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Crítica: “Era Uma Vez em Hollywood” é uma tortura fantasiada de homenagem à Sétima Arte

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Leonardo DiCaprio)
- Melhor Ator Codjuvante (Brad Pitt)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Figurino
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quentin Tarantino lançando um filme significa que eu estarei no cinema. Não sou desses que acha o diretor o suprassumo da Sétima Arte, mas, de "Cães de Aluguel" (1992) até "Os 8 Odiados" (2015), nunca o vi lançar uma película ruim - "Pulp Fiction: Tempo de Violência" (1994), sua obra-prima, é um dos melhores filmes já feitos, inclusive. Não tinha como não dar meu dinheiro para "Era Uma Vez em Hollywood" (Once Upon a Time in Hollywood), seu novíssimo projeto.

No final da década de 60, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um ator que alcançou o ápice da fama em Hollywood na década anterior, andando atualmente por uma crise artística. Seu melhor amigo - e dublê e motorista e o que aparecer -, Cliff Booth (Brad Pitt), sempre está ali para dar suporte a Rick, no protagonismo ou como coadjuvante de uma série que ninguém assiste.

A mansão de Rick, nos altos montes da ensolarada Califórnia, é ao lado da residência de ninguém menos que Roman Polanski e sua esposa, Sharon Tate (Margot Robbie), um dos apogeus do Cinema na época - Polanski havia acabado de lançar "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos maiores clássicos de toda a história.


Essa dicotomia representa perfeitamente o status artístico do fim da Era de Ouro de Hollywood: de um lado, Rick, a encarnação do declínio; do outro, Polanski e seu magnetismo de sucesso e genialidade. Você pode tentar, mas será árduo não lembrar de "Crepúsculo dos Deuses" (1950), o melhor estudo da fama dentro de Hollywood já criado na telona: Rick chega perto da insanidade de Norma Desmond, o cânone da fama perdida, ao tentar alcançar o prestígio de outrora - semelhanças com Riggan Thomson de "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)" (2015) não são mera coincidência.

Já podemos apontar o óbvio: "Era Uma Vez..." é uma homenagem ao Cinema - mais especificamente à Hollywood, todavia, pincela outros nichos como o faroeste italiano, (conhecidos como Spaghettis). A metanarrativa, então, é uma das principais forças da produção, que mergulha na indústria até demais. O filme chega perto de 3h de duração, o que fundamentalmente não é um problema, a questão é a maneira como Tarantino decidiu preencher seu arrastado filme. Realmente me surpreendi quando lembrei que tanto "Django Livre" (2012) quanto "Os 8 Odiados" possuem durações maiores à de "Era Uma Vez...", e o tempo voa nos dois primeiros, ao contrário do último.

Para quem conhece a filmografia do diretor - que sempre escreve os próprios roteiros - sabe que suas narrativas evocam os dramas de seus personagens de maneira não tão linear. Os acontecimentos não são exatamente fechados, com cada passo sendo um tijolo na construção da trama - um estilo que, particularmente, não me agrada tanto. O que fazia com que isso jamais fosse um empecilho é a vivacidade de suas histórias, sempre cativantes - o que inexiste em "Era Uma Vez...".

A trama gira entorno dos três personagens principais - Rick, Cliff e Sharon. Mesmo se encontrando e se aproximando, eles possuem núcleos completamente distintos, três histórias deveras diferentes; e a montagem não se apressa em mostrar em detalhes cada uma delas. Rick gasta horas nos sets de filmagem, Sharon no cinema vendo o filme em que atua e Cliff flerta com uma garota que acaba se revelando uma das integrantes da família Manson. Nenhuma delas é exatamente empolgante.


Tarantino, cinéfilo inveterado, quer ovacionar o faroeste - gênero fundamentalmente hollywoodiano - e nos cola em Rick por intermináveis filmagens, que são sofríveis. Com cenas longuíssimas, a sensação de que 10% do exibido era o necessário está sentada do nosso lado, o que é reflexo do domínio criativo que o diretor tem sobre suas obras - que tem o poder em decidir como será o corte final do filme, algo raro dentro da indústria.

Com Cliff, soterrado na sombra do personagem de Rick, ganha camadas de composição que surgem e somem sem impacto algum - o filme literalmente para a história para mostrar que ele matou a própria mulher. O que em qualquer enredo seria ponto incontestável, serve para coisa nenhuma - se não existisse, o filme percorreria sem mudanças. E aqui é apenas um dos vários exemplos de entupimentos do roteiro.

É em Sharon que o plot parece alavancar. Não é a primeira vez que Tarantino se apropria de um fato real e a mistura com a ficção - "Bastardos Inglórios" (2009) ressignifica a História e mete a bala em Adolf Hitler, e o mesmo acontece em "Era Uma Vez...". No entanto, aqui temos um grande "porém": ao contrário de Hitler, Sharon Tate não é uma figura universalmente conhecida - durante a sessão que assisti, várias pessoas não a conheciam. E, por não a conhecerem, o viés híbrido do filme não fez sentido.

Sharon foi assassinada pela família Manson, e em "Era Uma Vez...", Tarantino faz o oposto de "Bastardos": poupa a vida da mulher com uma virada deliciosa que subverte expectativas. To-da-vi-a, essa expectativa, essencial no clímax, só existe se você conhecer o destino de Sharon. Sem um desenvolvimento digno em cima do culto bizarro criado por Charles Manson (que aparece em apenas UMA cena), o crime acontece na tela sem motivações e se apega demasiadamente em um fato aquém de sua existência e que não encontra explicações o suficiente dentro de seu corpo. Sem o conhecimento prévio, Sharon é só a vizinha que em uma noite descobriu que a casa ao lado foi invadida. E isso é um grande problema.


E Tarantino não está nem um pouco preocupado se você não catar as milhares de referências que explodem na tela a cada segundo, virando um festival impossível de ser assimilado tamanha afetação. Ele vai nos confins da cultura norte-americana das duas décadas exploradas e põe tudo na tela milimetricamente, uma porrada no interesse do público - ou você quer mesmo ver um episódio de uma série policial de 1965? Chega a ser uma tortura - e tenho certeza de que, caso estive assistindo ao filme em casa, teria abandonado.

Tudo é, como sempre, embalado com muito afinco, da fotografia coloridíssima da era dos hippies até a energética trilha sonora - mas a cansativa história, os inúmeros personagens de apoio que entram e saem da tela, as sequências infinitas de gravações, as subtramas deixadas pra trás, tudo colabora para assassinar a diversão que é elemento intrínseco dentro do cinema tarantiano - e que, em alguns momentos, faziam as falhas passadas serem perdoadas.

É uma surpresa ver o infortúnio de Tarantino ao abraçar um longa mais voltado para o drama - ele se saiu tão bem no subestimado "Jackie Brown" (1997). "Era Uma Vez em Hollywood" carrega os estilos que moldaram um cinema tão característico, porém, sua nova produção é uma inorgânica homenagem à fantasia hollywoodiana pela sua trama que vai matando a própria vida a cada minuto (e são muitos). Se as atuações são de primeira linha e os momentos de ação maravilhosos, "Era Uma Vez" parece não entregar uma recompensa à plateia, mesmo com seu protagonista sendo recebido de portões abertos na magia irrefreável da mitologia por trás da terra do Cinema - e que não está presente no filme que conta sua história, coisa diferente em outras homenagens à Sétima Arte na contemporaneidade, como "La La Land" (2016). Tarantino, pela primeira vez, não é cool, é só chato.

Crítica: “Parasita” balanceia uma das melhores lutas de classe do cinema com humor e acidez

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Filme Internacional
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando o Festival de Cannes rolava em maio, um filme era sempre pontuado na lista de melhores da competição: "Parasita" (Parasite), do diretor Bong Joon-ho, mais famoso pelo sensacional "O Hospedeiro" (2006). Não foi grande surpresa quando ele se tornou o primeiro coreano a vencer a Palma de Ouro - o prêmio de "Melhor Filme" do festival -, e já abrindo os caminhos para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional".

"Parasita" se debruça em cima da família Kim: o pai, Ki-taek (Song Kang-ho, muso de Joon-ho e um dos maiores coreanos na história); a mãe, Choong-sook (Jang Hye-jin); o filho, Ki-woo (Choi Woo-shik); e a filha, Ki-jung (Park So-dam). Eles moram num minúsculo apartamento quase no subsolo e vivem em nível de pobreza. Dobrando caixas de pizza para sobreviver, uma oportunidade brilhante surge quando Ki-woo é convidado para ser professor de inglês em uma luxuosa mansão.

A riquíssima família possui a mesma configuração: o pai, Mr. Park (Lee Sun-kyun); a mãe, Yeon-kyo (Cho Yeo-jeong); a filha e aluna de Ki-woo, Da-hye (Jung Ji-so); e o caçula, Da-song (Jung Hyun-joon). Os incontáveis metros quadrados da propriedade rapidamente viram um terreno fértil para a ascensão social dos Kim: eles vão, um a um, se introduzindo dentro da casa.

Achei curioso perceber as similaridades básicas entre "Parasita" e "Assunto de Família" (2018): ambos asiáticos ("Assunto" é japonês), ambos vencedores da "Palma de Ouro" consecutivamente e ambos retratos da má distribuição de renda na Ásia. Tanto a família de "Assunto" como a de "Parasita" buscam meios à margem da lei para sobreviver e lutar contra a miséria.


A diferença elementar entre os longas é sua abordagem: enquanto "Assunto" é fundamentalmente dramático, seco e sem rodeios, "Parasita" traz a mesma veia narrativa de vários filmes de Joon-ho: uma mistura desconcertante de comédia com drama. Um estilo bastante característico, é fato que nem sempre funciona: quando Joon-ho abraça a comédia com viés comercial ou expositivo demais, vira um desastre - vide "Okja" (2017). Não por acaso, seu maior mal passo é exatamente o que vai até Hollywood.

Quando reside ali mesmo na Coreia do Sul, a tonalidade é bem pontuada - como "Mother - A Busca Pela Verdade" (2009) . "Parasita" não fugiu à regra. Não pense que esse fusão com comédia seja um stand-up na tela: o humor de "Parasita" está no absurdo de suas situações. Em inúmeros momentos a obra me remetia ao trabalho de Yorgos Lanthimos, que também usa da mesma fórmula para construir seus universos únicos. Assim como em "A Favorita" (2018), "Parasita" também entope a duração com sarcasmos inteligentes, e usa a música clássica em contraste com a porraloucagem que está acontecendo, por exemplo.

A narrativa da película é uma montanha-russa: o início é bastante lento, uma subida gradual dentro da trama que desde ali já prometia uma queda vertiginosa. A pegada comédia está pungente, com sequências que em nada acrescentam no plot além de pincelar a tonalidade cômica da coisa - como a cena do bêbado fazendo xixi ao lado da janela da família. Quando o espectador entra na mansão dos Park, o drama ganha mais espaço pelas pautas impostas de maneira muito sutil.

É claro que o mote principal de "Parasita" é uma família se aproveitando (e forçando) situações para sua ascensão econômica - e toda a potência da fita está bem aqui -, contudo, o filme expõe um viés que, pelo menos acho, não é um consenso ou uma ideia coletiva no imaginário de quem habita esse lado do mundo: as desigualdades absurdas do povo ao redor do Mar do Japão.


Essa abordagem é bem mais explícita em "Assunto de Família" - provavelmente pela escolha de tom -, mas "Parasita" só caminha porque é uma crítica direta ao capitalismo. Disse que talvez a ideia central do filme não esteja impressa em nossas cabeças porque, ao pensarmos no eixo Coreia-Japão, imediatamente vislumbramos tecnologias e avanços, o que, como em basicamente qualquer país capitalista, não é uma verdade concretamente partilhada entre seus cidadãos.

Pondo em outras palavras, não imaginava que estes países pudessem ser tão desiguais. Em incontáveis momentos consegui enxergar a mesmíssima história se passando aqui mesmo no Brasil - o filme possui universalidades para dar e vender, o que consegue exportar sua história para todos os cantos do planeta - quanto mais desigual for sua realidade, mais identificável será o filme.

É bastante difícil falar do enredo de "Parasita" e não estragar a experiência de quem ainda não viu. Não só por questões de spoilers, mas também porque esse é um filme de sensações - e elas são fartas e variadas. Você vai do êxtase absoluto ao choque completo - o último ato pega elementos do terror e leva a bizarrice social aos extremos.

No entanto, o filme renderia uma análise longuíssima no que tange a impressão da desigualdade social na Sétima Arte. Aliás, esse tema é central na filmografia de Joon-ho - todos os seus filmes, em algum nível, tocam no assunto -, porém nunca com tanto sucesso como em "Parasita". O cuidadoso texto ainda tem a audácia de carregar um existencialismo puro quando Ki-taek, no auge da bagunça do plano da família, fala que a única forma de não falhar é não ter um plano - o que ilustra a forma como todos estão jogando para cima seus desejos e esperando que caiam de volta.


O obscurantismo vai engolindo a tela enquanto mergulhamos mais profundamente nos meandros das duas famílias, duas configurações tão parecidas mas tão opostas ao mesmo tempo: o exemplo maior é na sequência da chuva, quando os Parks estão confortáveis em sua sala com paredes de vidro e os Kims encontram seu apartamento inundado - notem como a fotografia evidencia a descida dos protagonistas durante a corrida até a casa, uma metáfora visual das junções capitalistas, quando a periferia mora em um nível muito abaixo das camadas mais abastardas. A chuva escorre pelas mansões e se acumula nas favelas. Quem sofre com a chuva é o pobre.

Uma das expectativas iniciais que sofri com o filme partiu do seu título, e, felizmente, foi uma expectativa morta. Não pense o contrário, "Parasita" é um título que não poderia ser melhor aplicado do que no presente filme, contudo, poderíamos imediatamente pensar que a família Kim seria a tal parasita, sugando dos Parks.

Isso não deixa de ser verdade - eles realmente se aproveitam da quase burrice dos patrões -, no entanto, o roteiro é pra lá de competente ao não permitir que habite um binarismo rasteiro e preto no branco. Os Parks, em alguns aspectos, chegam a ser odiáveis - vide a cena do clímax que desencadeia o final -, o que até entrega a chancela para a plateia ficar totalmente do lado dos Kims, que sempre possuíram motivações muito verdadeiras. Querendo ou não, eles são os mestres de cerimônia desse insano picadeiro. O fato é: não existem vilões no filme - não que, por isso, os personagens sejam mocinhos e não haja atitudes absolutamente condenáveis (na verdade o filme é uma sucessão delas) -, mas todos são vítimas do sistema, é ele que os molda naqueles formatos reprováveis. O jogo é mais culpado que os jogadores.

"Parasita" é um dos cumes de 2019 quando cria uma sessão bizarramente divertida sem, jamais, em momento algum, deixar com que o estudo social saia do ecrã. Com um lindo malabarismo de gêneros, o filme enfia a faca em um sistema que fundamentalmente existe ao por um camada acima de outra, o que tira a dignidade do ser humano, predestinado a cometer ações terminais que comprovam o insucesso da separação entre burguesia e marginalizados. Talvez a melhor luta de classe que tivemos no Cinema nessa década - e aqui estamos falando tanto no sentido figurado como no literal.

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