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Crítica: Ariana pede para não chamarmos o filme de “As Panteras” e só podemos obedecer

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Olá, querido leitor, depois de um rápido recesso, estou de volta. Como já deve saber, a temporada do Oscar é o momento mais importante do meu ano e me dedico profundamente aos filmes indicados - você pode ler meu Especial 2020 aqui -, e nada mais justo que umas semaninhas de descaço quando a corrida dourada é encerrada. Aproveitei, também, para me atualizar com alguns nomes que deixei passar por terem estreado justamente na briga pela estatueta, como "As Panteras" (Charlie's Angels), reboot da franquia iniciada em 2000.

Se você, assim como eu, viveu a juventude na década de 2000, deve ter um lugar especial para o trio Cameron Diaz, Drew Barrymore e Lucy Liu, que detonaram nos dois primeiros filmes. Não sabia muito o que esperar com o revival, dirigido e roteirizado por Elizabeth Banks - a lendária Effie Trinket da franquia "Jogos Vorazes" (2012-15), que estreou na cadeira de direção com "A Escolha Perfeita" (2015) -, porém, seria interessante ver o molde nas mãos de uma mulher - os dois originais são dirigidos por McG.

E esse é um movimento que começa a ganhar força em Hollywood: mulheres dirigindo filmes com protagonistas femininas. De "Mulher-Maravilha" (2017), dirigido por Patty Jenkins, ao recém estreado "Arlequina em Aves de Rapina" (2020), dirigido por Cathy Yan, blockbusters femininos estão invadindo as salas - para o desespero dos machos de plantão, ávidos pelo fracasso de todos os citados e criando a pior "máxima" do momento: "quem lacra não lucra". É interessante ver a conscientização de que filmes de ação não precisam ser feitos apenas por homens, e que mulheres são, também, capazes de cair na porrada - e sempre bom lembrar que, se deixa machista pistola, então deve ser feito.

As novas Panteras são Sabina (Kristen Stewart) e Jane (Ella Balinska). Ao contrário dos originais, o grupo não abre o filme já formado - nem mesmo Sabina e Jane são uma dupla, apenas coincidem de trabalhar no mesmo caso. A terceira (que oficialmente só se tornará Pantera no final) é Elena (Naomi Scott), uma programadora que cria o Calisto, um dispositivo que pode, devido a um erro, ser usado como arma. Ela tenta impedir que o aparelho seja comercializado com a falha, e vira alvo principal de uma corrida para ter o controle do Calisto.

A primeiríssima cena se passa no Rio de Janeiro, com Anitta na trilha-sonora. Claro que é legal ver seu país na tela, mas tudo vai por água abaixo quando fica evidente que ninguém ali nunca viu um brasileiro na vida. Há um diálogo em português que, juro, só soube que não era em húngaro quando a personagem de Stewart faz referência à língua - tive que voltar a cena algumas vezes pra conseguir entender o que eles estavam falando. Péssimo. Até mesmo em "Amanhecer: Parte 1" (2011), que também possui cena no Brasil, houve um trabalho bem feito.


Elena, posso apontar, é a protagonista do rolê. Todas as três possuem bastante espaço na tela, contudo, o maior desenvolvimento recai sobre ela. O roteiro sabe que detém o poder de incluir vertentes feministas, e, sim, elas estão aqui - literalmente já na primeira fala -, mas são assustadoramente rasteiras. Elena é constantemente silenciada por homens que querem impedi-la de consertar o Calisto, e a diminuem hierarquicamente a todo o momento - é uma exposição de opressões simplórias e pouco imaginativas. Até mesmo no mundo corporativo, que a mulher corre for fora, tudo é posto na tela de forma elementar demais - em uma cena, o chefe de Elena diz que fará o Calisto em cores pastel para as mulheres. Okay.

A personagem é composta sob o estereótipo da nerd desengonçada que entra num turbilhão de aventuras e descobre sua força interior. Tudo bem, o ponto de partida é bem óbvio, mas poderia render uma boa mensagem, principalmente para meninas mais novas, limitadas a carreiras "de mulher". Ser espiã, planejar invasões, correr atrás de vilões tatuados e descer o cacete quando necessário não são elementos suficientes dentro do filme. Para uma mulher ser bem sucedida, ela deve ser linda. Belíssima. E magra. E rica.

Uma sequência, quando Elena chega no quartel-general (ou seja lá o nome do prédio), ela entra em um closet enorme cheio de roupas de gripe, assessórios espalhafatosos e saltos do momento. Uma delas fala "Ah, vocês já entraram no primeiro closet?", e a protagonista, encantada, responde: "E tem outro?". As garotas chegam a discutir se podem ficar com as roupas, porque, ser mulher - aliás, ter uma vida feminina divertida - é viver nessa fantasia de riquezas absolutas e roupas intermináveis.

Não dá para negar que é realmente cool ver mulheres estilosas arrasando na tela - Kristen Stewart e sua bisexual energy, maravilhosa -, todavia, é um pouco contestável que tipo de mensagem o longa quer deixar - até porque, olha só, uma delas vai fazer um dos mais insossos pares românticos do cinema moderno. O molde de "As Panteras" é exatamente esse - dá para ser linda e combater o crime ao mesmo tempo -, e é uma boa dose de diversidade o trio, mas faltam alguns pontos que, para mim, são a chave do sucesso dos primeiros filmes.

O primeiro deles é o cuidado que o texto tem em construir suas sequências. "As Panteras" é um "Três Espiãs Demais" (2001-14), ou seja, lógica não é algo que se faz presente. Há cenas que desafiam a física ou coincidências escancaradas, porém, tudo funciona porque, mesmo com absurdismos, não deixa as regras do universo serem quebradas. Por exemplo: no filme de 2000, as Panteras devem se infiltrar em um prédio extremamente bem guardado; elas copiam as digitais, reproduzem as córneas e copiam as chaves de acesso do pessoal autorizado. Lá dentro, ainda devem passar invisíveis e burlar um sistema para completar a missão. Para tudo isso, elas se disfarçam de homens para não chamar a atenção. Agora em 2020, as protagonistas simplesmente roubam os passes de entrada do prédio de algumas pessoas aleatórias e pronto, tá resolvido, entrando com uma peruca. É de uma preguiça gritante.


O segundo é como a história é tão sem graça; é o básico do básico de todo filme de espião que existe neste universo. O roteiro ainda tenta ser surpreendente, jogando reviravoltas sem o menor impacto e que, na real, nem adentram caminhos coerentes. Um deles é que a chefe das Panteras - interpretada pela própria diretora - some no meio de uma missão, o que as levam a crer que chefe é a real vilã. Ela não é, e quase é morta pela dúvida das Panteras, entretanto, tudo é baseado no fato de que ela some sem dar notícias. Sua justificativa é que ela teve que correr atrás do vilão, mas porque ela não simplesmente avisa? Bastava uma mensagem e toda a confusão seria evitada.

O terceiro, e, a meu ver, o mais importante, é que não existe química entre as novas Panteras. O maior sucesso dos originais é como Diaz, Barrymore e Liu são individualmente perfeitas e ainda melhores juntas. Elas são bem diferentes entre si, mas criam um grupo coeso e violentamente carismático. Stewart, Scott e Balinska até tentam, mas ficam na tentativa. As sacadas são bem escassas e a comédia quase inexistente, deixando espaço para muito clichê e piadas perdidas - meio chato a espiã magérrima repetindo o quanto ama comer. O único diálogo relevante foi o de "Birdman" (2015), e um diálogo em quase duras horas? Preocupante.

Banks, que possui um grande currículo como atriz, claramente não possui a mesma competência na condução de um filme. Sua direção é bem limitada e vários momentos demonstra a falta de domínio da linguagem cinematográfica. Uma delas, bem no final, é quando sua personagem é emboscada por vários homens. Ao cair no chão, há uma clara falta de posicionamento de cena - parece que o roteiro não sabe o que fazer -, e isso poderia ser mascarado com uma montagem e fotografia que foquem no rosto da personagem, porém, ao invés disso, o enquadramento abre a cena e captura o momento de cima, impulsionando ainda mais a falta de condução. É artificial e teatral.

A campanha de "As Panteras" dizia que um novo mundo precisa de novas Panteras. Realmente, o mundo mudou demais entre os 20 anos que separam o primeiro filme e o reboot, mas do que adianta termos novas Panteras se elas estão sob um molde tão formulaico e ultrapassado? O que funcionava em 2000 provavelmente soará cansado nos dias de hoje, e "As Panteras" sofre ainda mais em não construir três protagonistas à altura de Natalie, Dylan e Alex. Sem personalidade, originalidade, iconicidade e impacto cultural - tudo o que já existiu com o selo da franquia - de nada adianta entregar uma Charlie mulher para se autointitular empoderador quando nem o entretenimento é de qualidade. Na música tema, Ariana Grande (que encabeça a triste trilha-sonora) canta: "don't call me Angel", e seu pedido é uma ordem.

P.S.: Terem escalado Noah Centineo como par romântico de uma das protagonistas consegue resumir impecavelmente o nível de "As Panteras".

Crítica: “1917” é um exemplo concreto do quão única é a arte do Cinema

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Fotografia
- Melhor Design de Produção
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som
- Melhores Efeitos Visuais
- Melhor Trilha Sonora

Atenção: a crítica contém spoilers.

É divertido acompanhar como uma temporada do Oscar pode ser imprevisível. Se na abertura da janela do Oscar nós tínhamos "O Irlandês" (2019) e "História de um Casamento" (2019) na crista da onda, foi só começarem as premiações da indústria que o quadro virou. Nem mesmo Sam Mendes  (diretor de "Beleza Americana", 1999, e "007: Operação Skyfall", 2012) acreditou quando "1917" venceu "Melhor Filme: Drama" e "Melhor Direção" no Globo de Ouro 2020, o pontapé de uma campanha que, pelo visto, está destinada a terminar com o Oscar de "Melhor Filme" na estante.

"1917" segue dois soldados no meio da Primeira Guerra Mundial, Blake (Dean-Charles Chapman, o único rei decente que vimos em "Game of Thrones") e Schofield (George MacKay, cristal de "Capitão Fantástico", 2016). Blake é escolhido para uma missão quase impossível: ele deve, com a ajuda de Schofield, entregar uma carta que vai impedir um ataque das tropas britânicas e evitar a morte de todos. O destino? O campo de batalha do outro lado do campo alemão.

Não é a premissa mais empolgante do universo. Filmes bélicos chegando no Oscar já estão cansados, e não precisávamos de mais um - principalmente possuindo o favoritismo. Não estava empolgado para 2h de filme histórico nas trincheiras da WWI, porém, vi um vídeo promocional com o making of de uma das cenas e meu queixo caiu. A fita foi filmada como um grande plano-sequência - o que "Birdman" (2015) fez recentemente -, mas indo ainda mais longe. Os cortes de "1917" são bem cuidadosos para não ficarem explícitos, precisando de um olho mais atento para ver onde uma cena começa e termina - com exceção de um momento na metade da duração -, e é por isso que o filme não foi indicado ao prêmio de "Melhor Montagem". Para completar, a narrativa busca precisão na passagem do tempo, começando no fim da tarde e terminando no começo da manhã seguinte.


Um dos problemas que tenho com muitos filmes de guerra habita na motivação dos personagens. Sabemos os fatos históricos, sabemos quem está do lado de quem, mas muitas vezes falta um combustível humano e particular, afinal, a história em questão tem que ser única de alguma maneira. Blake e Schofield possuem a obrigação de levar a carta, contudo, há o fator emocional: o irmão de Blake está na linha de frente do grupo que vai atacar os alemães, então ele fará de tudo para chegar a tempo de salvar a vida de todos aqueles homens.

Não dá para não falar o óbvio: a forma como o filme é filmado é espetacular. A fotografia de Roger Deakins - vencedor do Oscar por "Blade Runner 2049 (2017) - faz um preciso balé coreografado enquanto segue os protagonistas. Dentro das apertadas trincheiras, há um jogo brilhante que reveza entre fotografá-los de frente e de costas, gerando uma fluidez fundamental para tirar a narrativa da morosidade. A mise en scène é explorada lindamente, sempre dando destaque aos vários ambientes que Blake e Schofield encontram pela frente. O design de produção então, de tirar o fôlego. Dos casebres abandonados às planícies destruídas pela guerra, todo o aparato visual de "1917" é impecável e um grande sucesso para o realismo da obra.

"1917" é bastante feliz em solidificar o viés humano de uma situação que esquece disso. Bem verdade que, às vezes, o roteiro dá uma pendida para o emocionalismo, chegando perto de ultrapassar a linha do apelativo, mas até mesmo algumas escolhas - como a cena com a mulher francesa - ajudam a retirar o filme da crueldade que é a guerra. Schofield claramente não queria estar ali - ele demonstra raiva por Blake tê-lo escolhido para partir com ele -, entretanto, seus desejos particulares são irrelevantes quando a vida de tantos estão em jogo. Felizmente, o roteiro abdica da jornada do herói e não santifica seus personagens - talvez por não se tratar de uma cinebiografia (ninguém aguenta mais!!!1); o texto foi inspirado em uma história contada pelo avô de Sam Mendes.


Alfred Hitchcock dizia que o cinema é "a vida sem as partes chatas", e o roteiro de "1917" sabe disso. Por ser uma narrativa ininterrupta, não teria como todas as cenas serem recheadas com ação, então há cuidado nas passagens entre os pontos altos da sessão. Claro que a narrativa dá uma leve estancada, principalmente porque estamos viciados na adrenalina, porém, tudo é muito compensado quando o caos cai em cima dos dois soldados. Inclusive, são nessas "pausas" que a produção encontra vários momentos de extrema delicadeza, como a cena do soldado cantando enquanto toda a tropa espera o momento de avançar na batalha.

Um grande erro em filmes de guerra é a suspensão da atmosfera de perigo. Nem por um segundo duvidamos que a missão dos protagonistas será cumprida no final das duas horas, mas a fita não descansa em tornar o trajeto num inferno. Um grande momento é a cena do avião sendo abatido. Primeiro, ele deliciosamente despenca dos céus diretamente de encontro com Blake e Schofield, e Blake acaba morto pelo piloto. É uma quebra de expectativa bem grande, e o lembrete do filme de que, na guerra, todos os lados perdem. Uma sequência bem triste, foi genial ver que o melhor estava ainda por vir. Uma tropa inglesa aparece no local e dá uma carona para Schofield. Ele, dentro de um caminhão com vários soldados, é focado no extremo centro da tela; os outros conversam aleatoriedades, contudo, a câmera não foge do rosto do protagonista, completamente aquém do que está acontecendo ao redor. Ele não consegue estar presente tamanha a dor pela morte de Blake. É um momento precioso.

Filmes de guerra são um mote que nunca guardei no coração. Claro que há exemplos que coloco minha estante de filmes favoritos, entretanto, abraçando os indicados ao Oscar na última década, a maioria é pura decepção - "Sniper Americano" (2014), "Até o Último Homem" (2016), "Dunkirk" (2017). Jamais pensei que "1917" poderia ser tão arrebatador a ponto de, em várias cenas, ter que me segurar para não chorar. Seja em sequências de apelo sentimental ou por puro milagre visual (o momento dos mísseis é avassalador), o longa é um sucesso por não ser pura perfumaria, uma exibição de poder técnico vazio - cof cof, "O Rei Leão" (2019), cof. Claro que todo o aparato técnico da película chama bem mais atenção que a história em si (pela técnica ser tão perfeita e a trama ser simples e direta), contudo, Sam Mendes usa muito bem seus arsenais para potencializar o drama, o que garante o tamanho apreço da indústria pelo filme. Se não fosse tudo tão bem feito, talvez o enredo não tivesse tanta força.

"1917" é uma excelente produção para nos lembrar da grandiosidade do Cinema - que mídia poderia nos dar uma sessão como a de "1917"? Qual outro formato conseguiria fomentar o mesmo impacto? Indo muito adiante da necessária pretensão de filmes de guerra (que estão cada vez mais ambiciosos), a fita possui a consciência de que toda a fotografia, som, direção de arte e qualquer elemento técnico não sustenta uma arte que é, primordialmente, o ato de contar uma história. Os pequenos tropeços são ínfimos em meio à experiência visual e sensorial que imerge o espectador nos horrores e nas glórias desse período. E quanto maior a qualidade do formato que você esse gigante videogame cheio de fases, obstáculos e objetivos, melhor ele será.

Crítica: “Ford Vs. Ferrari” não é ouro, mas sobe no pódio por não ser um filme de nicho

Indicado a quatro Oscars:
- Melhor Filme
- Melhor Montagem
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

Domingos eram, na minha juventude (o peso dos 30 está batendo), o pior dia da semana. Já que não possuía o poder de decidir que horas acordaria, sempre estava pela manhã, no auge do tédio, de frente à televisão. E o que estava passando? Fórmula 1. Meu pai nunca foi o maior fã do esporte, mas sempre assistia naquelas manhãs, e eu era obrigado a acompanhar a chatice, o que só me fazia detestar ainda mais. Felizmente, hoje me mantenho dormindo enquanto está passando (isso se ainda existe F1 na tevê aberta, algo que não assisto há anos).

Foi por isso que, desde novembro, venho enrolando para assistir "Ford Vs. Ferrari". Do mesmo diretor de "Garota, Interrompida" (1999) e "Logan" (2017) - o cardápio é bem variado -, o filme vai até a década de 60, quando a Ferrari liderava a corrida na F1. A Ford, líder do mercado automobilístico doméstico, queria também ser a rainha das pistas, e decide construir um carro que possa acabar com a hegemonia da Ferrari. Oh, uau, que premissa.

Orei para todas as divindades cujas existências eu não acredito para que o filme não fosse indicado ao Oscar de "Melhor Filme", já que eu teria que assisti-lo - todavia, como já provado, todas essas divindades decidiram ignorar meus apelos. Quando descobri que a fita tinha 2:30h de duração, vi ali o último prego do meu caixão; 152 minutos de cinebiografia histórica sobre F1, fica com deus. Decidi encontrar um momento que estaria de coração aberto para o que viria, principalmente porque essa temporada, para mim, está sendo um horror - se você leu minhas críticas para os indicados a "Melhor Filme" deve estar me achando um porre, mas juro que isso não é o padrão rs. Saudades da temporada de "Moonlight" (2017).

A trama é conduzida por Carroll Shelby (Matt Damon), um ex-piloto campeão que teve que se aposentar por problemas de saúde. Ele é contratado pela Ford para desenvolver o carro que destronará a Ferrari - vencedora há anos da Le Mans, a mais antiga e prestigiada pista de corrida do mundo. Shelby, por sua vez, precisa da ajuda de Ken Miles (Christian Bale), piloto de menor categoria e mecânico. O problema é que Miles é instável e desbocado, o que fará com que a Ford não o aceite tão facilmente.


E esse é um dos vários moldes familiares dentro do corpo da produção. Quanto mais você assiste ao filme, mais pensará "já assisti a isso antes". Grande parte do charme aqui habita na diferença entre os polidos, profissionais e sérios homens da Ford contra o furação que é Miles, uma dicotomia pra lá de abusada. O que mantém esse charme é como Bale está tão divertido na pele do protagonista, e, mesmo não tendo sido indicado ao Oscar de "Melhor Ator" - essa é a categoria mais concorrida da atual edição -, entrega uma performance bem melhor que a de "Vice" (2018), que lhe rendeu uma indicação em 2019. Fazem bastante falta os momentos em que ele não está na tela.

"Ford Vs. Ferrari" é a opção de entretenimento escolhido pelo Oscar. Não que todo filme não seja de alguma forma entretenimento, mas o em questão visa gerar a catarse por meio de toda a agilidade de sua narrativa. É tão verdade que - um dos motivos que me fez ter apreço pelo filme - não é necessário acompanhar toda a baboseira técnica sobre velocidade, peso, curvatura e blá blá blá para ser entendido o que tem que ser entendido, os dilemas pessoais e as rivalidades que fomentam o plot. E, muitas vezes, obras que se aprofundam em áreas muito específicas jogam informações demais na plateia, que se perde no meio de termos técnicos, linguajar físico e afins. Isso não é uma aula, é um filme, então quando explicações de fórmulas ofuscam o entretenimento básico da arte, algo deu errado.

É curioso notar que "Ford Vs. Ferrari" é um daqueles filmes que podemos chamar de "para homens". Elenco absolutamente masculino sobre um esporte predominantemente masculino (existe liga feminina de F1?). Geralmente, o tipo de longa que não tenho interesse em assistir. Mesmo conseguindo me deixar levar pela história, não dá para ignorar como essa é uma película que aflora a masculinidade normativa: chega a ser cômica a cena em que o CEO da Ford associa a corrida contra a Ferrari com a guerra que acabou de ser encerrada. A velocidade, a disputa, o perigo e, claro, a vitória, são elementos vistos como intrínsecos do universo do macho, e os ter é sinal de soberania. Todos estão ali brigando para saber quem é superior em algo que não diz lá tanta coisa - assista ao grego "Chevalier" (2015) para entender do que eu estou falando.

A única personagem feminina é a esposa de Miles, interpretada por Caitriona Balfe. Ela está ali basicamente porque seria de mal tom não colocá-la, afinal, como em inúmeros filmes norte-americanos sobre homens em posição de poder - "Vice", "O Primeiro Homem" (2018), "Ad Astra: Rumo às Estrelas" (2019) -, a esposa é totalmente subutilizada, servindo de mero apoio para alavancar a trajetória do protagonista - ela ainda estrela uma cena quase vergonhosa (salva pelo contexto) quando decide transformar a estrada em uma pista de corrida. Miles tem um filho tão louco por F1 quanto ele, e só pensava o quão legal seria se o roteiro tivesse posto uma menina no lugar - porque parece que ser mulher e gostar de F1 ali era impossível. Fica para a próxima.


Filmes esportivos são bem difíceis de serem feitos por vários motivos. O que angaria a emoção do esporte não é a mesma que emana em uma obra audiovisual. Além disso, como não ser somente uma partida/corrida/o que for na tela grande? E como cativar alguém que não seja fã daquele esporte? Longas com esse sub-gênero estão espalhados pela história - pode pensar em qualquer esporte que vai ter pelo menos um filme sobre -, e muitos deles acabam sendo voltados apenas para os já apreciadores. A conquista mais incrível de "Ford Vs. Ferrari", que me assombrou, é a capacidade da fita de ser um filme sobre F1 para quem não gosta de F1. Claro, se você já adorar o tema vai se deliciar, entretanto, mesmo alguém que detesta o esporte (eu!) vai conseguir gostar da sessão.

O drama - a guerra fria entre a Ford e a Ferrari e a posição de Miles dentro desse jogo - é efetivo o suficiente para manter o interesse e as cenas de corrida chegam a arrepiar. A direção de James Mangold se esbalda nas pistas, construindo a tensão de maneira muito eficaz por meio da união de seu aparato técnico primoroso. A fotografia - que inteligentemente evidencia o azul e o vermelho, as cores das concorrentes -, a montagem elétrica e o fantástico trabalho sonoro colocam o público no banco do carona dos potentes carros.

É bem verdade que a produção não tem vergonha em assumir um lado - ela é totalmente pró-Ford, transformando o lado da Ferrari (marca italiana) em estereótipos unidimensionais -, o que não vai longe de um patriotismo que Hollywood não cansa de produzir. Encontrou uma oportunidade para dizer que os EUA é melhor? Faz um filme que é sucesso. Mas é possível não ficar a duração toda em uma guerra de braço com o filme quando o lado puramente catártico está tão aflorado. É sentar e curtir a viagem.

Caso você tenha algumas horinhas livres para um bom divertimento, "Ford Vs. Ferrari" é o filme para essa tarefa. Sem grandes pretensões na parte narrativa - até mesmo pelos moldes que se enfia e, consequentemente, se limita -, a parte técnica vai para o campo oposto, com elementos visuais e sonoros de primeira categoria. Não é uma obra memorável ou que mereça o apreço dado pela Academia ao indicá-la a "Melhor Filme", no entanto, cumpre seu papel de entretenimento quando seus carros tunados ultrapassam a linha de chegada sem transformar o filme em uma produção de nicho, mesmo não conquistando o primeiro lugar.

Crítica: “Adoráveis Mulheres” tem ótimos vestidos, lindos vestidos

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Atriz (Saoirse Ronan)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Florence Pugh)
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Figurino
- Melhor Trilha Sonora

Eu faço desde 2013 o especial para o Oscar, dedicando-me a escrever sobre todos os indicados ao prêmio de "Melhor Filme" antes da noite da premiação. Na maior parte do tempo, essa é uma tarefa bem agradável: mesmo em anos bem questionáveis (como o atual), é um prazer escrever sobre os longas, analisá-los enquanto arte e enquanto escolhido - dentro de milhares - para representar o melhor que a Sétima Arte nos entregou no período. Na maior parte do tempo.

Sempre houve, em todas as edições, pelo menos um filme que, caso estivesse fora da categoria principal, eu não me daria ao trabalho de escrever sobre. O primeiro argumento para isso é que a escrita é algo que pode parecer uma atividade fácil, mas não é. Vejo críticos lançando seus pensamentos em formato de vídeo e, em três minutos, está feito - algo impossível para a linguagem que você está diante nesse momento. Não que a escrita seja "maior" que qualquer outro formato, é apenas o apontamento de um fato: a escrita é mais complexa que a fala.

Então, ter que me dedicar tanto para escrever 12 parágrafos sobre um filme que me instiga em nada é uma coisa que eu preferiria não fazer, dedicando esse tempo a falar de alguma fita que consiga me entregar mais durantes seus 100-e-lá-vai minutos. Em todos esses anos, o único dos indicados que deliberadamente não escrevi sobre foi "Pantera Negra" (2018), pois, como já deve ter ficado claro caso você acompanhe essa coluna, não tenho tanta paciência com filmes de super-heróis, o oposto da imensa massa ávida para massacrar na internet qualquer pessoa que ouse falar mal dos seus sagrados filmes - e não estava com paciência para ser xingado gratuitamente ou receber ameaça de morte (como críticos receberam por não aprovar o filme) por exercer meu direito de livre expressão e meu trabalho enquanto crítico. É pior quando o texto vai contra um filme largamente amado pela "maioria", que, em pleno 2020, ainda não aprendeu que sua opinião não é sagrada a ponto de ser intolerável alguém pensar o oposto.

Esse texto provavelmente terminará sendo mais um desabafo do que uma crítica convencional porque eu não sei aonde chegarei no final dela - o que é uma exceção dentro do meu trabalho, sempre sei o que quero falar sobre cada filme. Mas "Adoráveis Mulheres" (Little Women) foi um caso bastante complicado para mim. Baseado no livro de mesmo nome lançado em 1868 pela autora Louisa May Alcott, o romance é um dos mais lidos da história norte-americana, vendo sucesso imediato. Por isso, não é de se espantar que já foi adaptado para o cinema sete vezes. Sim, há sete filmes com a mesma história.


O primeiro deles foi lançado em 1917, no engatinhar da arte, e está perdido desde então. Quase 100 anos após, a mais nova versão foi lançada com a assinatura de Greta Gerwig, uma das mais sensacionais cineastas em atividade - é dela o maravilhoso "Lady Bird" (2017), um dos 100 melhores filmes da década aqui no Cinematofagia. E se Greta faz algum projeto, a gente assiste. O filme conta a história de quatro irmãs: Jo (Saoirse Ronan, indicada ao Oscar de "Melhor Atriz" pelo papel), Amy (Florence Pugh, dona da minha vida e indicada a "Melhor Atriz Coadjuvante"), Meg (Emma Watson, a proprietária da franquia "Harry Potter") e Beth (Eliza Scanlen, em um dos seus primeiros trabalhos em um longa).

A trama gira em torno das diferenças entre elas enquanto, unidas, sobrevivem à Guerra Civil e à cultura da época. A primeira cena é Jo tentando vender uma de suas histórias para um jornal, que aceita mediante edições. O editor fala que a próxima histórias devem ver suas protagonistas casadas ou mortas - esses são os únicos finais esperados para uma mulher na época. Sim, esse é um filme feminista, amém. Alcott, a autora, era ativista e usa suas personagens para falar suas ideias em prol da igualdade de gênero - o que Greta também faz com seus filmes.

Elenco fantástico, ótima diretora, filme feminista, era a receita perfeita para eu chamar de "filme do milênio". Todavia, não demorou muito para que eu começasse a perceber que, talvez, "Adoráveis Mulheres" não teria todo o amor que eu separei para ele. Logo no primeiro ato, na segunda cena, se não me engano, há um momento em que Jo fica ao lado de uma lareira. Entra um personagem, olha calmamente para ela, e fala: "You're on fire". Ela agradece o "elogio" ("on fire" em inglês é uma expressão que, metaforicamente, significa "você está arrasando"). Ele replica: "You're really on fire", com seu vestido pegando fogo. Eeeerrrrr.

Esse tipo de diálogo, uma sacada ixperta para possuir apelo cômico, é uma das mais rasteiras estratégias textuais que existem. Já foram usadas à exaustão e são vergonhosas. Ah, mas é apenas uma cena, você pode dizer, só que isso é repetido por todo o filme, que tem tentativas incompetentes de """comédia""" bastante destoantes da seriedade do todo.

Como já disse, o longa de Greta é a sétima versão da mesma história. Curiosamente, assisti a nenhuma das outra seis, e nem li ao livro que deu base para todos, o que me permitiu analisar "Adoráveis Mulheres" sem precisar compará-lo com seus irmãos - para a sua sorte, porém, não é necessário ver tudo o que já foi produzido a partir do texto original para entender seus objetivos e limitações, é uma história contada em diversos outros meios. A cada minuto, uma impressão se tornava mais sólida: a fita parecia bem mais um "Lady Bird" com os personagens usando vestidos de época. Já falei aqui na coluna algumas vezes que uma das falhas mais comuns - e que realmente me fazem desapreciar um filme - é como a história se passa em outra época, mas os atores agem como se fosse uma produção moderna.

"Adoráveis Mulheres" cai no erro fácil de ser totalmente artificial dentro da faixa de tempo que sua história se finca. Isso, é claro, dentro da gigante subjetividade que permeia qualquer arte - li críticas que diziam que o filme triunfa exatamente por parecer fidedigno à época, o extremo oposto do que acho. Uma delícia como o Cinema consegue, com o mesmo filme, fomentar sentimentos tão diferentes em diferentes pessoas, e está tudo certo.


O primeiro ponto que culpo para gerar tal impressão é a direção dos atores. Greta não executa um estudo teatral do séc. XIX a ponto de retirar o expectador da sua própria realidade e compor uma linguagem compatível com os quase 200 anos que separam a história com a atualidade - isso não posso dizer do aparato estético, com o design de produção sendo um sucesso e mostrando bem as discrepâncias entre a riqueza e a pobreza de sua história. A direção dos atores é tão estranha que há momentos quase amadores de atrizes tão assustadoramente incríveis - não sobrou nem para Meryl Streep, em um dos piores papéis da sua filmografia recente. Há uma cena em que Florence Pugh chora do lado de fora de uma janela que me deu vontade de desistir do filme.

E falando em Pugh, desde 2017 afirmo que sua carreira iria decolar quando vi seu sensacional trabalho em "Lady Macbeth" - eu a teria indicado ao Oscar ali mesmo -, então tenho uma ligação mais estreita com a atriz por acompanhá-la (e adorá-la) desde o começo. É um prazer vê-la recebendo tamanho reconhecimento ao ser indicada por "Adoráveis Mulheres", contudo, a distância entre o requinte de qualidade de seu desempenho entre "Lady Macbeth", que também é um filme de época, com o papel de "Adoráveis Mulheres" é gritante. Nem parece ser a mesma atriz. Para apaziguar meu coração, finjo que ela foi indicada por "Midsommar: o Mal Não Espera a Noite" (2019), filme que extrai o que ela tem tanto a oferecer, o que não acontece aqui.

O segundo ponto é quão unidimensionais são as personagens. A dinâmica da produção ocorre quando evidencia as diferenças entre as irmãs, e são essas diferenças específicas que as fazem ser quem são enquanto estudo de personagem. Não há grandes desenvolvimentos, não há preocupação em tirá-las das caixinhas de "Jo é a revolucionária", "Beth é a tímida" etc.

Para burlar as dicotomias e criar uma união, a escolha feita pela fita foi: em todas as cenas que as irmãs interagem entre si, elas falam ininterruptamente, uma por cima da outra. É tão artificial que tentei contar os segundos entre as falas, e eles inexistiam. É quase um monólogo proferido por quatro bocas, e muitas vezes elas proferem detalhes totalmente irrelevantes, apenas para preencher espaço. Achei a escolha tão desastrosa que meus níveis de ansiedade já estavam nas alturas quando, literalmente, não há um segundo de respiro entre cada diálogo. Vou ter que apontar o óbvio para ver se consigo me poupar: você pode achar a mesma estratégia um primor, pode dizer que esse é um dos detalhes que lhe fizeram amar ainda mais o filme, tá? Obrigado.

E olhava no relógio, 1h de sessão, e a trama quase não havia avançado - e o que tinha acontecido até então era, particularmente, muito desinteressante. Bem verdade que algumas discussões são muito boas - a forma como a vida feminina era intrinsecamente ligada ao matrimônio e como o casamento era, antes de tudo, um acordo comercial - no entanto, precisava de mais de 2h para mostrar uma ideia tão elementar? Talvez esse não seja um filme para mim?

Sinceramente, não possuo essa resposta. Até a própria nota do filme, não consegui chegar em um consenso interno - na verdade eu não queria mais pensar sobre a obra e dei um número que considero padrão para o que senti sobre o filme. A indagação central que habitava o imaginário antes da sessão era: será se o estilo narrativo de Greta Gerwig funcionaria com um drama de época? "Adoráveis Mulheres" é a retomada de uma história já exaustivamente contada na tela sem acréscimos ou renovações que justifiquem a sua existência - só lembrar da versão de 2018 de "Nasce Uma Estrela", a quarta filmagem da mesma história que elevou a trama a um patamar jamais visto nas três primeiras; ou até mesmo na renovação de "Suspiria" (2018), que se apropria da obra original para ir além. Esse é o papel de um revival, e, durante a projeção de "Adoráveis Mulheres", a única coisa que conseguia apreciar era resumida pelo lendário quote de Aretha Franklin:



Crítica: “O Escândalo”, a cultura do estupro e as escolhas de gênero na realização do cinema

Desde o boom do movimento "Me Too" em 2017 - potencializado pelas acusações contra o produtor Harvey Weinstein, magnata de Hollywood -, a indústria se mantém mais alerta às condutas predatórias dos homens em altos cargos. Uma das peças solidificadoras do movimento, dessa vez no mundo da televisão, foi quando a jornalista Gretchen Carlson processou Roger Ailes, presidente da gigante Fox, de assédio sexual em 2016.

O projeto para "O Escândalo" (Bombshell), adaptação do caso, foi aprovado assim que Ailes faleceu em 2017. No filme, o plot orbita em torno de Gretchen (interpretada por Nicole Kidman); Megyn Kelly, uma das maiores apresentadoras da Fox no período (interpretada por Charlize Theron); e Kayla Pospisil (Margot Robbie), uma repórter recém-contratada pela emissora, a única das protagonistas a não ser baseada em alguém real. John Lithgow é Ailes, em uma versão mais insana do seu Winston Churchill em "The Crown".

O início da fita é totalmente a cara do seu roteirista; Charles Randolph, que ganhou um questionável Oscar pelo roteiro de "A Grande Aposta" (2015), emula o estilo ali usado e que (infelizmente) é uma das febres da Hollywood moderna: "O Escândalo" abre como um documentário, com a personagem de Theron quebrando a quarta parede enquanto explica os acontecimentos dos corredores da Fox. O tom dado é inquestionável: esse é um filme que se passa no coração dos EUA, lida com sua cultura e expõe seus indivíduos.

Um desânimo imediatamente me abateu - os dois últimos grandes longas com esse estilo foram sofríveis ("Vice", 2018, e "As Golpistas", 2019) -, todavia, foi uma bênção quando vi que tal escolha criativa foi apenas para a introdução, sendo deixado de lado rapidamente e adotando uma narrativa convencional. Dá para se questionar se esse prólogo involuntário não seria dispensável ou uma quebra de estrutura evitável, porém, não consigo nem apontar como defeito quando o estilo foi abandonado.

Outro aspecto que pode desanimar no primeiro ato é a maneira que o filme adentra no cenário político norte-americano. Os eventos que levaram a exposição de Ailes têm como linha de partida a ascensão de Donald Trump na corrida presidencial. O passeio pelas tensões políticas e sociais do país pode soar chato, mas é importante para visualizarmos como a misoginia é peça preponderante daquela cultura - Trump ataca Kelly pelo Twitter após uma entrevista, e usa a imagem da mulher como artilharia.


Por estar no seio de uma das mais poderosas emissoras do planeta, a película mostra a correlação entre jornalismo e política, algo importante de ser lembrado. Não como uma "aula na tela", e sim com alguns momentos bastante sutis - há uma cena em que uma repórter explica para Kayla que tipo de histórias a Fox vai aceitar contar, que nada mais é que um estudo das linhas editoriais, um aspecto primordial para comprovar a ilusão da imparcialidade do jornalismo. E meu diploma de jornalismo se sentiu feliz em ver essas abordagens no filme.

Se a Fox possuía um molde para agradar o seu público-alvo (majoritariamente conservador e eleitor do Trump), as contratações também passavam por um crivo bastante específico quando falamos de mulheres: elas eram contratadas não pelo currículo, e sim pela aparência - as jornalistas são obrigadas a usarem apenas vestidos e as bancadas são transparentes para que suas pernas fiquem sempre em evidência (!?!?). Kayla, almejando um cargo mais elevado dentro da empresa, consegue um encontro com Ailes, afirmando que poderia ser muito útil para a Fox. A metodologia do homem para aceitar ou não a proposta é fazer com que a mulher dê uma "voltinha" para que ele analise o "material".

Kayla, meio desconcertada, jocosamente atente ao pedido, que, para seu assombro, vai além da "voltinha". Ailes pede para que ela levante o vestido e mostre suas pernas. Essa cena é importantíssima dentro da obra, e possui vários pontos para discutirmos. Kayla vai levantando seu vestido cada vez mais até mostrar sua calcinha, mesmo claramente se sentindo agredida por aquilo. Quem está do lado de cá pode se questionar porquê diabos ela se submeteu a aceitar aquilo quando poderia virar as costas e ir embora, mas esse é um pensamento que exclui um fator que muda tudo.

O poder que aquele homem possui. Ele é um dos mais influentes empresários de todo o país, e detém a possibilidade de criar e destruir carreiras com um telefonema. É deveras intimidador receber um pedido de Ailes, e muitas vezes as mulheres ficam tão abismadas com o ocorrido que não conseguem nem ao menos pensar de forma clara o que está acontecendo. Uma das mulheres reais que denunciaram Ailes contou em entrevista que até hoje não sabe porque fez o que o homem pedia em um dos encontros em seu escritório privativo, e essa pergunta deve assombrá-la pelo resto da vida - algumas das personagens reais da história, como Megyn Kelly, estão em uma entrevista sobre o filme e a veracidade do mesmo.

É crucial que a personagem de Robbie seja inventada pois é ela que é assediada na tela - nem sou capaz de imaginar uma das mulheres reais vendo sua personagem, com seu nome e sua caracterização, na posição gráfica da cena. É verdade que a sequência em questão poderia ser muito mais refinada - seria bem mais interessante colocar a câmera no rosto da personagem enquanto ela levanta o vestido do que focá-la de corpo inteiro para que todos possam ver o que Ailes viu, uma cena grotesca. Pode ser que a escolha seja para tornar o espectador cúmplice daquele absurdo e, assim, gerar ainda mais revolta (o que pelo menos aqui funcionou), no entanto, com algo tão delicado, seria melhor a sutileza.


Kayla sai da sala após o assédio e continua sua vida sem revelar o que aconteceu. Quem teria coragem de acusar aquele que paga seu salário? Uma sequência bastante correta é quando Rudi Bakhtiar, uma âncora da Fox, é assediada por um apresentador. O roteiro intercala inteligentemente a conversa dos dois com os pensamentos da mulher, e a jornada que se passa em sua cabeça é elucidativa: ela se culpa, tenta barganhar com o homem e até passa a mão em sua cabeça, tirando a culpa que obviamente é dele. Por negar o assédio, ela é sumariamente demitida. É um sistema totalmente construído para oprimir e sair ileso.

Com a abertura do processo de Gretchen, ela precisa de reforços dentro da Fox para poder ter força contra Ailes, que possui a maior equipe possível para lhe proteger. O principal nome é o de Megyn, o maior nome feminino dentro da emissora. Ela também foi assediada por Ailes, mas não sabe se deve ou não vir a público por não querer ver sua carreira ser eternamente associada com isso. É engraçado até vê-la renegar o título de "feminista", usando a palavra como se fosse um palavrão, o que dá uma camada interessante de composição em sua personagem, que é dotada de lados certos e errados.

Como as premiações já comprovaram, as três protagonistas estão fenomenais. Kidman (a que menos possui espaço, mas que ainda assim conseguiu ser indicada a "Melhor Atriz Coadjuvante" no SAG 2020), adiciona mais um ótimo capítulo no seu retorno ao topo em Hollywood. Theron, que já tem um Oscar para chamar de seu por "Monster: Desejo Assassino" (2003) e acumula mais uma indicação a "Melhor Atriz", despe-se inteiramente a fim de incorporar a persona de Megyn Kelly, e confesso que achei que era a jornalista real nas primeiras cenas, tamanha competência de sua performance e do fenomenal trabalho de Maquiagem, o favorito ao Oscar da categoria. E Margot Robbie, ah, Margot Robbie... Sua segunda indicação ao prêmio da Academia - a primeira foi pelo maravilhoso "Eu, Tonya" (2017) - é um ponto final para qualquer dúvida sobre o imenso talento da atriz, que, mesmo tão nova dentro da indústria, já é um dos grandes nomes. Duas cenas em destaque para ela: a do assédio e quando ela finalmente revela o ocorrido. Aquele elevador, o único momento a unir as três na tela, teve que sustentar.

Muito tem se falado sobre como "O Escândalo" é o "Green Book: o Guia" (2018) da temporada porque é um filme sobre mulheres, mas escrito e dirigido por homens - assim como "Green Book" tratava sobre racismo sendo feito por brancos. Já abordei essa discussão diversas vezes aqui no Cinematogafia, entretanto, vamos repetir até entendermos. É inteiramente verdade que "O Escândalo" teria bem mais potencial se feito por mãos femininas, todavia, não podemos dizer quem pode falar o quê dentro da arte. Não podemos criar um apartheid artístico, delimitar temáticas para grupos específicos, pois, ao invés de evocar uma inclusão, excluiremos. Demandar mais inclusão e representatividade é feita por um caminho diferente, e diminuir "O Escândalo" só por ser dirigido/escrito por homens não acrescenta muita coisa para a complexa discussão da arte. Local de fala não garante competência artística. 

Colocando em uma balança, "O Escândalo" tem mais glórias do que tragédias, mas imprime a impressão de que todo o potencial que a história poderia ter não foi atingido - as atuações irretocáveis auxiliam a alavancar o apreço da obra. Se sua opção mais importante enquanto filme é gerar um senso de urgência sobre o assédio sexual e a cultura do estupro, é um objetivo atingido. A produção funciona bem como aviso para a indústria, cada vez mais atenta para esse crime ainda tão difícil de ser revelado, porém, deixa um gosto amargo ao fim: mesmo com as mulheres envolvidas na história possuindo enfim voz, o problema não foi solucionado. Cabe as vítimas aprenderem a seguir com suas vidas e com a mácula causada por um homem que fez o que fez como imposição de poder e convicção de impunidade.

Crítica: “Jojo Rabbit” usa a ridicularização como arma de massacre ao Nazismo

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a seis Oscars:
- Melhor Filme
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Atriz Coadjuvante (Scarlett Johansson)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Montagem
- Melhor Figurino

Numa rápida aulinha sobre qual é o primeiro passo para chegar ao Oscar, "Jojo Rabbit" é um bom exemplo para exemplificarmos. Engana-se quem acha que os indicados a "Melhor Filme" são estritamente aqueles que a Academia considera os melhores do ano; para figurar entre os até 10 indicados, há vários passos a serem seguidos. O primeiro deles é: seu filme deve estrear em um dos principais festivais de Cinema do mundo.

De Cannes a Berlim, vencer em um festival é um empurrão incrível na temporada, porém, é ainda melhor quando o filme estreia durante a abertura da janela do Oscar, que ocorre de outubro a dezembro. Foi a estratégia da Fox com "Jojo Rabbit", lançando-o no Festival de Toronto, um dos maiores do período. Para melhorar sua campanha, o longa venceu o "People's Choice Award", a maior honraria de lá. E tal prêmio é um catapultador para o careca dourado, vendo nove dos 10 últimos vencedores sendo indicados pela Academia - o vencedor de 2018 foi "Green Book: O Guia", que levou o Oscar de "Melhor Filme" (mesmo que sem merecer). Não por acaso, "Jojo Rabbit" saiu com seis indicações no Oscar 2020, incluindo "Melhor Filme".

"Jojo Rabbit" é uma sátira da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Um garotinho, Jojo Betzler (Roman Griffin Davis), faz parte da "Juventude de Hitler", um grupo com crianças e adolescentes adoradores de Adolf Hitler. Ele é obcecado pelo führer, tendo-o como amigo imaginário (interpretado pelo também diretor e roteirista Taika Waititi), que o aconselha na sua jornada de adoração ao Nazismo. Sua vida vira de cabeça para baixo quando o menino descobre que sua mãe, Rosie (Scarlett Johansson), esconde no sótão Elsa (Thomasin McKenzie), uma garota judia.

Filmes sobre a Segunda Guerra em Hollywood? Groundbreaker. O tema já foi explorado à exaustão dentro da indústria, necessitando renovações de abordagens, e essa é uma das missões de "Jojo Rabbit". Waititi possui um cinema que casa bem com o estilo, já vindo com os deliciosos "O Que Fazemos Nas Sombras (2014) e "Fuga Para a Liberdade" (2016) - assista aos dois, são pérolas - antes de cair nos braços de Hollywood com "Thor: Ragnarok" (2017), então ele é o realizador certo para tal projeto.

Uma das maiores críticas ao filme desde o Festival de Toronto é sua abordagem diante do Nazismo. Uma tragédia sem precedentes para a humanidade, seria correto usar um tom jocoso ao retratá-lo? Fui ao filme com imensa preocupação de como os horrores do período seriam retratados na tela, mas, se tratando de Waititi, não poderíamos esperar algo realmente sério.


A obra a todo o momento ironiza a lógica nazista, colocando-a sob uma luz patética. A mãe de Jojo informa que ele passou semanas aos prantos quando descobriu que o avô não era loiro, ou o quartel que pede vários pastores alemães (os cachorros) e um oficial traz literalmente pastores alemães (os camponeses). Tudo é gritantemente ridículo. Há uma ideia de que o bom humor é aquele que zomba o opressor, não o oprimido, e o texto de "Jojo Rabbit" não tem medo de fazer isso, afinal, nazista tem mesmo é que virar chacota.

Não que o humor do filme seja genial - há sacadas e momentos muitíssimos inspirados, mas a fita não consegue ser uma black comedy engenhosa e brilhante; o humor é melhor executado em "O Que Fazemos Nas Sombras", por exemplo. E o motivo para isso talvez reside no caminho final que a película anseia atingir: esse é um feel good movie, aquele que quer terminar com um sorriso no rosto, que quer que a plateia vá leve para a casa.

Por ser um feel good movie, muito da ousadia que o tema poderia render é ceifada a fim de manter o território em um campo mais seguro, o que definitivamente explica como a fita venceu o prêmio máximo no Festival de Toronto, derrotando nomes bem superiores como "História de um Casamento" (2019) e "Parasita" (2019): é o público que escolhe o filme favorito da seleção, e o molde de "Jojo Rabbit" é bem mais agradável no geral que os outros dois citados. É mais fácil de digerir quando o tom no final da sessão é tão ensolarado.

O cerne da produção está na relação entre Jojo e Elsa, a judia clandestina. Boa parte da duração é dedicada para os dois personagens, que são executados com muita competência pelos seus intérpretes - Thomasin McKenzie já havia mostrado seu talento no ótimo "Sem Rastros" (2018) e Roman Griffin Davis, que mesmo com apenas 12 anos e em seu primeiro trabalho na tela, consegue ditar os rumos da película, rendendo-lhe uma merecida indicação ao Globo de Ouro 2020 de "Melhor Ator - Comédia". Não há o que se queixar nesse departamento. Nesse.

Não me choquei quando vi que havia sido "Green Book" o antecessor de "Jojo Rabbit" em Toronto após terminar o filme: os dois possuem a mesmíssima estrutura - o inimigos-que-vão-aprender-a-conviver-e-acabam-descobrindo-que-gostam-um-do-outro. Desde comédias românticas com um casal que se odeia e vai inevitavelmente terminar junto ou o caso de "Green Book" e o desastroso "The Nightingale" (2018), ambos com um protagonista racista que vai rever seus preconceitos ao conviver com um personagem negro, "Jojo Rabbit" abusa do comodismo ao costurar a relação de Jojo e Elsa: o final é previsivelmente harmonioso.


O que o faz sair na frente dos citados são escolhas criativas no caminho dessa relação. A maneira como Elsa é introduzida na fita remete aos melhores momentos do terror satírico de "O Que Fazemos Nas Sombras" - ela entra em cena como um fantasma, e os enquadramentos evidenciam essa impressão. Ela usa os maiores (e mais ridículos) estereótipos que o Nazismo inventava sobre os judeus ao seu favor, como dormir de cabeça para baixo como morcegos e conseguir ler mentes. É bizarro saber que essas ideias eram realmente disseminadas para fomentar o ódio contra judeus, e o roteiro sabiamente se apropria delas para humilhar o fascismo ariano.

E temos, claro, o diretor como Hitler. Foi um passo ambicioso de Waititi ao incorporar uma das mais odiadas figuras da história, o que reforça seu posicionamento de zombaria - Hitler teria um ataque do coração ao ver um homem negro interpretando o ápice do orgulho babaca ariano. Seu Hitler é imbecil de uma forma diferente do que o real Hitler era, indo para um lado mais caricaturado e cartunesco, afinal, ele é fruto da imaginação delirante de um garoto de 10 anos. Apesar de adicionar na patifaria, sua aparição não funciona sempre. Convenhamos, seria impossível não compará-lo com o melhor Hitler do cinema, o de Charlie Chaplin em "O Grande Ditador" (1940), que também caçoa do führer, e o fascista de 80 anos atrás larga muito na frente, mesmo sendo concebido no meio do auge nazista.

Chamo a atenção para um subplot interessante dentro do roteiro: há dois capitães nazistas que são um casal gay, interpretados por Sam Rockwell (vencedor do Oscar por "Três Anúncios Para Um Crime", 2017) e Alfie Allen (de "Game of Thrones"). A abordagem para os dois começa bem sutil, com troca de olhares, até deixar mais comicamente elementar, como quando eles mostram desenhos de suas futuras roupas de combate, que mais parecem um figurino usado por Elton John em alguma turnê. O personagem de Rockwell, quando a Alemanha é derrotada e os nazistas capturados são levados para a morte, salva a vida de Jojo ao dizer que o menino é judeu, o que enfureceu muitos por mostrar que "nem todo nazista é malvado".

Acho essa lógica um tanto quanto simplória diante de algo que é bem mais complexo. Não é de se espantar que um casal gay se misture como nazistas para não acabarem mortos, mesmo eles reforçando um status quo que matou tantos outros gays. Não enxergo a escolha do filme como uma passada de mão na cabeça do Nazismo, e sim uma pontuação de que, como humanos, somos capazes de atrocidades e legítimos atos de bondade. Era claro que o personagem não concordava com as leis vigentes, apenas dançava conforme a música para sobreviver (vide a cena que ele acoberta Elsa quando a Gestapo vai até à casa de Jojo).

"Jojo Rabbit" não é superior aos convencionalismos intrínsecos do feel good movie ao não possuir a coragem de empurrar sua sátira para um nível mais ousado e inteligente. Existem lampejos de tragédia e veracidade (o final da personagem de Scarlett Johansson foi uma surpresa), mas sempre há algo que puxa a fita para baixo, deixando-a na sua zona de conforto. A fita é uma boa sessão por ser um filme que enche os olhos e pela forma como lida com absurdismo essa situação absurda, ironizando posições de poder que deliberadamente escolhem oprimir. Não temos uma didática aula de como o Nazismo é uma mácula - isso já deveria ser óbvio -, e sim uma reformulação na maneira como a arte o critica, por meio da ridicularização. A produção deixa claro como ideologias são fundamentalmente inventadas e ensinadas, caso contrário, aquele pobre e ignorante menino de 10 anos não veria Adolf Hitler como um deus.

P.S.: a cena do "Heil Hilter" por si só carrega nas costas toda indicação do filme a qualquer prêmio de "Melhor Roteiro".

Crítica: “Dois Papas” aparenta ter sido pensado na hora que ligaram as câmeras

É bastante gratificante ver como Fernando Meirelles está aumentando seu portfólio na indústria após ser o primeiro diretor brasileiro a ser indicado ao Oscar de "Melhor Direção" pela obra-prima "Cidade de Deus" (2002) - que é co-dirigido pela Kátia Lund, injustiçada ao ser sempre esquecida na ficha do filme (ela nem ao mesmo foi indicada ao Oscar). Ele dirigiu os hits "O Jardineiro Fiel" (2005) e "Ensaio Sobre a Cegueira" (2008), todos no seio de Hollywood, vendo seu mais novo longa, "Dois Papas" (Two Popes), sendo produzido e distribuído pela Netflix.

É válido entrarmos na discussão sobre a plataforma e seu posicionamento diante da temporada de premiações. A Netflix em 2019 está no apogeu dentro do circuito da Sétima Arte, vendo quatro dos 10 indicados a "Melhor Filme" no Globo de Ouro 2020 sendo originais seus - "História de um Casamento", "O Irlandês" e "Dois Papas" em "Drama"; "Meu Nome é Dolemite" em "Comédia", um feito histórico. Mesmo "Dois Papas" não encabeçando a campanha - a plataforma tem focado bem mais em "História" e "O Irlandês" -, "Dois Papas" tem encontrado seus adeptos.

A obra começa com a morte do Papa João Paulo II em 2005. Os líderes da Igreja Católica partem para o Vaticano a fim de elegerem o novo papa, e a disputa está entre dois nomes: o alemão Bento XVI (Anthony Hopkins) e o argentino Francisco (Jonathan Pryce). Quem vive em um contexto católico já sabe o resultado: Bento XVI vence a eleição.

Por ter um núcleo no Vaticano com pessoas de absolutamente todos os cantos do planeta, é importante avaliar como é o uso da língua, afinal, todo mundo falando um inglês sem sotaque à la uma novela da Glória Perez não denotaria cuidado. Como era de se esperar, há uma pá de cenas em italiano, porém, Pryce sofre quando entra na língua materna de seu personagem. Francisco é argentino, no entanto, Pryce não fala espanhol. A solução foi dublar todas as suas falas na língua, o que é gritantemente artificial. A mixagem de som nas cenas em específico é tão desregulada que é quase impossível manter a atenção no que está acontecendo, principalmente quando há outros atores falando um espanhol verdadeiro. 


Para piorar ainda mais, a produção tenta esconder a falta de sincronia entre a boca de Pryce e a dublagem entupindo as cenas com milhares de cortes e colocando o ator atrás de pessoas, portas, janelas e o que tiver pela frente. Há um momento que Francisco caminha por um mercado e, o que seria uma sequência simples (ele apenas conversa e sai do local), é exagerada ao extremo com cortes, ângulos e movimentos para driblar a dublagem, tudo em vão.

Então o """estilo""" é arrastado em diversas outras cenas. Há duas sensações quentíssimas a partir disso: a primeira é que o filme se esforça herculanescamente na dificultação de cenas que são simplórias, no intuito de parecerem mais intricadas; a segunda é que não havia uma ideia fixa e bem definida da estética imagética da obra na pré-produção, sendo feita na hora que as câmeras eram ligadas. Na primeira conversa entre Bento e Francisco na residência papal, anos depois da eleição de Bento, os dois fazem um passeio pelo jardim do lugar, e a câmera vai para ângulos e enquadramentos totalmente aleatórios, sem uma fluidez para o que mais importa, que é o texto. Parece bem mais que as escolhas são feitas pela beleza das locações - que são incríveis - do que unir o visual com o narrativo. É gratuito um corte estar no rosto dos personagens e partir do nada para um ângulo aéreo e depois para atrás de um arbusto (?).

O cerne de "Dois Papas" habita na relação entre os dois personagens títulos. A película não demora em definir o posicionamento da dinâmica entre os dois homens, quando Francisco está no banheiro assoviando a melodia de "Dancing Queen" do ABBA, música que Bento jamais havia ouvido - e a fita não perde a oportunidade e coloca a cena da votação embaixo da música, um anacronismo bem charmoso. Inclusive, essa cena da votação, logo no início da sessão, é a melhor de todo o filme pela montagem ágil e energética, e a fotografia belíssima, que foca no contraste entre o branco sacro da Capela Sistina com o vermelho das vestes dos votantes. É aqui que as escolhas são corretas, porém, a sequência diverge de basicamente todas as outras em termos de composição e ritmo, então o que funciona aqui não funciona no resto.

A beleza real do longa é a dicotomia entre os personagens, uma dupla que é feita com arquétipos nada novos, mas que são eficazes. De um lado temos Bento XVI, o papa velho, doente e reacionário, contra Francisco, o novo e (dentro dos enormes limites da religião) revolucionário papa que diz que o perdão ajuda o pecador, não a vítima, enquanto assiste futebol e acha que cada gol é um presente do altíssimo. Suas composições são reflexos do status vigente da igreja: Bento enfrenta o escândalo dentro do Vaticano sobre corrupção e pedofilia. Sua instituição está tão falida quanto sua pessoa, e todos precisam do frescor de um novo papa e uma nova igreja, com ideias mais coerentes com a sociedade atual, e esse é Francisco.

Francisco almeja sua aposentadoria do sacerdócio, todavia, o único que tem o poder de conceder tal desejo é o próprio Papa, e Bento se nega veementemente. Seus motivos são revelados quando ele começa a se familiarizar com o "rival": ele quer que Francisco o substitua quando anunciar sua renúncia, um escândalo por si só - um papa não renunciava o cargo há mais de 700 anos. O roteiro é uma repetição dessa teimosia, cada um querendo algo que anula o desejo do outro, e o impasse cansa já na metade do filme.


Falando na duração, "Dois Papas" tem 125 minutos, o que é bastante sólido. Entretanto, pelo menos meia hora poderia ter sido deixada de lado. No segundo ato, o filme literalmente interrompe seu plot central para acrescentar um paralelo: Francisco não se acha digno do posto de papa pelo o que ocorreu durante a ditadura militar argentina. São 25 minutos de flashbacks remontando o que gerou essa mácula no homem, e este outro filme destoa completamente do que "Dois Papas" realmente é. Os rumos vão ladeira abaixo com o típico mote aula-de-história-na-tela, e só comprova o erro que é essa bagunça de decisões sem firmeza dentro da produção.

O roteiro adentra demais em um período histórico da Argentina que não tem o peso compatível com o espaço dado a este período. É interessante vermos o passado de Francisco para ilustrar o que o fez ser tão diferente de Bento XVI, principalmente quando aborda o passado na ciência do homem, só que nada é capaz de render misericórdia para uma mudança tão brusca de narrativa. Além disto, chega a ser cômico como o texto de Anthony McCarten (escritor do livro que o filme se baseia e do roteiro de, eeeeerrrrr, "Bohemian Rhapsody", 2018) é recheado de sacadas para ser inteligente. É verdade que alguns diálogos são bem inspirados - o da construção de muros ao redor da igreja, por exemplo -, mas é muito forçado o uso de pontuações gratuitas para serem usadas em outros momentos só para parecer que o roteiro foi pensado de maneira abstrua - como a fala de Bento sobre a fumaça de uma vela que previsivelmente será usada em outro momento.

O que faz "Dois Papas" ser minimamente assistível é a atuação fantástica da dupla protagonista. Tanto Hopkins quanto Pryce são majestosos na pele dos papas que não se bicam, e assusta como ambos são parecidos com os papas reais - Pryce é a cópia do Papa Francisco, até nas cenas com imagens reais dá para gerar uma dúvida. Mesmo em cenas que não possuem tanto brilho, suas performances fazem tudo valer a pena, e não havia possibilidade de esperarmos algo diferente. Meirelles, que dirige com tropeços o longa, não precisa nem suar para retirar o melhores dessa dupla monstruosa.

Entre diversos erros de produção, um grande acerto de "Dois Papas" é não tomar partido a partir da exposição da fé de seus personagens. Aliás, há um esvaziamento de um sentido real da instituição ao mostrar que o sentido é inventado - são homens discutindo o que deus havia lhes incumbido e, assim, moldado o rumo de uma legião. No entanto, se o argumento é a exposição de brigas de poder versus a santidade do cargo, "Dois Papas" na verdade é uma cinebiografia caótica e mal feita que visa santificar o nosso atual e humilde papa, que recusa a pompa da posição, liga ele mesmo para a companhia de aviação para reservar uma passagem e toma Fanta laranja com pizza recém ungida.

Crítica: “Entre Facas e Segredos” e o malabarismo funcional entre tensão e diversão

Crítica: a crítica contém detalhes da trama.

Histórias de mistério, plots e assassinatos percorrem a cultura há gerações. Dos livros da Agatha Christie até os filmes de Alfred Hitchcock, o público sempre demonstrou imenso interesse pela clássica pergunta "Quem matou insira aqui o nome da vítima?". "Entre Facas e Segredos" (Knives Out) é uma releitura desse mote, o "filme de detetive" (ou "whodunit", o subgênero em inglês).

A noite do aniversário de 85 anos do patriarca da família Drysdale, Harlan (Christopher Plummer) termina com o homem morto. O que inicialmente sugeria um suicídio esconde segredos muito mais complexos, algo que o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) está ávido em desvendar. "Entre Facas em Segredos" tem como solo o questionamento sobre quem matou Harlan, e os suspeitos são inúmeros.

O casting do filme é repleto de estrelas - como Chris Evans, Janie Lee Curtis, Michael Shannon, Toni Collette, Katherine Langford e Jaeden Martell -, e basicamente todos têm culpa no cartório. A estrutura do filme é feita (por meio de uma montagem fabulosa) com cada personagem contando sua versão do enorme quebra-cabeça da noite do crime e flashbacks para que o espectador saiba o que era verdade ou mentira. O que poderia sugerir uma família feliz é rapidamente demolida com os depoimentos, cheios de ressentimentos por parte dos familiares - e a reconstituição das falas criativamente começa com muita simpatia e camaradagem (a maneira como o personagem conta para o detetive) e logo expõe a inconveniente verdade.


Basicamente, todos os principais suspeitos brigaram com Harlan por um único motivo: dinheiro. O patriarca era um famosíssimo autor e proprietário de grande fortuna, e todos ligados à família estão como urubus dentro da casa. A única que parece genuinamente preocupada é Marta (Ana de Armas em uma atuação excelente), a enfermeira particular de Harlan que tinha uma íntima relação com o falecido. Ela, que é fisicamente incapaz de mentir (ela vomita sempre que tenta), é a peça-chave do mistério, sabendo exatamente o que ocorreu naquela noite.

Uma das escolhas corretas do roteiro é não tentar sustentar o filme inteiro com a dúvida sobre quem matou Harlan - na metade da projeção já sabemos. A sacada é dar uma virada e mudar o foco da trama, que sai de "quem matou o patriarca?" para "como Marta vai se livrar da culpa?". É deveras evidente várias surpresas do filme - ele é aberto na casa de Marta, o que já dá a entender que ela é o gancho que prende toda a história -, além do exagero tremendo em jogar peças que gritam culpabilidade, mas que sabemos serem apenas desvios de foco para o real vilão do todo.

E falando em exagero, "Entre Facas e Segredos" tem de sobra. O estilo pode incomodar, porém, assim como um "As Panteras" (2000), você precisa ter em mente que o trem se move em uma constante de absurdos propositais. O longa é tanto uma homenagem quanto uma sátira do subgênero, remetendo a "Disque M Para Matar" (1954) e "Assassinato no Expresso Oriente" (1974) - é válido pontuar que ambos, dois dos maiores nomes do gênero "detetive", são baseados em livros, o que faz de "Entre Facas" uma agradável revelação por se tratar de uma obra original.

O aspecto homenagem/sátira cai principalmente em cima do personagem de Daniel Craig. Uma caricatura ambulante, ele é o ápice da figura clássica do detetive: sotaque esquisito, habilidade for farejar culpa e sacadas de cena feitas ao máximo. Não estranhamente, conversa (de maneira histriônica) com o Inspetor Hubbard de "Disque M", Hercule Poirot de "Expresso Oriente" e, claro, Sherlock Holmes - o personagem até passa o filme chamando Marta de "Watson". Essa é uma fita que não tem vergonha de escancarar suas referências literárias, cinematográficas e pop (um dos policiais fala que a casa é como o tabuleiro do jogo "Detetive", o que foi uma flechada no meu coração).


Rian Johnson, que assumiu a responsabilidade de dirigir "Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi" (2017), comprova ser um habilidoso diretor quando sustenta um filme que aparenta ser simplório, mas é uma realização longe disso. "Entre Facas" é assumidamente uma comédia, contudo, sua fundamentação é o mistério. Portanto, como fazer a plateia rir sem que a tensão da trama seja perdida (uma reação mais que comum em inúmeros filmes que tentam - e falham - unir essas duas sensações contrastantes, não é mesmo, "A Freira", 2018)? Ainda por cima, temos os elementos hiperbólicos, que poderia ainda dar mais errado; e o filme funciona muito bem.

Pelo menos até o terceiro ato. A partir da cena que Marta cede à uma chantagem, a película começa a andar em círculos, jogando reviravolta em cima de reviravolta. Imediatamente lembrei do badalado "Um Contratempo", que deve ser o filme com mais reviravoltas por segundo na história do Cinema (sempre brinco que, caso você pisque durante o filme, perderá 15 reviravoltas e vai ter que recomeçar do início). O que faz "Um Contratempo" funcionar em termos de "temos que surpreender o público" é que seus plot twists são limpos e certeiros, apesar de excessivos. No caso de "Entre Facas", soa como se o roteiro estivesse fazendo malabares com os fatos dados no decorrer do filme, na esperança de que a solução caia nas mãos da produção ao invés de atingirem o chão - e tem pontos que caem de cara, como por exemplo a cena do pingo de sangue, que não é explicada mesmo sendo usada como motivação de um dos personagens.

Dentro todos os erros e acertos (felizmente aqui há mais acertos), o que mais me afeiçoou na fita é a maneira como o texto vai para o campo político. Tentei ao máximo deixar essa crítica livre de spoilers, todavia, abrirei mão da empreitada apenas no presente parágrafo. Marta é uma imigrante latina; sua mãe está nos EUA ilegalmente, um dos temores da protagonista ao se ver enrolada na morte de Harlan. Durante a projeção, inúmeros pontos envolvendo a problemática são inseridos, como o neto simpatizante do Nazismo e o marido xenofóbico e a favor da prisão de imigrantes latinos. Além de fomentar a persona dos peões envolvidos, o roteiro tem uma claríssima mensagem a passar - é hilário ver como cada um deles diz que Marta veio de um país latino diferente, pois, bem, para eles são todos iguais. Aquela burguesia que se esconde atrás de sorrisos perfeitos é cheia de ódio e interesses mesquinhos, e Marta, tomando seu café na sacada da sua nova mansão, assiste com prazer os abutres preconceituosos perdendo tudo. É uma vingança textual deliciosa e um dedo do meio para a Era Trump.

"Entre Facas e Segredos" se sobressai por ser um "filme família" capaz de agradar a todas as faixas etárias sem ser genérico ou redutivo - pelo contrário, é sólido e divertidíssimo. Há caminhos frescos percorridos que demonstram o quanto ainda é possível resgatar estilos com personalidade e eficiência. Grandioso pelo seu batalhão de estrelas e pelo roteiro que estrutura a trama sabiamente, os excessos podem até diminuir a sessão - o filme se esforça para parecer mais complexo do que realmente é -, mas, mesmo sendo familiar e até previsível, é capaz de gerar interesse por todos os 130 minutos e terminar socialmente afiado, sem perdão pelo trocadilho. E Chris Evans como um personagem que odeia cachorros é aula de atuação.

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