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Crítica: “Adoráveis Mulheres” tem ótimos vestidos, lindos vestidos

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Atriz (Saoirse Ronan)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Florence Pugh)
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Figurino
- Melhor Trilha Sonora

Eu faço desde 2013 o especial para o Oscar, dedicando-me a escrever sobre todos os indicados ao prêmio de "Melhor Filme" antes da noite da premiação. Na maior parte do tempo, essa é uma tarefa bem agradável: mesmo em anos bem questionáveis (como o atual), é um prazer escrever sobre os longas, analisá-los enquanto arte e enquanto escolhido - dentro de milhares - para representar o melhor que a Sétima Arte nos entregou no período. Na maior parte do tempo.

Sempre houve, em todas as edições, pelo menos um filme que, caso estivesse fora da categoria principal, eu não me daria ao trabalho de escrever sobre. O primeiro argumento para isso é que a escrita é algo que pode parecer uma atividade fácil, mas não é. Vejo críticos lançando seus pensamentos em formato de vídeo e, em três minutos, está feito - algo impossível para a linguagem que você está diante nesse momento. Não que a escrita seja "maior" que qualquer outro formato, é apenas o apontamento de um fato: a escrita é mais complexa que a fala.

Então, ter que me dedicar tanto para escrever 12 parágrafos sobre um filme que me instiga em nada é uma coisa que eu preferiria não fazer, dedicando esse tempo a falar de alguma fita que consiga me entregar mais durantes seus 100-e-lá-vai minutos. Em todos esses anos, o único dos indicados que deliberadamente não escrevi sobre foi "Pantera Negra" (2018), pois, como já deve ter ficado claro caso você acompanhe essa coluna, não tenho tanta paciência com filmes de super-heróis, o oposto da imensa massa ávida para massacrar na internet qualquer pessoa que ouse falar mal dos seus sagrados filmes - e não estava com paciência para ser xingado gratuitamente ou receber ameaça de morte (como críticos receberam por não aprovar o filme) por exercer meu direito de livre expressão e meu trabalho enquanto crítico. É pior quando o texto vai contra um filme largamente amado pela "maioria", que, em pleno 2020, ainda não aprendeu que sua opinião não é sagrada a ponto de ser intolerável alguém pensar o oposto.

Esse texto provavelmente terminará sendo mais um desabafo do que uma crítica convencional porque eu não sei aonde chegarei no final dela - o que é uma exceção dentro do meu trabalho, sempre sei o que quero falar sobre cada filme. Mas "Adoráveis Mulheres" (Little Women) foi um caso bastante complicado para mim. Baseado no livro de mesmo nome lançado em 1868 pela autora Louisa May Alcott, o romance é um dos mais lidos da história norte-americana, vendo sucesso imediato. Por isso, não é de se espantar que já foi adaptado para o cinema sete vezes. Sim, há sete filmes com a mesma história.


O primeiro deles foi lançado em 1917, no engatinhar da arte, e está perdido desde então. Quase 100 anos após, a mais nova versão foi lançada com a assinatura de Greta Gerwig, uma das mais sensacionais cineastas em atividade - é dela o maravilhoso "Lady Bird" (2017), um dos 100 melhores filmes da década aqui no Cinematofagia. E se Greta faz algum projeto, a gente assiste. O filme conta a história de quatro irmãs: Jo (Saoirse Ronan, indicada ao Oscar de "Melhor Atriz" pelo papel), Amy (Florence Pugh, dona da minha vida e indicada a "Melhor Atriz Coadjuvante"), Meg (Emma Watson, a proprietária da franquia "Harry Potter") e Beth (Eliza Scanlen, em um dos seus primeiros trabalhos em um longa).

A trama gira em torno das diferenças entre elas enquanto, unidas, sobrevivem à Guerra Civil e à cultura da época. A primeira cena é Jo tentando vender uma de suas histórias para um jornal, que aceita mediante edições. O editor fala que a próxima histórias devem ver suas protagonistas casadas ou mortas - esses são os únicos finais esperados para uma mulher na época. Sim, esse é um filme feminista, amém. Alcott, a autora, era ativista e usa suas personagens para falar suas ideias em prol da igualdade de gênero - o que Greta também faz com seus filmes.

Elenco fantástico, ótima diretora, filme feminista, era a receita perfeita para eu chamar de "filme do milênio". Todavia, não demorou muito para que eu começasse a perceber que, talvez, "Adoráveis Mulheres" não teria todo o amor que eu separei para ele. Logo no primeiro ato, na segunda cena, se não me engano, há um momento em que Jo fica ao lado de uma lareira. Entra um personagem, olha calmamente para ela, e fala: "You're on fire". Ela agradece o "elogio" ("on fire" em inglês é uma expressão que, metaforicamente, significa "você está arrasando"). Ele replica: "You're really on fire", com seu vestido pegando fogo. Eeeerrrrr.

Esse tipo de diálogo, uma sacada ixperta para possuir apelo cômico, é uma das mais rasteiras estratégias textuais que existem. Já foram usadas à exaustão e são vergonhosas. Ah, mas é apenas uma cena, você pode dizer, só que isso é repetido por todo o filme, que tem tentativas incompetentes de """comédia""" bastante destoantes da seriedade do todo.

Como já disse, o longa de Greta é a sétima versão da mesma história. Curiosamente, assisti a nenhuma das outra seis, e nem li ao livro que deu base para todos, o que me permitiu analisar "Adoráveis Mulheres" sem precisar compará-lo com seus irmãos - para a sua sorte, porém, não é necessário ver tudo o que já foi produzido a partir do texto original para entender seus objetivos e limitações, é uma história contada em diversos outros meios. A cada minuto, uma impressão se tornava mais sólida: a fita parecia bem mais um "Lady Bird" com os personagens usando vestidos de época. Já falei aqui na coluna algumas vezes que uma das falhas mais comuns - e que realmente me fazem desapreciar um filme - é como a história se passa em outra época, mas os atores agem como se fosse uma produção moderna.

"Adoráveis Mulheres" cai no erro fácil de ser totalmente artificial dentro da faixa de tempo que sua história se finca. Isso, é claro, dentro da gigante subjetividade que permeia qualquer arte - li críticas que diziam que o filme triunfa exatamente por parecer fidedigno à época, o extremo oposto do que acho. Uma delícia como o Cinema consegue, com o mesmo filme, fomentar sentimentos tão diferentes em diferentes pessoas, e está tudo certo.


O primeiro ponto que culpo para gerar tal impressão é a direção dos atores. Greta não executa um estudo teatral do séc. XIX a ponto de retirar o expectador da sua própria realidade e compor uma linguagem compatível com os quase 200 anos que separam a história com a atualidade - isso não posso dizer do aparato estético, com o design de produção sendo um sucesso e mostrando bem as discrepâncias entre a riqueza e a pobreza de sua história. A direção dos atores é tão estranha que há momentos quase amadores de atrizes tão assustadoramente incríveis - não sobrou nem para Meryl Streep, em um dos piores papéis da sua filmografia recente. Há uma cena em que Florence Pugh chora do lado de fora de uma janela que me deu vontade de desistir do filme.

E falando em Pugh, desde 2017 afirmo que sua carreira iria decolar quando vi seu sensacional trabalho em "Lady Macbeth" - eu a teria indicado ao Oscar ali mesmo -, então tenho uma ligação mais estreita com a atriz por acompanhá-la (e adorá-la) desde o começo. É um prazer vê-la recebendo tamanho reconhecimento ao ser indicada por "Adoráveis Mulheres", contudo, a distância entre o requinte de qualidade de seu desempenho entre "Lady Macbeth", que também é um filme de época, com o papel de "Adoráveis Mulheres" é gritante. Nem parece ser a mesma atriz. Para apaziguar meu coração, finjo que ela foi indicada por "Midsommar: o Mal Não Espera a Noite" (2019), filme que extrai o que ela tem tanto a oferecer, o que não acontece aqui.

O segundo ponto é quão unidimensionais são as personagens. A dinâmica da produção ocorre quando evidencia as diferenças entre as irmãs, e são essas diferenças específicas que as fazem ser quem são enquanto estudo de personagem. Não há grandes desenvolvimentos, não há preocupação em tirá-las das caixinhas de "Jo é a revolucionária", "Beth é a tímida" etc.

Para burlar as dicotomias e criar uma união, a escolha feita pela fita foi: em todas as cenas que as irmãs interagem entre si, elas falam ininterruptamente, uma por cima da outra. É tão artificial que tentei contar os segundos entre as falas, e eles inexistiam. É quase um monólogo proferido por quatro bocas, e muitas vezes elas proferem detalhes totalmente irrelevantes, apenas para preencher espaço. Achei a escolha tão desastrosa que meus níveis de ansiedade já estavam nas alturas quando, literalmente, não há um segundo de respiro entre cada diálogo. Vou ter que apontar o óbvio para ver se consigo me poupar: você pode achar a mesma estratégia um primor, pode dizer que esse é um dos detalhes que lhe fizeram amar ainda mais o filme, tá? Obrigado.

E olhava no relógio, 1h de sessão, e a trama quase não havia avançado - e o que tinha acontecido até então era, particularmente, muito desinteressante. Bem verdade que algumas discussões são muito boas - a forma como a vida feminina era intrinsecamente ligada ao matrimônio e como o casamento era, antes de tudo, um acordo comercial - no entanto, precisava de mais de 2h para mostrar uma ideia tão elementar? Talvez esse não seja um filme para mim?

Sinceramente, não possuo essa resposta. Até a própria nota do filme, não consegui chegar em um consenso interno - na verdade eu não queria mais pensar sobre a obra e dei um número que considero padrão para o que senti sobre o filme. A indagação central que habitava o imaginário antes da sessão era: será se o estilo narrativo de Greta Gerwig funcionaria com um drama de época? "Adoráveis Mulheres" é a retomada de uma história já exaustivamente contada na tela sem acréscimos ou renovações que justifiquem a sua existência - só lembrar da versão de 2018 de "Nasce Uma Estrela", a quarta filmagem da mesma história que elevou a trama a um patamar jamais visto nas três primeiras; ou até mesmo na renovação de "Suspiria" (2018), que se apropria da obra original para ir além. Esse é o papel de um revival, e, durante a projeção de "Adoráveis Mulheres", a única coisa que conseguia apreciar era resumida pelo lendário quote de Aretha Franklin:



Crítica: “O Escândalo”, a cultura do estupro e as escolhas de gênero na realização do cinema

Desde o boom do movimento "Me Too" em 2017 - potencializado pelas acusações contra o produtor Harvey Weinstein, magnata de Hollywood -, a indústria se mantém mais alerta às condutas predatórias dos homens em altos cargos. Uma das peças solidificadoras do movimento, dessa vez no mundo da televisão, foi quando a jornalista Gretchen Carlson processou Roger Ailes, presidente da gigante Fox, de assédio sexual em 2016.

O projeto para "O Escândalo" (Bombshell), adaptação do caso, foi aprovado assim que Ailes faleceu em 2017. No filme, o plot orbita em torno de Gretchen (interpretada por Nicole Kidman); Megyn Kelly, uma das maiores apresentadoras da Fox no período (interpretada por Charlize Theron); e Kayla Pospisil (Margot Robbie), uma repórter recém-contratada pela emissora, a única das protagonistas a não ser baseada em alguém real. John Lithgow é Ailes, em uma versão mais insana do seu Winston Churchill em "The Crown".

O início da fita é totalmente a cara do seu roteirista; Charles Randolph, que ganhou um questionável Oscar pelo roteiro de "A Grande Aposta" (2015), emula o estilo ali usado e que (infelizmente) é uma das febres da Hollywood moderna: "O Escândalo" abre como um documentário, com a personagem de Theron quebrando a quarta parede enquanto explica os acontecimentos dos corredores da Fox. O tom dado é inquestionável: esse é um filme que se passa no coração dos EUA, lida com sua cultura e expõe seus indivíduos.

Um desânimo imediatamente me abateu - os dois últimos grandes longas com esse estilo foram sofríveis ("Vice", 2018, e "As Golpistas", 2019) -, todavia, foi uma bênção quando vi que tal escolha criativa foi apenas para a introdução, sendo deixado de lado rapidamente e adotando uma narrativa convencional. Dá para se questionar se esse prólogo involuntário não seria dispensável ou uma quebra de estrutura evitável, porém, não consigo nem apontar como defeito quando o estilo foi abandonado.

Outro aspecto que pode desanimar no primeiro ato é a maneira que o filme adentra no cenário político norte-americano. Os eventos que levaram a exposição de Ailes têm como linha de partida a ascensão de Donald Trump na corrida presidencial. O passeio pelas tensões políticas e sociais do país pode soar chato, mas é importante para visualizarmos como a misoginia é peça preponderante daquela cultura - Trump ataca Kelly pelo Twitter após uma entrevista, e usa a imagem da mulher como artilharia.


Por estar no seio de uma das mais poderosas emissoras do planeta, a película mostra a correlação entre jornalismo e política, algo importante de ser lembrado. Não como uma "aula na tela", e sim com alguns momentos bastante sutis - há uma cena em que uma repórter explica para Kayla que tipo de histórias a Fox vai aceitar contar, que nada mais é que um estudo das linhas editoriais, um aspecto primordial para comprovar a ilusão da imparcialidade do jornalismo. E meu diploma de jornalismo se sentiu feliz em ver essas abordagens no filme.

Se a Fox possuía um molde para agradar o seu público-alvo (majoritariamente conservador e eleitor do Trump), as contratações também passavam por um crivo bastante específico quando falamos de mulheres: elas eram contratadas não pelo currículo, e sim pela aparência - as jornalistas são obrigadas a usarem apenas vestidos e as bancadas são transparentes para que suas pernas fiquem sempre em evidência (!?!?). Kayla, almejando um cargo mais elevado dentro da empresa, consegue um encontro com Ailes, afirmando que poderia ser muito útil para a Fox. A metodologia do homem para aceitar ou não a proposta é fazer com que a mulher dê uma "voltinha" para que ele analise o "material".

Kayla, meio desconcertada, jocosamente atente ao pedido, que, para seu assombro, vai além da "voltinha". Ailes pede para que ela levante o vestido e mostre suas pernas. Essa cena é importantíssima dentro da obra, e possui vários pontos para discutirmos. Kayla vai levantando seu vestido cada vez mais até mostrar sua calcinha, mesmo claramente se sentindo agredida por aquilo. Quem está do lado de cá pode se questionar porquê diabos ela se submeteu a aceitar aquilo quando poderia virar as costas e ir embora, mas esse é um pensamento que exclui um fator que muda tudo.

O poder que aquele homem possui. Ele é um dos mais influentes empresários de todo o país, e detém a possibilidade de criar e destruir carreiras com um telefonema. É deveras intimidador receber um pedido de Ailes, e muitas vezes as mulheres ficam tão abismadas com o ocorrido que não conseguem nem ao menos pensar de forma clara o que está acontecendo. Uma das mulheres reais que denunciaram Ailes contou em entrevista que até hoje não sabe porque fez o que o homem pedia em um dos encontros em seu escritório privativo, e essa pergunta deve assombrá-la pelo resto da vida - algumas das personagens reais da história, como Megyn Kelly, estão em uma entrevista sobre o filme e a veracidade do mesmo.

É crucial que a personagem de Robbie seja inventada pois é ela que é assediada na tela - nem sou capaz de imaginar uma das mulheres reais vendo sua personagem, com seu nome e sua caracterização, na posição gráfica da cena. É verdade que a sequência em questão poderia ser muito mais refinada - seria bem mais interessante colocar a câmera no rosto da personagem enquanto ela levanta o vestido do que focá-la de corpo inteiro para que todos possam ver o que Ailes viu, uma cena grotesca. Pode ser que a escolha seja para tornar o espectador cúmplice daquele absurdo e, assim, gerar ainda mais revolta (o que pelo menos aqui funcionou), no entanto, com algo tão delicado, seria melhor a sutileza.


Kayla sai da sala após o assédio e continua sua vida sem revelar o que aconteceu. Quem teria coragem de acusar aquele que paga seu salário? Uma sequência bastante correta é quando Rudi Bakhtiar, uma âncora da Fox, é assediada por um apresentador. O roteiro intercala inteligentemente a conversa dos dois com os pensamentos da mulher, e a jornada que se passa em sua cabeça é elucidativa: ela se culpa, tenta barganhar com o homem e até passa a mão em sua cabeça, tirando a culpa que obviamente é dele. Por negar o assédio, ela é sumariamente demitida. É um sistema totalmente construído para oprimir e sair ileso.

Com a abertura do processo de Gretchen, ela precisa de reforços dentro da Fox para poder ter força contra Ailes, que possui a maior equipe possível para lhe proteger. O principal nome é o de Megyn, o maior nome feminino dentro da emissora. Ela também foi assediada por Ailes, mas não sabe se deve ou não vir a público por não querer ver sua carreira ser eternamente associada com isso. É engraçado até vê-la renegar o título de "feminista", usando a palavra como se fosse um palavrão, o que dá uma camada interessante de composição em sua personagem, que é dotada de lados certos e errados.

Como as premiações já comprovaram, as três protagonistas estão fenomenais. Kidman (a que menos possui espaço, mas que ainda assim conseguiu ser indicada a "Melhor Atriz Coadjuvante" no SAG 2020), adiciona mais um ótimo capítulo no seu retorno ao topo em Hollywood. Theron, que já tem um Oscar para chamar de seu por "Monster: Desejo Assassino" (2003) e acumula mais uma indicação a "Melhor Atriz", despe-se inteiramente a fim de incorporar a persona de Megyn Kelly, e confesso que achei que era a jornalista real nas primeiras cenas, tamanha competência de sua performance e do fenomenal trabalho de Maquiagem, o favorito ao Oscar da categoria. E Margot Robbie, ah, Margot Robbie... Sua segunda indicação ao prêmio da Academia - a primeira foi pelo maravilhoso "Eu, Tonya" (2017) - é um ponto final para qualquer dúvida sobre o imenso talento da atriz, que, mesmo tão nova dentro da indústria, já é um dos grandes nomes. Duas cenas em destaque para ela: a do assédio e quando ela finalmente revela o ocorrido. Aquele elevador, o único momento a unir as três na tela, teve que sustentar.

Muito tem se falado sobre como "O Escândalo" é o "Green Book: o Guia" (2018) da temporada porque é um filme sobre mulheres, mas escrito e dirigido por homens - assim como "Green Book" tratava sobre racismo sendo feito por brancos. Já abordei essa discussão diversas vezes aqui no Cinematogafia, entretanto, vamos repetir até entendermos. É inteiramente verdade que "O Escândalo" teria bem mais potencial se feito por mãos femininas, todavia, não podemos dizer quem pode falar o quê dentro da arte. Não podemos criar um apartheid artístico, delimitar temáticas para grupos específicos, pois, ao invés de evocar uma inclusão, excluiremos. Demandar mais inclusão e representatividade é feita por um caminho diferente, e diminuir "O Escândalo" só por ser dirigido/escrito por homens não acrescenta muita coisa para a complexa discussão da arte. Local de fala não garante competência artística. 

Colocando em uma balança, "O Escândalo" tem mais glórias do que tragédias, mas imprime a impressão de que todo o potencial que a história poderia ter não foi atingido - as atuações irretocáveis auxiliam a alavancar o apreço da obra. Se sua opção mais importante enquanto filme é gerar um senso de urgência sobre o assédio sexual e a cultura do estupro, é um objetivo atingido. A produção funciona bem como aviso para a indústria, cada vez mais atenta para esse crime ainda tão difícil de ser revelado, porém, deixa um gosto amargo ao fim: mesmo com as mulheres envolvidas na história possuindo enfim voz, o problema não foi solucionado. Cabe as vítimas aprenderem a seguir com suas vidas e com a mácula causada por um homem que fez o que fez como imposição de poder e convicção de impunidade.

Crítica: “Jojo Rabbit” usa a ridicularização como arma de massacre ao Nazismo

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a seis Oscars:
- Melhor Filme
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Atriz Coadjuvante (Scarlett Johansson)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Montagem
- Melhor Figurino

Numa rápida aulinha sobre qual é o primeiro passo para chegar ao Oscar, "Jojo Rabbit" é um bom exemplo para exemplificarmos. Engana-se quem acha que os indicados a "Melhor Filme" são estritamente aqueles que a Academia considera os melhores do ano; para figurar entre os até 10 indicados, há vários passos a serem seguidos. O primeiro deles é: seu filme deve estrear em um dos principais festivais de Cinema do mundo.

De Cannes a Berlim, vencer em um festival é um empurrão incrível na temporada, porém, é ainda melhor quando o filme estreia durante a abertura da janela do Oscar, que ocorre de outubro a dezembro. Foi a estratégia da Fox com "Jojo Rabbit", lançando-o no Festival de Toronto, um dos maiores do período. Para melhorar sua campanha, o longa venceu o "People's Choice Award", a maior honraria de lá. E tal prêmio é um catapultador para o careca dourado, vendo nove dos 10 últimos vencedores sendo indicados pela Academia - o vencedor de 2018 foi "Green Book: O Guia", que levou o Oscar de "Melhor Filme" (mesmo que sem merecer). Não por acaso, "Jojo Rabbit" saiu com seis indicações no Oscar 2020, incluindo "Melhor Filme".

"Jojo Rabbit" é uma sátira da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Um garotinho, Jojo Betzler (Roman Griffin Davis), faz parte da "Juventude de Hitler", um grupo com crianças e adolescentes adoradores de Adolf Hitler. Ele é obcecado pelo führer, tendo-o como amigo imaginário (interpretado pelo também diretor e roteirista Taika Waititi), que o aconselha na sua jornada de adoração ao Nazismo. Sua vida vira de cabeça para baixo quando o menino descobre que sua mãe, Rosie (Scarlett Johansson), esconde no sótão Elsa (Thomasin McKenzie), uma garota judia.

Filmes sobre a Segunda Guerra em Hollywood? Groundbreaker. O tema já foi explorado à exaustão dentro da indústria, necessitando renovações de abordagens, e essa é uma das missões de "Jojo Rabbit". Waititi possui um cinema que casa bem com o estilo, já vindo com os deliciosos "O Que Fazemos Nas Sombras (2014) e "Fuga Para a Liberdade" (2016) - assista aos dois, são pérolas - antes de cair nos braços de Hollywood com "Thor: Ragnarok" (2017), então ele é o realizador certo para tal projeto.

Uma das maiores críticas ao filme desde o Festival de Toronto é sua abordagem diante do Nazismo. Uma tragédia sem precedentes para a humanidade, seria correto usar um tom jocoso ao retratá-lo? Fui ao filme com imensa preocupação de como os horrores do período seriam retratados na tela, mas, se tratando de Waititi, não poderíamos esperar algo realmente sério.


A obra a todo o momento ironiza a lógica nazista, colocando-a sob uma luz patética. A mãe de Jojo informa que ele passou semanas aos prantos quando descobriu que o avô não era loiro, ou o quartel que pede vários pastores alemães (os cachorros) e um oficial traz literalmente pastores alemães (os camponeses). Tudo é gritantemente ridículo. Há uma ideia de que o bom humor é aquele que zomba o opressor, não o oprimido, e o texto de "Jojo Rabbit" não tem medo de fazer isso, afinal, nazista tem mesmo é que virar chacota.

Não que o humor do filme seja genial - há sacadas e momentos muitíssimos inspirados, mas a fita não consegue ser uma black comedy engenhosa e brilhante; o humor é melhor executado em "O Que Fazemos Nas Sombras", por exemplo. E o motivo para isso talvez reside no caminho final que a película anseia atingir: esse é um feel good movie, aquele que quer terminar com um sorriso no rosto, que quer que a plateia vá leve para a casa.

Por ser um feel good movie, muito da ousadia que o tema poderia render é ceifada a fim de manter o território em um campo mais seguro, o que definitivamente explica como a fita venceu o prêmio máximo no Festival de Toronto, derrotando nomes bem superiores como "História de um Casamento" (2019) e "Parasita" (2019): é o público que escolhe o filme favorito da seleção, e o molde de "Jojo Rabbit" é bem mais agradável no geral que os outros dois citados. É mais fácil de digerir quando o tom no final da sessão é tão ensolarado.

O cerne da produção está na relação entre Jojo e Elsa, a judia clandestina. Boa parte da duração é dedicada para os dois personagens, que são executados com muita competência pelos seus intérpretes - Thomasin McKenzie já havia mostrado seu talento no ótimo "Sem Rastros" (2018) e Roman Griffin Davis, que mesmo com apenas 12 anos e em seu primeiro trabalho na tela, consegue ditar os rumos da película, rendendo-lhe uma merecida indicação ao Globo de Ouro 2020 de "Melhor Ator - Comédia". Não há o que se queixar nesse departamento. Nesse.

Não me choquei quando vi que havia sido "Green Book" o antecessor de "Jojo Rabbit" em Toronto após terminar o filme: os dois possuem a mesmíssima estrutura - o inimigos-que-vão-aprender-a-conviver-e-acabam-descobrindo-que-gostam-um-do-outro. Desde comédias românticas com um casal que se odeia e vai inevitavelmente terminar junto ou o caso de "Green Book" e o desastroso "The Nightingale" (2018), ambos com um protagonista racista que vai rever seus preconceitos ao conviver com um personagem negro, "Jojo Rabbit" abusa do comodismo ao costurar a relação de Jojo e Elsa: o final é previsivelmente harmonioso.


O que o faz sair na frente dos citados são escolhas criativas no caminho dessa relação. A maneira como Elsa é introduzida na fita remete aos melhores momentos do terror satírico de "O Que Fazemos Nas Sombras" - ela entra em cena como um fantasma, e os enquadramentos evidenciam essa impressão. Ela usa os maiores (e mais ridículos) estereótipos que o Nazismo inventava sobre os judeus ao seu favor, como dormir de cabeça para baixo como morcegos e conseguir ler mentes. É bizarro saber que essas ideias eram realmente disseminadas para fomentar o ódio contra judeus, e o roteiro sabiamente se apropria delas para humilhar o fascismo ariano.

E temos, claro, o diretor como Hitler. Foi um passo ambicioso de Waititi ao incorporar uma das mais odiadas figuras da história, o que reforça seu posicionamento de zombaria - Hitler teria um ataque do coração ao ver um homem negro interpretando o ápice do orgulho babaca ariano. Seu Hitler é imbecil de uma forma diferente do que o real Hitler era, indo para um lado mais caricaturado e cartunesco, afinal, ele é fruto da imaginação delirante de um garoto de 10 anos. Apesar de adicionar na patifaria, sua aparição não funciona sempre. Convenhamos, seria impossível não compará-lo com o melhor Hitler do cinema, o de Charlie Chaplin em "O Grande Ditador" (1940), que também caçoa do führer, e o fascista de 80 anos atrás larga muito na frente, mesmo sendo concebido no meio do auge nazista.

Chamo a atenção para um subplot interessante dentro do roteiro: há dois capitães nazistas que são um casal gay, interpretados por Sam Rockwell (vencedor do Oscar por "Três Anúncios Para Um Crime", 2017) e Alfie Allen (de "Game of Thrones"). A abordagem para os dois começa bem sutil, com troca de olhares, até deixar mais comicamente elementar, como quando eles mostram desenhos de suas futuras roupas de combate, que mais parecem um figurino usado por Elton John em alguma turnê. O personagem de Rockwell, quando a Alemanha é derrotada e os nazistas capturados são levados para a morte, salva a vida de Jojo ao dizer que o menino é judeu, o que enfureceu muitos por mostrar que "nem todo nazista é malvado".

Acho essa lógica um tanto quanto simplória diante de algo que é bem mais complexo. Não é de se espantar que um casal gay se misture como nazistas para não acabarem mortos, mesmo eles reforçando um status quo que matou tantos outros gays. Não enxergo a escolha do filme como uma passada de mão na cabeça do Nazismo, e sim uma pontuação de que, como humanos, somos capazes de atrocidades e legítimos atos de bondade. Era claro que o personagem não concordava com as leis vigentes, apenas dançava conforme a música para sobreviver (vide a cena que ele acoberta Elsa quando a Gestapo vai até à casa de Jojo).

"Jojo Rabbit" não é superior aos convencionalismos intrínsecos do feel good movie ao não possuir a coragem de empurrar sua sátira para um nível mais ousado e inteligente. Existem lampejos de tragédia e veracidade (o final da personagem de Scarlett Johansson foi uma surpresa), mas sempre há algo que puxa a fita para baixo, deixando-a na sua zona de conforto. A fita é uma boa sessão por ser um filme que enche os olhos e pela forma como lida com absurdismo essa situação absurda, ironizando posições de poder que deliberadamente escolhem oprimir. Não temos uma didática aula de como o Nazismo é uma mácula - isso já deveria ser óbvio -, e sim uma reformulação na maneira como a arte o critica, por meio da ridicularização. A produção deixa claro como ideologias são fundamentalmente inventadas e ensinadas, caso contrário, aquele pobre e ignorante menino de 10 anos não veria Adolf Hitler como um deus.

P.S.: a cena do "Heil Hilter" por si só carrega nas costas toda indicação do filme a qualquer prêmio de "Melhor Roteiro".

Crítica: “Dois Papas” aparenta ter sido pensado na hora que ligaram as câmeras

É bastante gratificante ver como Fernando Meirelles está aumentando seu portfólio na indústria após ser o primeiro diretor brasileiro a ser indicado ao Oscar de "Melhor Direção" pela obra-prima "Cidade de Deus" (2002) - que é co-dirigido pela Kátia Lund, injustiçada ao ser sempre esquecida na ficha do filme (ela nem ao mesmo foi indicada ao Oscar). Ele dirigiu os hits "O Jardineiro Fiel" (2005) e "Ensaio Sobre a Cegueira" (2008), todos no seio de Hollywood, vendo seu mais novo longa, "Dois Papas" (Two Popes), sendo produzido e distribuído pela Netflix.

É válido entrarmos na discussão sobre a plataforma e seu posicionamento diante da temporada de premiações. A Netflix em 2019 está no apogeu dentro do circuito da Sétima Arte, vendo quatro dos 10 indicados a "Melhor Filme" no Globo de Ouro 2020 sendo originais seus - "História de um Casamento", "O Irlandês" e "Dois Papas" em "Drama"; "Meu Nome é Dolemite" em "Comédia", um feito histórico. Mesmo "Dois Papas" não encabeçando a campanha - a plataforma tem focado bem mais em "História" e "O Irlandês" -, "Dois Papas" tem encontrado seus adeptos.

A obra começa com a morte do Papa João Paulo II em 2005. Os líderes da Igreja Católica partem para o Vaticano a fim de elegerem o novo papa, e a disputa está entre dois nomes: o alemão Bento XVI (Anthony Hopkins) e o argentino Francisco (Jonathan Pryce). Quem vive em um contexto católico já sabe o resultado: Bento XVI vence a eleição.

Por ter um núcleo no Vaticano com pessoas de absolutamente todos os cantos do planeta, é importante avaliar como é o uso da língua, afinal, todo mundo falando um inglês sem sotaque à la uma novela da Glória Perez não denotaria cuidado. Como era de se esperar, há uma pá de cenas em italiano, porém, Pryce sofre quando entra na língua materna de seu personagem. Francisco é argentino, no entanto, Pryce não fala espanhol. A solução foi dublar todas as suas falas na língua, o que é gritantemente artificial. A mixagem de som nas cenas em específico é tão desregulada que é quase impossível manter a atenção no que está acontecendo, principalmente quando há outros atores falando um espanhol verdadeiro. 


Para piorar ainda mais, a produção tenta esconder a falta de sincronia entre a boca de Pryce e a dublagem entupindo as cenas com milhares de cortes e colocando o ator atrás de pessoas, portas, janelas e o que tiver pela frente. Há um momento que Francisco caminha por um mercado e, o que seria uma sequência simples (ele apenas conversa e sai do local), é exagerada ao extremo com cortes, ângulos e movimentos para driblar a dublagem, tudo em vão.

Então o """estilo""" é arrastado em diversas outras cenas. Há duas sensações quentíssimas a partir disso: a primeira é que o filme se esforça herculanescamente na dificultação de cenas que são simplórias, no intuito de parecerem mais intricadas; a segunda é que não havia uma ideia fixa e bem definida da estética imagética da obra na pré-produção, sendo feita na hora que as câmeras eram ligadas. Na primeira conversa entre Bento e Francisco na residência papal, anos depois da eleição de Bento, os dois fazem um passeio pelo jardim do lugar, e a câmera vai para ângulos e enquadramentos totalmente aleatórios, sem uma fluidez para o que mais importa, que é o texto. Parece bem mais que as escolhas são feitas pela beleza das locações - que são incríveis - do que unir o visual com o narrativo. É gratuito um corte estar no rosto dos personagens e partir do nada para um ângulo aéreo e depois para atrás de um arbusto (?).

O cerne de "Dois Papas" habita na relação entre os dois personagens títulos. A película não demora em definir o posicionamento da dinâmica entre os dois homens, quando Francisco está no banheiro assoviando a melodia de "Dancing Queen" do ABBA, música que Bento jamais havia ouvido - e a fita não perde a oportunidade e coloca a cena da votação embaixo da música, um anacronismo bem charmoso. Inclusive, essa cena da votação, logo no início da sessão, é a melhor de todo o filme pela montagem ágil e energética, e a fotografia belíssima, que foca no contraste entre o branco sacro da Capela Sistina com o vermelho das vestes dos votantes. É aqui que as escolhas são corretas, porém, a sequência diverge de basicamente todas as outras em termos de composição e ritmo, então o que funciona aqui não funciona no resto.

A beleza real do longa é a dicotomia entre os personagens, uma dupla que é feita com arquétipos nada novos, mas que são eficazes. De um lado temos Bento XVI, o papa velho, doente e reacionário, contra Francisco, o novo e (dentro dos enormes limites da religião) revolucionário papa que diz que o perdão ajuda o pecador, não a vítima, enquanto assiste futebol e acha que cada gol é um presente do altíssimo. Suas composições são reflexos do status vigente da igreja: Bento enfrenta o escândalo dentro do Vaticano sobre corrupção e pedofilia. Sua instituição está tão falida quanto sua pessoa, e todos precisam do frescor de um novo papa e uma nova igreja, com ideias mais coerentes com a sociedade atual, e esse é Francisco.

Francisco almeja sua aposentadoria do sacerdócio, todavia, o único que tem o poder de conceder tal desejo é o próprio Papa, e Bento se nega veementemente. Seus motivos são revelados quando ele começa a se familiarizar com o "rival": ele quer que Francisco o substitua quando anunciar sua renúncia, um escândalo por si só - um papa não renunciava o cargo há mais de 700 anos. O roteiro é uma repetição dessa teimosia, cada um querendo algo que anula o desejo do outro, e o impasse cansa já na metade do filme.


Falando na duração, "Dois Papas" tem 125 minutos, o que é bastante sólido. Entretanto, pelo menos meia hora poderia ter sido deixada de lado. No segundo ato, o filme literalmente interrompe seu plot central para acrescentar um paralelo: Francisco não se acha digno do posto de papa pelo o que ocorreu durante a ditadura militar argentina. São 25 minutos de flashbacks remontando o que gerou essa mácula no homem, e este outro filme destoa completamente do que "Dois Papas" realmente é. Os rumos vão ladeira abaixo com o típico mote aula-de-história-na-tela, e só comprova o erro que é essa bagunça de decisões sem firmeza dentro da produção.

O roteiro adentra demais em um período histórico da Argentina que não tem o peso compatível com o espaço dado a este período. É interessante vermos o passado de Francisco para ilustrar o que o fez ser tão diferente de Bento XVI, principalmente quando aborda o passado na ciência do homem, só que nada é capaz de render misericórdia para uma mudança tão brusca de narrativa. Além disto, chega a ser cômico como o texto de Anthony McCarten (escritor do livro que o filme se baseia e do roteiro de, eeeeerrrrr, "Bohemian Rhapsody", 2018) é recheado de sacadas para ser inteligente. É verdade que alguns diálogos são bem inspirados - o da construção de muros ao redor da igreja, por exemplo -, mas é muito forçado o uso de pontuações gratuitas para serem usadas em outros momentos só para parecer que o roteiro foi pensado de maneira abstrua - como a fala de Bento sobre a fumaça de uma vela que previsivelmente será usada em outro momento.

O que faz "Dois Papas" ser minimamente assistível é a atuação fantástica da dupla protagonista. Tanto Hopkins quanto Pryce são majestosos na pele dos papas que não se bicam, e assusta como ambos são parecidos com os papas reais - Pryce é a cópia do Papa Francisco, até nas cenas com imagens reais dá para gerar uma dúvida. Mesmo em cenas que não possuem tanto brilho, suas performances fazem tudo valer a pena, e não havia possibilidade de esperarmos algo diferente. Meirelles, que dirige com tropeços o longa, não precisa nem suar para retirar o melhores dessa dupla monstruosa.

Entre diversos erros de produção, um grande acerto de "Dois Papas" é não tomar partido a partir da exposição da fé de seus personagens. Aliás, há um esvaziamento de um sentido real da instituição ao mostrar que o sentido é inventado - são homens discutindo o que deus havia lhes incumbido e, assim, moldado o rumo de uma legião. No entanto, se o argumento é a exposição de brigas de poder versus a santidade do cargo, "Dois Papas" na verdade é uma cinebiografia caótica e mal feita que visa santificar o nosso atual e humilde papa, que recusa a pompa da posição, liga ele mesmo para a companhia de aviação para reservar uma passagem e toma Fanta laranja com pizza recém ungida.

Crítica: “Entre Facas e Segredos” e o malabarismo funcional entre tensão e diversão

Crítica: a crítica contém detalhes da trama.

Histórias de mistério, plots e assassinatos percorrem a cultura há gerações. Dos livros da Agatha Christie até os filmes de Alfred Hitchcock, o público sempre demonstrou imenso interesse pela clássica pergunta "Quem matou insira aqui o nome da vítima?". "Entre Facas e Segredos" (Knives Out) é uma releitura desse mote, o "filme de detetive" (ou "whodunit", o subgênero em inglês).

A noite do aniversário de 85 anos do patriarca da família Drysdale, Harlan (Christopher Plummer) termina com o homem morto. O que inicialmente sugeria um suicídio esconde segredos muito mais complexos, algo que o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) está ávido em desvendar. "Entre Facas em Segredos" tem como solo o questionamento sobre quem matou Harlan, e os suspeitos são inúmeros.

O casting do filme é repleto de estrelas - como Chris Evans, Janie Lee Curtis, Michael Shannon, Toni Collette, Katherine Langford e Jaeden Martell -, e basicamente todos têm culpa no cartório. A estrutura do filme é feita (por meio de uma montagem fabulosa) com cada personagem contando sua versão do enorme quebra-cabeça da noite do crime e flashbacks para que o espectador saiba o que era verdade ou mentira. O que poderia sugerir uma família feliz é rapidamente demolida com os depoimentos, cheios de ressentimentos por parte dos familiares - e a reconstituição das falas criativamente começa com muita simpatia e camaradagem (a maneira como o personagem conta para o detetive) e logo expõe a inconveniente verdade.


Basicamente, todos os principais suspeitos brigaram com Harlan por um único motivo: dinheiro. O patriarca era um famosíssimo autor e proprietário de grande fortuna, e todos ligados à família estão como urubus dentro da casa. A única que parece genuinamente preocupada é Marta (Ana de Armas em uma atuação excelente), a enfermeira particular de Harlan que tinha uma íntima relação com o falecido. Ela, que é fisicamente incapaz de mentir (ela vomita sempre que tenta), é a peça-chave do mistério, sabendo exatamente o que ocorreu naquela noite.

Uma das escolhas corretas do roteiro é não tentar sustentar o filme inteiro com a dúvida sobre quem matou Harlan - na metade da projeção já sabemos. A sacada é dar uma virada e mudar o foco da trama, que sai de "quem matou o patriarca?" para "como Marta vai se livrar da culpa?". É deveras evidente várias surpresas do filme - ele é aberto na casa de Marta, o que já dá a entender que ela é o gancho que prende toda a história -, além do exagero tremendo em jogar peças que gritam culpabilidade, mas que sabemos serem apenas desvios de foco para o real vilão do todo.

E falando em exagero, "Entre Facas e Segredos" tem de sobra. O estilo pode incomodar, porém, assim como um "As Panteras" (2000), você precisa ter em mente que o trem se move em uma constante de absurdos propositais. O longa é tanto uma homenagem quanto uma sátira do subgênero, remetendo a "Disque M Para Matar" (1954) e "Assassinato no Expresso Oriente" (1974) - é válido pontuar que ambos, dois dos maiores nomes do gênero "detetive", são baseados em livros, o que faz de "Entre Facas" uma agradável revelação por se tratar de uma obra original.

O aspecto homenagem/sátira cai principalmente em cima do personagem de Daniel Craig. Uma caricatura ambulante, ele é o ápice da figura clássica do detetive: sotaque esquisito, habilidade for farejar culpa e sacadas de cena feitas ao máximo. Não estranhamente, conversa (de maneira histriônica) com o Inspetor Hubbard de "Disque M", Hercule Poirot de "Expresso Oriente" e, claro, Sherlock Holmes - o personagem até passa o filme chamando Marta de "Watson". Essa é uma fita que não tem vergonha de escancarar suas referências literárias, cinematográficas e pop (um dos policiais fala que a casa é como o tabuleiro do jogo "Detetive", o que foi uma flechada no meu coração).


Rian Johnson, que assumiu a responsabilidade de dirigir "Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi" (2017), comprova ser um habilidoso diretor quando sustenta um filme que aparenta ser simplório, mas é uma realização longe disso. "Entre Facas" é assumidamente uma comédia, contudo, sua fundamentação é o mistério. Portanto, como fazer a plateia rir sem que a tensão da trama seja perdida (uma reação mais que comum em inúmeros filmes que tentam - e falham - unir essas duas sensações contrastantes, não é mesmo, "A Freira", 2018)? Ainda por cima, temos os elementos hiperbólicos, que poderia ainda dar mais errado; e o filme funciona muito bem.

Pelo menos até o terceiro ato. A partir da cena que Marta cede à uma chantagem, a película começa a andar em círculos, jogando reviravolta em cima de reviravolta. Imediatamente lembrei do badalado "Um Contratempo", que deve ser o filme com mais reviravoltas por segundo na história do Cinema (sempre brinco que, caso você pisque durante o filme, perderá 15 reviravoltas e vai ter que recomeçar do início). O que faz "Um Contratempo" funcionar em termos de "temos que surpreender o público" é que seus plot twists são limpos e certeiros, apesar de excessivos. No caso de "Entre Facas", soa como se o roteiro estivesse fazendo malabares com os fatos dados no decorrer do filme, na esperança de que a solução caia nas mãos da produção ao invés de atingirem o chão - e tem pontos que caem de cara, como por exemplo a cena do pingo de sangue, que não é explicada mesmo sendo usada como motivação de um dos personagens.

Dentro todos os erros e acertos (felizmente aqui há mais acertos), o que mais me afeiçoou na fita é a maneira como o texto vai para o campo político. Tentei ao máximo deixar essa crítica livre de spoilers, todavia, abrirei mão da empreitada apenas no presente parágrafo. Marta é uma imigrante latina; sua mãe está nos EUA ilegalmente, um dos temores da protagonista ao se ver enrolada na morte de Harlan. Durante a projeção, inúmeros pontos envolvendo a problemática são inseridos, como o neto simpatizante do Nazismo e o marido xenofóbico e a favor da prisão de imigrantes latinos. Além de fomentar a persona dos peões envolvidos, o roteiro tem uma claríssima mensagem a passar - é hilário ver como cada um deles diz que Marta veio de um país latino diferente, pois, bem, para eles são todos iguais. Aquela burguesia que se esconde atrás de sorrisos perfeitos é cheia de ódio e interesses mesquinhos, e Marta, tomando seu café na sacada da sua nova mansão, assiste com prazer os abutres preconceituosos perdendo tudo. É uma vingança textual deliciosa e um dedo do meio para a Era Trump.

"Entre Facas e Segredos" se sobressai por ser um "filme família" capaz de agradar a todas as faixas etárias sem ser genérico ou redutivo - pelo contrário, é sólido e divertidíssimo. Há caminhos frescos percorridos que demonstram o quanto ainda é possível resgatar estilos com personalidade e eficiência. Grandioso pelo seu batalhão de estrelas e pelo roteiro que estrutura a trama sabiamente, os excessos podem até diminuir a sessão - o filme se esforça para parecer mais complexo do que realmente é -, mas, mesmo sendo familiar e até previsível, é capaz de gerar interesse por todos os 130 minutos e terminar socialmente afiado, sem perdão pelo trocadilho. E Chris Evans como um personagem que odeia cachorros é aula de atuação.

Crítica: está tudo bem se você for ao banheiro no meio de “O Irlandês”

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Ator Codjuvante (Al Pacino)
- Melhor Ator Codjuvante (Joe Pesci)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Figurino
- Melhor Montagem
- Melhores Efeitos Visuais

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando pensamos no corpo de trabalho de um diretor, caso ele tenha um estilo bem característico, conseguimos definir do que seu cinema é feito. Alguns exemplos? Wes Anderson e seus filmes coloridíssimos e simétricos; Yorgos Lanthimos e seus filmes estranhos e sarcásticos; Spike Lee e seus filmes engajados e políticos, Sofia Coppola e seus filmes melancolicamente femininos; e por aí vai. Mas é curioso quando olhamos sobre Martin Scorsese.

A filmografia scorseseana é geralmente resumida por "filmes de máfia". Nos mais de 50 anos de atuação, o diretor passeou por uma enorme gama de temas, como "Touro Indomável" (1980), "Depois de Horas" (1985), "A Última Tentação de Cristo" (1988), "O Aviador" (2004), "Ilha do Medo" (2010), "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), "O Lobo de All Street" (2013) e "Silêncio" (2016), todos bem diferentes um dos outros. Contudo, é inevitável apontar a temática gangster como a mais predominante em sua carreira - suas obras mais famosas e premiadas foram as desse mote, inclusive rendendo o único Oscar de "Melhor Direção" para Scorsese.

Então, mesmo não sendo assertivo resumir Scorsese com filmes de máfia, não é lá uma definição tão errada. "O Irlandês" (The Irishman) não me deixa mentir. O filme, inclusive, traz um dos maiores nomes na construção da fama do diretor: Robert De Niro (protagonista de "Touro Indomável" e "Taxi Driver", 1976) na pele de Frank Sheeran, um motorista de caminhão envolvido no crime organizado na Filadélfia dos anos 50. Pesadamente inspirado em fatos e indivíduos reais, a estrutura do filme não é linear, começando com Frank no fim da vida em um asilo contando o que o levou até ali.

Por possuir uma estrutura que caminha entre o tempo, o filme encontraria uma grande empecilho: De Niro, que atualmente possui 76 anos, não teria como interpretar as versões mais novas de seu personagem - assim como outros atores em cena. A solução foi um rejuvenescimento à base de efeitos visuais. O CGI é utilizado com muita precisão, sendo quase imperceptível e mantendo as expressões faciais dos atores, um dos maiores riscos da utilização da técnica - e que explica os 160 milhões de dólares em orçamento, um número altíssimo, principalmente levado em conta que o filme foi distribuído na Netflix, ou seja, sem bilheteria (com exceção do lançamento limitado nos cinemas como parte do processo de submissão ao Oscar - para ser indicado, o filme tem que sair nas salas por pelo menos uma semana).

E falando em Netflix, a plataforma está sedenta por um careca dourado. No Oscar 2019, chegou bem perto com "Roma" (2018), que viu o prêmio de "Melhor Filme" escorrer de suas mãos com uma Academia que ainda olha torto para obras vindouras do streaming. Em 2020, a Netflix vem com força total, tendo os dois maiores nomes da temporada: "O Irlandês" e "História de um Casamento" (2019). A gigante não perdeu tempo em comprar os diretos de distribuição de ambos - ainda investindo milhões na produção de "O Irlandês", visando, não podemos mentir, ser a primeira plataforma de stream a ter um Oscar na estante. Por enquanto, parece que o caminho está trilhado.


Pois bem. "O Irlandês", que foi eleito o melhor do ano pela National Board of Review e recebeu incríveis 14 indicações ao Critics' Choice 2020, um recorde na história da premiação repetido apenas por "A Forma da Água" (2017) e "A Favorita" (2018), resgata o estilo que viu o apogeu nos anos 70 - tanto "O Poderoso Chefão" (1972) quanto "O Poderoso Chefão: Parte II" (1974) venceram "Melhor Filme" na década. Então, sim, é tudo o que esse cinema hollywoodiano de ação mafiosa já nos entregou ao longo da história. E mais: são 3:30h de filme.

Esses pontos aqui renderam inúmeras discussões pela internet, com um crítico fazendo um post no Twitter sobre como assistir a "O Irlandês" como se fosse uma minissérie, dividindo o filme em quatro partes (que, levanto a mão, foi o que fiz). Do outro lado, o Pablo Villaça (um beijo para ele) virou meme quando disse que deveríamos assistir às 3:30h sem parar, não podendo nem ir ao banheiro, para não quebrar o "ritmo da narrativa". Villaça, perdão, mas eu falhei. O que esses dois extremos têm a nos dizer?

Como apontei na crítica de "História de um Casamento", cinema é passível de gostos. Sabe aquele seu amigo que venera qualquer filme de super-herói enquanto você acha um saco? Pois é. Quanto mais afunilado for o estilo, gênero ou molde de uma obra, mais de "nicho" ela será. É o caso de "O Irlandês". Villaça, que tem como filme favorito "O Poderoso Chefão", não surpreende quando ama "O Irlandês", que entrega tudo o que "Chefão" entregou. Para ele, acompanhar os 209 minutos ininterruptamente faz parte das rotinas de apreciação que ele tem pelo mote, o que, de acordo com a enxurrada de comentários acerca, não é a realidade de todo mundo.

O que eu quero dizer é: se você gosta de filme de máfia, esse momento é seu. Caso contrário, "O Irlandês" será um desafio, e é aqui que eu me enquadro. É impossível saber os valores de um filme de máfia caso você não aguente nem ouvir falar sobre? Não, contudo, o gosto da sessão com toda certeza não será tão doce. Admito que me peguei me obrigando a assistir ao filme, que, querendo ou não, é um evento para a Sétima Arte, e, dividindo entre vários dias (calma, Villaça), consegui chegar até o fim. O que posso dizer sobre "O Irlandês"?

O roteiro, escrito por Steven Zaillian, vencedor do Oscar pelo roteiro da obra-prima "A Lista de Schindler" (1993) e especialista em adaptar livros complexos, se atém demasiadamente nos fatos históricos que circulam os eventos do filme. Por trazer personagens reais e fincados num contexto político, há um background da política norte-americana e como ela impacta a vida dos personagens, como a eleição (e morte) de JFK. Então é laborioso escapar da sensação de que estamos assistindo à uma aula de história na tela, mas já garante pelo menos a atenção dos EUA, absurdamente egoicos e prontos para jogarem confetes em qualquer fita que trate sobre, bem, eles mesmos.


Há três vertentes de narrativa dentro do filme. A primeira é quando temos Frank recontando sua vida e quebrando a quarta parede, afinal, ele está falando diretamente com o público. A segunda trata-se da remontagem das falas de Frank, com uma narração e cenas de acordo. Essa é a pior escolha do filme. Feita sempre com uma colagem de micro cenas que duram segundos e que não esperam a plateia assimilar o que está acontecendo, ainda tem a narração e inúmeros personagens entrando e saindo de cena. Em várias dessas sequências eu me via incapaz de entender o que estava acontecendo, soando ainda pior quando havia o contexto histórico jogado em cima de tudo. A terceira é a salvação do dia: quando a presença do Frank idoso sai de cena para uma narrativa convencional.

Aqui, as cenas são compridas e finalmente podemos adentrar no desenvolvimento da trama. E os diálogos, ah, os diálogos... Encontrando maior espaço na parte central da duração, os diálogos são deliciosos, como a briga de Jimmy Hoffa (o lendário Al Pacino) com um mafioso que chegou cinco minutos atrasado para uma reunião. Sem toda a baboseira e falatório, se atendo especificamente nos personagens centrais, o filme mostra a que veio.

E esses momentos informam sem sombra de dúvida o quanto as atuações do trio central são fenomenais. De Niro e o Russell Bufalino de Joe Pesci são os peões silenciosos que conduzem a orquestra, todavia, Al Pacino é o verdadeiro protagonista de "O Irlandês". Não por ter o maior tempo em tela, mas por preencher cada quadro em que aparece com sua fenomenal atuação. É uma satisfação ver o ator, que já viveu tantas glórias, voltar ao topo após sofrer com escolhas desastrosas nessa década - deixo aqui uma cena de "Cada um tem a Gêmea Que Merece" (2011) para ilustrar o que chamo de "desastre", que lhe rendeu o Framboesa de Ouro de "Pior Ator Coadjuvante" pelo papel e apontava o declínio de sua carreira.

Um dos elementos a ser tópico de discussão sobre o filme foi como as mulheres são retratadas: elas basicamente inexistem. Scorsese, um homem branco, realiza seus filmes lotados de homens brancos, o que faz sentido - ele dirige o que está próximo de sua realidade. No entanto, me assustei ao ver que Anna Paquin, vencedora do Oscar, aceitou um papel que, não estou exagerando, não fala 10 palavras. Ela, como a versão adulta da filha de Frank, tem cena após cena sem um mísero diálogo, ganhando voz por cinco segundos no ato final. A atriz saiu em defesa do papel e se disse lisonjeada por estar em um filme do diretor, que é inegavelmente um dos maiores das história, mas não faz sentido reduzir a personagem a nada - e ela ainda chegou a receber indicação de "Melhor Atriz Coadjuvante" em algum dos distritos de crítica no EUA; caso ganhe, será o menor esforço da história a render um prêmio.

"O Irlandês", se olhado de cima do nicho que se enquadra, é uma realização competente que nada difere dos padrões elevados já impostos por Martin Scorsese ao logo das décadas. Traz algo de novo para sua filmografia? Não exatamente. A partir disso, pela sua temática e sua duração, o apreço vai muito da maneira como cada um enxerga os elementos, apesar de itens intocáveis como o aparato técnico e as atuações de primeira linha. Esse é um filme que coloca a subjetividade à flor da pele quando uns o enxergam como um épico sobre moralidades rachadas e brigas de poder, enquanto o mesmíssimo material para outros (e aqui me sento) denota pouco além do letárgico. Mas o mais incompreensível é pensar que Anna Paquin saiu de casa para isso.

Crítica: a D.R. de “História de um Casamento” conquista por abraçar o universal

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Adam Driver)
- Melhor Atriz (Scarlett Johansson)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Laura Dern)
- Melhor Trilha Sonora

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Noah Baubach é um dos maiores expoentes do cinema indie norte-americano na atualidade. Seja pelos seu roteiros (ele co-escreveu "A Vida Marinha com Steve Zissou", 2004, e "O Fantástico Sr. Raposo", 2009, com Wes Anderson), seja pelos seus próprios filmes (como o clássico independente "Frances Ha", 2013, protagonizado pela sua esposa e cristal do cinema, Greta Gerwig), há muito tempo Baubach encontra o carinho do público e crítica, mas nunca antes como com "História de um Casamento" (Marriage Story).

Charlie (Adam Driver) comanda e dirige uma companhia de teatro em Nova Iorque, e tem como estrela de suas peças a sua esposa, Nicole (Scarlett Johansson) - teve um déjà vu? Só que a relação nos palcos não reflete mais a relação doméstica, e o casal decide se separar. Como prominente atriz, Nicole é escalada para uma série em Los Angeles, e vai até lá com o filho, o que transformará uma pacífica separação em uma guerra judicial.

O longa espertamente é aberto com um voice-over do casal, contando os meandros do outro e todos os detalhes que os fizeram se apaixonar. É muito divertido acompanhar a dicotomia dos dois, e impossível não projetar para nossas próprias vidas, afinal, estamos em constantes relações com pessoas que inevitavelmente terão diferenças drásticas com o que somos. E essa é a magia da coisa. O que parecia um apaixonado início é brutalmente cortado: os textos são cartas que cada um teve que escrever na terapia, só que Nicole se recusa a ler a dela em voz alta. O público é o seu cúmplice.

Com cada um vivendo em cidades diferentes, o trabalho é o motivo para, civilizadamente, justificar o afastamento (emocional e geográfico) dos dois - uma peça de Charlie está indo para a Broadway e as gravações de Nicole começaram. Havia um acordo entre eles: não seria preciso a intervenção de advogados no divórcio, com uma camaradagem expressiva entre eles, até mesmo na divisão dos bens, só que Nicole quebra o acordo e contrata Nora (Laura Dern), advogada especialista em separação que mudará toda a dinâmica do jogo.


Charlie fica consternado quando recebe a intimação judicial, sem entender o que levou a ex-esposa a tomar tal decisão. O roteiro diabolicamente não entrega a resposta de imediato, quase transformando Nicole na vilã da história, contudo, há um motivo, e dos bons: ela descobriu que Charlie a traiu. É claro que cada um tem uma "justificativa" que tenta anular a reação do outro, em uma das melhores cenas de toda obra, quando os dois aos berros vomitam suas mágoas e procuram atacar da forma mais baixa possível o outro. E note o trabalho belíssimo de fotografia e montagem, abrindo a cena com um enorme plano e gradualmente fechando até focar no rosto transtornado do casal.

Uma das nuances mais corretas de "História de um Casamento" é não se limitar em ser somente um olhar sobre uma relação em ruínas. Há um forte estudo sobre o que é essa instituição que chamamos de casamento e qual o papel de homem e mulher dentro dele. Tudo é jogado ao máximo quando inserido no contexto da advocacia, que tem como base o uso desses papéis no grande jogo de convencimento jurídico. Nicole jamais pode transparecer ser uma esposa ruim, pois isso a configuraria como uma mãe ruim, e a guarda do filho seria perdida. No caso do homem, tal peso inexiste. É aqui que habita, para mim, o melhor diálogo das mais de 2h de sessão, quando Nora dá uma aula sobre a construção social da mulher dentro do relacionamento, lincando com a imagem de Maria, mãe de Jesus, "uma virgem que dá à luz, apoia o filho incondicionalmente e o abraça enquanto ele morre; e o pai nem dá as caras, deus é o pai, deus está no céu e nem aparece!". O Oscar de "Melhor Roteiro Original" já tem dono.

Falando em Dern, uma das maiores cotadas ao Oscar de "Melhor Atriz Coadjuvante" e uma das melhores atrizes em atuação, não há muito o que se falar contra ela, porém, sua personagem é similar demais com Renata Klein, seu papel vencedor do Emmy na série "Big Little Lies" - mas não se engane, ela é ótima em cena, mesmo com uma personagem dentro do molde "advogado ixperto" tão batido no cinema. Adam Driver, que só pode ser escalado para personagens bem específicos, parece transbordar na pele de Charlie, caminhando com imensa segurança entre os momentos dramáticos e cômicos (a cena do canivete). Todavia, "História de um Casamento" é engolido por Scarlett Johansson.

A atriz, que na corrente década caiu de vez nas graças do cinema pipoca - "Os Vingadores" (2008) e todos seus intermináveis filhotes, "Lucy" (2014), "A Vigilante do Amanhã" (2017), etc - entrega a sua melhor atuação do período nessa personagem que exige tanto talento. Há monógolos enormes e coreografados, que são executados com maestria pela atriz, unindo uma exigência enorme para a fluidez de cada cena com o estilo mumblecore que Baumbach adota em seus filmes. De fato, o apogeu de Johansson e a volta para sua boa forma.


A maior cartada de "História de um Casamento" é o realismo a que se propõe. É um filme bem "gente como a gente", tratando de dramas reais com pessoas reais, o que explica o imenso apreço dos espectadores, catapultando o longa como um dos mais ovacionados do ano. Além disso, há esmero na composição de seus indivíduos, enriquecendo ainda mais o universo multidimensional que é a vida dos personagens, contudo, mais uma vez iremos nos debruçar em um elemento seminal de qualquer arte e que muita gente ainda se recusa a aceitar: a  subjetividade.

Entre achar "História de um Casamento" um "filme sobre brancos discutindo a relação" e "uma das mais tocantes histórias do ano" (são comentários reais que li a respeito da película), tudo parte do princípio que cada pessoa irá ser atingida de uma forma diferente pelo mesmo filme. O estilo proposto por Baumbach possui fácil apelo pela proximidade que ele coloca seus mundos dos mundos reais, só que esse é um filme que, daqui a um mês eu estarei na fila da padaria e pensando "nossa, que perfeito"? Não.

Aqui temos o Cinema como contador de histórias do cotidiano, uma das funções seminais da Sétima Arte, e "História de um Casamento" atinge esse objetivo facilmente. É simpático, caloroso e, ao mesmo tempo, emocionante, uma fórmula pronta para arrebatar multidões, no entanto, mesmo tendo abraçado e me apegado ao todo, não é um estilo que me arranque suspiros ou que me devaste; é o mesmo que alguém amar filmes de super-herói, ou de faroeste, ou os "estranhões", ou os de máfia, e por aí vai e está tudo bem. É um ótimo filme que, sendo bem detalhista, não foge à regra de tantos outros com a mesmíssima temática e estilo, como "Cenas de um Casamento" (1973) e a maior referência, "Kramer vs. Kramer" (1979) - até os posteres são parecidos. Soa desconfortável apontar, porém, o apreço circula ao redor da sua preferência estilística - como basicamente acontece com todo filme - mas, no fim do dia, é essa a verdade.

"História de um Casamento" é um filme que deve ser visto pela dissecação palpável do quão complexo somos e como tudo vai para um limite além quando buscamos a utópica máxima de "juntos somos um só" dentro de um relacionamento. A vida de Charlie e Nicole é tão congruente com a vida de vários outros Charlies e Nicoles sentados diante da tela, e as decisões feitas por Noah Baumbach universalizam sua obra a um estágio que pode ser explicado pela sua imensurável aclamação. Assim como não dá para fugir que "História de um Casamento" é feito para fisgar multidões - até mesmo o genérico título, que não denota singularidade, resume a ideia -, não dá para fugir da particularidade de que prefiro muito mais uma fita que extrapole a realidade nas imensas possibilidades que a Sétima Arte nos agracia do que uma que seja expectadora da realidade pura e simples. E isso não é um problema de "História de um Casamento".

Crítica: “As Golpistas” é gerado por mulheres, mas parece direcionado para homens

Nesse mundinho de divas pop indo parar nos cinemas, vimos inúmeros exemplos malfadados, com os sucessos sendo resumidos em dedos de uma mão só (um beijo "Nasce Uma Estrela", 2018). Jennifer Lopez mesmo, há tempos não é apenas uma cantora de charts, com vários filmes em seu currículo - e ganhando notoriedade em 1997 como Selena Quintanilla na cinebiografia "Selena". O hype de "As Golpistas (Hustlers) foi construído em cima de Lopez, que desde a estreia no Festival de Toronto 2019 começou uma trajetória que provavelmente a levará ao Oscar.

"As Golpistas" conta a história real de strippers que elaboraram um golpe suficientemente eficaz para pagarem suas casas e comprarem casacos de chinchila (não usem peles, meninas). Destiny (Constance Wu) luta para manter as contas em dia e vê em Ramona (Jennifer Lopez), a melhor stripper de sua boate, como a mentora perfeita para sua ascensão na profissão, que verá o declínio com a crise norte-americana de 2008. É daí que o golpe começa a ser bolado.

A estrutura do filme consiste em Destiny sendo entrevistada por uma jornalista em 2014. Ela reconta os fatos ocorridos e que viriam a ganhar notoriedade após a prisão do grupo anos antes, passeando entre cenas da entrevista e flashbacks. Por algum motivo além da minha compreensão, Wu atua muito mal quando a câmera foca no presente - não sei se ela foi instruída pela direção a se portar da maneira que foi vista, mas há algo de muito inatural ali.

Umas das impressões iniciais de "As Golpistas" é como o roteiro não tem a preocupação de desenvolver suas personagens de uma maneira fluida. O passo-a-passo é muito evidente, afinal, esse é um filme de "assalto" (ou "heist film", como o subgênero é conhecido), aqueles que mostram as etapas de um roubo ou golpe, então temos uma estrutura muito limitada. Já de cara temos Destiny, a "garota nova", encontrando dificuldade em se destacar na boate, e logo em seguida entra Ramona com seu espetáculo no cano - JLo está competentíssima na pele da stripper, a melhor coisa de toda a película. A fórmula é dada de maneira elementar demais.


Tão verdade que quase não temos um background para as personagens - elas nascem no ecrã daquela maneira e é isso aí. Quando o texto tenta incluir camadas de desenvolvimento, principalmente com Destiny (que é a protagonista), é de maneira jogada: do mais absoluto nada surge um namorado, e imediatamente ela descobre que está grávida. Corta a cena e ela expulsa o namorado de casa, com a filha aos gritos. Ainda existe a subtrama com a avó de Destiny, que é explicada de maneira convencional e, para ser sincero, não acrescenta o quanto poderia.

Com Cardi B e Lizzo interpretando, bem, elas mesmas, "As Golpistas" se contenta com os meios já previstos dentro de seu subgênero e não se dá ao trabalho de entregar mais do que isso. O auge e o declínio do golpe são vislumbrado antes mesmo de ele surgir na tela, tamanha obviedade. E nem é tão complexo assim sair do rasteiro: "Animais Americanos" (2018) é um exemplo bem recente de heist movie com a exata mesma estrutura de "As Golpistas" (entrevistas com os envolvidos e remontagens dos eventos em flashbacks) e que burla qualquer limite pré-imposto.

Entre hits da música pop dos anos que os letreiros informam - "Gimme More" da Britney Spears em 2007, obrigado -, um detalhe berrante me chamava a atenção: a maneira como a narrativa da obra foi concebida. Ramona, veterana na boate, explica todo o sistema do local, desde as maneiras como Destiny deve abordar os clientes e os tipos de clientes. Depois, temos explicações de como funciona o golpe que intitula o filme, fora outros pormenores (como o procedimento da mistura das drogas usadas). Tudo isso é montado da seguinte maneira: uma música animada para dar agilidade + narração em off + cortes energéticos com fast motion.

Se você não habitar a roda cinéfila provavelmente terá esse combo como algo insignificante, porém, ele foi popularizado por Adam McKay com o filme "A Grande Aposta" (2015) - e repetido em "Vice" (2018). É uma escolha estilística mckayana, podemos assim dizer - também remete a "O Lobo de Wall Street" (2013) do Martin Scorsese. Pois bem. Quanto mais "As Golpistas" passava, mais a cara do McKay ganhava, até um ponto que dei uma interrompida na sessão para olhar a ficha técnica. O que encontrei? Ele mesmo, Adam McKay, entre os produtores da fita.


Indo mais a fundo na pesquisa, li que Lorene Scafaria, roteirista do filme, queria (adivinhe só) Adam McKay ou Scorsese como diretor do filme. A produtora do projeto, inclusive, falou que enviou o roteiro para "as pessoas que estavam fazendo esse tipo de filme". Tudo se explica. Só depois a própria Scafaria foi posta, também, na direção do próprio roteiro. Temos aqui alguns problemas.

Quando "As Golpistas" caiu na minha frente, a premissa não era uma daquelas que me faria largar tudo para imediatamente ver. Porém, um filme sobre strippers dirigido, escrito e atuado por mulheres tinha motivos sólidos para garantir o interesse, afinal, pensando na temática, não consigo lembrar de diretoras e roteiristas possuindo créditos em Hollywood. O universo das boates de strip-tease é envolto de muito machismo e objetificação, com mulheres sendo mercadoria de troca que o dinheiro pode (momentaneamente) comprar. Seria muito bem-vinda uma óptica feminina sobre isso. Só que "As Golpistas" é, fundamentalmente, um filme masculino.

Rapidamente me apropriando de um juízo de valor, me coloquei no lugar de uma mulher convencional, que escolhe o filme ao chegar no cinema, e não consigo vislumbrar seu apreço pela sessão. Um homem? Provavelmente adorará. Então como um filme amparado em mãos femininas pode soar tão masculino? O que aconteceu que a narrativa escolhida foi uma que remete ao universo do macho? Claro que estou falando de nuances que são passíveis de subjetividade, mas o molde de "As Golpistas" é tão McKay que, se seu nome viesse nos créditos de direção, não haveria surpresa. Só faltou rolar personagem quebrando a quarta parede ou alguma marmota como os créditos finais subindo no meio do filme (ele adora essas coisas).

Temos que ter em mente que Scafaria, mesmo não sendo uma diretora estreante (esse é seu terceiro longa), dificilmente possuiria o controle criativo do projeto, afinal, um vencedor do Oscar é um dos produtores - e ela mesmo tinha ele em mente como cabeça do filme. Porém é uma tristeza ver uma obra que tem uma mulher por trás do texto e condução ser sem personalidade e uma cópia do trabalho de um homem (que só faz filme insuportavelmente masculino). Há nada de novo, de fervor, de destaque (além da performance de JLo e das músicas escolhidas).

Entre a ação injetada pela montagem e seios saltitantes fora de sutiãs, "As Golpistas" é um daqueles filmes que os parças vão recomendar para os amigos numa sexta-feira. Isso é ruim? Não exatamente, porém, o saldo final poderia remeter a elementos mais importantes. O meio do strip-tease, das casas com meninas em canos, é bastante dúbio dentro dos estudos feministas: há desde a condenação até o enaltecimento.

Luiza Missi, no texto "Strippers, o strip-tease e o prazer feminino", aponta que Hollywood cria uma narrativa que associa os clubes de strip com a liberdade sexual masculina, e que uma mulher naquela posição é bem diferente de um homem. É, portanto, um desperdício não recebermos uma produção que reflita quem está por trás das câmeras, reforçando ideias já instauradas e vendo temas como maternidade, inclusão da mulher no mercado de trabalho e tantas outras dificuldades simbioticamente femininas serem retratadas sem peso.

Não que "As Golpistas" mereça um troféu de machismo do mês, longe disso. Há forte sentimento de sororidade entre suas personagens, felizmente muito diversas - assim como "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015), que é um longa com roupagem de "macho" mas lotado de feminismo - e, protegidos pelo escudo da ficção, uma delícia ver strippers se vingando do patriarcado ao atingir o bolso de machos da Wall Street, todavia, é uma decepção um universo tão objetificador não possuir uma voz ativamente feminina na maneira que é transposto para a arte.

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