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Crítica: "Até o Último Homem" é um filme de guerra gospel pronto para beatificar seu protagonista

Após 10 anos longe da direção, Mel Gibson retorna com uma poderosa história transformada num filme ruim e mal escalado
Indicados aos Oscars de:
- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Ator (Andrew Garfield)
- Melhor Montagem
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

Depois que Kathryn Bigelow deu uma chacoalhada em Hollywood com "Guerra ao Terror", levando os Oscars de "Melhor Filme" e "Direção" em 2010 (alguém lembra desse?), a cota “filmes de guerra” foi consolidada. Claro, filmes bélicos concorrem (e vencem) o Oscar há muito tempo – “Asas”, o primeiro vencedor do prêmio máximo lá em 1930, é um longa sobre guerra –, porém, nessa nova década, esses filmes têm ganhado grande visibilidade e, quase sempre, saem dentro do mesmo molde.

De “Guerra ao Terror” até hoje, a categoria “Melhor Filme” já abrigou “Cavalo de Guerra”, “A Hora Mais Escura”, “Sniper Americano” e, na edição de 2017, “Até o Último Homem”, indicado a outras cinco categorias. Dirigido por Mel Gibson, que já tem o Oscar de “Melhor Filme” e “Direção” na estante por “Coração Valente”, o longa marca o fim do hiatus de 10 anos do diretor – seu último filme foi “Apocalypto”, em 2006.

“Até o Último Homem” revive a história real de Desmond Doss (interpretado por Andrew Garfield), um médico pacifista que vai à Segunda Guerra se negando a segurar uma arma. Adventista do Sétimo Dia, o moço, que quase matou o irmão quando criança, cresceu num lar bastante religioso onde o mandamento “Não matarás” é o pilar central de sua vida, decidindo, quando vê todos em sua volta se alistando, a ir também à guerra, mas para salvar vidas, não tirá-las.

Imagem: Divulgação/Internet
Aqui já conhecemos o maior trunfo da obra: ele trata como herói um herói de verdade. Em filmes de guerra, muitas vezes o protagonista é posto na figura do salvador da pátria carregando várias facetas negativas. Usando como comparação, Chris Kyle, protagonista de “Sniper Americano”, é condecorado com o título de herói por ter matado mais de 150 pessoas em combate – muçulmanos em sua maioria. Essa alarmante inversão do “herói” é posta de forma naturalizada na fita e nos faz questionar sobre a banalização não só do rótulo, como da vida humana. Desmond Doss, ao contrário, salvou a vida de mais de 70 soldados, o que é um exemplo louvável, principalmente quando inserido dentro do contexto da obra.

Então, sim, Doss é um herói, e “Até o Último Homem” aproveita isso da forma mais batida e óbvia possível: usando a estrutura do "monomito", um conceito que narra uma jornada cíclica da formação de mitos. Christopher Vogler, roteirista de Hollywood, escreveu um memorando para a Disney na década de 80 com o molde para a criação de seus heróis, popularizando a ideia, que já veio da literatura e chega até o jornalismo. Mas qual é a estrutura do monomito? Há diversas variações, mas, basicamente, podemos elencar 10 passos:

1. O mundo comum: o mundo ordinário onde o herói habita antes da história começar;
2. O chamado da aventura: algum problema se apresenta ao herói;
3. A recusa do chamado: o herói hesita a aceitar o chamado, geralmente por medo;
4. O encontro do mentor: o herói encontra um mestre, uma figura superior que o ajudará a enfrentar a aventura;
5. O cruzamento: o herói abandona o mundo comum e entra no mundo mágico;
6. A barriga da baleia: o herói enfrenta uma série de testes, encontra aliados e inimigos;
7. A aproximação: o herói consegue êxitos durante as provações;
8. A prova traumática: uma grande crise de vida ou morte se passa para o herói;
9. A recompensa: após enfrentar a morte, o herói supera seu medo;
10. O caminho de volta: o herói, vitorioso, pode voltar para o mundo comum.

Conhecendo o monomito, vários filmes com esse mesmo percurso passam na sua cabeça, imagino, e “Até o Último Homem” segue cada um deles. Doss mora na Virgínia (1), vê seus amigos indo à guerra (2), mas, com medo e pela pressão da família, contrária ao seu alistamento (3), receia num primeiro momento. Ao conhecer a enfermeira Dorothy Schutte (Teresa Palmer) e se apaixonar num óbvio romance miojo (feito em três minutos, bastou dar uma mexidinha), o jovem decide aprender anatomia para servir como médico na guerra contra o Japão.

Imagem: Divulgação/Internet
Sob comando do sargento Howell (Vince Vaughn) (4), nosso garoto modelo enfrentará, no quartel (5), o inferno nas mãos de todos (6) ao se negar a manusear uma arma, etapa necessária para a formação militar. Numa cena que remete à cena clássica de “Nascido Para Matar” de Stanley Kubrick, Howell grita, joga insultos e intimida os soldados numa manutenção de hierarquia (absurda) dos quartéis, porém, Vince Vaughn não é R. Lee Ermey e jamais convence no papel de sargento linha dura, numa atuação pífia que o roteiro não colabora, inserindo tiradas cômicas (ou, no papel, deveriam ser) que nunca funcionam.

A pressão psicológica sob Doss se torna agressão física quando os outros soldados não aceitam aquele corpo estranho entre eles, espancando o protagonista enquanto dorme. Este, ao invés de denunciar os agressores, prefere fingir que nada aconteceu. “Eu tenho um sono pesado”, diz ele para o sargento. O molde do roteiro é forçar de qualquer maneira a áurea de mártir para o personagem, um ser superior que aceita todas as humilhações em prol do que acredita.

Imagem: Divulgação/Internet
Essa utopia comportamental pode até ter sido o que o real Doss fez em sua vida, mas, em tela, é algo desproposital e que só enfraquece a trama. Doss é posto em posição de messias, preferindo a integridade do “silêncio” a dedurar seus próprios colegas de quartel. Para o longa, esse é o papel de alguém superior. Na verdade, aceitar tal injustiça a troco de nada é só aceitar a posição de babaca mesmo.

Por insubordinação ao recusar-se a segurar uma arma, Doss é preso. Aqui entra Tom (Hugo Weaving), pai do nosso herói, ex-soldado e o estopim para a convicção fora do comum de Doss: alcoólatra e agressivo, Tom tentou matar a mãe de Doss com um revólver num surto de raiva. Ao impedir, Doss prometeu a si mesmo (e a deus) nunca mais segurar uma arma. O pai usa seus contatos no corpo militar para conseguir soltar Doss e permitir que ele vá para combate sem precisar de uma arma, o que fecha o laço narrativo do personagem, ganhando o perdão ao salvar o filho. A esposa de Doss (sim, o pedido de casamento rola ainda na primeira parte do longa) aparece aqui rapidamente para desaparecer pelo resto da obra. Mais figurante do que isso, impossível.

Imagem: Divulgação/Internet
Agora todos os detalhes estão resolvidos e o filme parte para a Batalha de Okinawa, no Japão. Lá, a tropa de Doss descobre que os japoneses estão destruindo o exército americano, o que se comprova no primeiro embate. As cenas de guerra possuem lampejos de condução acima da média, o que fez com que Gibson fosse indicado a “Melhor Diretor”. Ele, famoso por adorar a crueza da morte humana – vide “Paixão de Cristo”, retrata tudo sem pudores e mostra desde cadáveres mutilados a membros decepados. A maquiagem aqui não é lá muito convincente – há exemplares de horror com próteses bem mais reais, mas mostra coragem por parte da produção ao não apelar para os efeitos especiais.

Todos os esforços da fita foram postos nas sequências de guerra, é evidente. Há momentos belamente fotografados, como a subida da tropa americana pela escada de corda no despenhadeiro japonês, até cenas noturnas, onde um pesado filtro azul cobre o cenário. Uma ótima jogada visual foi a utilização de lança-chamas pelos soldados americanos, criando um contraste espetacular entre o laranja do fogo com o verde-acinzentado da guerra.

Imagem: Divulgação/Internet
Enquanto a batalha segue, Doss corre de um lado para o outro tentando fugir das balas e colocando curativos nos feridos. Ao não portar uma arma, o filme consegue criar tensão pela vida do personagem, no meio de um pandemônio segurando apenas ampolas de morfina. Com seu desempenho, ele vai conseguindo ganhar o apreço dos outros soldados, que passam a protegê-lo (7).

Após a batalha, quando a tropa americana desce a encosta, Doss continua sozinho no topo para resgatar soldados feridos. “Por favor, deus, deixe que eu salve mais um”, ele repete, exausto, enquanto dá o sangue para descer os corpos feridos dos companheiros por cordas, mesmo tendo um batalhão japonês em seu encalço, que quase consegue matá-lo (8). No entanto, nem isso o impede de continuar resgatando feridos. Deus estava ao seu lado e ele nada temeria (9).

Imagem: Divulgação/Internet
Com o resgate de mais de 70 soldados, deixados para trás e com morte certa, Doss retorna como o herói absoluto da batalha (10). Soldados que antes o menosprezavam agora o chamam de “milagre”, e ele, sem a menor vergonha do filme, é carregado numa maca ao lado do despenhadeiro como se flutuasse sob as nuvens, igual um santo – artimanha visual feita de forma similar em “Invencível”, quando Angelina Jolie filma a sombra do seu protagonista herói segurando um grande pedaço de madeira, remetendo à crucificação. É a cartada final da beatificação cinematográfica de Desmond Doss.

É inegável o poder dessa história e da importância dela ser contada na tela, porém, “Até o Último Homem” é uma obra extremamente limitada, piegas e cafona, transformada num filme de “guerra gospel” quando a maior preocupação do protagonista à beira da morte é na salvação de sua bíblia ou quando toda a tropa americana para a guerra para ele rezar – fé cristã vence a guerra sim. Há o acerto em não ser uma película ufanista e patriótica, algo que longas de guerra americanos não abrem mão, no entanto, desde a má escalação de Andrew Garfield para o protagonista (que recebeu uma inexplicável indicação a “Melhor Ator”) até o péssimo roteiro, “Até o Último Homem” já pode cair no esquecimento. O filme, não a incrível e louvável história de Desmond Doss.

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