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Crítica: em "A Vigilante do Amanhã", a criatura perfeita é construída para ser branca e norte-americana

Atenção: a crítica contém detalhes do enredo que podem ser considerados spoilers.

Se há um gênero cinematográfico que parece ser um pacote inesgotável de temas e abordagens, esse gênero é a ficção-científica. Ano após ano somos apresentados por versões do nosso futuro, principalmente dialogando com a tecnologia e como seu advento poderá modificar nossas vidas. Desde a obra-prima revolucionária "Metrópolis" (1927), um dos primeiros longas a se apropriar da ficção-científica, passando por clássicos como "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968), "Blade Runner: O Caçador de Androides" (1982), "Brazil" (1985), "Matrix" (1999) e até os mais recentes como "A.I.: Inteligência Artificial" (2001), "Avatar" (2009) e "Ex Machina: Instinto Artificial" (2015), o gênero nos coloca para refletirmos nossos prováveis futuros em prol da conscientização do nosso próprio presente.

O primeiro grande nome do sci-fi em 2017 é "A Vigilante do Amanhã: Ghost In The Shell", de Rupert Sanders (diretor do esquecível "Branca de Neve e o Caçador"). Baseado no mangá japonês escrito por Masamune Shirow, a obra norte-americana enfrentou discussões desde sua produção, quando Scarlett Johansson foi escalada para viver a protagonista, Major Mira Killian. Seu próprio nome já foi uma forma de mascarar toda a polêmica: sendo um mangá, o texto original trazia personagens japoneses, com a protagonista se chamando Motoko Kusanagi, um nome puramente nipônico, ao contrário de "Mira Killian". O whiterwashing foi motivo de muitas reivindicações sobre como Hollywood continua escalando atores brancos para interpretar personagens de outras raças e etnias (a lista é longa, você pode ler mais sobre nessa matéria).

Imagem: Divulgação/Internet
"A Vigilante do Amanhã" começa com o cérebro de Mira sendo acoplado num novo corpo sintético. Sobrevivente de um ataque cyberterrorista que matou seus pais, o corpo da jovem foi destruído, mas seu cérebro se manteve vivo – o que cria a metáfora do título original, um fantasma (sua mente, sua alma) habitando uma nova concha (seu corpo artificial). Ela é a primeira humana a conseguir fundir sua mente a um corpo robótico, projeto criado pela Hanka Robotics, empresa que controla mundialmente os projetos de desenvolvimento tecnológico. Após o sucesso com Mira, ela é selecionada para virar uma arma contra o cyberterrorismo, principal crime nessa realidade futura.

Após esse rápido prólogo, que despeja uma montanha de detalhes necessários para acompanharmos a trama, somos mandados um ano no futuro e Mira está numa missão que não sabemos muito bem do que se trata, apenas que há robôs em forma de gueixa (o design mais incrível de todo o filme) atacando algumas pessoas. Com exceção da protagonista, os personagens e até situações são mal desenvolvidos, jogados na tela, o que impede a imersão do espectador. A dicotomia "bem" e "mal" visual é a única forma de nos basearmos o que exatamente Mira e sua equipe deve fazer ali – exterminar o “mal”, obviamente.

Imagem: Divulgação/Internet
Nesse determinado futuro, a tecnologia passou a ser dominante da vida humana. Seus próprios cérebros são interligados com computadores, o que garante o desenvolvimento, porém traz um grave problema: agora, como qualquer outro computador, o cérebro pode ser hackeado. As gueixas-robôs da cena anterior estavam tentando roubar informações dos cérebros de algumas pessoas, importantes para algum plano descoberto no meio do longa.

Pode soar bem simples, mas aqui estamos de frente com uma grande força filosófica. Por mais que nossos corpos sejam, sim, frágeis, nossas mentes são extremamente poderosas, e melhor, impenetráveis. Não existe recurso ou ferramenta que consiga tirar qualquer informação de dentro das nossas cabeças caso nos recusemos a dá-las. Tudo isso é bastante interessante, todavia, o filme não consegue submergir nessa riquíssima mitologia e retirar dali discussões aprofundadas sobre nossa natureza – algo que qualquer sci-fi que se preze faz com maestria.

Imagem: Divulgação/Internet
E é aqui o segundo maior erro de “A Vigilante do Amanhã”: deixar de lado a filosofia presente no universo criado pelo mangá em prol do visual. Não, eu não li o mangá ou assisti ao anime “original” (de 1995), o que me dá uma visão bastante pontual do longa de Rupert Sanders. Com isso, soa a todo o momento que a obra está preocupada em ser o mais cool possível visualmente. A cidade projetada aqui é de uma megalomania que faria a Times Square parecer uma ruela de interior. Os anúncios projetados com hologramas no tamanho de prédios, cores, luzes, uma poluição visual sem precedentes. Assistir em 3D a tudo isso deve ser uma dor de cabeça de uma semana.

Estamos em plena febre de filmes de super-herói e suas subcategorias, e “A Vigilante do Amanhã” tenta seguir a correnteza de filmes do subgênero mega descolados, com construção imagética o mais moderneca e maneira possível – vide “Guardiões da Galáxia” (2014) e “Deadpool” (2016) –, porém até “Esquadrão Suicida” (2016) é mais cool do que essa confusão high-tech de CGI. Um ótimo exemplo de histrionismo visual usado de forma agradável para os olhos e em prol da narrativa é o trabalho de “Doutor Estranho” (2016), cheio de seus ângulos impossíveis – mesmo não entendendo completamente o que tá na tela, suas estruturas geométricas são belíssimas (e organizadas).

Imagem: Divulgação/Internet
Se o caos visual do longa é o segundo maior erro, a medalha de ouro vai, sem dúvidas, para o whiterwashing empregado pelo filme. Sim, escalar a branca Scarlett Johansson para viver uma personagem asiática é nada legal e até socialmente irresponsável. Entendemos que se trata de uma obra norte-americana que visa o lucro, ou seja, feita de forma comercial. Johansson, inclusive anda cada vez mais escolhendo filmes de ficção-científica, o que melhorou consideravelmente seu currículo – em "Sob a Pele" (2013) ela viveu uma alienígena; a voz de um computador na obra-prima "Ela" (2013) e uma super-heroína em forma de pendrive em Lucy (2014) –, mas dessa vez não temos como te defender, Johan, mesmo em mais uma boa performance. 

Só a sua escalação em si já seria pra torcer o nariz, mas piora: em determinado momento é revelado que aquele corpo de Mira foi criado do zero, já que seu corpo original era de uma menina japonesa. Vamos entender. Mira é, ali, uma criatura invejável, o modelo de ser humano/máquina e é sempre referenciada como a primeira de uma revolução. Ela é o objetivo a ser alcançável. Ela é, também, branca, traços ocidentais. Mira foi construída daquela forma, um molde desejável. Ao excluir todos os seus traços orientais, o filme está dizendo para você que é melhor ser norte-americano. Ser branco é ser perfeito.

Imagem: Divulgação/Internet
Também poderíamos passar horas falando no corpo esculpido de Mira. Ela, sendo um robô, recebeu um design específico criado por outra pessoa, que decidiu que ela seria magra, cintura fina, seios proeminentes e a roupa mais justa desde o figurino da Mulher-Gato no desastroso filme de mesmo nome de 2004 – pobre Halle Berry. Além de dizer a você, espectador, que o modelo perfeito de criatura é branco e norte-americano, “A Vigilante do Amanhã” afirma que você também tem que ser magra.

Cinema pode parecer só uma tela grande que um monte de coisa acontece em uma hora e meia, e que quando a tela se apaga você volta para casa e vida que segue, porém não. Aquela tela é palco de construções ideológicas fortíssimas. Sabe o imaginário popular de que loira é burra? Filmes da Marilyn Monroe ajudaram a moldar esse estereótipo. Todo aparato imagético é carregado de ideologias, e, quanto mais pessoas assistirem ao filme, mais essas ideologias serão disseminadas e, com o passar do tempo e a ajuda de outros filmes que compartilham da mesma ideologia, são formados o que chamamos de “é só minha opinião”. Se sua opinião é a mesma da maioria, provavelmente ela não é de fato sua, e sim uma construção social.

Imagem: Divulgação/Internet
Se fosse apenas pelas características cinematográficas, “A Vigilante do Amanhã” seria só um filme fraco, sem conseguir prender o espectador pela sua história mal desenvolvida, suas cenas de ação insossas (e cheias de uma câmera-lenta brega) e desperdício de uma mitologia tão rica – “Matrix”, um dos sci-fis definitivos da história do cinema, bebeu da fonte original de “Ghost In The Shell”, prova de que o live action de 2017 nada apenas na piscina infantil enquanto poderia mergulhar num oceano (mas não se engane achando que o mangá original é o Santo Graal: ele mesmo objetifica o corpo de sua protagonista). Infelizmente não é só isso que temos. 

A má escalação dos atores brancos – no meio de uma pá de atores asiáticos coadjuvantes para dar aquele fundo oriental e não ficar tão feio – silencia toda uma cultura em nome da cultura dominante – a norte-americana. “Mulan”, o live action do clássico da Disney, estreará em 2018 com, olha só, elenco asiático. Até mesmo “Moana: Um Mar de Aventuras” (2016) se preocupou em escalar uma atriz nascida na Polinésia, e olha que ela nem aparece no filme, apenas sua voz. Mais de 100 anos após o surgimento da Sétima Arte, já está mais do que na hora de nos preocuparmos como culturas são escolhidas, embaladas e comercializadas nesse veículo de comunicação em massa que lucra bilhões ano após ano. “A Vigilante do Amanhã” pode até se passar num futuro distante, mas está perdido no nosso tempo.

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