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Crítica: a D.R. de “História de um Casamento” conquista por abraçar o universal

Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Adam Driver)
- Melhor Atriz (Scarlett Johansson)
- Melhor Atriz Coadjuvante (Laura Dern)
- Melhor Trilha Sonora

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Noah Baubach é um dos maiores expoentes do cinema indie norte-americano na atualidade. Seja pelos seu roteiros (ele co-escreveu "A Vida Marinha com Steve Zissou", 2004, e "O Fantástico Sr. Raposo", 2009, com Wes Anderson), seja pelos seus próprios filmes (como o clássico independente "Frances Ha", 2013, protagonizado pela sua esposa e cristal do cinema, Greta Gerwig), há muito tempo Baubach encontra o carinho do público e crítica, mas nunca antes como com "História de um Casamento" (Marriage Story).

Charlie (Adam Driver) comanda e dirige uma companhia de teatro em Nova Iorque, e tem como estrela de suas peças a sua esposa, Nicole (Scarlett Johansson) - teve um déjà vu? Só que a relação nos palcos não reflete mais a relação doméstica, e o casal decide se separar. Como prominente atriz, Nicole é escalada para uma série em Los Angeles, e vai até lá com o filho, o que transformará uma pacífica separação em uma guerra judicial.

O longa espertamente é aberto com um voice-over do casal, contando os meandros do outro e todos os detalhes que os fizeram se apaixonar. É muito divertido acompanhar a dicotomia dos dois, e impossível não projetar para nossas próprias vidas, afinal, estamos em constantes relações com pessoas que inevitavelmente terão diferenças drásticas com o que somos. E essa é a magia da coisa. O que parecia um apaixonado início é brutalmente cortado: os textos são cartas que cada um teve que escrever na terapia, só que Nicole se recusa a ler a dela em voz alta. O público é o seu cúmplice.

Com cada um vivendo em cidades diferentes, o trabalho é o motivo para, civilizadamente, justificar o afastamento (emocional e geográfico) dos dois - uma peça de Charlie está indo para a Broadway e as gravações de Nicole começaram. Havia um acordo entre eles: não seria preciso a intervenção de advogados no divórcio, com uma camaradagem expressiva entre eles, até mesmo na divisão dos bens, só que Nicole quebra o acordo e contrata Nora (Laura Dern), advogada especialista em separação que mudará toda a dinâmica do jogo.


Charlie fica consternado quando recebe a intimação judicial, sem entender o que levou a ex-esposa a tomar tal decisão. O roteiro diabolicamente não entrega a resposta de imediato, quase transformando Nicole na vilã da história, contudo, há um motivo, e dos bons: ela descobriu que Charlie a traiu. É claro que cada um tem uma "justificativa" que tenta anular a reação do outro, em uma das melhores cenas de toda obra, quando os dois aos berros vomitam suas mágoas e procuram atacar da forma mais baixa possível o outro. E note o trabalho belíssimo de fotografia e montagem, abrindo a cena com um enorme plano e gradualmente fechando até focar no rosto transtornado do casal.

Uma das nuances mais corretas de "História de um Casamento" é não se limitar em ser somente um olhar sobre uma relação em ruínas. Há um forte estudo sobre o que é essa instituição que chamamos de casamento e qual o papel de homem e mulher dentro dele. Tudo é jogado ao máximo quando inserido no contexto da advocacia, que tem como base o uso desses papéis no grande jogo de convencimento jurídico. Nicole jamais pode transparecer ser uma esposa ruim, pois isso a configuraria como uma mãe ruim, e a guarda do filho seria perdida. No caso do homem, tal peso inexiste. É aqui que habita, para mim, o melhor diálogo das mais de 2h de sessão, quando Nora dá uma aula sobre a construção social da mulher dentro do relacionamento, lincando com a imagem de Maria, mãe de Jesus, "uma virgem que dá à luz, apoia o filho incondicionalmente e o abraça enquanto ele morre; e o pai nem dá as caras, deus é o pai, deus está no céu e nem aparece!". O Oscar de "Melhor Roteiro Original" já tem dono.

Falando em Dern, uma das maiores cotadas ao Oscar de "Melhor Atriz Coadjuvante" e uma das melhores atrizes em atuação, não há muito o que se falar contra ela, porém, sua personagem é similar demais com Renata Klein, seu papel vencedor do Emmy na série "Big Little Lies" - mas não se engane, ela é ótima em cena, mesmo com uma personagem dentro do molde "advogado ixperto" tão batido no cinema. Adam Driver, que só pode ser escalado para personagens bem específicos, parece transbordar na pele de Charlie, caminhando com imensa segurança entre os momentos dramáticos e cômicos (a cena do canivete). Todavia, "História de um Casamento" é engolido por Scarlett Johansson.

A atriz, que na corrente década caiu de vez nas graças do cinema pipoca - "Os Vingadores" (2008) e todos seus intermináveis filhotes, "Lucy" (2014), "A Vigilante do Amanhã" (2017), etc - entrega a sua melhor atuação do período nessa personagem que exige tanto talento. Há monógolos enormes e coreografados, que são executados com maestria pela atriz, unindo uma exigência enorme para a fluidez de cada cena com o estilo mumblecore que Baumbach adota em seus filmes. De fato, o apogeu de Johansson e a volta para sua boa forma.


A maior cartada de "História de um Casamento" é o realismo a que se propõe. É um filme bem "gente como a gente", tratando de dramas reais com pessoas reais, o que explica o imenso apreço dos espectadores, catapultando o longa como um dos mais ovacionados do ano. Além disso, há esmero na composição de seus indivíduos, enriquecendo ainda mais o universo multidimensional que é a vida dos personagens, contudo, mais uma vez iremos nos debruçar em um elemento seminal de qualquer arte e que muita gente ainda se recusa a aceitar: a  subjetividade.

Entre achar "História de um Casamento" um "filme sobre brancos discutindo a relação" e "uma das mais tocantes histórias do ano" (são comentários reais que li a respeito da película), tudo parte do princípio que cada pessoa irá ser atingida de uma forma diferente pelo mesmo filme. O estilo proposto por Baumbach possui fácil apelo pela proximidade que ele coloca seus mundos dos mundos reais, só que esse é um filme que, daqui a um mês eu estarei na fila da padaria e pensando "nossa, que perfeito"? Não.

Aqui temos o Cinema como contador de histórias do cotidiano, uma das funções seminais da Sétima Arte, e "História de um Casamento" atinge esse objetivo facilmente. É simpático, caloroso e, ao mesmo tempo, emocionante, uma fórmula pronta para arrebatar multidões, no entanto, mesmo tendo abraçado e me apegado ao todo, não é um estilo que me arranque suspiros ou que me devaste; é o mesmo que alguém amar filmes de super-herói, ou de faroeste, ou os "estranhões", ou os de máfia, e por aí vai e está tudo bem. É um ótimo filme que, sendo bem detalhista, não foge à regra de tantos outros com a mesmíssima temática e estilo, como "Cenas de um Casamento" (1973) e a maior referência, "Kramer vs. Kramer" (1979) - até os posteres são parecidos. Soa desconfortável apontar, porém, o apreço circula ao redor da sua preferência estilística - como basicamente acontece com todo filme - mas, no fim do dia, é essa a verdade.

"História de um Casamento" é um filme que deve ser visto pela dissecação palpável do quão complexo somos e como tudo vai para um limite além quando buscamos a utópica máxima de "juntos somos um só" dentro de um relacionamento. A vida de Charlie e Nicole é tão congruente com a vida de vários outros Charlies e Nicoles sentados diante da tela, e as decisões feitas por Noah Baumbach universalizam sua obra a um estágio que pode ser explicado pela sua imensurável aclamação. Assim como não dá para fugir que "História de um Casamento" é feito para fisgar multidões - até mesmo o genérico título, que não denota singularidade, resume a ideia -, não dá para fugir da particularidade de que prefiro muito mais uma fita que extrapole a realidade nas imensas possibilidades que a Sétima Arte nos agracia do que uma que seja expectadora da realidade pura e simples. E isso não é um problema de "História de um Casamento".

Crítica: “As Golpistas” é gerado por mulheres, mas parece direcionado para homens

Nesse mundinho de divas pop indo parar nos cinemas, vimos inúmeros exemplos malfadados, com os sucessos sendo resumidos em dedos de uma mão só (um beijo "Nasce Uma Estrela", 2018). Jennifer Lopez mesmo, há tempos não é apenas uma cantora de charts, com vários filmes em seu currículo - e ganhando notoriedade em 1997 como Selena Quintanilla na cinebiografia "Selena". O hype de "As Golpistas (Hustlers) foi construído em cima de Lopez, que desde a estreia no Festival de Toronto 2019 começou uma trajetória que provavelmente a levará ao Oscar.

"As Golpistas" conta a história real de strippers que elaboraram um golpe suficientemente eficaz para pagarem suas casas e comprarem casacos de chinchila (não usem peles, meninas). Destiny (Constance Wu) luta para manter as contas em dia e vê em Ramona (Jennifer Lopez), a melhor stripper de sua boate, como a mentora perfeita para sua ascensão na profissão, que verá o declínio com a crise norte-americana de 2008. É daí que o golpe começa a ser bolado.

A estrutura do filme consiste em Destiny sendo entrevistada por uma jornalista em 2014. Ela reconta os fatos ocorridos e que viriam a ganhar notoriedade após a prisão do grupo anos antes, passeando entre cenas da entrevista e flashbacks. Por algum motivo além da minha compreensão, Wu atua muito mal quando a câmera foca no presente - não sei se ela foi instruída pela direção a se portar da maneira que foi vista, mas há algo de muito inatural ali.

Umas das impressões iniciais de "As Golpistas" é como o roteiro não tem a preocupação de desenvolver suas personagens de uma maneira fluida. O passo-a-passo é muito evidente, afinal, esse é um filme de "assalto" (ou "heist film", como o subgênero é conhecido), aqueles que mostram as etapas de um roubo ou golpe, então temos uma estrutura muito limitada. Já de cara temos Destiny, a "garota nova", encontrando dificuldade em se destacar na boate, e logo em seguida entra Ramona com seu espetáculo no cano - JLo está competentíssima na pele da stripper, a melhor coisa de toda a película. A fórmula é dada de maneira elementar demais.


Tão verdade que quase não temos um background para as personagens - elas nascem no ecrã daquela maneira e é isso aí. Quando o texto tenta incluir camadas de desenvolvimento, principalmente com Destiny (que é a protagonista), é de maneira jogada: do mais absoluto nada surge um namorado, e imediatamente ela descobre que está grávida. Corta a cena e ela expulsa o namorado de casa, com a filha aos gritos. Ainda existe a subtrama com a avó de Destiny, que é explicada de maneira convencional e, para ser sincero, não acrescenta o quanto poderia.

Com Cardi B e Lizzo interpretando, bem, elas mesmas, "As Golpistas" se contenta com os meios já previstos dentro de seu subgênero e não se dá ao trabalho de entregar mais do que isso. O auge e o declínio do golpe são vislumbrado antes mesmo de ele surgir na tela, tamanha obviedade. E nem é tão complexo assim sair do rasteiro: "Animais Americanos" (2018) é um exemplo bem recente de heist movie com a exata mesma estrutura de "As Golpistas" (entrevistas com os envolvidos e remontagens dos eventos em flashbacks) e que burla qualquer limite pré-imposto.

Entre hits da música pop dos anos que os letreiros informam - "Gimme More" da Britney Spears em 2007, obrigado -, um detalhe berrante me chamava a atenção: a maneira como a narrativa da obra foi concebida. Ramona, veterana na boate, explica todo o sistema do local, desde as maneiras como Destiny deve abordar os clientes e os tipos de clientes. Depois, temos explicações de como funciona o golpe que intitula o filme, fora outros pormenores (como o procedimento da mistura das drogas usadas). Tudo isso é montado da seguinte maneira: uma música animada para dar agilidade + narração em off + cortes energéticos com fast motion.

Se você não habitar a roda cinéfila provavelmente terá esse combo como algo insignificante, porém, ele foi popularizado por Adam McKay com o filme "A Grande Aposta" (2015) - e repetido em "Vice" (2018). É uma escolha estilística mckayana, podemos assim dizer - também remete a "O Lobo de Wall Street" (2013) do Martin Scorsese. Pois bem. Quanto mais "As Golpistas" passava, mais a cara do McKay ganhava, até um ponto que dei uma interrompida na sessão para olhar a ficha técnica. O que encontrei? Ele mesmo, Adam McKay, entre os produtores da fita.


Indo mais a fundo na pesquisa, li que Lorene Scafaria, roteirista do filme, queria (adivinhe só) Adam McKay ou Scorsese como diretor do filme. A produtora do projeto, inclusive, falou que enviou o roteiro para "as pessoas que estavam fazendo esse tipo de filme". Tudo se explica. Só depois a própria Scafaria foi posta, também, na direção do próprio roteiro. Temos aqui alguns problemas.

Quando "As Golpistas" caiu na minha frente, a premissa não era uma daquelas que me faria largar tudo para imediatamente ver. Porém, um filme sobre strippers dirigido, escrito e atuado por mulheres tinha motivos sólidos para garantir o interesse, afinal, pensando na temática, não consigo lembrar de diretoras e roteiristas possuindo créditos em Hollywood. O universo das boates de strip-tease é envolto de muito machismo e objetificação, com mulheres sendo mercadoria de troca que o dinheiro pode (momentaneamente) comprar. Seria muito bem-vinda uma óptica feminina sobre isso. Só que "As Golpistas" é, fundamentalmente, um filme masculino.

Rapidamente me apropriando de um juízo de valor, me coloquei no lugar de uma mulher convencional, que escolhe o filme ao chegar no cinema, e não consigo vislumbrar seu apreço pela sessão. Um homem? Provavelmente adorará. Então como um filme amparado em mãos femininas pode soar tão masculino? O que aconteceu que a narrativa escolhida foi uma que remete ao universo do macho? Claro que estou falando de nuances que são passíveis de subjetividade, mas o molde de "As Golpistas" é tão McKay que, se seu nome viesse nos créditos de direção, não haveria surpresa. Só faltou rolar personagem quebrando a quarta parede ou alguma marmota como os créditos finais subindo no meio do filme (ele adora essas coisas).

Temos que ter em mente que Scafaria, mesmo não sendo uma diretora estreante (esse é seu terceiro longa), dificilmente possuiria o controle criativo do projeto, afinal, um vencedor do Oscar é um dos produtores - e ela mesmo tinha ele em mente como cabeça do filme. Porém é uma tristeza ver uma obra que tem uma mulher por trás do texto e condução ser sem personalidade e uma cópia do trabalho de um homem (que só faz filme insuportavelmente masculino). Há nada de novo, de fervor, de destaque (além da performance de JLo e das músicas escolhidas).

Entre a ação injetada pela montagem e seios saltitantes fora de sutiãs, "As Golpistas" é um daqueles filmes que os parças vão recomendar para os amigos numa sexta-feira. Isso é ruim? Não exatamente, porém, o saldo final poderia remeter a elementos mais importantes. O meio do strip-tease, das casas com meninas em canos, é bastante dúbio dentro dos estudos feministas: há desde a condenação até o enaltecimento.

Luiza Missi, no texto "Strippers, o strip-tease e o prazer feminino", aponta que Hollywood cria uma narrativa que associa os clubes de strip com a liberdade sexual masculina, e que uma mulher naquela posição é bem diferente de um homem. É, portanto, um desperdício não recebermos uma produção que reflita quem está por trás das câmeras, reforçando ideias já instauradas e vendo temas como maternidade, inclusão da mulher no mercado de trabalho e tantas outras dificuldades simbioticamente femininas serem retratadas sem peso.

Não que "As Golpistas" mereça um troféu de machismo do mês, longe disso. Há forte sentimento de sororidade entre suas personagens, felizmente muito diversas - assim como "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015), que é um longa com roupagem de "macho" mas lotado de feminismo - e, protegidos pelo escudo da ficção, uma delícia ver strippers se vingando do patriarcado ao atingir o bolso de machos da Wall Street, todavia, é uma decepção um universo tão objetificador não possuir uma voz ativamente feminina na maneira que é transposto para a arte.

Crítica: para um filme sobre a morte, “A Despedida” é cheio de vida


"A Despedida" (The Farewell) tem arrebatado plateias desde seu lançamento no Festival de Sundance 2019. Aclamadíssimo e um dos grandes nomes na próxima temporada de premiações, o filme atualmente se encontra entre os 10 melhores de 2019 no Metacritic e com uma bilheteria que cobre - e muito - os gastos de produção.

A obra se passa pelo olhar de Billi (Awkwafina), uma garota chinesa que imigrou para os Estados Unidos ainda criança. Buscando o sonho de ser escritora, ela descobre que a avó, Nai Nai (Zhao Shuzhen), está com câncer terminal. Ela é uma das pessoas mais próximas da mulher, mesmo estando no outro lado do mundo, e decide voltar até a China para rever a avó.

A grande questão é: toda a família decide não contar para Nai Nai sobre sua condição, inventando um casamento como desculpa para que todos possam ir até a casa da senhora e, mesmo ocultamente, se despedirem. Mas será que eles conseguirão manter o personagem?

O filme imediatamente nos remete a "Adeus, Lênin!" (2003) com seu protagonista criando um mundo falso para que a mãe, recém-saída de um coma, não descubra que o Socialismo caiu na Alemanha pós Muro de Berlim. O mais legal em "A Despedida" é que a história é (como ele mesmo se auto-intitula) uma mentira verdadeira. Ao que parece, é quase uma tradição chinesa em situações parecidas - a própria Nai Nai fala que não revelou ao marido a doença dele, contando a verdade apenas no seu leito de morte. Mesmo a velhinha se submetendo aos procedimentos médicos, quem recebe a informação do seu estado são os familiares - algo bem diferente do lado de cá.


É bastante reconfortante ver que a fita não é mais uma que abocanha uma cultura diferente do local de produção - "A Despedida" foi financiado inteiramente nos EUA - e apaga os mais diversos aspectos da cultura abocanhada. Não há atores norte-americanos interpretando chineses, não há falas em inglês no seio da China nem sotaques forçados. Mesmo nascidos nos EUA, todos os atores são descendentes de chineses e falam fluentemente a língua, que domina a sessão - há muito mais falas em mandarim que em inglês. A escolha é resumida bem pela sua própria diretora, Lulu Wang, que é chinesa. O mandarim é privilegiado no corpo do filme, com os créditos e todos os textos na tela na língua mãe do enredo. Se fosse uma co-produção chinesa, poderia tranquilamente ser o representante do país no Oscar de "Melhor Filme Internacional".

Isso pode parecer mero detalhe, mas é importantíssimo dentro da roda da indústria. Depois de Scarlett Johanssons e Tilda Swintons interpretando asiáticos, ver produtoras norte-americanas investindo em filmes fidedignos com suas origens é uma bênção. "A Despedida" é, sim, um filme independente, contudo, seja pela distribuição da A24 (a melhor distribuidora da atualidade), seja por vir na crista do sucesso de "Crazy Rich Asians" (2018), temos um avanço.

É tão verdade que, mesmo "Crazy Rich Asians" sendo um totem de visibilidade chinesa nos grandes degraus do Cinema atual, o filme possui muito mais falas em inglês e atores não-chineses. "A Despedida" supera largamente o filme de Jon M. Chu nesse aspecto, mas sem rivalidades, apenas uma pontuação técnica necessária - e "Crazy Rich Asians" foi um efetivo primeiro passo no mainstream moderno, e ajudou abrir portas para "A Despedida".

Enquanto se costura por entre diversas tradições e ritos particulares daquela cultura, a película também explora a cara da China contemporânea. Claro que não se trata de um documentário, entretanto, é surpreendente ver os aspectos arquitetônicos e sociais de um país tão culturalmente fechado. A belíssima fotografia Anna Franquesa Solano, sempre captando os lugares em planos abertos, pintam com requinte o país enquanto os personagens carregam o peso da morte da matriarca - e tal fundamentação técnica é essencial dentro da atmosfera que o longa quer transmitir. Jamais vemos escuridão, é sempre tudo muito luminoso e colorido, sejam pelos pratos que não acabam na mesa de jantar, sejam pelos objetos de decoração que estão em cada centímetro da abarrotada casa de Nai Nai.


As diferentes relações humanas com a morte são o imo do roteiro de "A Despedida", todavia, há grande leveza no filme, que, mesmo se levando a sério, não atinge notas mórbidas de um tema ainda tão tabu. Os personagens estão tristes e confusos, mas Wang conduz sua obra com paixão até mesmo na dor, também pela diferença cultural: na China, a morte não é vista com tamanho pesar como aqui.

A dramédia que é "A Despetida" consegue ter ares de suspense quando divertidamente compõe cenas com os personagens à beira de revelarem a verdade à fofíssima Nai Nai, que parece não ter dias infelizes, mesmo doente. Não sei se houve uma licença poética inerente à arte, mas, para quem está em estado terminal, Nai Nai está saudável demais na tela, conseguindo, sozinha, planejar todo o casamento.

Awkwafina, que teve forte campanha para as premiações por "Crazy Rich Asians", parece estar no caminho certo com "A Despedida": ela (que assustadoramente tem 31 anos) está sensacional na pele da personagem mais complexa do filme. Dá para pegar um pouco no pé do roteiro por não permitir um momento de catarse para a protagonista - enriqueceria ainda mais -, porém, sua atuação é sincera em inúmeras camadas, o que é repetido por todo o casting - a Nai Nai de Zhao Shuzhen é a apoteose da vovozinha perfeita. Dá até para pensar que se trata de um documentário, principalmente quando estamos enterrados no meio dos diálogos em mandarim.

“A Despedida” não aborda temas novos e nem avança em terrenos inéditos em sua exploração da secular batalha do homem contra a única etapa inevitável da nossa existência, porém, é tudo posto com tanta beleza e honestidade que a sessão é um prazer. É uma daquelas obras que perfuram as defesas da plateia até, com muita coesão, arrancar uma lágrima ou duas pelas performances humanas e diálogos sensíveis. Curioso um filme sobre a antecipação da morte ser tão cheio de vida.

Crítica: “O Farol” captura a miserável relação do homem com o natural (e o inatural)

Atenção: a crítica contém spoilers.

Robert Eggers presenteou a humanidade, em 2015, com um dos melhores filmes de terror do século: “A Bruxa”, um conto macabro que atira o espectador diretamente nas lendas sobre bruxaria, satanismo e ritos pagãos do séc. XVII, ou seja, uma delícia. Um sucesso estrondoso de público e crítica, Eggers parecia um talento nato para o gênero e o Cinema como um todo com uma das melhores estreias dos últimos tempos - ele levou o prêmio de "Melhor Direção" no Festival de Sundance 2015.

Sua segunda odisseia é “O Farol” (The Lighthouse), que compartilha algumas semelhanças com o filme anterior. “O Farol” é baseado nas lendas de marinheiros do séc. XIX e seus monstros vindouros das profundezas dos oceanos. Quando dois homens vão para uma ilhota no meio do nada a fim de cuidar de um farol, as coisas começam a caminhar sobre a linha da realidade e loucura.

Assim como o pilar seminal do Cinema, o que primeiro captura o interesse da plateia em “O Farol” é o viés imagético: o longa foi inteiramente filmado em preto e branco e com o ratio 1.19:1, conhecido como “tela quadrada” – outro filme recente famoso por usar a mesma estética é “Mommy” (2014), que literalmente encolhe a tela quando os personagens se encontram encurralados. Essa é exatamente a função da escolha estilística do filme de Eggers: além de, obviamente, evocar os primórdios da Sétima Arte, com fotografias fidedignamente emuladas em “O Farol”, o ecrã quadrado gera uma constante sensação de aprisionamento.

Com apenas dois personagens em cena, a configuração é posta assim: Ephraim Winslow (Robert Pattinson) é contratado por Thomas Wake (Willem Dafoe) quando seu último ajudante vai embora “após enlouquecer”. A função de Winslow é cuidar dos afazeres gerais na ilhota, enquanto Wake é incumbido de vistoriar a lâmpada do farol – a mais importante atividade dali. As regras são bem simples: Winslow deve fazer tudo no seu turno sem reclamar e jamais entrar na sala da lâmpada, trancada no topo da estrutura.

Já nos primeiros dias, Winslow percebe que há algo de estranho na proibição; Wake é visto nu e completamente em êxtase diante da potente luz. Durante os estranhos jantares, o mais velho fala como o último ajudante afirmava que o farol era casa de forças sobrenaturais, despertando uma fagulha dentro de Winslow. Descobrir o que se passa lá em cima viraria uma missão.


Na solidão e tédio massacrantes, os dois homens se aliviam sexualmente de formas distintas, mas igualmente desconcertantes: enquanto Wake se masturba banhado na luz, Winslow usa como estimulante uma pequena estátua de uma sereia, deixada para trás pelo último ajudante. É bastante necessário perceber as dinâmicas sexuais dos dois, afinal, o sexo é elemento determinante na condição psicológica de ambos – com ênfase em Winslow.

Além da área sexual, outro complexo textual que colide para gerar o combustível da trama é o quão supersticioso é Wake. Para ele, a existência humana está simbioticamente alinhada com a natureza, sem deixar de esquecer que os deuses e forças divinas são quem controlam todo esse jogo. Uma gaivota de um olho só insiste em perseguir Winslow, que eventualmente a mata – a cena é sensacional quando o personagem expurga um lado reprimido em cima da ave. Imediatamente, a fabulosa fotografia nos eleva até o topo do farol, nos mostrando que os ventos mudaram e, assim, uma tempestade é iminente. Wake culpa Winslow: para ele, gaivotas são marinheiros reencarnados, e sua morte é má sorte garantida.

Em diversas entrevistas de promoção da obra, Eggers sempre repetia uma mesma frase: “Nada de bom pode dar certo quando dois homens ficam presos em um prédio fálico”. Além da tirada cômica, o diretor entrega uma enorme fatia do simbolismo costurado pelo roteiro quando aqueles machos vivem para preservar um falo gigante de pedra enquanto não conseguem satisfazer verdadeiramente seus apetites sexuais – até mesmo em um rápido momento os personagens estão à beira de se beijarem.

Enfim chega o dia que Winslow poderá ir embora, só que o barco que viria buscá-lo não aparece. Convencido por Wake, os dois embarcam no álcool e o entorpecimento prega peças que muitas vezes não se revelam como verdadeiras ou meras ilusões - com exceção das manipulações mentais feitas por Wake, que faz Winslow nem saber mais quantos dias já se passaram. Winslow encontra uma sereia nas rochas perto do oceano, e a voluptuosa criatura se entrega deliciosamente ao homem – houve até mesmo um estudo para criar o órgão genital da sereia, o que remete ao polonês “A Atração” (2015), dono das melhores sereias do Cinema moderno. Aqui, a película abre uma ruptura definitiva sobre a veracidade de seus acontecimentos, embarcando na polpa do navio em uma narrativa onírica que se recusa a ser desvendada. Não dá para afirmar o que é real ou não (a sereia realmente esteve ali ou foi uma criação de Winslow após sua fixação com a estátua?) - e o charme não é tentar apontar o dedo para as ilusões, e sim se deixar levar por elas.


Se em algum momento pairar a dúvida sobre o bom andamento da sessão – afinal, é um filme em P&B e com apenas dois personagens falando sem parar –, qualquer receio é dissipado quando as duas atuações são tão lendárias. Willem Dafoe é um dos melhores atores do nosso tempo e realiza uma performance irretocável como o caricato ex-marinheiro violentamente apegado em suas crenças. Para ele, deus é o mar. Seus monólogos shakespearianos, sejam com sussurros ou berros, são dignos de qualquer premiação e uma das mais refinadas atuações de 2019. Robert Pattinson, que há um bom tempo já comprovou seu talento (se você ainda está em 2008 na era “Crepúsculo”, favor assistir a “The Rover: A Caçada”, 2014, “Bom Comportamento”, 2017, e "High Life", 2018), não deixa o palco ser roubado por Dafoe quando incorpora uma persona tão complexa, desafiadora e que não tem pudores em cenas cruas e difíceis. Ele sua, sangra, vomita e goza de maneira animalesca. Não é exagero apontar sua performance de a melhor do seu currículo, digna de Oscar.

Um dos mais belos aspectos repetidos de “A Bruxa” em “O Farol” é o contato humano com o meio. No universo de Eggers, a natureza é cruel e impiedosa, uma força poderosíssima que é capaz de nos matar com uma facilidade ridícula. Presos numa pedra com o mar incessantemente socando o que estiver pela frente, com os ventos rasgando a pele, a composição da película – locações, fotografia, figurinos, trilha sonora, design de produção – é genial no intuito de gerar uma atmosfera miserável, bem refletora da época em que se passa, quando a vida era sinônimo constante de sofrimento, de mazelas, de enfermidades. Parece que Eggers condena seus personagens, e o algoz é a própria natureza, o que faz seu cinema ser mitológico: somos servos do meio, e, quando tentamos domá-lo, sua ira é como os castigos vindos do Olimpo. Tão verdade que esses castigos não são somente físicos, mas também fantásticos.

Então chegamos no clímax, o derradeiro momento que Winslow consegue ver o que reside no farol. Assim como “O Bebê de Rosemary” (1968), “Pulp Fiction: Tempo de Violência” (1994), “A Bruxa de Blair” (1999) e tantos outros, “O Farol” não permite que o público veja o que o personagem (aos gritos) vê, deixando no campo imaginário. É um fato que isso vai irritar muita gente, tão acostumada a ver em detalhes os demônios e espíritos que aterrorizam o terror, todavia, é um acerto não revelar o que causou tamanha reação em Winslow (um dos melhores finais do ano, de longe) assim como era muito mais interessante imaginar como seria o filhote do Satanás do que graficamente vê-lo.

O final é deveras enigmático e nada narrativamente explicado: quando se depara com a luz, Winslow despenca escada abaixo. O último frame é o personagem ensanguentado ao lado do farol enquanto gaivotas comem seus órgãos. Muito mais que o gore, o simbolismo do momento requer conhecimento de um lado histórico pincelado no roteiro: a mitologia romana e grega, mais especificamente as histórias de Ícaro e Prometeu.


Ícaro sonhava em sair de Creta pelos céus e, voando perto demais do Sol, acabou caindo para sua morte. Prometeu – que não possui um conto tão conhecido como o de Ícaro – era um titã que roubou o fogo sagrado a fim de dividir com os humanos. Zeus, revoltado e temeroso com as consequências de tamanho poder na mão do homem (nem dá para julgá-lo), decide punir Prometeu: ele ficaria eternamente preso a uma rocha enquanto aves comiam seus órgãos.

Os dois mitos são abraçados pelo roteiro: Wake representa um guardião divino – até mesmo seu visual evoca tal sensação –, e proíbe Winslow de se aproximar da luz que rege suas vidas. Este, ganancioso, chega próximo demais do farol, que o derruba e, graças ao acidente, é devorado vivo pelas aves. A ilha é quase um purgatório, um espaço de condenação de Winslow (que possui um passado manchado) enquanto o farol é a maçã proibida do Jardim do Éden: chegar perto demais é uma sentença trágica. Claro, tais interpretações são especulativas e com o intuito de tentar encaixar as peças dadas pela obra, talvez a maior diferença entre “O Farol” e “A Bruxa”.

“O Farol” se debruça muito mais no simbolismo, nas construções no campo abstrato, enquanto “A Bruxa” é mais expositivo e empírico – e, admito, isso dá uma leve pontada de descontentamento, com uma sensação de que poderia haver mais orquestrações do horror (algo que também acontece com “Midsommar”, 2019). É bem mais difícil, por isso, vislumbrar a plateia chamando “O Farol” de um filme de terror; se em “A Bruxa” o capeta em pessoa dá o ar da graça, “O Farol” tem gêneros bem mais predominantes que os elementos de horror: é um filme dramático com ares de mistério e fantasia. “O Farol” é tão terror quanto “Cisne Negro” (2010), "Demônio de Neon" (2016)“A Região Selvagem” (2016): todos são filmes-pesadelos e importantes solidificadores de um gênero bastante fluido e que ainda é posto em caixinhas (até presente data eu vejo pessoas declamando o impropério de que "A Bruxa" não é terror por "não dar susto"). Mesmo não tendo o terror como prato principal, os exemplos executam seus elementos brilhantemente, não diferente de "O Farol".

Robert Eggers mais uma vez coloca o pé na Sétima Arte com imenso talento, domínio e pretensão – exatamente por isso que suas histórias são tão fortes. “O Farol” é um sucessor à altura de “A Bruxa” ao mais uma vez quebrar o paradigma de que o ser humano é o que há mais poderoso sobre a face da terra: é a própria terra quem domina nossa existência. O filme não tem problemas em fotografar essa existência como algo decrépito, fadado ao insucesso quando estamos tão preocupados em saciar nossos egoístas desejos. Somos de uma fragilidade tão aparente que, às vezes, a natureza nem precisa se esforçar para nos destruir. Nós mesmos nos encarregamos disto.

Crítica: “A Vida Invisível”, nosso representante ao Oscar, e o patriarcado tropical do dia a dia

Foi uma agradabilíssima surpresa quando "A Vida Invisível" venceu o prêmio de "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar" do Festival de Cannes 2019, acompanhando a vitória de "Bacurau" (2019) na competição principal, que levou o Prêmio do Júri. A vitória de dois filmes brasileiros numa mesma edição é reflexo da fase atual que nosso cinema vive – não por acaso, os dois foram os principais na disputa para a seleção do Oscar 2020 de “Melhor Filme Internacional” (o antigo “Filme Estrangeiro”).

"A Vida Invisível" é o primeiro longa brasileiro a vencer a "Um Certo Olhar", que só nos últimos tempos viu como ganhadores diversas obras-primas, como "Dente Canino" (2009), "Depois de Lúcia" (2012), "A Ovelha Negra" (2015), "Um Homem Íntegro" (2017) e "Fronteira" (2018). Mais uma honraria em seu currículo foi a escolha do filme para nos representar no Oscar, em uma acirrada disputa: “A Vida Invisível” foi o escolhido por um voto de diferença de “Bacurau”.

É necessário compreender que, se tratando do Oscar, as escolhas são feitas como uma campanha política. Vence quem melhor vender seu trabalho, não o melhor trabalho em si. Por isso, “A Vida Invisível” foi uma escolha muito acertada, mesmo não sendo o melhor filme nacional do ano. Os motivos são vários, porém destaco três pontos importantes.

O primeiro é que “Bacurau” possui um plot que coloca norte-americanos em posições bastante controversas para a Academia – imagine os votantes vendo gringos da forma que foram expostos no filme (não darei spoilers acerca). O segundo é que a história de “A Vida Invisível” é de mais fácil digestão por focar no melodrama, à la Pedro Almodóvar – e melodrama faz a Academia tremer na base. O terceiro é que a obra tem Fernanda Montenegro no elenco, a única atriz brasileira a ser indicada ao Oscar em toda a história, ou seja, é figura familiar. Depois da desastrosa escolha de “O Grande Circo Místico” (2018) na última edição, é para respirar aliviado ter um selecionado à altura da qualidade do cinema tupiniquim.

“A Vida Invisível” entra na intimidade de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), no Rio de Janeiro da década de 50 - curiosidade: assisti ao filme em companhia do diretor Karim Aïnouz e ele disse que o título foi alterado de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", o nome do livro de Martha Batalha que inspirou o filme, para o atual por focar na vida de inúmeras mulheres invisibilizadas, não apenas na de Eurídice (e que seu título internacional favorito é o da Alemanha, "A Saudade das Irmãs Eurídice e Guida"). Filhas de imigrantes portugueses, as garotas são pesadamente reprimidas pelos pais, e desde o início demonstram as dinâmicas diante da repressão: enquanto Guida faz de tudo para burlar as rígidas regras do pai, Manuel (interpretado por Antônio Fonseca), Eurídice se molda de acordo com as leis paternas.


Guida se esgueira para cair na noite com seu namorado grego, e foge com ele sem aviso, para o desespero de Eurídice e a vergonha do pai. O evento é decisivo na vida de todos da família. Sem o apoio da rebelde irmã, Eurídice dança ainda mais conforme a música, aceitando o casamento arranjado com Antenor (Gregorio Duvivier), sem nunca ter visto o homem despido. Ela recebe, de uma amiga, dicas do que seria a noite de núpcias, mas nada a prepararia para um sexo tão brutal de um homem que via a esposa apenas como máquina de prazer particular - a sequência é proposital e corretamente horrível. Ela nem resiste, tão condicionada a obedecer o que viria de qualquer homem.

Enquanto isso, Guida volta da Grécia grávida e sem marido – a relação com o namorado acabara tão rápido como começara. Uma mulher fugida que retorna prenha e descasada era o que havia de mais humilhante para a imagem de uma família, e Manuel expulsa a filha de casa aos berros. Guida só queria saber de uma coisa, onde estava a irmã. O pai mente: Eurídice, exímia pianista, teria ido estudar em Viena. Ir até a Áustria se tornara, então, o objetivo de Guida.

A dinâmica do filme se torna essa: o pai mentindo para as duas irmãs. Eurídice imagina uma vida ensolarada nas praias da Grécia para Guida e Guida escreve sobre como Eurídice deve estar ocupada sendo uma famosa pianista e dando autógrafos aos europeus. A realidade é que ambas estão na mesma cidade. É deprimente ver como as irmãs projetam uma realidade para a outra que, a cada dia, mais impossível fica graças ao patriarcado. A película, maliciosamente, introduz uma cena em que as duas por pouquíssimo não se esbarram, gerando genuína tensão na plateia, ansiosa para o enfim reencontro das duas, que vão embora sem imaginar que a irmã estivera ali momentos antes. É astuto, então, lembrar da primeiríssima cena, onde as irmãs se perdem em uma floresta e, mesmo gritando o nome uma da outra, jamais conseguem se reunir, uma metáfora visual da trama.

Guida inicialmente decide abandonar o bebê recém-nascido, mas muda de ideia e resgata a criança quando conhece Filomena (Bárbara Santos, que também estava conosco na sessão), uma poderosa mulher negra que a acolhe como filha. Há uma forte ligação entre as duas através da sororidade, e Filomena é uma revolucionária em meados do séc. XX quando Guida noite após noite procura o homem da sua vida e ela responde com um esperto "A gente não precisa de homem para nos divertimos!".


Já Eurídice evita veementemente engravidar, pois isso atrapalharia o caminho rumo ao estrelato no piano. Antenor, em contrapartida, não dá a mínima, e a mulher acaba engravidando. O roteiro finca suas garras em um lado feminino até hoje repudiado: quando a mulher deliberadamente não quer ser mãe em prol de sua carreira. Para Eurídice, isso era inapropriado, com a família sendo o que há de mais importante na vida feminina. Rejeitar a maternidade era um crime. Ou ainda é? A personagem sofre um enorme baque ao ver seu sonho escorrer pelos seus dedos com uma criança indesejada por vir e a censura de todos os machos ao seu redor em relação ao seu sonho.

"Você não se importa com seu marido? Com sua família?", questiona Antenor. "Ele está completamente certo", acrescenta Manuel. E assim segue a vida de Eurídice, esbofeteada constantemente pela mão fantasmagórica do machismo. Talvez o viés mais afiado dentro do filme é o lado sexual de sua protagonista: para ela, o sexo é uma ferramenta de adestramento do marido, nunca um ato de prazer. Em uma emblemática cena, Antenor deseja transar em cima do piano da esposa enquanto ela toca, e ela insistentemente sugere o sofá. Ela não faz isso porque anseia a interação, e sim para que o marido não destrua o piano. Ela quer salvar o que lhe é mais caro e usa o sexo para isso.

A obra executa um belíssimo (e preocupante) estudo acerca do matrimônio. As mulheres são, há séculos, ensinadas desde sempre a perseguirem o casamento, a tábula de salvação de suas vidas. Os homens, é claro, não são educados com os mesmos fins. De uma forma bem aberta, o casamento nas lentes do filme é um contrato capitalista, pois estamos falando de relação de posse. O amor romântico existe para aprisionar as pessoas em regras egoístas que as tornam objetos, principalmente em relação a mulher - contudo, o patriarcado não é benéfico nem mesmo para o homem. Como se não bastasse, todas essas obrigações sociais são pintadas como um mar de rosas. Eurídice, no presente, ouve um "Foram 67 anos de casamento, que bonito!" do filho, e ela (e nós) sabemos que houve nada belo vindo dali; a protagonista penou naquele relacionamento infeliz, incapaz de quebrar suas correntes. Quem nunca viu o casamento dos avós com décadas adentro virando o exemplo de relação perfeita, sem saber das agressões que aconteceram por trás dos sorrisos fotográficos?

Majoritariamente passado na década de 50 - apenas as duas últimas cenas ocorrem no presente -, por mais desconfortável que seja a realidade daquelas mulheres, é um alívio ver como a vida feminina conseguiu mais direitos e liberdades 60 anos depois. O roteiro passeia por várias situações que exemplificam como o corpo feminino é subserviente ao homem - Guida não pode tirar o passaporte sem a permissão do marido que não existe -, e dá para ficar esperançoso em relação aos ritmos das conquistas feministas, porém, por outro lado, o homem continua igual mais de meio século depois. Aquele Antenor é o retrato fiel de tantos e tantos homens que fazem o Brasil ser o quinto país no ranking de feminicídios. "A Vida Invisível" não leva os atos às últimas consequências, mas é um filme sutilmente violento.

Aïnouz, após a sessão e os aplausos, falou que a película não se tratava de um filme feminista, mas sim uma obra contra o machismo, e essa é uma boa definição. Aquele microuniverso de classe média, de renegação social, de pobreza e marginalização, emula tantas e tantas histórias de resistência que qualquer um pode se sentir envolvido. Forte quando foca nas intimidações do patriarcado e emocionante quando entra no amor incondicional de duas irmãs que se separam graças à maquiavélica união de homens, "A Vida Invisível" é, além de sensacional exemplo do nosso majestoso cinema nacional no Oscar, um garboso melodrama que se torna um documento da nossa sociedade que deve, e muito, à vida feminina. Ter como uma das últimas cenas o rosto de Fernanda Montenegro afogada em saudade é lindo demais.

Crítica: “The Nightingale” é irresponsável ao evocar uma vingança feminista branca

Atenção: a crítica contém spoilers.

Quando Jennifer Kent viu que seu filme de estreia, "O Babadook" (2014), estava sendo um sucesso, afirmou que estava surpresa com a recepção, e eu devo concordar com ela, mesmo que para outro sentido. "O Babadook", por muitos eleitos como um dos melhores filmes de terror da década, nada mais é que um "Esqueceram de Mim" (1990) visualmente caprichado e com toques sobrenaturais. O hype não me parecia congruente.

Assim como o anterior, "The Nightingale" (ou "O Rouxinol", em tradução livre), seu novo filme, está sendo recebido de braços abertos, vencendo, inclusive, o prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza 2018. E, para meu ainda maior descontentamento, não podia discordar mais da admiração ao redor da nova obra - ainda mais triste por saber da dificuldade de destaque para cineastas femininas dentro de uma indústria ainda tão “machocentrada”.

O longa conta a trágica história de Clare (Aisling Franciosi), uma irlandesa condenada pelo império britânico na Tasmânia. Ela vê toda a sua família ser assassinada e decide virar a mesa numa caçada a fim de se vingar de quem destruiu tudo. O plot é familiar, usando uma estrutura famosa por “A Vingança de Jennifer” (1978): o rape & revenge movie.

Clare é estuprada em duas cenas diferentes, e vai, da maneira mais clichê possível, seguir os mesmos passos do subgênero, popular nos anos 70: a protagonista é brutalmente estuprada e deixada para morrer > a protagonista recupera as forças e se organiza para sair em vingança > a protagonista se vinga matando os culpados. O que mais chama a atenção é que as sequências são estranhamente letárgicas.

Assistir à uma cena de estupro, mesmo ficcional, é nada agradável, e não deve ser mesmo. Nomes como “Irreversível” (2002) filmam os horrores do ato com o intuito de impactar o público e fazer com quem esteja do lado de cá da tela se revolte. “The Nightingale” faz nada disso. Clare é estuprada pela primeira vez e não existe um ar de emergência, o que é um erro gravíssimo.

Na segunda vez, ainda mais elementos do horror são inseridos quando ela é estuprada enquanto o marido e o bebê (!) são assassinados na sua frente. Só que não existe um desenvolvimento competente para a cena burlar o limite do gratuito. A violência extrema não é sensorialmente compatível com seu aspecto gráfico.


E essa impressão, logo no primeiro ato, é fixo por toda a longuíssima duração (não precisavam mesmo todos os 136 minutos). Alguns pontos são os responsáveis por isso. Em primeiro lugar, o mais básico: “The Nightingale” se passa séculos atrás e não é realizada uma composição fidedigna com o período. Com um design de produção que tenta (e fica na tentativa) repetir o sucesso de “A Bruxa” (2015), é um erro elementar que a maior parte das produções de época repete: achar que o imagético é o suficiente para recriar um período.

Desde o primeiro segundo, os personagens de “The Nightingale” parecem estarem fantasiados ao invés de indivíduos fincados em seu tempo. Isso se deve a uma direção de atores ruins, que não cuida em fazer com que as performances evoquem como as pessoas do tempo em questão falam e agem. Pode ser por preguiça, pode ser com incompetência, pode ser por atuações ruins, ou até todas as opções anteriores. Até a franquia "Piratas do Caribe" (2003-17) dá um show nesse departamento.

O segundo ponto é a superficialidade de seu roteiro enquanto desenvolvedor de personagens. Todos eles são unidimensionais, com motivações ralas e pateticamente destinados a desfechos óbvios desde os créditos iniciais. Mas ele se autojustifica pela importância do contexto em que a trama está inserida: a Guerra Negra entre a Inglaterra e os aborígenes negros da Tasmânia. Quem mata a família de Clare são soldados britânicos, e ela vai precisar da ajuda de um aborígene na sua jornada de vingança.

Esse é o segundo filme a ser uma-pessoa-branca-viajando-com-uma-pessoa-negra-e-revendo-seu-racismo-ao-descobrir-que-brancos-e-negros-são-iguais dentro do mesmo ano: “Green Book: O Guia” (2018), o malfadado vencedor do Oscar 2019 de “Melhor Filme”, tem o mesmo passo a passo. Ser comparado com o filme de Peter Farrelly é, por si só, um demérito, entretanto, “The Nightingale” tem a audácia de ir mais longe e ser muito pior que “Green Book” – que se contenta com a alcunha de “inofensivo”.

Enquanto vaga pelas densas florestas, Clare vê o rastro de destruição deixado pela guerra entre brancos e negros, só que, claro, o lado com as maiores perdas é o negro. Vemos os aborígenes sendo humilhados, massacrados, assassinados e estuprados. Isso mesmo, em menos de uma hora de filme temos uma TERCEIRA cena de estupro, dessa vez contra uma mulher negra que surge na tela única e exclusivamente para ser capturada e estuprada. Não vemos o ato (felizmente), porém, o roteiro tem a coragem de jogar corpos negros no ecrã para gratuitamente serem violentados. Se isso não for “porn torture”, não sei o que é.


O filme recebeu grande controversa pelas sequências, respondidas por Kent com o atestado de que o filme contém detalhes historicamente apurados da violência colonial, o que sim, é verdade. O que Kent não põe na mesa é a relevância de diversas sequências dentro da história em si. Outro exemplo é a cena em que o aborígene junto com Clare é desconsertadamente convidado a sentar na mesa de jantar com uma família branca. Ao se sentar, ele chora. É revoltante o circo criado pelo filme quando usa uma pessoa negra aos prantos pela bondade incessante do colonizador branco. Vejam aí, nem todo branco é racista!

Clare vai intimamente sendo testemunha do genocídio negro enquanto vai se amigando com o aborígene – que é posto como alívio cômico, porque né, melhor ideia impossível. A película literalmente se utiliza do sofrimento negro para dar força na jornada de uma mulher branca, tudo em nome de uma agenda feminista – se um feminismo empodera apenas um tipo de mulher, ele não serve para muita coisa. É óbvio que a dor de Clare não pode ser minorada em momento algum, só que o roteiro cria um paralelo entre sua tragédia particular com a tragédia de toda uma população. Beira o mau-caratismo.

Muitos dos detratores de “The Nightingale” afirmam que não era da competência de Kent, uma mulher branca, contar uma história sobre genocídio negro, o que discordo. Realizar um apartheid cultural, dizendo quem pode falar o quê, é um retrocesso na arte que é o Cinema (ou qualquer uma, na verdade). O problema é que, quando você não possui o “local de fala” de um tópico e as coisas dão erradas, tudo soa ainda pior – e o saldo de “The Nightingale” é trágico. Comento mais sobre a problemática na crítica de "Garota" (2018).

Até mesmo nos aspectos feministas que tentam justificar a existência desse filme são falhos: os sonhos (vergonhosos) que emulam um transtorno pós-traumático de Clare só focam na perda de sua família - é o marido com o bebê nos braços dizendo que estão bem do lado de lá. Ela é estuprada várias vezes e o roteiro joga fora o peso de algo que, por si só, era capaz de aniquilar o psicológico de qualquer mulher.

“The Nightingale” é um filme que tem como objetivo deixar a plateia revoltada com as opressões racistas e patriarcais que arrastam um rastro de sangue há séculos, todavia, nem a boa intenção aqui é capaz de inibir o gosto amargo de uma produção puramente ruim. Os bons aspectos - o uso de línguas nativas - são meras gotas d'água em meio a um oceano de escolhas desastrosas dessa pseudo odisseia feminista que tem como lenha para sua vingança um perigoso discurso de "esse é um filme importante".

Crítica: “El Camino” tem tudo o que há de bom em “Breaking Bad” (mas não o que há de melhor)

Atenção: a crítica contém spoilers.

Caso você esteja chegando agora a esse mundo, um aviso: "Breaking Bad" é a melhor série de todos os tempos. E não é apenas eu afirmando - o seriado de Vince Gilligan está no Guinness Book com o recorde de "mais bem avaliada série da história" - e os vários Emmys são só uma pontinha do sucesso absurdo das cinco temporadas da saga de Walter White no império da metanfetamina.

"Breaking Bad" terminou em 2013 no auge de sua criatividade, e desde então os fãs estão ansiosos para mais um capítulo da insana história (que terminou tão bem), por isso, foi uma grata surpresa o anúncio de "El Camino", filme que dá mais um passo da trama. O filme, lançado pela Netflix, segue o único protagonista ainda existente: Jesse Pinkman (Aaron Paul) - todos os outros ou estão mortos ou já tiveram seus arcos finalizados. No final de "Felina", o último episódio da série, vemos Jesse fugindo e finalmente encontrando a liberdade depois de meses preso, e o resto ficava a cargo da imaginação da plateia.

Agora não mais. "El Camino" vai mostrar o que rolou com o personagem, e começa segundos depois do fim de "Felina". Gilligan sabe o poder que tem em mãos, e já abre seu filme com um flashback com uma das melhores figuras do seriado, Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks). Isso demonstra o óbvio: "El Camino" é um filme para os fãs da série.

Então, caso você nunca tenha visto "Breaking Bad" ou tenha acompanhado de modo esporádico, o filme não fará sentido para você. Ele resgata - propositalmente - diversos personagens e acontecimentos das temporadas passadas a fim de costurar as motivações de Jesse e como ele chegou aonde está. Então a narrativa vai e vem entre períodos distintos da trama, intercalando flashbacks com o presente de Jesse.


Após a fuga, Jesse vai até a casa de seus fiéis escudeiros, Skinny Pete (Charles Baker) e Badger (Matt Jones), buscando abrigo. Só que o carro que Jesse levou - um El Camino - possui rastreador, o que já está na mira da polícia. Novamente em fuga, Jesse divide uma cena absolutamente calorosa com Pete, que abre mão de todo o dinheiro que possui para ajudar o amigo a fugir. Questionado o motivo de tamanha ajuda, ele responde: "Porque você é meu herói".

O plot principal de "El Camino" é a corrida de Jesse atrás de dinheiro para poder sumir do mapa. Sua ideia é ir até o apartamento de Todd (Jesse Plemons), o único da gangue de neonazistas (presumo que você saiba o contexto aqui) que demonstrava apreço (ou pena) por ele durante o cárcere forçado. Como revela um flashback, Todd guardava seu dinheiro no local, porém, como tudo em "Breaking Bad", a busca pelo dinheiro não será uma ida ao caixa eletrônico. De longe, a melhor cena do filme, toda a sequência, que se desdobra com plot-twists, lembra os auges passados da série, exemplos da genialidade de seu criador.

Todavia, é para assustar que está em "El Camino" o pior momento de todo o universo "Breaking Bad": a cena do duelo. Após muitas idas e vindas, Jesse ainda precisa de dinheiro e vai até a casa de um gangster pedir caridosamente a quantia necessária para sua fuga. O plano já começa não fazendo o menor sentido, no entanto, o roteiro vai ainda mais longe e se joga no limite da imbecilidade quando o líder da gangue desafia Jessie a um duelo - exatamente, um duelo de armas como nos filmes de faroeste. Quem atirasse primeiro, e matasse o oponente, ficava com o dinheiro. Pois é, isso saiu de "Breaking Bad".

Lógico que a sequência é ridícula - o fato de o líder não verificar que Jesse possui mais de uma arma, ou de CINCO pessoas não conseguirem matar Jesse, ou o protagonista sair sem um mísero arranhão, tudo é vergonhoso. É bem verdade que alguns deus ex machinas já passaram pelos 62 episódios, mas era sempre muito bem fundamentado e desenvolvido, servindo como desenrolar para outros acontecimentos importantes. Aqui, o duelo é só triste mesmo.


Se você, como qualquer fã do seriado, espera ver Walter White: sim, Bryan Cranston está de volta - claro, na forma de flashback (ele não ressurgiu dos mortos). Um dos mais icônicos personagens da história da televisão, é um júbilo ver a brilhante atuação de Cranston na tela depois de tantos anos, mas a cena é bem pequena e totalmente focada em Jesse. Difícil pedir mais de um personagem que já morreu além de cenas como a mostrada, contudo, fica lá no fundo a vontade de quero mais, de que não supriu a necessidade da volta de Walt.

Para ser bem sincero, essa impressão é generalizada: parece que "El Camino" não entrega tudo o que poderia - ou tudo o que a espera pedia. O filme é basicamente um episódio, o que é bom: toda a estrutura clássica de "Breaking Bad", desde a montagem até a fotografia, volta igualzinha; só que soa como um daqueles episódios de meados da temporada, que estão desenvolvendo situações que acarretarão no ápice. Não há nada de impressionante no filme, um clímax, um estouro que é clássico da série. Existem cenas de ação, de tensão, de emoção, mas nada à altura dos picos que entraram na história.

Em termos de produto derivado de "Breaking Bad", o seriado "Better Call Saul" dá conta de seguir o legado - até porque a inteligência é emulada na série que mostra como Saul Goodman (Bob Odenkirk) virou o advogado que conhecemos. Outro fato essencial é que vários personagens importantes de "Breaking Bad" ainda estão vivos em "Saul", que se passa anos antes do império de Walt ser construído. Não havia como ter toda essa fórmula em "El Camino".

"El Camino" é um epílogo, e se limita em exercer sua função de "capítulo final". Pouca coisa é acrescentada na linha temporal da história além do encerramento da jornada de Jesse Pinkman, que finalmente encontra um derradeiro final para a trama. Qualquer fã vai se sentir feliz com esse mimo pelos aspectos emocionais reascendidos pela nostalgia, porém, mesas não são viradas com os 122 minutos do filme. "El Camino" faz tudo o que há de bom em "Breaking Bad", mas não o que há de melhor.

Crítica: sem histeria coletiva, “Coringa” não é nem incrível e nem descartável

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a 11 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Adaptado
- Melhor Ator (Joaquin Phoenix)
- Melhor Fotografia
- Melhor Trilha Sonora
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som
- Melhor Figurino
- Melhor Montagem
- Melhores Maquiagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Caso acompanhe o Cinematofagia, já deve ter percebido que eu não escrevo sobre filmes de super-herói. Pelo menos não os mais óbvios, aqueles blockbusters da Marvel e DC - tanto que fiz uma lista de filmes desse subgênero que não caem nos moldes abertamente comerciais que conhecemos. "Coringa" (Joker) nasceu com uma proposta diferente, um comic movie "sério".

A primeira amostra desse discurso veio quando a obra estreou na competição do Festival de Veneza 2019, o que foi uma surpresa. Só que ninguém esperava que o filme não só competiria em um dos maiores festivais do mundo como venceria o Leão de Ouro, o "Melhor Filme" de lá. Nunca antes um filme de super-herói conseguiu isso.

O hype estava instaurado. Desde a vitória, no começo de setembro, a película não saiu da boca do meio, e discussões acerca do prêmio pipocam até hoje - e a discussão ainda vai continuar, afinal, a corrida para o Oscar está só começando e "Coringa" já está na crista da onda. O Leão de Ouro de "Coringa" é controverso e, particularmente, um mal passo para Veneza enquanto vitrine cinematográfica.

Vou explicar: afirmo isso sem pôr na mesa os méritos (e deméritos) da fita, e sim sua produção. "Coringa" é da Warner Bros, uma das maiores produtoras do planeta e conglomerado poderosíssimo, além, é óbvio, de se tratar de um filme baseado em quadrinhos, o mais forte subgênero da cultura contemporânea. A prova? Qual a maior bilheteria de 2019 e uma das maiores de toda a história? "Vingadores: Ultimato". E ainda tem dois outros do mesmo mote no top 5, também com os cofres bilionários. Só nos EUA, "Coringa" teve lançamento simultâneo em mais de 4 mil salas, um número altíssimo, e dá para contar nos dedos quantos conseguem o mesmo luxo - e, não é de se estranhar, mal estreou e já tem $300 milhões em bilheteria.

Como esses fatos conversam com Veneza e o Leão de Ouro? O festival, assim como qualquer outro, é um prêmio da crítica - ao contrário dos Oscars e Globos de Ouro, que são prêmios da indústria. Sendo assim, é para torcer os olhos quando um prêmio da crítica dá a honraria máxima a um filme que não precisa de mais visibilidade e apreço. A produção de "Coringa", por si só, garantiria isso independentemente de qualquer fator, o que só ele, entre os concorrentes, poderia falar o mesmo.


Saber se "Coringa" era realmente o melhor da seleção, só assistindo a todos os indicados, contudo, já pontuei que não é esse o ponto. O ponto é: seria mais interessante festivais darem palco para filmes que nunca estrearão em mais de 4 mil salas, que jamais verão 10% do orçamento milionário de "Coringa" e que não nascerão já com o atestado de sucesso comercial - tendo em vista o número massivo de domínio nas salas de cinema mundo afora. "Coringa" não precisava do Leão de Ouro para ser visto, enquanto vários outros, que podem até ser melhores, serão vistos apenas nos cinemas "de arte" de metrópoles. É para se pensar.

Essa foi apenas a primeira das inúmeras polêmicas que gravitam ao redor de "Coringa" - e toda semana surge uma nova. Do problemático diretor Todd Phillips dando declarações estapafúrdias até o uso de uma música no filme cantada por um pedófilo condenado (e atualmente preso), toda essa publicidade negativa acabou sendo o velho "falem bem ou falem mal, mas falem de mim", e vários recordes de público já foram batidos logo na estreia. Deixei todo esse rolê de lado e sentei na expectativa de finalmente encontrar um longa de super-herói (ou, no caso, de um vilão) tão correto quanto "O Cavaleiro das Trevas" (2008).

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um palhaço de festas em Gothan City, na década de 80. Com inúmeros problemas mentais, incluindo uma risada involuntária nos momentos mais inoportunos possíveis, Arthur se divide entre as idas à terapia e o trabalho, perdido quando ele leva uma arma a um hospital infantil.

Só pela premissa já dá para ter uma ideia de como "Coringa" é um filme dúbio. Arthur é introspectivo, sem um pingo de noção de sociabilidade e cada dia mais soturno, porém, ainda assim, é um palhaço animador de crianças com câncer. A inserção das risadas involuntárias é ainda mais irônica, surgindo em momentos de tensão ou tristeza profunda do personagem; é a desgraça acontecendo e ele rindo descontroladamente.

A Gothan que virá a ser protegida pelo Batman - que aparece aqui com uns 10 anos de idade - é pintada com frieza e escuridão: há um forte tom decrépito, falido e corrupto nos becos e avenidas da cidade, um reflexo não apenas do estado psicológico de seus habitantes, mas também de um EUA em plena era Trump. Há uma guerra fria do povo que tenta sobreviver em meio à miséria e à poluição, como se tudo estivesse prestes a explodir, e essas pressões são fundamentais para o entendimento da cabeça de seu protagonista.


"Coringa" é uma viagem direto ao precipício que jogou Arthur na insanidade completa que é o Joker. Em termos binários, é bem mais complexo o nascimento de um vilão do que de um herói - aliás, a jornada do herói é tão batida que é um macete narrativo com regras detalhadas e copiadas há tempos. E essa dificuldade reside na questão: o que aconteceu que pode, cinematograficamente, justificar a maldade de um vilão? O que o levou até ali?

Indo contra a história clássica, o Joker de Phoenix não surgiu após cair num tanque de resíduo químico - hoje não, "Esquadrão Suicida" (2016). "Coringa" tira todo e qualquer aspecto fantasioso de seu texto e destrói a mente do protagonista das maneiras mais críveis possíveis: é o meio que o torna quem é. Da infância cheia de abusos à uma atualidade renegada, Arthur sofreu desde antes de se entender como gente - e aqui reside o prisma mais preocupante da fita, o vitimismo de Joker.

No clímax, quando a loucura já tá espalhada por todos os poros de Arthur, ele justifica seus atos pelo desprezo social que cai em cima dele, e isso é um traço fundamental da cultura "incel", a bandeira mais levantada pelos detratores do filme. Entretanto, a coisa não é tão sensacionalista como o circo montado pela crítica (sem trocadilhos).

É sempre bom lembrar que estamos falando sobre um vilão, ou seja, não existe justificativa realmente aceitável para entendermos (e acharmos correto) crimes como assassinato - então, a "solidão social" de Arthur é tão comparável quanto a de Travis de "Taxi Driver" (1976), influença gigantesca para "Coringa", ou a de Alex de "Laranja Mecânica" (1971). E também não existe um extremismo perigoso do lado "incel" que tanto pintaram: Arthur é incapaz de se relacionar com uma mulher - a ideia básica do "incel", que literalmente significa "celibatário involuntário" -, porém, isso, em momento nenhum, é o maior peso na personalidade de Arthur - ele até tem um romance imaginário, que logo é esquecido.


Toda a raiva do protagonista não está engatilhada com misoginia, racismo ou homofobia - os gatilhos comuns envolvendo crimes de "incels" -, e sim engatilhada contra o capitalismo e o abuso de poder. Arthur se rebela contra aqueles que possuem força para estagnar injustamente a sua vida, e se torna um símbolo contra Thomas Wayne, o magnata da cidade e pai do futuro Batman - é, inclusive e indiretamente, graças ao Joker que Bruce perde os pais no assassinato no beco, o que desencadeará no surgimento do herói.

Mas não posso fugir da sensação preocupante de glamorizarão ao redor do Joker. Em uma das últimas cenas, ele é ovacionado após dar um tiro na cabeça de um apresentador ao vivo na tevê aberta. Enquanto dialogava internamente sobre o quão controverso é o momento, lembrei de "Relatos Selvagens" (2014); em um dos segmentos, um homem comum explode uma repartição do governo em um surto contra a burocracia do Estado, e, assim como o Joker, vira ícone da resistência. Só que há dois fatores imprescindíveis: em "Relatos", não há vidas tiradas e o ar crítico jamais se distancia da tela, o que não podemos dizer o mesmo de "Coringa".

Joaquin Phoenix, um dos mais interessantes e versáteis atores do nosso tempo, está bem na pele do vilão, mas nem é preciso comparar com Heath Ledger, que fez a mais incrível versão do personagem em "O Cavaleiro das Trevas", para perceber que seu Joker é bom, mas não sensacional. Todd Phillips pesa a mão nas cenas que gritam "vejam como ele atua!" sem necessariamente ter uma atuação tão genial na tela; há cenas que não dosam corretamente a caricaturização natural do personagem, que beira a forçação - fiquei satisfeito, no entanto, em ver que deixaram um ar flamboyant e debochado ali. O próprio Phoenix tem atuações melhores na sua filmografia - em "Ela" (2013) e "Você Nunca Esteve Realmente Aqui" (2017), por exemplo.

O que há de melhor em "Coringa" é a veia niilista e misantropa de seus caminhos. Dentro de uma sociedade tão enferma, desigual e que retira a dignidade de suas pessoas, é árduo não ceder ao cinismo - e Arthur não apenas cede como graciosamente se afoga na falta absoluta de sentido quando afirma que sua vida não é mais uma tragédia, e sim uma comédia. O que mais choca no filme é como ele é tão próximo da realidade, como tantas cidades são réplicas de Gothan e seu sistema enferrujado, e quanto mais próximo, mais palpável e assustador. Não por acaso, é polêmico e complexo seu conteúdo, condizente com uma realidade à par.

Só que, a partir da segunda metade, o zoológico de exposição da atuação de Joaquin Phoenix rouba o palco em detrimento do aparato sócio-psicológico - o filme o entrega como o melhor na tela, e esse brilho não é proporcional ao espaço dado, com vários desenvolvimentos de contextos (esses sim, os protagonistas da trama) sendo deixados de lado. No momento que ele se torna o Joker, há uma queda na qualidade da fita, que se espetaculariza ao máximo para tentar atingir voos épicos e grandiosos, sem conseguir efetivamente. "Coringa" é como Arthur contando piadas: gargalha o mais alto possível no intuito de fazer a plateia rir junto, e, mesmo sendo divertido, não há tanta graça assim.

Crítica: “Predadores Assassinos” tem muitos crocodilos e pouca coerência

Atenção: a crítica contém spoilers.

Existem alguns subgêneros da Sétima Arte que possuem características tão específicas que o molde, com o tempo, fica cansado – comentei sobre na crítica de “Bohemian Rhapsody” (2018) e as cinebiografias. “Predadores Assassinos” (Crawl), uma das maiores apostas do calendário de estreias no terror em 2019, junta três subgêneros: o disaster, o survivor e o natural.

O último, o mote de terror com forças naturais (principalmente animais) se voltando contra os humanos, tem célebres nomes, como o cult “Os Pássaros” (1963), que tem um título autoexplicativo sobre o que declara guerra contra o homem. Mas a consolidação veio com “Tubarão”, clássico de 1975 de Steven Spielberg. O maior já produzido, o filme foi um marco e acabou disseminando vários animaizinhos fofos matando gente ao longo das próximas décadas: "Orca: A Baleia Assassina" (1977), "Piranha" (1978), "Cujo" (1983) e, o mais recente sucesso, "Águas Rasas" (2016), só para citar alguns.

O impacto de “Tubarão” foi tão grande que o número de turistas nas praias norte-americanas caiu depois do filme, que gerou pânico do oceano na plateia. Porém, estamos falando de mais de 40 anos atrás: o mote funcionava efetivamente. Hoje, a história é outra.

No caso de “Predadores Assassinos”, são crocodilos os psicopatas da vez. Com a chegada de um furacão devastador, Haley (Kaya Scodelario) vai até a casa do pai, Dave (Barry Pepper), quando ele desaparece. A menina, uma nadadora, encontra o pai no assoalho embaixo da casa com ferimentos gravíssimos - incluindo fratura exposta -; e o que ocasionou a quase morte do homem foi um enorme crocodilo, que entrou com o nível da água cada vez mais alto devido ao furacão.

Aqui temos o segundo molde do longa: o disaster, quando a obra explana um desastre natural como terremoto, tsunami, queda de meteoro e até o apocalipse. Há uma camada muito fina de discussão dentro de “Predadores Assassinos” que conversa com alguns disasters: o aquecimento global. É tão fina esta camada que mal dá para perceber, mas ela está lá, e é um desperdício não haver uma discussão relevante sobre, afinal, estamos em uma época de larga discussão sobre nosso impacto no meio ambiente e como este reage com alterações climáticas.


A maior parte de “Predadores Assassinos” se passa na parte debaixo da casa, onde os personagens devem rastejar para poder se locomover – um dos reflexos do título do filme, que, em tradução literal, significa “Rastejar”; é claro que o outro reflexo é o próprio andar dos crocodilos. Como o local é bastante limitado, a direção do filme teve um grande desafio na hora de filmar o que estava acontecendo ali – com uma dificuldade adicional com a água subindo gradualmente.

Em muitos momentos, “Predadores” possui eco de “Um Lugar Silencioso” (2018) – que possui sequências que unem esses dois elementos, lugar fechado e água –, o que ilustra a competência desse departamento. Não há nada realmente espetacular ou inédito, mas a fotografia dá conta de imprimir no ecrã o claustrofóbico ambiente, melhorado ainda mais pelo filtro pesado jogado na tela, acentuando o tom de aprisionamento.

Os protagonistas da fita, os crocodilos, são fermentados e enormes. Por serem o atrativo mor da película, esperava efeitos visuais mais verossímeis que não retirassem o impacto toda vez que eles apareciam – há momentos que ultrapassam o limite do aceitável e soam puramente artificiais. E quando os antagonistas não são tão eficientes, o clima vai por ralo abaixo – não dá para gerar apreensão no que é visualmente falso.

Aí retorno a um ponto que levantei no início: “Tubarão” causou frisson e pavor no espectador há décadas atrás, será que ainda estamos tão suscetíveis ao mesmo efeito? É bom lembrar que o medo é, também, subjetivo, e provavelmente muita gente saiu em pânico de “Predadores”, no entanto, não já passamos do tempo em que animais conseguiam ser efetivos propulsores do terror no Cinema?


Lembrava, então, de “Água Rasas”, que tem uma surfista lutando pela vida enquanto um tubarão a persegue. Os elementos são parecidíssimos com os de “Prepadores”: a protagonista está machucada, presa em uma ilhota minúscula e correndo contra o tempo pois a maré está subindo, o que dará acesso ao tubarão enfim a pegá-la. Mesmo não sendo um clássico ou um filme sensacional, “Águas Rasas” é uma sessão muito boa enquanto produto de entretenimento. 

“Predadores” também existe com o intuito puro e simples de entreter, divertir e, sim, ganhar o bastante para se pagar, o que nem de perto é um problema – é uma das funções elementares do Cinema a catarse –, porém, quando comparado com “Águas Rasas”, fica muito, mas muito para trás, porque este funciona como conjunto, ao contrário de “Predadores”.

Assim como Blake Lively está para lá de digna em “Águas”, Scodelario entrega uma atuação muito boa. A garota – descendente de brasileiros – faz todo o filme valer a pena e não deixa a atuação cair em nenhum segundo, mesmo com o roteiro se esforçando para soar patético.

Primeiramente, há diversas sequências em que os personagens poderiam se salvar dos crocodilos. No assoalho, as paredes possuem padrões de tijolos com vários buracos, que facilmente seriam derrubados com um ou dois chutes – e, mesmo possuindo grades do lado de fora, é burrice nem ao menos TENTAR sair por ali. Quando Haley encontra uma portinhola – convenientemente emperrada pelo lado de fora –, segundos depois um policial entra na casa; ela, ao invés de continuar na portinhola, que seria aberta pelo policial e salvando o dia, vai até o outro lado do assoalho. É claro que o policial morre em seguida.


E diversas baboseiras sem sentido são jogadas com o decorrer da duração, desde os crocodilos não gostando do barulho dos canos até a ridícula sequência, já fora da casa, quando Haley tenta pegar um barco. Todo ser vivo que caminhou pela rua alagada foi sumariamente assassinado pelos crocodilos, mas a menina e o pai caminham uma boa parte sem serem importunados pelos monstros – e Haley chega até o barco à nado, inspirada pelo pai e seu discurso motivacional e mais rápida do que três crocodilos. Claro que sim.

Não vamos esquecer que tudo isso acontece com o pai tendo uma perna fraturada e metade do ombro arrancado e Haley com duas enormes mordidas pelo corpo. Os personagens são quase decepados e continuam a fugir como se nada tivesse acontecido. Sei que pode soar um pedido exagerado pedir coerência em um filme com crocodilos gigantes, no entanto, o mínimo que deveria acontecer é nexo no roteiro. Quando tem personagem quase perdendo uma perna e logo depois ganhando a medalha olímpica de natação contra crocodilos, há algo de errado.

Há, para o requisito, um draminha familiar para tentar arrancar uma lágrima e fazer com que nos apeguemos aos personagens, há jump-scares super deslocados – porque óbvio que os crocodilos faziam suspense na hora de estraçalhar alguém –, até um cachorro é colocado no meio (e felizmente termina inteiro). Esse é um filme totalmente dentro de um molde já batido e que não faz nada além da média para ser ou tenso ou divertido. Só preenche uma cartilha e está satisfeito.

“Predadores Assassinos” pode agradar quem espera uma sessão inteiramente moldada para matar o tédio e nada mais – é um filme curto e direto ao ponto, o que é bom. Fora isso, é apenas outra e qualquer obra com bichos devoradores de gente que some com o rolar dos créditos – a atuação de Kaya Scodelario é o único ponto válido de apreço. É ironicamente raso esse filme que esconde seus monstros nas profundezas da água, tão cristalina que parece surgir de uma fonte termal e não pelas mãos de um furacão.

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