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“Homecoming”, Coachella e o maior show da maior artista da nossa geração

Quase um ano após um dos maiores momentos de Beyoncé e do Coachella, o que aprendemos com esse show?
Texto por Vinícius Zacarias, com revisão de Guilherme Tintel

Na madrugada desta quarta-feira (17) chega a Netflix o documentário obrigatório “Homecoming”, que disseca o maior show da carreira de uma das maiores artistas da nossa geração. Quem assistiu ao show da Beyoncé no Festival Coachella há um ano, não conseguiu voltar a dormir naquela noite de domingo. A deusa jamais igualada subiu ao palco com uma apresentação recheada de referências políticas, musicais e cênicas, ficando difícil enumerar todas neste breve texto. O espetáculo histórico e cultural, com muitas surpresas, repertório vasto e participações especiais, correspondeu a perfeição da virginiana que ficou ensaiando junto aos seus mais de 200 componentes 14 horas por dia nas últimas semanas.

Beyoncé é inerente a artista pois "reflete seus tempos", como dizia a Nina Simone, também referenciada no show junto a Malcolm X e Big Freedia, uma rapper negra transviada de New Orleans. Sua direção criativa construiu complementos ao fundo do palco com composição de fanfarras. O mais notável foi o trabalho da direção musical que montou todos os arranjos das músicas com base nos instrumentos de sopro e percussão, num trabalho notadamente exaustivo. São diversas referências que vão desde os uniformes das fraternidades negras norte-americanas até as leves indiretas à ex-amante de seu marido.

Essa noção de “culturas de fanfarras ou bandas musicais”, sobre a qual me dedico a discorrer, faz referência à expressão cultural muito forte no estado do Alabama, EUA, terra natal de seu pai, onde existem grandes organizações de escolas, bairros, corporações e concursos musicais. O Alabama também foi o palco do estopim para a organização do movimentos dos direitos civis depois que Rosa Parks, em 1955, resistiu a pressão de ceder assento no ônibus para brancos no período da oficial segregação racial no país. Apesar de forte incidência de resistência negra, o estado do Alabama é considerado o mais LGBTfóbico dos Estados Unidos.

Devido a isso, em 2015, a TV Oxigen estreou o reality show gay afro-americano de dança intitulado The Prancing Elites Project, composto por Adrian Clemons, Kentrell Collins, Kareem Davis, Jerel Maddox e Tim Smith que tentam conciliar suas vidas pessoais e profissionais na cidade de Mobile. O reality mostra o cotidiano e as provas que os meninos precisam passar diariamente, mostrando os conflitos que interseccionam os problemas de raça, gênero e sexualidade.

O reality teve apenas duas temporadas, mas destaco um dos primeiros episódios onde os meninos são desafiados a se apresentarem como balizas de fanfarra, com maiô justíssimo ao corpo e cheios de brilho, em meio a uma parada cívica tradicional. As reações foram de espanto e rejeição, gerando até mesmo represálias, como o fato de terem sido retirados do desfile por policiais (confira o vídeo abaixo).


Outra grande inspiração de cena para a Beyoncé foi o estilo de dança criado por jovens dançarinas de bandas escolares da universidade negra na cidade Jackson, no Mississipi. O estilo mistura acrobacias com movimentos de dança afro, jazz contemporâneo. No entanto a dança foi criado originalmente em 1971 pelo grupo Prancing J-Settes, ao apoiarem a banda Sonic Boom Of The South. Esse estilo, provavelmente, também serviu de inspiração para o The Prancing Elites Project.


Para muitos de nós, negros e gays ou mulheres negras, vivemos numa celeuma identitária que imbricam diversas dores, mas que nos motivam a resistir neste mundo estruturado pelo racismo e patriarcado e regido pelo heterossexualidade e sexismo. Assim como os meninos do Elites e as dançarinas do Mississipi, que também são fãs da Beyoncé, resistimos e tornamos nossas vidas possíveis através da arte. Tornamos nossa sobrevivência um produto criativo da vida.

Foi gratificante assistir um espetáculo que traz a referência cultural do Alabama intercalado com outras representações de masculinidades negras, como na sensibilidade e na capacidade da inteligência cômica dos novos dançarinos, propondo suas projeções para além do sexual, e também nas mulheres dançarinas gordas e com muita auto confiança. Faltou, claro, uma “fechação” bem viada no palco, mas tenho certeza que isso sobrou na platéia repleta de bichas pretas prontas para o ataque.

Mais uma vez, Beyoncé mostra-se antenada com a cena cultura negra de seu país e preparou um espetáculo altamente black pop conceitual, sem, necessariamente, ser enunciadas de forma explícita. Existe todo um charme conceitual por volta disso. O show do Coachella já é um clássico do entretenimento da produções de festivais de música. E como todo clássico, por mais que assistamos, sempre nos revelará surpresas.

Beyoncé é a maior inspiradora da cultura pop mundial, depois de Michael Jackson. Junto à Madonna, uma lenda ainda viva. Só um ser sagrado tem a capacidade de fazer de um show uma catarse de reflexão política sobre o mundo. Nina Simone deve estar orgulhosa.

O documentário está disponível na Netflix.

Vinícius Zacarias é doutorando em estudos étnicos, pesquisa movimentos culturais LGBT+ negros no Brasil. Siga-o pelo Facebook!
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