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Crítica: lésbicas, bolos, coelhos e o nada discreto charme da burguesia em “A Favorita”

Sem compromisso com os fatos, "A Favorita" se apropria de uma história real para relatar um conto insano e hilário
Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Atriz (Olivia Colman)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Emma Stone & Rachel Weisz)
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem
- Melhor Figurino
* Crítica editada após as indicações ao 91º Oscar

Olá. Meu nome é Gustavo Hackaq. Se você não me conhece, deve, a partir de agora, saber um dos principais fatos acerca da minha pessoa: Yorgos Lanthimos é meu diretor favorito da atualidade. Em todas as críticas que já publiquei no Cinematofagia para filmes do cineasta - "O Lagosta" e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" -, eu não perco a oportunidade de aclamá-lo. Mas com "A Favorita" (The Favourite), um medo permaneceu ao meu lado até começar a sessão.

O motivo é direto: essa foi a primeira obra lanthimaniana a não ter o roteiro feito pelo grego, e seus roteiros eram o principal atrativo de sua filmografia. Sua criatividade fora de série, que criou universos riquíssimos, foi o que o levou ao Oscar, que o fez acumular prêmios em Cannes e ser cada vez mais aclamado - "A Favorita" é o 12º filme mais ovacionado de 2018 no Metacritic e a maior nota da carreira do diretor.

"A Favorita" foca nos bastidores políticos da Inglaterra do séc. XVIII, quando duas primas - Sarah (Rachel Weisz) e Abigail (Emma Stone) - lutam entre si pelo favoritismo da Rainha Anne (Olivia Colman). Baseado na disputa real, o roteiro não está preocupado com apuração histórica e solta os cachorros na briga familiar. Esse aspecto é um ponto correto dentro da trama, que passa longe de uma aula de história - você não precisa saber o que está acontecendo politicamente no período além de que a Grã-Bretanha está em guerra com a França.


O enredo é aberto com Sarah sendo o braço-direito de Anne enquanto tesoureira da corte - é ela que mantém maior proximidade com a Rainha. O lugar privilegiado permite que ela tenha controle direto nos rumos políticos do país, já que Anne possui uma saúde muito debilitada e não consegue manter o foco nas estratégias de guerra. Há verdadeira cumplicidade entre as duas, e o sistema funciona mesmo com a personalidade explosiva da Rainha.

Depois do roteiro, a característica mais marcante de Lanthimos é sua direção de atores. Ele cunhou um estilo que joga fora a naturalidade, engessando seus atores em moldes estranhos e até propositalmente artificiais - o ápice desse estilo habita em "Cervo Sagrado". "A Favorita" é o que foge mais da estranheza, todavia, é uma explosão com suas atrizes, principalmente com Olivia Colman.

Colman é uma das melhores atrizes da atualidade, no entanto, ainda não possui o reconhecimento que merece - ela tem um papel bem pequeno em "O Lagosta" e rouba todas as cenas em que põe o pé. Por "A Favorita", venceu o prêmio de "Melhor Atriz" no Festival de Veneza 2018, o abre-alas de uma campanha gigante, à altura de sua performance. Rainha Anne é hilariamente instável, gritando por coisas irrisórias e se afogando em todo o seu poder. É curioso como ela lembra bastante a Rainha Vermelha de "Alice no País das Maravilhas" (2010), já que ambas berram ordem sem propósito por mero prazer.


Porém, Anne não é uma caricatura ambulante. O roteiro a constrói de forma cuidadosa, costurando suas nuances de personalidade: ela perdeu 17 filhos (o número é real), e, para cada um deles, há um coelho como "substituto". A excentricidade não é perfumaria; Anne é infantil e imatura, alguém que foi colocada num trono e que não entende o que realmente representa. É como se Sarah fosse a adulta que impõe ordem, enquanto Anne é a criança que destrói tudo. Ela brinca com o país e a guerra da mesma maneira que uma menina joga bonecas de um lado ao outro.

Abigail chega na corte com a cara na lama, vindo após perder tudo pela irresponsabilidade do pai. Antes uma lady, agora vira empregada no palácio, até ajudar a sanar as dores na perna da Rainha, amarrando sua atenção. Devido à fraqueza física da regente, Abigail vê ali uma oportunidade única de deixar de ser plebe para voltar à burguesia.

Com diversas manipulações, ela vai se metendo dentro do quarto da Rainha, até que descobre que ela e Sarah têm um romance secreto, escândalo que poderia arruinar o reino. A oportunidade faz o bandido, e Abigail não pensa duas vezes antes de agarrá-la. No entanto, não se engane: o binarismo de mocinhos e vilões não existe tão gritantemente em "A Favorita"; apesar dos jogos de Abigail, ela foi empurrada até o fundo do poço pelas mãos do pai. Há motivações sólidas para sua ambição, mesmo que os caminhos escolhidos sejam moralmente duvidosos.


Sarah rapidamente percebe que a chegada de Abigail é uma cilada. Ela realmente ama e se importa com Anne, e ver sua amada escorrendo pelas suas mãos devido à manipulação da prima é um alerta de que ela precisa se livrar da rival e "fura-olho". O que começa como uma guerra-fria, com cada uma lentamente expondo seu descontentamento com a outra, passa para o âmbito físico, com agressão e tentativa de assassinato. Anne nem ao menos percebe o que está de fato acontecendo, e adora ver as duas se digladiando por sua atenção.

É claro que é aqui que reside o âmago de "A Favorita": tudo é solidificado para a batalha das primas - e não dá para esconder o quão bizarramente engraçada é essa briga, principalmente com a estética sarcástica de Yorgos e diálogos anacrônicos do roteiro. Mas é importante pontuar como a situação é exemplo perfeito das loucuras do período monárquico.

Com a concentração de poder em duas mãos, as insanidades correm soltas, com Anne servindo como símbolo absoluto de uma época. Até mesmo sua saúde é simbólica, uma rainha doente que reflete um sistema enfermo e cunhado sob interesses particulares. O contraste entre o quarto de Anne e o quarto dos empregados é dantesco, a ponta do icebergue de uma elite ocupada demais com o próprio bolso.


A fotografia abocanha os luxos do palácio sem vergonha, com takes irretocáveis do design de produção e figurinos estonteantes da película, um sucessor natural de "Barry Lyndon" (1975) e novo integrante de clássicos da Sétima Arte a passearem pela época - como "Amadeus" (1984) e "A Morte de Luís XIV" (2016). Com a câmera fincada sobre um eixo fixo, ela gira com rapidez a fim de exprimir visualmente a narrativa recheada de ironia e sagacidade.

Não só dentro do filme, Weisz e Stone estão numa quebra de braço nas premiações quando as duas estão estupendas na tela. Vencedoras do Oscar, ambas não se deixam serem tragadas por Anne e seus gritos, segurando as pontas e comandando atenções. Não se trata de uma rivalidade feminina gratuita pelo zelo do texto ao montar suas personas e status sociais - e Stone merece atenção não só por ser o foco óptico principal da narrativa, mas também por ter conseguido fazer um sotaque britânico autêntico.

"A Favorita" é, em primeiro lugar, um filme sobre mulheres difíceis em uma época difícil e em posições difíceis. A obra encanta na riqueza de detalhes narrativos e visuais, e quando suas protagonistas - três monstros na tela - não dão a mínima para a guerra do lado de fora de seu palácio, mais preocupadas com a batalha que acontece ali dentro - o destino da nação pouco importa quando é seu status que está em jogo. Mesmo não tendo o roteiro assinado por Yorgos Lanthimos, o longa é mais uma prova da genialidade do cineasta enquanto contador de histórias. "A Favorita" é uma luta real pelo favoritismo de uma insana rainha que escancara o nada discreto charme da burguesia.

disqus, portalitpop-1

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