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Crítica: “Midsommar” e o hipnótico horror cultural em plena luz do dia

Atenção: a crítica contém spoilers.

Caso você ainda não tenha sido apresentado a Ari Aster, ele é proprietário do melhor filme de terror da década: "Hereditário" (2018). Conseguir um marco em um gênero tão difícil (e logo em sua estreia) fez com que o sucessor, "O Mal Não Espera A Noite" (Midsommar), fosse recebido com imensas expectativas. E isso é tanto benéfico quanto maléfico.

"Midsommar" segue os passos de Dani (Florence Pugh, maravilhosa desde seu estouro em 2016 com "Lady Macbeth"), uma estudante que vê sua vida ruir quando a irmã bipolar se suicida e, ao mesmo tempo, mata os pais. Em absoluto choque, Christian (Jack Reynor), seu namorado, é o único em quem ela pode se apegar no meio dessa tragédia; a questão é que Christian está há muito tempo tentando terminar com Dani, sem saber como cair fora da relação por puro medo e covardia.

Existem diversas similaridades entre "Hereditário" e "Midsommar", assim como várias diferenças, porém, a mais gritante é a que está presente em todo o filme: "Midsommar", com exceção do prólogo, se passa inteiramente na luz do dia, ao contrário de "Hereditário", um filme majoritariamente noturno. Essa quebra não só difere as obras como separa "Midsommar" de quase todos os filmes de terror já feitos.

Dos primórdios do terror na Sétima Arte, ainda com os filmes mudos, até os adventos tecnológicos dos efeitos visuais da modernidade, um elemento é quase intrínseco no gênero: a escuridão. Este é o medo básico do ser humano, o medo do escuro, do desconhecido, daquilo que está nas trevas esperando para atacar, e os nomes, desde clássicos como contemporâneos, a se passarem no escuro – ou, pelo menos, possuírem seus clímaces longe da luz do sol – são abundantes, desde “O Bebê de Rosemary” (1968) e “O Exorcista” (1973) até “Rec” (2007) e “A Bruxa” (2015). "Midsommar" bebe na fonte de "O Homem de Palha" (1973) e "A Montanha Sagrada" (1973) em suas composições, simbolismos e construções imagéticas - e ambos são predominantemente diurnos.

Para tentar fugir do luto que, mesmo meses depois, ainda é uma ferida aberta, Dani aceita o convite (forçado) de Christian para ir até a Suécia com os amigos do rapaz. Lá, eles vão participar de uma celebração de nove dias que acontece a cada 90 anos, em uma comunidade isolada que anualmente celebra a festa da Rainha de Maio, um dos vários ritos daquela cultura.

Ao chegarem no vilarejo, bastante afastado de qualquer contato com o mundo, o clima de toda a fita é instaurado quando temos um sol fortíssimo iluminando todas as dimensões da propriedade. Não há detalhes escondidos, bem ilustrados quando a entrada do local é um gigante sol feito de madeira. Na chegada, somos apresentados aos costumes locais de celebração do solstício de verão, período em que há mais horas de dia do que de noite.


E aqui há o primeiro sinal de que tem algo de errado: com exceção de poucos momentos menos ensolarados, o sol jamais vai embora. Por ser um grupo de universitários, os jovens aproveitam a viagem para curtir e aceitam de bom grado os alucinógenos oferecidos pelos habitantes do vilarejo, o que agrava ainda mais a sensação de deslocamento temporal. Um deles pergunta as horas e, mesmo com o sol a pino, eram 9h da noite segundo os relógios.

Confesso que aqui encontrei o primeiro descontentamento com “Midsommar”: quando ele abraça um molde tão cansado sem, de fato, elevá-lo a algo fora da caixa. O filme é como os milhares já feitos que possuem adolescentes/jovens adultos indo para o meio do nada e, atraídos por sexo e drogas, caem nas presas dos vilões. “Cabana do Inferno” (2002)? “O Albergue” (2005)? Os exemplos estão aí. A coisa vai ainda mais longe com o personagem de Will Poulter, o alívio cômico que atira piadinhas e está mais preocupado em pegar alguma das várias garotas do vilarejo. É um humor deslocado.

Isso pode dar a falsa impressão de que “Midsommar” pende para o lado comercial ou pipoca do terror, o que não é verdade, nem de longe. A película é lentíssima e dedica seus 147 minutos na imersão do espectador na cultura local, o que é uma faca de dois gumes. Aster não queria que seu filme soasse culturalmente gratuito, e fica evidente que houve extensa pesquisa ao redor dos rituais inseridos naquele contexto, porém, ao mesmo tempo, a obra muitas vezes soa como um “Globo Repórter”.

Vemos muito de perto o passo a passo de cada momento das celebrações, e muitas vezes tudo soa chato. Não imediatamente, há muito hipnotismo diante das imagens, todavia, ao passarmos pela sequência, cai um pensamento de “isso não acrescentou muita coisa” ou “isso poderia ter sido sem tantos detalhes”. E olha que estou falando da versão cortada da A24, distribuidora do filme, para os cinemas; a versão original do diretor tem 3h.

Outro grande aspecto diferenciador entre "Hereditário” e “Midsommar” é que o primeiro é um terror, com o objetivo de causar medo. O novo, no entanto, não assusta - ele, um horror, quer te causar incômodo. Há cenas chocantes, claro, no entanto, as construções climáticas não seguem os mesmos caminhos que um filme de terror seguiria – até pelo fato de tudo ser tão expositivo pela questão da luz. Confesso que foi um pouco árduo superar a decepção que senti quando vi que "Midsommar" não tinha aspectos macabros ou assustadores como esperava pelo combro "sucessor de 'Hereditário' + cultos pagãos".


O primeiro momento que escancara o horror é no primeiro ápice dos rituais, quando dois idosos se suicidam ao se atirarem de um penhasco. A fotografia (espetacular) de Pawel Pogorzelski, sob os olhos sádicos de Aster, segue sem medo as quedas e foca nos corpos sendo destroçados com o impacto. Dani e seu grupo, claro, fica horrorizado, principalmente porque toda a comunidade não parece se abalar com a cena. A matriarca explica: aquilo é um costume corriqueiro, já que a comunidade enxerga a morte como uma parte natural do nosso ciclo. “Ao invés de morrermos com medo ou vergonha, nós entregamos nossas vidas. Não faz sentido lutarmos contra o inevitável, isso corrompe o espírito”. A última parte é dita estrategicamente para Dani, um prelúdio do que está por vir.

Aliás, “Midsommar” está soterrado em foreshadowings – há diversos fragmentos do roteiro dados logo no início - e é divertido ficar atento às paredes à procura de pistas. A imagem que abre o filme já mostra os idosos se atirando do penhasco; o galpão que possui as camas é um enorme mural com várias pinturas do que está prestes a acontecer; o quadro na casa de Dani, com uma garota coroada beijando um urso, que reflete o final; e a brincadeira das crianças da vila, chamada “esfola o tolo”, o destino de um dos personagens; além de outros exemplos.

Após o suicídio dos idosos, parece que o horror de “Midsommar” finalmente chegou para ficar, mas ainda temos um longo trajeto a percorrer. O roteiro introduz uma discussão muito boa sobre estudos culturais: Dani quer ir embora após presenciar tão horripilante cena, porém, como diz Christian, aquilo para o vilarejo é normal, e que nossa cultura, que coloca idosos em asilos, deve ser assustador para eles. Há muitos estudos que questionam a validade do ato de não se discutir culturas, mesmo quando estas são problemáticas ou abertamente ruins. Qual o limite de proteção de uma tradição?

Outro fator latente para Dani é que o namorado não parece muito interessado no que está acontecendo ou nos sentimentos da garota. Sempre é outra pessoa a acalmar os nervos da protagonista, enquanto Christian permanece inerte e até egoísta em relação a todos a sua volta. No final do segundo ato, no auge do desaparecimento premeditado dos personagens, Christian joga o corpo fora e diz não ter associação alguma com um dos seus (até então) melhores amigos, para o assombro de Dani, que o vê vomitando aquelas palavras naturalmente.


Outro problema da fita é a maneira como ela expõe o sumiço gradual dos personagens: ela não expõe. Tirando um deles, não vemos na tela o ataque contra os personagens, que desaparecem quase passivamente. O que poderia ser um forte elemento climático, não é construído para embarcar demasiadamente no misterioso, do que fica fora do quadro. É tanto que, quando os corpos começam a aparecer, o impacto não é tão forte como poderia exatamente por não haver a tal construção ao redor dos sequestros.

O último ato, ponto alto da celebração, começa com o concurso para decidir quem será a Rainha de Maio. Depois de muita droga e alucinações, Dani vence, e é coroada em uma enorme comemoração, enquanto Christian é induzido a entrar em um ritual próprio: ele é escolhido pelos anciões a engravidar uma das garotas do local, prática realizada com frequência – por ser uma comunidade pequena, apenas primos podem copular, sendo preferido forasteiros, levados até lá com o intuito de procriação.

A cena em questão é uma cópula bizarra: filmada com uma beleza incongruente, Christian transa com a garota enquanto várias mulheres nuas assistem. É tudo tão constrangedor que chega a ser engraçado, e esse é o tipo de humor retirado de maneira inteligente, ao contrário do pastelão que vinha pontualmente aparecendo. Mesmo entre risos, não dá para não perceber o horror da sequência.

E é claro que Dani vai saber do ocorrido, o que desencadeia no ataque máximo: ela percebe que perdeu absolutamente tudo. Sua família está morta, os colegas desapareceram e seu imprestável namorado finalmente deu um motivo definitivo para acabar a relação. Enquanto surta, várias mulheres da vila a acolhem e, em um ritmo assustador, choram e gritam na mesma frequência de Dani.

Esse momento é fundamental para entendermos os rumos do final do filme: Dani finalmente é emocionalmente compreendida. Ela, agora a Rainha de Maio, é acolhida com imenso prazer pela comunidade, sendo chamada de “irmã” pelas garotas do local, que, quase literalmente, compartilham dos sentimentos daquela que é a realeza. E isso explica as várias cenas com os moradores da vila imitando os sentimentos dos outros – quando o idoso se atira do penhasco e não morre, os habitantes gritam em sincronia com a dor do personagem; durante a cópula, as mulheres ao redor gemem junto com a garota perdendo a virgindade. Eles são um corpo só.


A última etapa da celebração, após a coroação da Rainha de Maio, é o sacrifício para a manutenção da paz do local: nove pessoas devem morrer para expulsar o mal da vila. Oito delas já estavam previamente escolhidas: os amigos de Dani; outros visitantes; dois membros do culto, voluntários para a dádiva do sacrifício; e o último deve ser decidido pela Rainha de Maio. As opções são: um dos moradores do local, escolhido através de um sorteio; e Christian. Não é lá grande surpresa quando Dani escolhe sacrificar Christian.

“Midsommar” é uma gigante alegoria sobre a posse do controle. Dani perde o controle absoluto de sua vida: ela vê sua família inteira morrer de uma só vez e o namorado, aquele que deveria lhe dar suporte emocional, está cada vez mais distante e prestes a cair fora. Ela busca desesperadamente algo que lhe dê a paz que é a sensação de controlar as rédeas da própria vida, e ela encontra na vila. Ela é capaz de decidir entre a vida e a morte de pessoas, o controle absoluto, e ela escolhe matar aquilo que a prendia na vida passada, na escuridão. Até mesmo a transição do filme é uma metáfora perfeita para isso: quando sua família morre, é noite; ela só encontra a luz do dia quando está na vila, e essa luz é infinita.

É claro, o filme não está glorificando tudo isso; há uma forte crítica ao fanatismo religioso. Dani está na ruína absoluta, extremamente suscetível a qualquer coisa que lhe garanta conforto, e aquela religião pagã é a receita exemplar para isso, ainda mais tão regada a alucinógenos que, como bem diz os moradores, ajudam quem toma a desapegar do passado e se abrir às novas sensações. É por isso que, vendo o namorado em chamas, ela sorri. O que antes era vulnerabilidade agora é ocupada pelo poder. Ela finalmente se vê parte de um todo – ilustradas pelas visões que Dani tem do seu próprio corpo fundido com a natureza. Sob o efeito de drogas e fundamentalismo, a redoma sacra que envolve docemente a protagonista em seus braços é tudo o que ela precisava. É bom demais para se revoltar contra os absurdos que estavam diante dos seus olhos.

"Midsommar" não é um fácil filme: sua robusta duração, desconcertantes sequências e inundação de simbolismos tornam a sessão uma trabalhosa digestão para a plateia. Tão diferente, mas ao mesmo tempo tão parecido com "Hereditário" ao usar o luto como pontapé de seu clima, é injusto comparar as duas obras quando seus objetivos (e luzes!) são tão discrepantes - e, convenhamos, superar "Hereditário" seria utópico. "Midsommar" é narcotizante e hipnótico ao reforçar o terror antropológico e cultural, além de mais uma comprovação (dessa vez colorida e vibrante) de que Ari Aster é um mestre no que faz e um dos mais bizarros términos de relacionamento que o Cinema já fez. Teria sido mais fácil terminar por mensagem.

Crítica: mesmo parecendo mais adulto, o balão de “It: Capítulo 2” está murcho

Atenção: a crítica contém spoilers.

Após 27 anos do primeiro encontro com Pennywise (Bill Skarsgård), ou A Coisa, o Clube dos Perdedores é obrigado a voltar para a cidade de Derry e confortar de uma vez por todas o palhaço demoníaco que está disposto a continuar com sua matança. "It: Capítulo 2" (It Chapter Two) continua a saga iniciada em "It: A Coisa" (2017) dois anos após o lançamento deste que é a maior bilheteria de um terror em toda a história (sem o ajuste inflacionário) - foram $700 milhões ao redor do globo.

Desde o início da produção da sequência, um fato me chamava muita atenção: como os atores escolhidos para interpretarem as versões adultas eram bizarramente parecidos com as crianças do primeiro filme. Não vou nem citar a lista dos nomes, porém eles parecem ter sido escolhidos a dedo - e até coadjuvantes são iguais aos atores mirins. Mais sorte ainda quando nomes tão grandes como Jessica Chastain, James McAvoy e Bill Harder aparecem no casting.

O filme é aberto, assim como o anterior, com um assassinato pelas mãos do Pennywise, para avisar que o palhaço já está na ativa. Contudo, o caso do "Capítulo 2" já chegou envolto de controversas: um casal gay é brutalmente espancado por um grupo homofóbico, e um deles é morto pelo Pennywise. Já adianto: não li ao livro de Stephen King. Lendo comentários acerca, soube que a passagem em específica contém no material original, porém, na tela, a cena é preocupantemente descontextualizada.

A ideia, imagino, era fomentar a áurea de violência da cidade, quase exalada a partir da presença de Pennywise - um dos criminosos inclusive fala "Bem-vindo à Derry" quando espanca um dos gays. Todavia, é muito diferente da morte de Charlie no primeiro filme, já que foi inteiramente feita a partir de um monstro sanguinário e não-humano. Ver corpos homossexuais sendo violentados por puro ódio e que não acrescentam na narrativa só tem um nome: gratuidade.


Quando os pedaços do cadáver deste personagem - interpretado pelo reizinho Xavier Dolan, já acostumado a sofrer quando atua em filmes - são encontrados, é o alerta de que os Losers devem voltar e impedir que as mortes continuem se espalhando. O primeiro ato começa com Mike (Isaiah Mustafa), o único do grupo original a nunca ter saído de Derry, ligando para todos os outros amigos de infância e informando para eles correrem até a cidade.

Pois bem, esse início é deveras confuso. Não fica muito claro qual a dinâmica que está acontecendo entre os personagens que foram embora: eles parecem não se lembrar dos eventos da infância. Após a sessão, fui ler sobre e descobri que sim, no livro é isso que acontece, no entanto, o filme presume esse conhecimento prévio (e indevido) e não se preocupa em desenvolver o que é a base para o pontapé inteiro da trama. Ora parece que os personagens lembram de nada, ora que lembram de alguma coisa, é uma desordem sem tamanho.

O único que lembra de tudo é Mike, exatamente por não ter saído da cidade. Essa dinâmica é tão contraditória que, fundamentalmente, quem saiu da cidade se recorda de nada, entretanto, Ben (Jay Ryan), o ex-gordinho e agora malhadíssimo que eventualmente vai mostrar sua nova barriga de tanque, ainda nutre um amor por Bervely (Chastain) vinte e sete anos depois. Supera.

Mesmo sendo os mesmos personagens do primeiro longa, os protagonistas são pessoas diferentes, afinal, quase três décadas se passaram. O roteiro é corrido demais ao abordar suas vidas presentes, o que apresentaria ao espectador quem eles são no agora - há pontuações interessantes, principalmente no caso de Bervely, presa em uma repetição da relação extremamente abusiva com seu pai; seu atual marido é um psicopata que a trata como objeto. Um deles até comete suicídio e nem aparece por dois minutos inteiros, um peso narrativo irrisório.

Aí começa o segundo passo do plot. Mike explica os acontecimentos e diz já ter um plano para matar A Coisa, um ritual indígena que também ilustra como o palhaço chegou em Derry: pegando carona em um meteorito. Sim, Pennywise é um alienígena. Enquanto essa mitologia é muito boa, o lado do ritual é apresentado de maneira incongruentemente pronta. É como uma receita que magicamente brotou do chão, sem preparação ou background algum para o público.


E falando em receita, "Capítulo 2" é uma cópia da estrutura do filme antecessor. Podemos pensar, "bem, é uma decisão lógica, afinal, é a continuação", mas não, não é. No "Capítulo 1", nós acompanhamos cada um dos personagens enfrentando Pennywise particularmente, e a mesma coisa acontece aqui. Uma enorme parte da duração - que é bem robusta, quase 3h - é dedicada à separação de seus peões e cada um deles esbarrando com os terrores d'A Coisa.

Mesmo havendo momentos inspirados - a sequência da Bervely com a idosa é ótima -, é uma repetição gigantesca e previsível. Sabemos cada passo, cada susto, cada desdobramento, o que não engrossa uma atmosfera, afinal, uma das premissas básicas do terror é o medo do inesperado. Andando passo a passo atrás do molde original, surpresas quase não estão à vista.

Algo que me chamou atenção é como a película não é.........adulta. Não esperava algo cerebral ou cult, mas "Capítulo 2" não amadurece sua narrativa em momento algum, além de empalidecer quando posto lado a lado com o elenco infantil. Soa estranho quando temos atores consagrados não dando conta de superarem um bando de crianças, e fica cristalino quando o filme embarca em flashbacks e coloca protagonistas originais na tela. Eles possuem muito mais química e um tom mais correto.

Se o primeiro é uma aventura macabra, o segundo não alcança uma coesão de estilo, afinal, aquele grupo de quarentões caindo em trapalhadas é desconcertante. O que deveria ser mais sério e atmosférico é apenas uma emulação do que deu certo antes - e que, obviamente, não funciona de modo igual. "Capítulo 2" é, sim, mais "assustador" - não chega a dar medo, todavia, possui uma gama bem legal de ideias de terror (a cabeça com pernas de aranha é uma delícia) - só que são tantos tiros para todos os lados que se torna uma bagunça com supérfluos - subtramas, como a do garotinho na sala de espelhos, podiam ser descartadas.

Depois de horas de sustos (alguns bem baratos), chegamos no "vamo-vê", o embate com Pennywise. O clímax já começa errado quando o tal ritual que caiu dos céus serve para coisa nenhuma e é esquecido rapidamente - o que também joga fora a relevância narrativa do momento em que os personagens se separam. Quando cara a cara com A Coisa, agora em forma de uma aranha enorme, a montagem ruim vai derrubando o que já estava fraco.


A solução do problema é a última pá de terra no enterro do filme: os Losers começam a xingar e menosprezar Pennywise, que vai (fisicamente) diminuindo até chegar a um ponto que seu coração fica exposto, a peça chave de sua existência. Em um primeiro estalo, achei curioso o conceito da derrocada do vilão: Pennywise é a personificação do bullying - ele ataca as inseguranças e medos de suas vítimas, como qualquer "valentão" -, e só é derrotado quando o bullying se volta contra ele. No campo das ideias, o gosto desta solução é doce, porém, na tela, é cinematograficamente preguiçosa.

E de preguiça o terror comercial e hollywoodiano entende. Forças sobrenaturais, demônios imbatíveis, entidades sanguinárias são, geralmente dentro desse nicho, derrotados por uma artimanha patética. Quer exemplos? A maior franquia de terror moderna é "Invocação do Mal", que já rendeu vários spin-offs e dinheiro aos baldes, e os dois filmes principais da saga possuem a mesma preguiça: em "Invocação do Mal" (2013), o satanás vai embora com pensamentos felizes; e Valak, o demônio em forma de freira em "Invocação do Mal 2" (2016), cai por terra ao ouvir seu nome. Simples assim.

Vendo por um lado positivo, além de ser uma sessão que não cansa tanto para a longa duração, "Capítulo 2" abraça uma metanarrativa criativa quando coloca o Stephen King em pessoa falando mal dos finais de suas próprias histórias - uma ideia pra lá de disseminada entre os leitores -, além de gerar referências bem divertidas do universo kinguiano, como para "O Iluminado" (1980) - tem um "Heeere's Johnny!" - e "Carrie: A Estranha" (1976) com a inundação de sangue.

A impressão que "It: Capítulo 2" desenha à plateia é que parece ser um filme andando com muletas: está preste a cair a qualquer momento, mesmo não indo ao chão de fato. A vivacidade que residia na obra anterior abre espaço para uma irregularidade colateral - o roteiro formulaico e efeitos visuais ruins explicam. Sempre será um prazer ver Bill Skarsgård encarnando um dos vilões mais icônicos da contemporaneidade cinematográfica, mas nosso retorno à Derry não é o prazer que foi a primeira vez que chegamos nessa cidadezinha infernal. Talvez, na próxima, o balão vermelho não estará tão murcho (Skarsgård já afirmou que voltaria para um terceiro).

Crítica: “Era Uma Vez em Hollywood” é uma tortura fantasiada de homenagem à Sétima Arte

Atenção: a crítica contém spoilers.

Indicado a 10 Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Ator (Leonardo DiCaprio)
- Melhor Ator Codjuvante (Brad Pitt)
- Melhor Design de Produção
- Melhor Fotografia
- Melhor Figurino
- Melhor Edição de Som
- Melhor Mixagem de Som

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quentin Tarantino lançando um filme significa que eu estarei no cinema. Não sou desses que acha o diretor o suprassumo da Sétima Arte, mas, de "Cães de Aluguel" (1992) até "Os 8 Odiados" (2015), nunca o vi lançar uma película ruim - "Pulp Fiction: Tempo de Violência" (1994), sua obra-prima, é um dos melhores filmes já feitos, inclusive. Não tinha como não dar meu dinheiro para "Era Uma Vez em Hollywood" (Once Upon a Time in Hollywood), seu novíssimo projeto.

No final da década de 60, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um ator que alcançou o ápice da fama em Hollywood na década anterior, andando atualmente por uma crise artística. Seu melhor amigo - e dublê e motorista e o que aparecer -, Cliff Booth (Brad Pitt), sempre está ali para dar suporte a Rick, no protagonismo ou como coadjuvante de uma série que ninguém assiste.

A mansão de Rick, nos altos montes da ensolarada Califórnia, é ao lado da residência de ninguém menos que Roman Polanski e sua esposa, Sharon Tate (Margot Robbie), um dos apogeus do Cinema na época - Polanski havia acabado de lançar "O Bebê de Rosemary" (1968), um dos maiores clássicos de toda a história.


Essa dicotomia representa perfeitamente o status artístico do fim da Era de Ouro de Hollywood: de um lado, Rick, a encarnação do declínio; do outro, Polanski e seu magnetismo de sucesso e genialidade. Você pode tentar, mas será árduo não lembrar de "Crepúsculo dos Deuses" (1950), o melhor estudo da fama dentro de Hollywood já criado na telona: Rick chega perto da insanidade de Norma Desmond, o cânone da fama perdida, ao tentar alcançar o prestígio de outrora - semelhanças com Riggan Thomson de "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)" (2015) não são mera coincidência.

Já podemos apontar o óbvio: "Era Uma Vez..." é uma homenagem ao Cinema - mais especificamente à Hollywood, todavia, pincela outros nichos como o faroeste italiano, (conhecidos como Spaghettis). A metanarrativa, então, é uma das principais forças da produção, que mergulha na indústria até demais. O filme chega perto de 3h de duração, o que fundamentalmente não é um problema, a questão é a maneira como Tarantino decidiu preencher seu arrastado filme. Realmente me surpreendi quando lembrei que tanto "Django Livre" (2012) quanto "Os 8 Odiados" possuem durações maiores à de "Era Uma Vez...", e o tempo voa nos dois primeiros, ao contrário do último.

Para quem conhece a filmografia do diretor - que sempre escreve os próprios roteiros - sabe que suas narrativas evocam os dramas de seus personagens de maneira não tão linear. Os acontecimentos não são exatamente fechados, com cada passo sendo um tijolo na construção da trama - um estilo que, particularmente, não me agrada tanto. O que fazia com que isso jamais fosse um empecilho é a vivacidade de suas histórias, sempre cativantes - o que inexiste em "Era Uma Vez...".

A trama gira entorno dos três personagens principais - Rick, Cliff e Sharon. Mesmo se encontrando e se aproximando, eles possuem núcleos completamente distintos, três histórias deveras diferentes; e a montagem não se apressa em mostrar em detalhes cada uma delas. Rick gasta horas nos sets de filmagem, Sharon no cinema vendo o filme em que atua e Cliff flerta com uma garota que acaba se revelando uma das integrantes da família Manson. Nenhuma delas é exatamente empolgante.


Tarantino, cinéfilo inveterado, quer ovacionar o faroeste - gênero fundamentalmente hollywoodiano - e nos cola em Rick por intermináveis filmagens, que são sofríveis. Com cenas longuíssimas, a sensação de que 10% do exibido era o necessário está sentada do nosso lado, o que é reflexo do domínio criativo que o diretor tem sobre suas obras - que tem o poder em decidir como será o corte final do filme, algo raro dentro da indústria.

Com Cliff, soterrado na sombra do personagem de Rick, ganha camadas de composição que surgem e somem sem impacto algum - o filme literalmente para a história para mostrar que ele matou a própria mulher. O que em qualquer enredo seria ponto incontestável, serve para coisa nenhuma - se não existisse, o filme percorreria sem mudanças. E aqui é apenas um dos vários exemplos de entupimentos do roteiro.

É em Sharon que o plot parece alavancar. Não é a primeira vez que Tarantino se apropria de um fato real e a mistura com a ficção - "Bastardos Inglórios" (2009) ressignifica a História e mete a bala em Adolf Hitler, e o mesmo acontece em "Era Uma Vez...". No entanto, aqui temos um grande "porém": ao contrário de Hitler, Sharon Tate não é uma figura universalmente conhecida - durante a sessão que assisti, várias pessoas não a conheciam. E, por não a conhecerem, o viés híbrido do filme não fez sentido.

Sharon foi assassinada pela família Manson, e em "Era Uma Vez...", Tarantino faz o oposto de "Bastardos": poupa a vida da mulher com uma virada deliciosa que subverte expectativas. To-da-vi-a, essa expectativa, essencial no clímax, só existe se você conhecer o destino de Sharon. Sem um desenvolvimento digno em cima do culto bizarro criado por Charles Manson (que aparece em apenas UMA cena), o crime acontece na tela sem motivações e se apega demasiadamente em um fato aquém de sua existência e que não encontra explicações o suficiente dentro de seu corpo. Sem o conhecimento prévio, Sharon é só a vizinha que em uma noite descobriu que a casa ao lado foi invadida. E isso é um grande problema.


E Tarantino não está nem um pouco preocupado se você não catar as milhares de referências que explodem na tela a cada segundo, virando um festival impossível de ser assimilado tamanha afetação. Ele vai nos confins da cultura norte-americana das duas décadas exploradas e põe tudo na tela milimetricamente, uma porrada no interesse do público - ou você quer mesmo ver um episódio de uma série policial de 1965? Chega a ser uma tortura - e tenho certeza de que, caso estive assistindo ao filme em casa, teria abandonado.

Tudo é, como sempre, embalado com muito afinco, da fotografia coloridíssima da era dos hippies até a energética trilha sonora - mas a cansativa história, os inúmeros personagens de apoio que entram e saem da tela, as sequências infinitas de gravações, as subtramas deixadas pra trás, tudo colabora para assassinar a diversão que é elemento intrínseco dentro do cinema tarantiano - e que, em alguns momentos, faziam as falhas passadas serem perdoadas.

É uma surpresa ver o infortúnio de Tarantino ao abraçar um longa mais voltado para o drama - ele se saiu tão bem no subestimado "Jackie Brown" (1997). "Era Uma Vez em Hollywood" carrega os estilos que moldaram um cinema tão característico, porém, sua nova produção é uma inorgânica homenagem à fantasia hollywoodiana pela sua trama que vai matando a própria vida a cada minuto (e são muitos). Se as atuações são de primeira linha e os momentos de ação maravilhosos, "Era Uma Vez" parece não entregar uma recompensa à plateia, mesmo com seu protagonista sendo recebido de portões abertos na magia irrefreável da mitologia por trás da terra do Cinema - e que não está presente no filme que conta sua história, coisa diferente em outras homenagens à Sétima Arte na contemporaneidade, como "La La Land" (2016). Tarantino, pela primeira vez, não é cool, é só chato.

Crítica: “Parasita” balanceia uma das melhores lutas de classe do cinema com humor e acidez

Indicado a seis Oscars:

- Melhor Filme
- Melhor Direção
- Melhor Roteiro Original
- Melhor Filme Internacional
- Melhor Fotografia
- Melhor Montagem

* Crítica editada após o anúncio dos indicados ao Oscar 2020

Quando o Festival de Cannes rolava em maio, um filme era sempre pontuado na lista de melhores da competição: "Parasita" (Parasite), do diretor Bong Joon-ho, mais famoso pelo sensacional "O Hospedeiro" (2006). Não foi grande surpresa quando ele se tornou o primeiro coreano a vencer a Palma de Ouro - o prêmio de "Melhor Filme" do festival -, e já abrindo os caminhos para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional".

"Parasita" se debruça em cima da família Kim: o pai, Ki-taek (Song Kang-ho, muso de Joon-ho e um dos maiores coreanos na história); a mãe, Choong-sook (Jang Hye-jin); o filho, Ki-woo (Choi Woo-shik); e a filha, Ki-jung (Park So-dam). Eles moram num minúsculo apartamento quase no subsolo e vivem em nível de pobreza. Dobrando caixas de pizza para sobreviver, uma oportunidade brilhante surge quando Ki-woo é convidado para ser professor de inglês em uma luxuosa mansão.

A riquíssima família possui a mesma configuração: o pai, Mr. Park (Lee Sun-kyun); a mãe, Yeon-kyo (Cho Yeo-jeong); a filha e aluna de Ki-woo, Da-hye (Jung Ji-so); e o caçula, Da-song (Jung Hyun-joon). Os incontáveis metros quadrados da propriedade rapidamente viram um terreno fértil para a ascensão social dos Kim: eles vão, um a um, se introduzindo dentro da casa.

Achei curioso perceber as similaridades básicas entre "Parasita" e "Assunto de Família" (2018): ambos asiáticos ("Assunto" é japonês), ambos vencedores da "Palma de Ouro" consecutivamente e ambos retratos da má distribuição de renda na Ásia. Tanto a família de "Assunto" como a de "Parasita" buscam meios à margem da lei para sobreviver e lutar contra a miséria.


A diferença elementar entre os longas é sua abordagem: enquanto "Assunto" é fundamentalmente dramático, seco e sem rodeios, "Parasita" traz a mesma veia narrativa de vários filmes de Joon-ho: uma mistura desconcertante de comédia com drama. Um estilo bastante característico, é fato que nem sempre funciona: quando Joon-ho abraça a comédia com viés comercial ou expositivo demais, vira um desastre - vide "Okja" (2017). Não por acaso, seu maior mal passo é exatamente o que vai até Hollywood.

Quando reside ali mesmo na Coreia do Sul, a tonalidade é bem pontuada - como "Mother - A Busca Pela Verdade" (2009) . "Parasita" não fugiu à regra. Não pense que esse fusão com comédia seja um stand-up na tela: o humor de "Parasita" está no absurdo de suas situações. Em inúmeros momentos a obra me remetia ao trabalho de Yorgos Lanthimos, que também usa da mesma fórmula para construir seus universos únicos. Assim como em "A Favorita" (2018), "Parasita" também entope a duração com sarcasmos inteligentes, e usa a música clássica em contraste com a porraloucagem que está acontecendo, por exemplo.

A narrativa da película é uma montanha-russa: o início é bastante lento, uma subida gradual dentro da trama que desde ali já prometia uma queda vertiginosa. A pegada comédia está pungente, com sequências que em nada acrescentam no plot além de pincelar a tonalidade cômica da coisa - como a cena do bêbado fazendo xixi ao lado da janela da família. Quando o espectador entra na mansão dos Park, o drama ganha mais espaço pelas pautas impostas de maneira muito sutil.

É claro que o mote principal de "Parasita" é uma família se aproveitando (e forçando) situações para sua ascensão econômica - e toda a potência da fita está bem aqui -, contudo, o filme expõe um viés que, pelo menos acho, não é um consenso ou uma ideia coletiva no imaginário de quem habita esse lado do mundo: as desigualdades absurdas do povo ao redor do Mar do Japão.


Essa abordagem é bem mais explícita em "Assunto de Família" - provavelmente pela escolha de tom -, mas "Parasita" só caminha porque é uma crítica direta ao capitalismo. Disse que talvez a ideia central do filme não esteja impressa em nossas cabeças porque, ao pensarmos no eixo Coreia-Japão, imediatamente vislumbramos tecnologias e avanços, o que, como em basicamente qualquer país capitalista, não é uma verdade concretamente partilhada entre seus cidadãos.

Pondo em outras palavras, não imaginava que estes países pudessem ser tão desiguais. Em incontáveis momentos consegui enxergar a mesmíssima história se passando aqui mesmo no Brasil - o filme possui universalidades para dar e vender, o que consegue exportar sua história para todos os cantos do planeta - quanto mais desigual for sua realidade, mais identificável será o filme.

É bastante difícil falar do enredo de "Parasita" e não estragar a experiência de quem ainda não viu. Não só por questões de spoilers, mas também porque esse é um filme de sensações - e elas são fartas e variadas. Você vai do êxtase absoluto ao choque completo - o último ato pega elementos do terror e leva a bizarrice social aos extremos.

No entanto, o filme renderia uma análise longuíssima no que tange a impressão da desigualdade social na Sétima Arte. Aliás, esse tema é central na filmografia de Joon-ho - todos os seus filmes, em algum nível, tocam no assunto -, porém nunca com tanto sucesso como em "Parasita". O cuidadoso texto ainda tem a audácia de carregar um existencialismo puro quando Ki-taek, no auge da bagunça do plano da família, fala que a única forma de não falhar é não ter um plano - o que ilustra a forma como todos estão jogando para cima seus desejos e esperando que caiam de volta.


O obscurantismo vai engolindo a tela enquanto mergulhamos mais profundamente nos meandros das duas famílias, duas configurações tão parecidas mas tão opostas ao mesmo tempo: o exemplo maior é na sequência da chuva, quando os Parks estão confortáveis em sua sala com paredes de vidro e os Kims encontram seu apartamento inundado - notem como a fotografia evidencia a descida dos protagonistas durante a corrida até a casa, uma metáfora visual das junções capitalistas, quando a periferia mora em um nível muito abaixo das camadas mais abastardas. A chuva escorre pelas mansões e se acumula nas favelas. Quem sofre com a chuva é o pobre.

Uma das expectativas iniciais que sofri com o filme partiu do seu título, e, felizmente, foi uma expectativa morta. Não pense o contrário, "Parasita" é um título que não poderia ser melhor aplicado do que no presente filme, contudo, poderíamos imediatamente pensar que a família Kim seria a tal parasita, sugando dos Parks.

Isso não deixa de ser verdade - eles realmente se aproveitam da quase burrice dos patrões -, no entanto, o roteiro é pra lá de competente ao não permitir que habite um binarismo rasteiro e preto no branco. Os Parks, em alguns aspectos, chegam a ser odiáveis - vide a cena do clímax que desencadeia o final -, o que até entrega a chancela para a plateia ficar totalmente do lado dos Kims, que sempre possuíram motivações muito verdadeiras. Querendo ou não, eles são os mestres de cerimônia desse insano picadeiro. O fato é: não existem vilões no filme - não que, por isso, os personagens sejam mocinhos e não haja atitudes absolutamente condenáveis (na verdade o filme é uma sucessão delas) -, mas todos são vítimas do sistema, é ele que os molda naqueles formatos reprováveis. O jogo é mais culpado que os jogadores.

"Parasita" é um dos cumes de 2019 quando cria uma sessão bizarramente divertida sem, jamais, em momento algum, deixar com que o estudo social saia do ecrã. Com um lindo malabarismo de gêneros, o filme enfia a faca em um sistema que fundamentalmente existe ao por um camada acima de outra, o que tira a dignidade do ser humano, predestinado a cometer ações terminais que comprovam o insucesso da separação entre burguesia e marginalizados. Talvez a melhor luta de classe que tivemos no Cinema nessa década - e aqui estamos falando tanto no sentido figurado como no literal.

Crítica: “Dor & Glória” é uma aborrecida jornada sem o reencontro criativo de Almodóvar

Pedro Almodóvar sempre está nas listas de melhores diretores nos cinéfilos mundo afora, e felizmente. O espanhol provavelmente deve carregar o título de maior diretor gay do Cinema moderno, sem jamais, nos quase 40 anos de carreira, deixar os tópicos LGBTs fora de sua filmografia.

Só com o recorte desse século, Almodóvar, vencedor de dois Oscars, carrega alguns dos melhores filmes do período, como as obras-primas "Fala Com Ela" (2002), "Má Educação" (2004), "Volver" (2006) e "A Pele Que Habito" (2011), o que justifica o evento que é o lançamento de qualquer um dos seus filmes. Não foi diferente com "Dor & Glória" (Dolor Y Gloria).


Estreando diretamente na competição principal do Festival de Cannes 2019, "Dor & Glória" segue Salvador Mallo (Antonio Banderas, um dos ícones do cinema almodovariano, estando presente em oito de seus filmes), um diretor de cinema em declínio. Numa depressão pessoal e artística, ele reencontra algumas figuras chaves de sua vida, o que o faz questionar como chegou até ali e, principalmente, como vai ser dali para frente.

A narrativa se divide basicamente em dois córregos, o presente e a infância de Salvador, nos anos 60, com sua mãe sendo interpretada pela musa mór de Almodóvar, Penélope Cruz (criminalmente subutilizada aqui). Nesse vai e vem - que inclui até a cantora Rosalía num papel coadjuvante -, Salvador decide reatar os laços com Alberto (Asier Etxeandia), o protagonista de um dos seus primeiros - e mais bem sucedidos - filmes. Separados há 30 anos graças a uma briga, o retorno é conturbado, principalmente pela parte de Salvador.


Cheios de problemas físicos e emocionais, o diretor encontra dificuldade em conseguir a simpatia do ex colega porque, durante décadas, massacrou o trabalho que Alberto fez em seu filme, uma impressão finalmente mudada. É ele, também, que abre alas para que Salvador entre no mundo das drogas, uma via de escape com prazo de validade curtíssimo.

Devo confessar a você, leitor, que relutei e me questionei bastante se escreveria ou não sobre "Dor & Glória". Almodóvar é um dos meus diretores favoritos e estava bastante ansioso para o sucessor de "Julieta" (2016), que mesmo sendo um filme competente, é nada memorável. As críticas internacionais teciam elogios aos baldes para o novo longa e tinha tudo para que o jejum de quase 10 anos sem uma fita magistral finalmente tenha chegado ao fim - "A Pele Que Habito" foi o último grande Almodóvar.

Só que não demorou muito para perceber que o jejum continuaria. E os motivos foram vários. Um dos melhores diálogos da película, que na maior parte do tempo é uma aula de metalinguagem, diz que o maior ator não é aquele que sabe chorar diante da câmera, mas o que consegue conter as lágrimas. Fiquei com a frase na cabeça e, enquanto matutava, percebi que a afirmação era uma definição fidedigna para o próprio filme.


Percorrendo pelas dores e glórias de Salvador, a produção parece que está prendendo a emoção em todas as cenas - como se o filme estivesse com medo de ser vulnerável. Há uma camada grossa de letargia sobre o ecrã, e a sensação primordial que me abatia era a de anestesiamento; conseguia produzir sentimento nenhum além do tédio. E a conclusão que cheguei é a mais óbvia possível.

O problema está na composição de Salvador. Bandeiras está bem no papel - nada extraordinário como o prêmio de "Melhor Ator" em Cannes poderia sugerir -, todavia, ele foi moldado para ser a versão cinematográfica do próprio Almodóvar. É só olhar para o pôster: o protagonista está na frente de sua enorme silhueta, que é parecidíssima com a do diretor (isso se não for realmente a sombra de Almodóvar).

"Dor & Glória" sofre do mesmo dano de "Roma" (2018): é particular demais. São construções que fazem muito mais sentido para quem está as realizando, sem um apelo que permita um apreço por parte da plateia - não acho que seja necessário afirmar o elementar, mas sim, estou cozinhando essas afirmações dentro da deliciosa esfera da subjetividade, você pode assistir ao mesmo filme e se sentir tocado como nunca na vida. O pequeno Salvador escrevia cartas para os analfabetos de sua vila, assim como a mãe real de Almodóvar, e essa escolha de roteiro só tem um peso concreto para ele - por possuir um laço afetivo ali. Salvador é um personagem que não denota simpatia pelos traços introspectivos, frios e distantes, um confusão emocional que está presa dentro da cabeça e nada mais.

E tome diálogos que evoquem o amor pela arte e monólogos intermináveis que significam coisa nenhuma para ninguém além de quem está o evocando, e, quando mal pisquei, estava mais interessado no design de produção super bonito e colorido. A superfície de "Dor & Glória" é bem mais atraente que seu conteúdo, um reflexo muito bom para exemplificar o quão raso é seu texto.


Outro ponto gritante é como Almodóvar faz um amontoado de reciclagens de diversos temas já explorados dentro de sua filmografia. Artista em declínio? O homem virando deus através de sua arte e tendo uma mulher como secretária e (quase) serva? "Abraços Partidos" (2009). A exposição da homossexualidade na infância? Um filme dentro do filme? Reencontros de ex amores fracassados? "Má Educação". O ato de ser mãe na terceira idade e como a aproximação com os filhos é dificultada? "Volver". Consumo de drogas que reflete a marginalização de LGBTs? "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). E por aí vai.

"Dor & Glória" atira em inúmeras fórmulas já gastas e acerta em nenhuma. É bem verdade que, com o passar dos anos, Almodóvar retornou em tópicos anteriores, no entanto, ele sempre se superava, indo ainda mais longe que anteriormente e entregando mais camadas de profundidade daqueles que são os temas que fizeram seu cinema ser tão celebrado. "Dor & Glória" passa longe da mesma fortuna. É só ver "A Pele Que Habito", por exemplo, uma revolução dentro da carreira do diretor quando seus tópicos são levados a caminhos tão diferentes e inéditos dentro de seu próprio mundo. O rei espanhol talvez precise de uma renovação que quebre as paredes da caixa que ele mesmo se colocou, senão continuará sendo uma repetição de si mesmo.

Almodóvar, no desejo de mostrar como o Cinema salvou a sua vida, realiza um filme estritamente íntimo, o que ceifa a produção através de seus personagens unidimensionais, tramas de perfumaria e uma narrativa que evoca o sono. O todo deixa um gosto ainda mais árido quando até mesmo dentro da filmografia almodovariana há homenagens à Sétima Arte mais vívidas e verdadeiras, sem a chatice que é mais um filme sobre crise artística e a jornada para o reencontro criativo que em nada enriquece os 40 anos de Almodóvar nas salas escuras mundo afora.

Crítica: banido na África, “Rafiki” é tão resistente quanto suas protagonistas lésbicas

Atenção: a crítica contém spoilers.

Quando "Aquarius" (2016) estreou no Festival de Cannes, com enormes elogios, tínhamos em mãos um escolhido definitivo para nos representar no Oscar, na categoria "Melhor Filme Internacional" (até então nomeada "Filme Estrangeiro"). No tapete vermelho da estreia, a equipe do filme protestou contra o golpe instaurado no governo de Dilma Rousseff. Como é o governo que escolhe o selecionado de cada país, através do Ministério da Cultura, "Aquarius" foi "punido" pelo protesto ao ser esnobado no processo de seleção. O escolhido, "Pequeno Segredo" (2016), é um filme que quase ninguém nem viu.

Tal artimanha política não é exclusividade do circo que é o Brasil - o Quênia fez exatamente o mesmo em 2018. O favorito para a seleção era o lésbico "Rafiki", da celebrada diretora Wanuri Kahiu. O primeiro longa queniano a chegar no Festival de Cannes, não demorou até ele ser banido no país pela "propaganda de incentivo ao lesbianismo", o que é crime nas leis vigentes. A comunidade internacional, óbvio, criticou pesadamente a decisão, o que levou a diretora a processar o país, a fim de conseguir lançá-lo.


O governo baixou uma condição: que a diretora mudasse o final do filme para algo triste, pois o original era "muito positivo e esperançoso". É claro que ela negou, o que piorou a situação: quem fosse pego em posse do filme, seria preso com pena de até 14 anos de prisão, a sentença básica para um homossexual no país. Felizmente, Kahiu venceu o processo, o que permitiu a estreia de "Rafiki", todavia, o governo fez exatamente o mesmo que nosso Ministério da Cultura: chutou o filme da seleção para o Oscar, mesmo sendo o principal do país no período.

Não estou querendo dizer que o prêmio da Academia é o que há de mais importante para a Sétima Arte, mas é inegável o fato de que ela é a maior vitrine cinematográfica que existe, o que torna essas "punições" ideológicas sofridas por "Aquarius" e "Rafiki" ainda mais preocupantes. O retrocesso soa pequeno, todavia, é muito mais que apenas um filme não sendo escolhido, é uma imposição de ideias retrógradas dizendo "quem vale aqui sou eu".


A protagonista de "Rafiki" é Kena, interpretada por Samantha Mugatsia, em seu primeiro papel. A diretora a conheceu em uma festa (!), convidando-a para estrear no Cinema logo como a estrela. Kena é filha de um candidato a política na periferia de Nairobi, e, enquanto se divide entre cuidar da mãe e do mercadinho do pai, conhece Ziki (Sheila Munyiva), filha do candidato rival, o que vai dificultar a aproximação das duas.

É a velha história que conhecemos desde que Romeu e Julieta existem: o melodrama de pombinhos que não podem ficar juntos pela rivalidade das famílias. O molde shakespeariano de "Rafiki" sai das terras italianas para o cerne da África e, mesmo sendo o clássico arquétipo do amor juvenil, explorado ao cansaço absoluto pela arte, possui ainda mais peso por se tratar de um romance lésbico.

A primeira grande impressão em "Rafiki" é seu visual. A obra de Kahiu deseja a celebração do Quênia, e pinta cada quadro com uma explosão de cores. Com um design de produção que mistura Wes Anderson com Spike Lee, há tenro cuidado na composição das cenas, com sacadas verdadeiramente engenhosas: o longa é quase inteiramente cor de rosa, porém, em cenas centradas nos personagens masculinos, a cor sai da tela. Só há vivacidade quando as mulheres dominam o ecrã.

"Rafiki" é contado a partir da visão de Kena, então os maiores desenvolvimentos acontecem ao redor da personagem. Entramos em sua vida, nos conflitos entre os separados pais e na maneira que a garota enxerga a própria sexualidade, completamente aprisionada pelo meio em que vive. Quando surge Ziki, ela não é muito mais que a interessante menina que é filha do outro candidato. A fita não busca um envolvimento por parte da plateia com o mesmo peso entre as duas partes, assim como em "Carol" (2015), quando intimamente conhecemos tanto Therese quanto Carol


E essa escolha narrativa é, na grande maioria das vezes, um problema. Para acreditarmos num romance, precisamos sentir a sintonia do casal, fomentada a partir do ponto que nos apegamos com ambos os envolvidos. Esse é um demérito de "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017), que coloca todo seu peso textual em cima de Elio, o que faz com que Oliver se mostre distante. Felizmente, "Rafiki" encontrou uma saída correta para amenizar os eventuais problemas.

Enquanto Kena é visualmente construída de maneira sóbria, nos moldes de tomboy, Ziki é o extremo oposto. As cores da fotografia são introduzidas na personagem, desde suas roupas até as enormes tranças coloridas. Ziki é imageticamente atraente, sedutora e impossível de passar despercebida. Toda essa composição proposital ajuda na hipnotização do público diante da garota, efeito fidedigno ao abatido em Kena, que nem consegue fingir sua fascinação por Ziki.

Uma escolha acertada da produção foi deixar de fora qualquer cena de sexo. Talvez pela idade das atrizes, talvez pela complexidade da abordagem, "Rafiki" prefere transformar aquele romance num conto de fadas: tudo é filmado com muita delicadeza, sem gratuidades, emoldurados por tons patéis. É um contraste muito bonito a pureza daquele microcosmo com toda a feiura do que habita do lado de fora, quando elas devem escolher entre a felicidade e a segurança.


O primeiro choque social entre a relação das protagonistas vem do fato de que elas são filhas de políticos rivais. Nenhuma das famílias se mostra favorável à união, e isso era quando ali rolava apenas amizade aos olhos de todos, o que reflete o título da obra: "rafiki" é "amigo" em swahili, a língua local, e designação dada aos casais homossexuais para fugir da proibição de serem quem são - os parceiros são sempre chamados de "amigos". A situação piora quando as fofoqueiras de plantão descobrem o romance, o que desencadeia na cena-chave do filme.

Kena e Ziki são espancadas e presas. O mais longe que "Rafiki" vai em termos de opressão, todo o momento é fomentador de um senso grotesco de injustiça. É (quase) o máximo que um sistema absurdo pode proporcionar, quando atos de violência são respaldados pelas leis. Na delegacia, as duas ainda são ridicularizadas pelos policiais, que não enxergam motivos para não humilhar aquilo que há de pior.  Os ritos após continuam a degradação: Ziki é mandada embora do país enquanto Kena é exorcizada - homossexualidade é considerada possessão demoníaca dentro do corpo cultural queniano. "Rakifi" se aproxima de "Eu Não Sou Uma Feiticeira" (2017) como vozes modernas empenhadas em expor opressões femininas em solo africano.

Apesar de ser pungente nesse momento, é perceptível a impressão de que a película não vai até aonde deveria. Poderá ser além de satisfatória para o público alvo - adolescentes assim como suas personagens -, no entanto, plateias mais maduras sentirão falta de complexidades e aprofundamentos que não sejam tão facilmente desenrolados como os apresentados. São saídas que soam fáceis e sub-tramas que ficam pelo caminho - o garoto gay que sofre violência constante é super mal aproveitado, um exemplo que cerceia o alcance do todo.

"Rafiki" pode não exercer todo o potencial dramático que prometia, mas é uma exultação para o cinema LGBT pela doçura de sua abordagem, beleza de suas imagens e veracidade de seus temas. É uma das poucas obras que consegue tanto enaltecer quanto criticar um mesmo foco - no caso, a situação sócio-política do Quênia -, sem deixar de evocar todo o prisma feminista em meio de um local engolido pela miséria. Nem todas as tentativas de censura são capazes de impedir a explosão de liberdade da fita, que não abre mão de denunciar o que deve ser mudado, e, desta maneira, é um filme tão resistente quanto suas personagens. "Rafiki" nos recorda que os anseios femininos podem ir muito mais longe que a máxima "boas meninas se tornam boas esposas".

Crítica: “O Rei Leão” é um faraônico “Discovery Channel” sem alma e pertinência

Quando saiu o trailer de "O Rei Leão" (2019), o comentário mais repetido ao ponto de exaustão era como a galera estava pronta para chorar novamente no cinema. Entre esse extremo e o oposto, aqueles que nunca viram a primeira versão do filme - o clássico animado de 1994 -, lá estava eu, no meio desses polos.

A fita VHS verde fez, sim, parte da minha infância, porém eu nunca fui uma daquelas crianças arrebatadas pela magia Disney - sempre fui mais do terror e ficção-científica, muito cult desde pequeno. Então, assistir à releitura foi uma experiência mais objetiva, já que não havia um laço emocional pré-estabelecido - consegui acompanhar sem que a nostalgia embaçasse meus olhos. E a história é exatamente a mesma.

Scar (voz do maravilhoso Chiwetel Ejiofor) é irmão do rei das savanas africanas. Ele arma um plano para matar o próprio irmão, Mufasa (interpretado pelo lendário James Earl Jones, o Darth Vader de "Star Wars", 1977, reprisando seu papel na animação original), e dar o fim também em Simba (Donald Glover na versão adulta), príncipe e herdeiro do trono. Com o plano dando certo, ele reina com tirania, mas está no destino de Simba a coroa de seu povo.

Obviamente, se tratando de animais em cena, a questão da representatividade não funciona de modo convencional, contudo, é muito bom ver que o elenco principal é majoritariamente composto por atores negros - toda a família "real", por exemplo, o que se assemelha com "Pantera Negra" (2018), também evocando o trabalho negro de maneira diferenciada dentro do Cinema para as massas. A Disney, o maior conglomerado de cultura do mundo, está atento às demandas sociais e tem cada vez mais escalado atores negros em papéis de destaque - a nova Ariel de "A Pequena Sereia", por exemplo, está aí para provar.


E falando nela, a Disney já passou por diversas fases, encontrando seu apogeu na Era de Ouro, aberta por "Branca de Neve e os Sete Anões" em 1937. Depois de muitos altos e baixos, em 2009, com "A Princesa e o Sapo", começou a chamada Revival, colocando a marca de volta ao topo. O Neo-Renascimento se divide em duas vertentes: as animações computadorizadas, como o sucesso "Frozen: Uma Aventura Congelante" (2013), e os live-actions, readaptações de seus próprios clássicos, mas com carne e o osso.

Só nos últimos anos, os cinemas receberam uma enxurrada desses live-actions, encabeçados em 2010 pelo maior sucesso da produtora nessa vertente até o momento, "Alice no País das Maravilhas", seguindo por "Malévola" (2014), "Cinderela" (2015), "A Bela e a Fera" (2017), "Dumbo" (2019) e "Aladdin" (2019). "O Rei Leão" se apresenta como mais um desses exemplares, o que é uma mentira. A técnica utilizada pelo filme é a união de fotorrealismo com animação gráfica, ou seja, é uma animação de qualquer forma - os animais não foram filmados nas locações, é claro.

A escolha de produção visa expor o poder técnico da produtora: ela quer deixar claro a sua força dentro da Sétima Arte, e isso não pode ser contestado; as imagens de "O Rei Leão" são belíssimas. Com uma fotografia luminosa que abocanha a África, dá para duvidar da mentira criada por computador que são os animais, chocantemente reais. E o filme de Jon Favreau, que já dirigiu outro remake com o mesmo formato, "Mogli: O Menino Lobo" (2016), abre as portas do zoológico selvagem e não economiza na variedade de animais correndo pelos pastos ao céu aberto.


Todavia, essa escolha fundamental foi uma faca de dois gumes: a técnica escolhida pelo longa funciona em termos visuais, mas não de linguagem. Com a necessidade de serem verídicos, os bichos não possuem expressão; suas bocas se movem durante as falas, porém encerra por aí, o que oblitera a performance do personagem. Até lembrei dos filmes que realmente colocam animais diante da câmera - os descartáveis da "Sessão da Tarde" com cachorros entrando em confusões: os adestradores botam algo na boca do bicho que, mastigando, imita o movimento da fala.

Se eles estão felizes, tristes, animados ou com medo, apenas o tom de voz consegue transmitir, já que as feições dos animais são as mesmas. Isso inibe qualquer conexão com a plateia, vendo ventríloquos boa parte do tempo. O que salva é como os dubladores foram bem escolhidos; assisti à versão original, então não poderei explanar sobre a versão nacional. James Earl Jones emana poder em todas as cenas pela fortíssima voz, sem ofuscar a sóbria Sarabi de Alfre Woodard; o divertido Zazu de John Oliver, ótimo alívio cômico; e o antagonista unidimensional de Chiwetel Ejiofor.

Mas é Timão e Pumpa os donos do longa. A dupla, dublada por Billy Eichner e Seth Rogen, respectivamente, é hilária, super simpática e dá um sopro de frescor pelos diálogos divertidos e a revisitação do clássico "Hakuna Matata". Curiosamente, os dois são os personagens a possuírem o maior leque de expressões faciais - o longo rosto de Pumba está sempre com um sorriso e os minúsculos olhos de Timão brilham. Só que temos, claramente, um corpo estranho no meio das dublagens: Beyoncé.

Que Beyoncé é uma das maiores artistas que já abençoaram esse planeta, isso todos sabem, porém, seu trabalho como Nala é, dói dizer, medíocre. Sua performance não há um pingo de emoção, a única que fica perceptível as linhas do roteiro sendo declamadas em estúdio. Se enquanto canta não existe limitações, os diálogos convencionais emulam as expressões de sua leoa: vazia. E é óbvio que ela é capaz de muito mais - em "Dreamgirls" (2006) ela está bem confortável. O peso do seu nome, tanto no corpo de atores como produtora da trilha sonora, é chamariz efetivo para a obra, o que compensa apenas musicalmente - apesar de "Spirit" ter sido uma fraca escolha como carro-chefe do filme; "Better", como o próprio nome já diz, seria uma escolha melhor.


Por ser tão fiel ao filme de 94 (o adjetivo "fiel" não é um elogio no contexto em questão), as deficiências da história ficam ainda mais aparentes dentro desse "Globo Repórter" africano. O desenvolvimento de seus personagens nunca consegue criar ganchos que justifiquem suas ações. Scar, por exemplo, é absolutamente nada além do irmão invejoso; ele começa a fita com uma só faceta e nada é acrescentado. O mesmo acontece com o vilão de "Aladdin", porém, o corpo deste introduz profundidades dentro de Ja'Far que o retire do binarismo extremo que Scar não consegue fugir. As quase 2h de duração caminham muito pouco em termos de construção narrativa.

Com todos esses problemas, são as imagens de "O Rei Leão" que conduzem o trem. Por ser uma cópia quase exata do original - há vídeos comparando as cenas entre as duas versões e até vários enquadramentos são os mesmos -, o que vem como argumento de "preservação" da obra original vira detrimento da releitura, um elefante branco sem pertinência. É o mesmo efeito com o remake de "Psicose" de Gus Van Sant, lançado em 1988; literalmente feito quadro a quadro em comparação com o original de 1960, o filme deixa de ser um revival para se tornar uma cópia inferior. A única justificativa que ergue a existência de um remake, de gastar milhões para contar uma mesma história, é quando a nova versão a eleve, traga novidades, revise erros - "Suspiria" (2018) é um dos raros nomes a entrar na categoria de remakes bem sucedidos. "O Rei Leão" tem a vantagem da técnica, no entanto, fica por aí.

Sob o score gritantemente clichê de Hans Zimmer, que à essa altura já é um plágio de si próprio (todas as trilhas dele soam repetidas), a fita tenta extrair emoção nas cenas-chaves - a morte do Mufasa, por exemplo -, mas nada sai dessa fonte. Os fãs mais saudosos podem se dar por satisfeitos, contudo, olhando estritamente para o que é feito aqui, "O Rei Leão" é uma produção sem vida, mesmo com todo o esforço - detalhes microscópicos, sequências musicais cheias de adrenalina, lutas de leões e por aí vai.

"O Rei Leão" depende da nostalgia para fazer o motor funcionar, porque o que é entregue, motivado pelas próprias mãos, é rasteiro. Eco letárgico de qualquer episódio de "Discovery Channel", a película já começa errada quando se vende como live-action - aqui não há sinal nem vida nem de ação -, uma alegoria faraônica sem alma desesperada para repetir o sucesso de seu original. Beyoncé, cantando, nos pergunta: "você consegue sentir o amor hoje à noite?". A resposta é "não".

Crítica: “Morto Não Fala”, nosso “Invocação do Mal”, engrossa o mercado de terror nacional

Se o terror é um dos gêneros mais lucrativos em outros mercados, no Brasil é nicho. Ainda não temos uma cultura cinematográfica solidificada que foque na produção de nomes dentro do gênero, mas essa realidade está mudando. Estamos em meio a um boom de interesse da indústria pelo terror, e películas do gênero surgem cada dia mais, como "Um Ramo" (2007), "Trabalhar Cansa" (2011), "Quando Eu Era Vivo" (2014), "O Animal Cordial" (2018), "Virgens Acorrentadas" (2018) e "As Boas Maneiras" (2018) - e com certeza há mais, sem conseguir chegar na superfície das grandes distribuições.

Mesmo mesclando elementos do gênero ou indo com mais sede ao pote, ainda não tínhamos sido agraciados por um terror que esteja num patamar que o retire do puro Cinema B - o que há de mais comum, quando o horror cai na sátira ou trash, o que não é um demérito. Finalmente nossos problemas acabaram: "Morto Não Fala" está aqui para resolver essa questão.

Dirigido por Dennison Ramalho, com um currículo vasto dentro do gênero, o filme segue os passos de Stênio (Daniel de Oliveira, em mais uma boa performance para a carreira - vide "Aos Teus Olhos", (2018). Antes mesmo de o conhecermos enquanto pessoa, o conhecemos enquanto profissional: o homem é platonista noturno de um necrotério e possui o dom de falar com os mortos. Nas longas madrugadas de trabalho, ele conversa com os cadáveres, sabendo de suas histórias e quais os tortuosos caminhos os levaram até sua maca.


Obviamente, a fita não perde tempo tentando explicar como Stênio possui a habilidade, e isso não importa. Para minha surpresa, li diversos comentários cheios de reclamação sobre o filme não explanar isso, mas "O Sexto Sentido" (1999) por acaso dá a explicação de como o protagonista enxerga gente morta? Assim como na clara fonte de "Morto Não Fala", tal pontuação diminuiria o filme - não dá pra explicar de modo crível algo que é impossível. A suspensão da descrença é o mínimo que o filme pede.

No seio de uma grande metrópole, apesar de não ficar claro qual (me pareceu ser o Rio de Janeiro), o necrotério raramente está vazio. E, como terror nato, os mortos que chegam até Stênio não padeceram de causas naturais: ensanguentados e muitas vezes com partes faltando, o primeiro baque que abre as portas para o horror é a exposição dos corpos em ruínas, e a obra não poupa litros de sangue - o gore explícito pode revirar o estômago da plateia. As sequências com autópsias são fidedignas e conseguem arrepiar, aliando o body horror com o fantástico. É quase divertido acompanhar o protagonista dialogando com o cadáver enquanto costura sua caixa torácica.

Se é a violência que leva os defuntos até Stênio, o roteiro inteligentemente enfia suas garras no corpo social: a maioria dos mortos é negra, mais especificamente homens, marginalizados e periféricos. Vindouros de presídios, caídos por rivalidade de gangues ou por acidentes naturais sobre suas precárias moradias, "Morto Não Fala" vai à fundo da roda de extermínio que funciona no nosso país. Um deles, um homem que foi dedurado para a polícia, conta melancolicamente sobre sua árdua vida; o assassinato do pai realizado por ele mesmo e o irmão, visando proteger a mãe, vítima de abusos; e a forma como a miséria hereditária leva essas pessoas ao derradeiro fim. É como um vírus que delimita o prazo de validade dessa população.


Enquanto trabalha no corpo de um conhecido da região onde mora, Stênio descobre que sua esposa, Odete (Fabíula Nascimento, que aclamo sempre que aparece por aqui), está o traindo com o dono da venda da esquina, Jaime (Marco Ricca). Stênio então rapidamente levanta um plano: culpar Jaime pela morte do homem dedurado, indo até a favela e falando com o irmão do falecido, líder da gangue e sedento por vingança.

Inúmeras configurações do terror passeiam por toda a duração de "Morto Não Fala", contudo, o que une toda a produção de maneira sólida é o drama familiar. Bem verdade que "Morto Não Fala" possui um formato saturado - será se precisamos de ainda mais versões de espíritos bagunçando a vida dos vivos? Odete repudia o marido e sua medíocre vida, encontrando em Jaime a válvula de escape da conclusão doméstica que ela não esperava - o adultério alivia os filhos rebeldes, as contas acumuladas e o casamento falido. Situações que colocam o marido traído em posição de retaliação existem desde que o mundo é o mundo, porém, a fita encontra o sucesso da novidade ao mudar o passarinho que assovia na orelha do corno tal informação: agora é um cadáver.

Os rumos sofrem drásticos desvios quando, no momento que a morte encomendada de Jaime surge, Odete está com ele, o que também a leva ao assassinato. Mesmo Stênio não prevendo, o choque inicial dá lugar a uma lúgubre sensação de superioridade por parte do protagonista, que tortura psicologicamente a esposa, impotente diante do fato de que ele foi o culpado. A dinâmica entre Stênio e o corpo de Odete é fabulosa, o momento que a premissa básica do filme encontra maior força.


A partir de então, a vida do homem vira um inferno: usar informação dada por um morto para matar inocentes é maldição certeira. O espírito de Odete coloca o Satanás no chinelo ao passar a aterrorizar a própria família; é então que "Morto Não Fala" deixa de ser uma mistura de "Cadáver" (2018) com "Se7en: Os Sete Crimes Capitais" (1995) para virar "Invocação do Mal" (2013). São portas escancaradas, móveis saindo do lugar e personagens sendo arremessados por forças invisíveis, e não consigo lembrar de uma produção nacional que entre nesse formato, popularizado por Hollywood.

E não tome isso como um demérito: é interessantíssimo ver um filme brasileiro indo onde obras gigantes dominam e se saindo tão polido. Tanto em termos de linguagem como técnico, "Morto Não Fala" deve em nada aos inúmeros e malfadados filmes que se apropriam do sobrenatural enquanto filhotes das maiores produtoras do planeta, e vai mais longe, superando-os. E isso se deve ao cuidado do roteiro em sedimentar todos os caminhos antes de cair no eletrizante clímax, com demônios arrastando as pobres vítimas. "Morto Não Fala" é um terror que respeita o que há de mais elementar na arte, que é seu texto, o que o mantém fixo. Há, sim, fragilidades, principalmente quando cai no lado mais pipocão ou quando se torna demasiadamente expositivo, todavia, nada que abale irremediavelmente seu trabalho.

Um crítico internacional analisando "Morto Não Fala" com certeza não vai receber o mesmo impacto que um brasileiro; e não por motivos de regionalismos - o filme é deveras internacional, tanto que atualmente possui generosos 89% de aprovação no Rotten Tomatoes. Afirmo pois, para alguém aquém da nossa indústria, não existirá a mesma sensação de glória ao ver uma produção verde-e-amarelo no mesmo nível do que é lançado quase diariamente no quintal deles. Saindo vencedor no drama, no suspense e no terror, "Morto Não Fala" é uma revelação que engrossa as colunas de um gênero cada vez mais visado dentro de um país ainda tão monotemático.

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