrata tudo sem pudores e mostra desde cadáveres mutilados a membros decepados. A maquiagem aqui não é lá muito convincente – há exemplares de horror com próteses bem mais reais, mas mostra coragem por parte da produção ao não apelar para os efeitos especiais.

Todos os esforços da fita foram postos nas sequências de guerra, é evidente. Há momentos belamente fotografados, como a subida da tropa americana pela escada de corda no despenhadeiro japonês, até cenas noturnas, onde um pesado filtro azul cobre o cenário. Uma ótima jogada visual foi a utilização de lança-chamas pelos soldados americanos, criando um contraste espetacular entre o laranja do fogo com o verde-acinzentado da guerra.

Imagem: Divulgação/Internet
Enquanto a batalha segue, Doss corre de um lado para o outro tentando fugir das balas e colocando curativos nos feridos. Ao não portar uma arma, o filme consegue criar tensão pela vida do personagem, no meio de um pandemônio segurando apenas ampolas de morfina. Com seu desempenho, ele vai conseguindo ganhar o apreço dos outros soldados, que passam a protegê-lo (7).

Após a batalha, quando a tropa americana desce a encosta, Doss continua sozinho no topo para resgatar soldados feridos. “Por favor, deus, deixe que eu salve mais um”, ele repete, exausto, enquanto dá o sangue para descer os corpos feridos dos companheiros por cordas, mesmo tendo um batalhão japonês em seu encalço, que quase consegue matá-lo (8). No entanto, nem isso o impede de continuar resgatando feridos. Deus estava ao seu lado e ele nada temeria (9).

Imagem: Divulgação/Internet
Com o resgate de mais de 70 soldados, deixados para trás e com morte certa, Doss retorna como o herói absoluto da batalha (10). Soldados que antes o menosprezavam agora o chamam de “milagre”, e ele, sem a menor vergonha do filme, é carregado numa maca ao lado do despenhadeiro como se flutuasse sob as nuvens, igual um santo – artimanha visual feita de forma similar em “Invencível”, quando Angelina Jolie filma a sombra do seu protagonista herói segurando um grande pedaço de madeira, remetendo à crucificação. É a cartada final da beatificação cinematográfica de Desmond Doss.

É inegável o poder dessa história e da importância dela ser contada na tela, porém, “Até o Último Homem” é uma obra extremamente limitada, piegas e cafona, transformada num filme de “guerra gospel” quando a maior preocupação do protagonista à beira da morte é na salvação de sua bíblia ou quando toda a tropa americana para a guerra para ele rezar – fé cristã vence a guerra sim. Há o acerto em não ser uma película ufanista e patriótica, algo que longas de guerra americanos não abrem mão, no entanto, desde a má escalação de Andrew Garfield para o protagonista (que recebeu uma inexplicável indicação a “Melhor Ator”) até o péssimo roteiro, “Até o Último Homem” já pode cair no esquecimento. O filme, não a incrível e louvável história de Desmond Doss.

Crítica: "Moonlight: Sob a Luz do Luar" não é só uma jornada tocante, é uma obra de inestimável importância social

Indicado ao Oscar de:
- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali) *favorito*
- Melhor Atriz Coadjuvante (Naomie Harris)
- Melhor Roteiro Adaptado *favorito*
- Melhor Trilha Sonora
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem

Atenção: a crítica contém spoilers.

Certa vez li que é rara a certeza de estar diante de uma obra-prima. De saber, desde o começo do filme, que sua vida não será mais a mesma depois de ver o que está passando diante dos seus olhos – e digo isso em um sentido maior, já que você (quase) nunca sai de um filme na mesma forma que entrou, mesmo que seja uma diferença mínima. E não dá para discordar dessa lógica. É rara, raríssima essa ciência.

Eu sei, é bastante arriscado apontar isso inserido nessa crítica – spoiler alert: “Moonlight: Sob a Luz do Luar” é uma obra-prima –, já que expectativas podem não ser supridas quando lemos algo tão grande sobre qualquer coisa, mas seria leviano não (tentar) pôr em palavras a magnitude que é o melhor filme do ano em diversas listas de críticos mundo afora: com nota 99 (de 100) no Metacritic, o longa foi eleito o melhor de 2016 por 65 críticos, mais do que qualquer outro (o segundo lugar, “La La Land: Cantando Estações”, ficou em #1 na lista de 37 deles).

Olhando pelo prisma do Oscar, o (desnecessário) cerco formado para o prêmio máximo da noite é entre “Moonlight” e “La La Land”, como se tivéssemos que tomar partido entre um deles e torcer contra o outro ao invés de aceitar a possibilidade de gostar de ambos. Mesmo com o favoritismo de “La La Land”, “Moonlight” ainda é o filme mais premiado da temporada: foram, até agora, 141 prêmios contra 134 do musical de Damien Chazelle.

Excluindo todo esse cenário que, mesmo sendo divertido de acompanhar, é irrelevante no sentido puro da arte que é o cinema, “Moonlight” é dirigido e roteirizado por Barry Jenkins, baseado no projeto “In Moonlight Black Boys Look Blue” de Tarell Alvin McCraney (Oscar de “Melhor Roteiro Adaptado” é obrigação). O filme traça a vida de Chiron durante três fases: infância, adolescência e maturidade. Semelhanças com a premissa de “Boyhood: da Infância à Juventude” são naturais, ambos focam, cada um numa maneira, no amadurecimento de seus protagonistas, porém, em “Moonlight”, a liberdade de não ter que filmar durante doze anos (o que “Boyhood” tem de melhor) deu ao roteiro uma coesão primordial para o sucesso da fita.

Imagem: Divulgação/Internet
Chiron, chamado então de “Little” (e interpretado por Alex Hibbert), é uma criança negra perseguida por colegas de escola aos gritos de “Pega esse viadinho”. Acuado e escondido num prédio abandonado para não apanhar, Juan (Mahershala Ali), um traficante local, ajuda o garotinho, muito assustado, e o leva para lanchar, mesmo sendo sumariamente ignorado pelo pequeno, que não abre a boca. Depois, na casa do homem, Little conhece Teresa (Janelle Monáe), namorada de Juan, e juntos começam a construir um laço quase familiar. O motivo? A criança não possui seio familiar que o acolha e o entenda, já que sua mãe, Paula (Naomie Harris), é abusiva e viciada em drogas que está mais preocupada em suprir sua dependência do que com a criança.

O único amigo na escola de Little é Kevin (Jaden Piner), uma das poucas pessoas que consegue se conectar com o retraído garoto. Mesmo achando-o “estranho”, ele tenta ajudar Little a enfrentar a situação com os outros meninos da escola, mandando “mostrar firmeza pros caras”. “Mas eu não sou firme”, responde Little. “Eu sei, mas eles não precisam saber”. A diferença de atitude das duas crianças é evidente, com Little não sabendo o que fazer e como agir diante da masculinidade dos outros meninos, aflorando mesmo numa idade tão precoce.

Imagem: Divulgação/Internet
Num paradoxo bastante interessante, Little consegue ser natural junto com Juan, um homem adulto. Este não trata Little como um ser diferente, e sim um ser à procura de sua verdade e sua identidade. O homem consegue entender o garoto. Numa das cenas mais belas do longa, Juan leva o menino até o mar e o ensina a nadar – nota: Ali estava realmente ensinando Hibbert a nadar no momento. “Eu estou te segurando. Eu prometo, não vou te soltar”. Juan se torna uma figura quase paterna, estando mais presente na vida de Little que a própria mãe, alguém que irradia sentimentos negativos – até para o espectador.

E um dos detalhes mais importante nessa relação é o fato de que a masculinidade do menino não é questionada na presença de Juan, ao contrário dos outros machos em sua volta. Durante essa época de descobertas, Little vê os garotos explorarem seus corpos (em conjunto, inclusive) enquanto ele não se atreve a participar, já que sua sexualidade é um confronto de identidade. Há um misto de curiosidade e confusão em querer conhecer outros corpos masculinos, ainda mais dentro de um sistema onde isso, vindo de um homem, é algo condenável.

E o próprio meio molda o indivíduo. A marginalização social daquelas pessoas negras torna suas vidas algo duro, então os mesmos se encontram numa posição de endurecimento de si para poder lidar com a situação. Nem mesmo os mais novos fogem desse ciclo vicioso, repetindo os arquétipos sociais dos mais velhos em prol da sua sobrevivência e inclusão de suas identidades naquele meio. A periferia, as escolas exclusivas de alunos negros, os locais onde essa população se reúne, tudo é filmado com grande requinte para a construção do espaço físico e social onde Chiron, e todos os outros, habitam.

Imagem: Divulgação/Internet
No momento final dessa primeira parte há um dos diálogos mais sinceros de todo o filme, onde Little questiona a Juan e Teresa o que é ser “bicha”. “’Bicha’ é uma palavra que as pessoas usam para fazer os gays se sentirem mal”, diz Juan. “Eu sou uma bicha?”, pergunta o menino. “Não. Você pode ser gay, mas não pode deixar ninguém te chamar de bicha”. Há um grande poder na cena pelo fato de ser uma criança fazendo tais perguntas, respondidas com grande maturidade pelos dois adultos. Conseguimos parar por um momento e nos colocar na cabeça daquele menino, perturbado por ter que lidar não só com a dúvida interna, mas o julgamento externo. É um momento cruel e reflexo perfeito de tantas realidades.

Na segunda parte, Chiron, agora adolescente (interpretado por Ashton Sanders), sofre ainda mais em todos os departamentos de sua vida. Juan está morto; sua mãe afunda cada vez mais em drogas; seu melhor amigo, Kevin (interpretado agora por Jharrel Jerome) exala uma desconcertante heterossexualidade; e outros rapazes da escola tornam sua vida um inferno. É notável ver a forma como o filme retrata a falta de atitude e responsabilidade por parte da escola em resolver a situação de agressões que Chiron sofre dentro das próprias paredes da instituição. O local é uma selva, cada um por si.

Imagem: Divulgação/Internet
A cena chave desse “meio” da história é o diálogo que Chiron e Kevin tem numa praia, onde os jovens conversam sobre suas vidas e anseios. Há muita crueza na cena, onde as máscaras sociais de ambos vão caindo pouco a pouco. “Você chora?”, questiona Chiron, e Kevin responde: “Não, só me dá vontade”, numa clara recompostura da fachada heterossexual de jamais demonstrar emoção. “Às vezes choro tanto que acho que vou secar por dentro”, responde Chiron, de forma honesta. A conversa consegue abrir Kevin, que beija Chiron, partindo para uma masturbação no garoto, tudo fotografado de forma estupenda.

Nos dias seguintes, Kevin é coagido por Terrel (Patrick Decile) a, junto com um grupo de rapazes, espancar Chiron, que sai bastante machucado. A reação do protagonista, dias depois, é o expurgo máximo: ele quebra uma cadeira nas costas de Terrel. O acontecimento causa consequências e Chiron é preso, saindo algemado da escola. De uma forma demasiadamente sutil, o filme faz um estudo de situação: pense você vendo o noticiário e ouvindo a notícia que um jovem negro quebrou uma cadeira nas costas de um colega de classe dentro da escola. “Vândalo” e “bandido” seriam facilmente os adjetivos que viriam à sua mente. Sabemos os meandros que levaram Chiron a cometer tal (errado) ato, desencadeado por outros atos errôneos, porém é Chiron que leva o rótulo de culpado, de bandido, sendo que, nos altos da situação, ele é a vítima – mesmo extrapolando os limites pela reação radical. Somos convidados a conhecer os pormenores de uma situação que já chega pronta, e nos colocamos no lugar do protagonista. Seríamos então tão passíveis de condenação? Todo ato não é o produto de uma série de acontecimentos?

Imagem: Divulgação/Internet
Pulamos vários anos e chegamos na parte final de “Moonlight”, com Chiron adulto e conhecido pelo codinome “Black” (interpretado por Trevante Rhodes). Sua vida agora se assemelha com a de Juan: Black é um traficante de drogas (outro estudo de situação). Super musculoso, Chiron assumiu uma identidade física completamente diferente, vivendo uma vida de mentira em prol de algo que ele nunca teve: respeito. Um personagem pergunta se ele está “pegando” uma mulher, e ele responde “Estou tentando”, com um breve lapso de mentira que só o expectador pode reconhecer.

Certo dia Black recebe uma ligação de Kevin (interpretado em sua forma adulta por André Holland), convidando-o para jantar no restaurante em que trabalha e se desculpando pelo o ocorrido na juventude, fato que os fizeram acabar com a amizade. No jantar, há grande desconforto entre os dois pelos anos de distância, as mudanças de ambos e o fantasma do acontecimento que os separaram. Enquanto Chiron permanece um pé atrás, Kevin demonstra bastante alegria por vê-lo ali (mesmo dando de carra com os silêncios de Chiron), até que os dois vão até a casa de Kevin depois de uma investida deste: “Você dirigiu até aqui só porque estava com saudade de casa? Onde você vai passar a noite?”.

Imagem: Divulgação/Internet
Na casa, a tensão sexual se torna palpável durante a conversa, com Kevin questionando quem era aquele novo e diferente Chiron e assumindo que nunca fez o que ele realmente queria fazer na vida, e sim o que as outras pessoas achavam que ele deveria fazer, algo que Chiron consegue se identificar. A áurea sexy exala da tela, com ambos gritando por dentro o desejo de um pelo outro. Toda a sequência é bastante sexual, mesmo não havendo um segundo de sexo, prova do domínio cinematográfico estupendo de Barry Jenkins e seus dois atores, além de ótima montagem. É perceptível a batalha acontecendo por trás dos olhos do protagonista, que assume: “Você [Kevin] foi o único homem que me tocou na vida. O único. Eu nunca fiquei com alguém desde então”. Não há mais necessidade de palavras.

“Moonlight: Sob a Luz do Luar” é um filme triste, não há como negar, todavia, ao mesmo tempo, é uma obra genialmente bela, tocante e verdadeira. Acompanhamos a jornada de descoberta de Chiron durante suas três fases e conseguimos pegar carona ao relembrar das nossas próprias jornadas, ainda em curso. Atuado com maestria por Trevante Rhodes, Mahershala Ali e Naomie Harris, temos um olhar brilhante de Barry Jenkins sobre temas muitas vezes esquecidos no cinema, mas urgentes, necessários e representativos como o ser gay, o ser negro, o ser periférico, o que solidifica sua inestimável importância social. Porém, você não precisa se enquadrar em algum desses três “seres” para sentir a delicadeza devastadora que “Moonlight” provoca – mas caso se encaixe, essa é uma história para toda uma vida. A de Chiron e a sua.

Crítica: "Estrelas Além do Tempo" supera suas limitações para se revelar um importante retrato do empoderamento negro feminino

Indicado ao Oscar de:
- Melhor Filme
- Melhor Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer)
- Melhor Roteiro Adaptado

O ano de 2016, mesmo com todas as loucuras, conseguiu um ótimo saldo: foi um momento incrível para o cinema negro. Vários exemplares conseguiram chegar ao grande público por meio de festivais e grandes premiações, como “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, “Loving”, “O Nascimento de Uma Nação”, “Cercas” e outros, todos fortes nomes na edição de 2017 do Oscar. Se são filmes bons ou não, isso é outra história. O fato importante aqui é a representatividade.

Um dos maiores nomes desse movimento representativo é “Estrelas Além do Tempo”, novo longa de Theodore Melfi. O filme resgata a história de três importantes cientistas da NASA na corrida espacial dos EUA contra a Rússia: Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughn (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe). O que elas têm em comum? São todas mulheres negras. Esse fato acabou colocando suas histórias e suas enormes contribuições de lado, algo que o filme se propõe a consertar.

Imagem: Divulgação/Internet
Logo quando o contexto em que a obra se insere fica claro, já sabemos o que sairá dali. Guerra Fria, corrida espacial, quem coloca o primeiro homem no espaço, então terá fortes exaltações norte-americanas em detrimento da então Rússia soviética. O filão de grande filme estadunidense com grandes nomes estadunidenses evocando a glória estadunidense é receita certa para o Oscar (a maior premiação estadunidense), e o filme não se mostra tímido ao deixar essa vertente bastante clara, introduzindo a bandeira do país em diversos frames e colocando discursos reais de J.F. Kennedy. E os exemplos de filmes que já pegaram carona dessa receita são inúmeros: na história recente da premiação, “Ponte de Espiões”, “Sniper Americano”, “Capitão Phillips”, “Lincoln”... Todos indicados a “Melhor Filme” em seus respectivos anos. 

Então, sim, “Estrelas Além do Tempo” é um típico “enlatado do Oscar”, que sempre aparecem ano após ano na ânsia de conseguir algumas indicações. Isso é algo ruim? Bem, não. Porém, para entrar nessa forma de bolo, o filme acaba se limitando, o que é algo ruim. Quer exemplos? “A Teoria de Tudo”, “O Jogo da Imitação”, “O Discurso do Rei”, “A Garota Dinamarquesa”... Alguns bons, outros presos em suas fronteiras, mas todos tendo o Oscar como “objetivo final”. Onde “Estrelas Além do Tempo” se encaixa aqui? No grupo de longas que consegue atingir alguma relevância.

Imagem: Divulgação/Internet
Ao resgatar um evento histórico tão conhecido, a ida do homem ao espaço, a própria reconstituição de época é uma importante peça para o bom funcionamento do filme, e aqui tudo está em ordem: direção de arte e figurinos conseguem nos transpor com facilidade à década de 60 e seus arcaicos aparelhos eletrônicos. Usando bastante cores, o filme é fotografado de forma simples e correta, porém conseguindo encher os olhos – algo que “O Jogo da Imitação” fez de forma bem similar. 

Mas, muito mais que o visual, o filme se preocupa em introduzir a vida de suas três protagonistas, quais foram suas contribuições à NASA, e, claro, ao movimento negro, além de explorar as formas de segregação existentes na época à fim de gerar a reflexão no espectador atual. Pessoas brancas e negras possuíam polos de trabalho separados, onde a mera presença de uma pessoa negra no “polo branco” causava estranheza. Quando Katherine, genial matemática, é chamada para trabalhar no centro do Projeto Mercury, ou seja, no polo branco, os olhos não conseguiam esconder o espanto e a curiosidade de vê-la ali – e nem só por ser uma pessoa negra, mas por ser também uma mulher. Na enorme sala, todos ali são homens brancos; a única mulher presente é a secretária. Uma mulher negra assumindo um posto importante e fora do esperado era um absurdo, todavia, nem assim ela conseguia o respeito de seus colegas, que não aceitavam dividir o café com ela – outro bule com o rótulo “Negra” foi colocado na sala.

Imagem: Divulgação/Internet
E o filme desenvolve de forma aguçada uma grande tirada para demonstrar essa segregação: como Katherine poderia ir ao banheiro se no polo só havia “banheiros brancos”? Ela tinha que ir até o polo negro, quase 1km de distância, para essa finalidade. Vemos suas – literalmente – corridas até o seu centro para não atrapalhar o trabalho, já que só em chegar perto do banheiro branco ela já era bombardeada com olhares reprovativos. Tudo soa bastante cômico pela montagem do longa, que só mascara uma realidade absurda – realidade esta escancarada pela personagem num surto de raiva, momento importantíssimo para a obra, realizado com grande poder por Taraji P. Henson, totalmente desglamourizada. Até o vestuário era ferramenta desse apartheid para ela: saia abaixo dos joelhos, saltos e colar de pérolas. “Deus sabe que vocês [brancos] não pagam negros o suficiente para comprarmos pérolas”.

As dificuldades das outras duas co-protagonistas eram diferentes, mas tão revoltantes quanto. Dorothy, interpretada por uma sóbria Octavia Spencer, vencedora do Oscar por "Histórias Cruzadas", deseja o cargo de Supervisora do seu setor, algo que ela já faz, mas sem receber o salário da categoria. Suas súplicas são sempre negadas por Vivian Mitchell (uma apática Kirsten Dunst), afinal, ela não poderia ter uma mulher negra no mesmo patamar. Já Mary, engenheira, deseja subir de cargo, no entanto é impedida quando um dos requisitos para isso é ter cursado aulas de engenharia numa escola branca, ou seja, impossível para ela. "Se você fosse um homem branco, ainda sonharia em ser engenheiro"?, peguntam a ela. "Eu não precisaria sonhar. Já seria um". A burocracia é feita exclusivamente para impedir o avanço de pessoas negras.

Imagem: Divulgação/Internet
Talvez o ponto mais curioso de “Estrelas Além do Tempo” é na “adaptação” para as telas de Katherine Johnson. Na vida real, a cientista tem a pele branca, porém, por ter descendência africana, era considerada negra – assim como, hoje, latinos são considerados pessoas “de cor” nos EUA, fazendo um paralelo. Para simplificar essa questão, presumimos, a produção decidiu escolher uma atriz com a pele negra, Taraji P. Henson, para interpretá-la. Esse fato só mostra como a concepção de raça é questão bastante complexa no país e passíveis de grandes preconceitos.

Se esse ponto foi usado em prol do fácil entendimento do público de forma bem positiva, afinal, um longa de duas horas é incapaz de abordar tudo de forma perfeita, vários outros macetes são forçados e elementares demais. Todo o preconceito na tela fica longe do sutil, é aberto demais para que o espectador saiba imediatamente o que está se passando sem jamais ter a menor dúvida em segundo algum. O personagem de Jim Parsons existe basicamente para ser o preconceituoso modelo, aquele que passa o filme olhando com assombro para Katherine, tratando-a mal, sendo arrogante, mostrando-se incrédulo diante do sucesso da parceira negra e tudo mais. Não há sutilezas, não há sub-textos, é tudo gritante na tela. Funciona? Obviamente, todavia é como os sustos com barulhos altíssimos nos filmes de terror: você pula da cadeira, mas soam preguiçosos.

Imagem: Divulgação/Internet
Colocando estrelinhas na cartela do filme, um dos seus maiores acertos é fazer com que a parte física e matemática seja completamente irrelevante. As três mulheres são inteligentíssimas, e passam o filme falando jargões técnicos e uma infinidade de números, mas o espectador não tem necessidade de entender tudo isso, porque a parte teórica é algo acessório – o filme preocupa-se com a representação histórica de suas personagens, não dos meandros matemáticos que as mesmas fizeram. É claro que encher quadros com fórmulas é parte essencial para a composição do filme, porém quem está diante da tela não precisa nem acompanhar as lógicas que seguem as partidas de foguetes e as órbitas na gravidade zero, só suas implicações.

Ao contrário de muitos “enlatados do Oscar”, inclusive alguns citados no início do texto, “Estrelas Além do Tempo” supera suas limitações e clichês aos ser um filme relevante, destrinchando a importância do reconhecimento negro de forma bastante comercial, o que soa cinematograficamente frouxo, mas sem ter seu valor diminuído enquanto ferramenta de empoderamento negro feminino – principalmente quando voltado para as massas. Não conseguimos esquecer que, acima de tudo, estamos falando de dignidade humana, algo dado em doses menores àquela parcela oprimida da sociedade, o que a obra trabalha de forma satisfatória. Para ser bem sincero, é uma delícia ver mulheres negras usando suas inteligências para se auto-empoderar e colocar homens brancos no chinelo.

Eles deixam mulheres trabalharem na NASA não porque usamos saia, mas porque usamos óculos”.

* Crítica editada após os indicados ao Oscar 2017

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