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Crítica: "Em Pedaços" dramatiza como o nazismo ainda assombra (e mata) até hoje

Vencedor do Globo de Ouro e semifinalista ao Oscar, o drama dá uma forçada na barrar para mostrar as sequelas da intolerância (e funciona)
Atenção: a crítica contém detalhes da trama.

Na anual corrida dos países de língua não-inglesa para o Oscar, são nos festivais que aparecem os principais nomes aos selecionados pelos respectivos países: Cannes, Veneza e Berlin, os três maiores internacionalmente, são os principais termômetros para a categoria de "Melhor Filme Estrangeiro". "A Separação" (2011), "Amor" (2012), "O Filho de Saul" (2015), "O Apartamento" (2016) e "Uma Mulher Fantástica" (2017), vencedores do Oscar nesta década, também ganharam pelo menos um prêmio em algum dos festivais citados.

Até que "Uma Mulher Fantástica" saísse como o vencedor, a categoria em 2018 teve vários favoritos sendo alternados até a noite da premiação. Um dos principais nomes nas apostas era "Em Pedaços" (Aus dem Nichts), o selecionado da Alemanha - o título internacional, "In The Fade", vem da música do Queens of the Stone Age que fala sobre se perder nos próprios sentimentos; o título foi escolhido já que Josh Homme, vocalista da banda, fez a trilha-sonora da produção.

Vencedor de "Melhor Atriz" em Cannes 2017 para Diane Kruger, o filme era nome seguro entre os cinco finalistas do Oscar depois da vitória no Globo de Ouro 2018, porém, para a surpresa geral, ele não foi indicado, ficando apenas entre os nove semifinalistas, na chamada "December Shortlist". Mas o país não tem muito do que reclamar: já foi indicado 19 vezes, levando três delas.


O Globo de Ouro e o Oscar geralmente divergem bastante na categoria de "Filme Estrangeiro": nesse século, apenas sete filmes venceram ambos, com alguns vencedores do prêmio da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood sendo esnobados pela Academia - como aconteceu com "Em Pedaços". Nota: o Brasil venceu o Globo com "Central do Brasil". Aprende, Oscar.

"Em Pedaços" conta a história de Katja (Kruger), que se casa com o turco Nuri (Numan Acar) quando ele está na prisão por tráfico de drogas, para o descontentamento das famílias. Da relação nasce Rocco (Rafael Santana), atualmente com cinco anos. Num dia, após deixar o garoto na empresa com o pai, ela descobre que o local foi alvo de um ataque terrorista, matando os dois. A mulher parte para uma batalha jurídica em busca da justiça.

A premissa de "Em Pedaços" é pra lá de simplista - dá para puxar da memória diversos filmes com tramas parecidas. O que a obra se destaca é pelos conflitos intrínsecos à morte de Nuri e Rocco. Por ele ser curdo -  grupo étnico do Oriente Médio -, Katja suspeita que o ataque foi proferido por um grupo neo-nazista, o que acabará se mostrando correto. E estamos falando da Alemanha, onde a sombra do Terceiro Reich assombra a população até hoje. Há aqui um conflito bem mais complexo e com garras nas entranhas sociais daquela realidade.


Puxando rapidamente para o Oscar de "Filme Estrangeiro" mais uma vez, em 2018 quatro filmes eram figuras certas entre os finalistas: "Uma Mulher Fantástica", "Sem Amor", "A Arte da Discórdia" e "Corpo e Alma". A quinta vaga, que todos apostavam ser de "Em Pedaços", acabou com "O Insulto", do Líbano, que trata de um conflito entre um palestino e um libanês que param nos tribunais e reascendem a rivalidade entre os grupo, o que, curiosamente, é uma premissa e estrutura parecida com a de "Em Pedaços". Numa disputa entre os dois, "O Insulto" mereceu a vaga.

Um dos maiores sucessos de "Em Pedaços" é a maneira que o diretor Fatih Akin expõe a natureza humana diante daquela situação. A mulher acaba de perder o filho e o marido de forma brutal - quando ela pede para ver os corpos dos dois, a polícia diz que não há o que ver além de pedaços -, o que é uma imagem hedionda para se manter na mente, levando em conta ainda que se trata de assassinato premeditado. Com uma atuação que carrega o filme, Kruger derrama veracidade nesse momento tão complexo, e demonstra entrega para uma personagem que foge do rótulo de vítima e viúva desamparada. Estamos lidando com pessoas reais, cheias de falhas, e Katja rejeita a presença de quem ajudá-la e se joga nas drogas para entorpecer sua dor.

Além do próprio luto, ela deve lidar com a guerra fria entre seus pais e os pais de Nuri, que, lembremos, nunca aceitaram o casamento desde o princípio. Os sogros querem levar os restos mortais de Nuri para serem enterrados na Turquia, o que Katjia prontamente se nega - ela quer que o marido seja sepultado junto com o filho. Toda a situação é caminhar sobre ovos, já que a morte de Nuri foi acarretada por intolerância ali na Alemanha; é entendível o pensamento dos pais de querem o filho longe dali.


Enquanto saía da empresa do marido no dia do atentado, Katja vê uma garota colocar uma bicicleta com uma cesta fechada em frente ao local. O retrato-falado da suspeita leva à sua prisão, juntamente com a do namorado: na garagem dele foi encontrado materiais idênticos aos usados para fazer a bomba que matou Nuri e Rocco.

A película então se transforma num filme de tribunal. De um lado temos Katja e seu advogado, Danilo (Denis Moschitto); do outro os acusados e seu advogado, Haberbeck (Johannes Krisch). Enquanto Danilo é o fiel escudeiro de Katja - é ele que supre as drogas da cliente -, Haberbeck é o maior chavão do advogado-do-culpado que existe: ríspido, irônico, grosseiro e odioso, o binarismo entre "bem vs. mal" é sufocante. A impressão que o longa passa é que o advogado é reflexo perfeito de seu cliente, e não existe justificativa para alguém "bondoso" defender (juridicamente) dois claros culpados. A prerrogativa de julgamento justo perante um advogado não existe, porque, óbvio, só uma pessoa ruim pode defender (juridicamente) um neo-nazista.

Reforço os "juridicamente" pois qualquer pessoa possui o direito a um advogado em um processo jurídico, não importa os motivos que a levaram até ali, e o clichê do "advogado do diabo" em "Em Pedaços" é de uma falta de sutileza sem precedentes. A plateia consegue sentir mais raiva do próprio Haberbeck do que dos culpados, o que é bizarro.


E, sendo bem realista, esse molde "filme de tribunal" já está saturado. É uma saída fácil demais para criar linhas de argumentos e inserir o público na trama, feita à exaustão à essa altura do campeonato - dos 21 selecionados a "Filme Estrangeiro" do último Oscar que já vi, três são "filmes de tribunal". O que era um subgênero carregado de força e novidade nos tempos de "12 Homens e Uma Sentença" (1957) está além da obviedade agora.

E não satisfeito, o roteiro de "Em Pedaços" empurra situações forçadas para fazer a produção andar, como colocar testemunha de defesa que até uma criança de cinco anos perceberia a mentira estampada na cara - um amigo neo-nazista dos acusados traz provas forjadas de que eles não estavam na Alemanha no dia do atentado. A cereja do bolo é o veredito: mesmo com todas as provas, os indiciados são julgados inocentes pela "fragilidade" das evidências. Essa reviravolta inicia o último ato, quando Katja, refém da justiça, decide resolver as coisas ela própria. Após uma tentativa de suicídio, a mulher faz a própria bomba, com os mesmos materiais que mataram sua família, para matar os acusados. Ela tem mais nada a perder - e esse viés só reforça como a obra lida com pessoas de carne e osso, virtudes e defeitos, que perdem a razão perante cenários extremos.

"Em Pedaços", a produção como um todo, não consegue atingir os altos níveis de suas partes, com destaque para a performance de Diane Kruger e o importante debate sobre intolerância e as sequelas do nazismo, que ainda infeccionam o corpo social quase um século depois do fim da Segunda Guerra. A dramatização do ódio é palpável e, infelizmente, relevante no contexto conservador e totalitário que estamos vivendo ao redor do planeta - motivo pelo qual a obra recebeu mais apreço do que realmente merecia como produto cinematográfico. Vencer o Globo de Ouro com concorrentes como as obras-primas "Uma Mulher Fantástica", "Sem Amor" e "A Arte da Discórdia" é bastante contestável.

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