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Crítica: "Custódia" ratifica que, em briga de marido e mulher, a gente mete a colher sim

O filme é francês, porém conseguimos ver a violência contra a mulher pelas nossas janelas
Atenção: a crítica contém spoilers.

Nem é preciso uma vasta pesquisa na internet para sabermos o quão perigoso é o ato de ser mulher, e o cinema é arte preponderante para exibir esses perigos. Achei de uma sincronia pertinente a estreia de "Custódia" (Jusqu'à La Garde/Custody) nas salas brasileiras nessa segunda metade de 2018: no mesmo período, repercutiu na mídia o caso da advogada Tatiane Spitzner, que foi encontrada morta em julho após cair do 4º andar de seu apartamento. O acusado pelo assassinato foi o marido de Tatiane, Luís Felipe Manvailer. E esse é só um dos vários casos de agressões contra mulheres apenas no nosso país.

Mas o que isso tem a ver com "Custódia"? Calma, vamos chegar lá. O filme de Xavier Legrand conta a história de Miriam (Léa Drucker), esposa divorciada de Antoine (Denis Ménochet). O longa é aberto dentro de um tribunal, com o casal brigando pela guarda dos filhos: ele deseja ter os finais de semana com o filho mais novo, Julien (Thomas Gioria); ela não quer que o ex-marido se aproxime da prole, sentimento compartilhando pelos filhos.

É notória a divisão em três partes da fita: a primeira, dentro do tribunal, é o chavão para mim já saturado do cinema de tribunal, felizmente justificável dentro da premissa. Não sabemos até onde cada uma das partes estão falando a verdade - o pai, ao se mostrar uma vítima da manipuladora ex-mulher, que afastou seus filhos; ou a mãe, vítima de um insano homem que põe sua vida em perigo. Cabe à juíza a decisão da guarda compartilhada ou não.


O segundo, e maior, momento da película se passa nos corredores das vidas dos protagonistas. A juíza concedeu os finais de semana de Julien ao pai, para o desagrado de toda a família da mãe. Mas Antoine recebe o filho com o maior amor do mundo, mesmo com o garoto claramente não querendo estar ali. Há algo de errado na situação, algo escondido por trás de toda a fachada: resta ao espectador saber quem ali está fingindo.

A narrativa não demora a pontuar que, apesar de não entrarmos de uma vez na complexidade da situação, Miriam tinha fundo de verdade nas colocações que fez à juíza. O pai literalmente usa o menino para saber a quantas anda a nova vida da mãe. Após a separação, Miriam exclui o ex-marido de todo o seu círculo social, mudando-se de apartamento e levando os filhos. Antoine, com seu complexo de posse, anseia desesperadamente saber a quantas anda a vida da ex, e manipula emocionalmente Julien para conseguir informações.

O garotinho, nada ingênuo, mente e distorce informações em defesa da mãe. Todavia, há limites psicológicos que um menino tão novo pode aguentar, e o pai, atingindo a barreira da agressão física, consegue arrancar em qual condomínio a família agora mora, deixando Julien em lágrimas.


O quadro está finalmente completo: a mãe tinha razão o tempo inteiro. O roteiro passeia de formas inteligentes pelos coadjuvantes desse teatro bizarro: os pais de Miriam odeiam o ex-genro, e não o permitem se aproximar de sua casa - local onde o homem pega Julien nos fins de semana; os pais de Antoine não ficam muito distantes: acolhem o filho até o momento em que o tratamento voltado para o neto ultrapassa o aceitável, expulsando Antoine.

Quando inseridos um contexto próprio, tendemos a achar que certos comportamentos são particulares. "Custódia" se passa na França, bem distante do Brasil em diversos termos, entretanto, como se fosse uma história contada aqui do nosso lado, a maior obsessão de Antoine é em saber se a ex-mulher tinha um novo namorado. A ideia o consome, fere sua masculinidade, corrói o seu bom senso. O patriarcado e todas suas leis que dão a posse do corpo feminino ao homem impera em qualquer sociedade em que está presente, levando a destinos familiares.

Ao ser expulso da casa dos pais, saber que Miriam tem um novo namorado e qual é seu novo apartamento, Antoine vai até lá, no meio da noite, com uma arma. A fotografia e direção compõe uma sequência brilhante, feita a passos curtos e sem afobações quando, durante um bom tempo, vemos a mãe e o filho deitados na penumbra, ouvindo desde a campainha até passos se aproximando. A tensão cresce conforme a certeza de que aquele que bate é Antoine, e a visita com certeza não seria para todos tomarem um café.


Todo o drama familiar se transforma num fidedigno filme de terror. Antoine atira na porta - atingindo o filho de raspão - para entrar no apartamento. Trancados no banheiro, Miriam e Julien desesperadamente aguardam seu fatídico destino. A salvação vem pelas mãos da vizinha, que ouve o homem arrombando a porta e liga para a polícia, ágil o suficiente para prendê-lo antes que os corpos da mãe e filho estivessem estirados no chão.

Raras são as vezes que eu conto o final de um filme em uma crítica, contudo, era imperativo discorrer acerca. Além das qualidades técnicas e narrativas, o clímax coloca na mesa debates urgentes: o feminicídio. É só ligar a televisão para vermos casos de mulheres mortas pelos parceiros, muitas vezes em situações de ciúmes, em que ela não o deseja mais. O velho "se não podem ficar comigo, fica com mais ninguém". "Custódia" mostra um casal francês, mas poderia muito bem ser um longa brasileiro, país que é o quinto no trágico ranking de feminicídios no mundo.

Mas há diferenças importantes fomentadas por "Custódia" ser francês: se fosse brasileiro, a chance da repetição do final feliz seriam ínfimas. A polícia no filme se mostra eficaz, ágil e preparada para lidar com uma situação extrema, coisa que não podemos dizer que possuímos. Imagine: uma mulher do interior, da favela, pedindo ajuda no mesmo cenário. Sair com vida seria muita sorte. E acrescentando, foi a vizinha que fez total diferença para o desfecho. Vivemos numa cultura que diz "em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher", ditado que reflete diretamente nas conclusões de tantas e tantas brigas.


E é preciso separar um parágrafo para rasgar elogios às atuações dos três protagonistas. Léa Drucker segue sua carreira como atriz de maneira incrível, e, mesmo só aparecendo com completude no final, dá uma aula de atuação. O pequeno Thomas Gioria deve em nada aos parceiros com o triplo de sua idade: seu Julien é crível, palpável e verdadeiro, mais uma prova do mito de atuações infantis, sempre postas como algo de segunda linha. E Denis Ménochet pode estar orgulhoso de ter orquestrado um dos personagens mais odiosos da história do Cinema; apenas seu olhar fixo já gerava arrepios, e todo o pavor que ele exercia sobre Julien é facilmente exalado pela tela.

No entanto, nem tudo são flores. Você pode ter reparado que em momento nenhum eu citei a filha do casal, Joséphine (Mathilde Auneveux). Há várias cenas que tecem uma trama para a personagem, porém ela é, sem exageros, 100% inútil para todo o andar do filme. Há longas cenas de construção de personalidade e situações que servem para coisa nenhuma - como a enorme sequência em que ela faz um teste de gravidez, esquecido com o corte da montagem. É verdade que tudo que está na tela não precise ser peça preponderante para o elo final da obra, mas a gratuidade gritante da existência da filha destoa. Poderia ser muito bem apenas Julien - ele carrega o filme sem muito esforço.

"Custódia" engole com ousadia o suspense pela boca do drama familiar, mas possuiria um saldo final ainda mais positivo num cenário em que o foco estivesse inteiramente em seu eixo central, sem subtramas alegóricas e vazias. Porém não se engane: a obra é um filme necessário e socialmente afiado para o nosso tempo, arremessando violências sofridas por mulheres pelas mãos do patriarcado, do machismo e da misoginia. Mesmo se passando num país mais desenvolvido, impossível não ver a história pelas nossas janelas, nessa produção que serve de comprovação: em briga de marido e mulher, a gente mete a colher sim. Talvez vários finais trágicos pudessem ser evitados se colocássemos uma colher ou duas.

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